I - No âmbito co contrato de transporte internacional de mercadorias, cabe ao interessado (expedidor) efetuar a prova da entrega da mercadoria ao transportador e, bem assim, a prova de que este a não entregou no destino ou a entregou com avarias.
II - Para se eximir à responsabilidade pelo incumprimento da sua obrigação de resultado, já incumbirá ao transportador a prova de qualquer circunstância que o isente de responsabilidade pelo sucedido, ou seja, de uma circunstância excludente daquela responsabilidade.
III – Porém, o transportador responde pelos atos e omissões dos seus agentes e de todas as outras pessoas a cujos serviços recorreu para a execução do transporte, quando esses agentes ou essas pessoas atuam no exercício das suas funções (cfr. artigo 3.º da CMR).
Sumário do acórdão elaborado pela sua relatora nos termos do disposto no artigo 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil:
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RELATÓRIO
AUTORAS: A..., Lda., com sede na Rua ..., Lote ..., Parque Empresarial ..., ..., ....
B... S.L.U., com sede na Rua ..., ..., ..., ...20, ....
RÉ: C..., S.A., com sede na Rua ..., Edifício ..., ... – ..., ....
Por via da presente ação declarativa de condenação, pretendem as AA., agindo em coligação, obter da Ré o pagamento das quantias de €19.402,52, mais juros vencidos desde 13.5.2022 e vincendos (à 1.ª A.), reconhecendo-se que a 1.ª A. nada deve à Ré, e ainda o pagamento à 2.ª Ré, da quantia de € 1.496,07, tudo com juros legais vencidos desde a mesma data, bem como dos vincendos.
Alegaram para tanto ter contratado a Ré para, por terra, proceder ao transporte para Espanha, de mercadoria extensa (lotes de chapa), tendo a Ré vindo a sofrer um acidente por via do qual a maioria do produto transportado se perdeu ou danificou. Ré e sua seguradora alegam que tal sinistro ficou a dever-se ao mau acondicionamento da carga o qual teria sido efetuado pela A., o que as AA. não aceitam, pois dizem ter sido a Ré quem, por intermédio do seu funcionário, instruiu quanto ao acondicionamento, arrumação e amarração dos bens que transportou nos seus camiões.
Contestou a Ré afirmando que o seu motorista se deslocou às instalações da 1.ª A. para recolha da mercadoria tendo sido os trabalhadores desta quem carregou o material e o instalou no veículo, o que fizeram sem qualquer indicação do motorista da Ré ou da sua liderança no processo de arrumação ou acomodação dos bens. O trabalhador da Ré apenas procedeu à amarração e cintagem da mercadoria. Apesar dessa cintagem, com a inclinação da via, a carga acondicionada pelos funcionários da 1.ª A. movimentou-se e as cintas rebentaram, o que sucedeu porque os lotes foram dispostos de forma deficiente, na base os de menor dimensão e no topo os de maiores dimensões, ao invés do oposto.
Mais refere o disposto no art. 23.º/3 e 4 da Convenção relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), matéria a que as Rés responderam em audiência prévia.
Tendo sido realizado julgamento, veio a ser proferida sentença, datada de 20.3.2024, a qual julgou a ação procedente, condenando a Ré a pagar à 1.ª A. a quantia de €18.783,88, com taxa de juros comerciais, desde a citação, declarando nada dever a A. à Ré; mais condenou a Ré a pagar à 2.ª A. a quantia de € 1.496, , com idênticos juros.
O recurso vem interposto pela Ré que, com ele, visa a sua integral absolvição, aduzindo os argumentos que assim deixou em conclusões:
I -A douta sentença recorrida enferma de erro na apreciação das provas e bem assim faz errada interpretação e aplicação das normas in casu.
II - A douta sentença a quo cingiu-se à valoração como meios probatórios dos depoimentos das testemunhas AA, BB e CC.
III – Inexiste estribo probatório nos autos que consinta ao Tribunal a quo firmar que “ “(… a Ré não logrou ilidir a presunção de culpa sobre si impendida (…). Com efeito, ficou não provado as circunstâncias que poderiam excluir a responsabilidade da ré, no que tange à culpabilidade d expedidor – Facto não provado a), b), c) e d).
(…) Assim, é a Ré responsável a título contratual pelos danos provocados às Autoras.
(…) Nesta conformidade, é imperativo concluir pela responsabilidade contratual da ré por todos os prejuízos causados ao credor, ressarcindo-o de os danos à luz da teoria da diferença, com guarida nos artigos 562º e 566º do Código Civil.”
IV – A douta sentença recorrida fez tábua do depoimento da testemunha DD, única testemunha presente no ato de carregamento dos materiais no camião, mormente, no tocante aos procedimentos ali levados a cabo.
V – Ao invés do firmado na douta sentença recorrida, os depoimentos das testemunhas das Apeladas não permitem fixar como provado o ponto 18 dos factos provados e como não provados os factos das als. a), b). d) e f) da douta sentença a quo.
VI - Por ser assim, os pontos de facto versados do n.º 18 da douta sentença foram incorretamente julgados pelo Tribunal a quo, devendo ser considerados parcialmente provados, mantendo-se apenas no trecho “Os funcionários da Primeira Autora acondicionaram a mercadoria na galera do camião”
VII – Da prova produzida, mormente do depoimento da testemunha DD, e dos documentos juntos aos autos, nomeadamente, as guias CMR, serão o bastante para dar como provado os factos das al. cccc, os quais foram incorretamente considerados parcialmente provados.
VIII - A carga acidentada foi unicamente carregada e acondicionada pelo expedidor, conforme depoimento isento da testemunha DD, sendo tão só da 1ª Apelada, a responsabilidade de cuidar para que a mesma se encontre devidamente segura no reboque.
IX – Constitui obrigação da Apelante, enquanto transportadora, a de transportar as mercadorias desde o ponto de carga até ao de descarga, não impendendo sobre si qualquer obrigação adicional.
XII – A Apelante determinou que a viatura com a matrícula ..-RO-.., comparecesse nas instalações da 1ª Apelada, no dia 11/05/2022, para que aí fossem carregados os lotes de chapa, com destino a Barcelona, em Espanha, tendo o procedimento de carregamento sido exclusivamente efetuado pelos trabalhadores da Primeira Apelada, tendo os mesmos encabeçado o procedimento de armazenagem e acomodação dos materiais, dando nota à Apelante que a mercadoria se encontrava já carregada.
XIII – A queda da carga se deveu exclusivamente a conduta imputável à 1ª Apelada, porquanto coube tão só àquela o acondicionamento das placas, não existindo qualquer interferência da Apelante.
XIV- A Apelante não incumpriu com qualquer obrigação contratual ou dever técnico.
XV – O não Tribunal a quo decidiu sem fundamento, pela não desobrigação da responsabilidade da aqui Apelante.
XVI - Ao invés do sufragado na douta sentença recorrida, as AA. / Apelantes não lograram fazer prova da responsabilidade da Ré/Apelante no tocante ao carregamento dos materiais na galera do camião, e como tal, da responsabilidade dos prejuízos sofridos.
XVII - A douta sentença recorrida ao concluir pelo deferimento da pretensão das AA./Apeladas de condenação da R./Apelante, no pagamento dos prejuízos sofridos com os danos nas mercadorias, e bem assim, no não cumprimento do contrato, violou o disposto no n.º 4, do artigo 17º e artigo 18º da CMR.
XVIII – O Tribunal a quo decidiu erroneamente pela aplicação das normas dos artigos disposto no n.º 4, do artigo 17º e artigo 18º da CMR.
As AA. contra-alegaram, opondo-se à procedência do recurso.
Objeto do recurso:
- da impugnação da matéria de facto;
- da responsabilidade da transportadora pela avaria da mercadoria transportada.
FUNDAMENTAÇÃO
Matéria de facto dada como provada em primeira instância
1. As Autoras, no exercício das suas atividades profissionais, dedicam-se ao corte e comercialização de produtos metálicos, nomeadamente, aços de diversas qualidades, espessuras, dimensões e formas.
2. A Ré dedica-se ao transporte internacional de mercadorias.
3. Pela Guia de remessa ALB2575/2022N, datada de 11.05.2022, emitida pela Primeira Autora, para a cliente D... S.L, consta o seguinte:
Descrição dos produtos fornecidos: | Comp | Larg | Esp | Peso | Uni |
Chapa calienteS275-jr04-00- | 6280,00 | 2000,00 | 4 | 6540kg | 16 |
Dados do transportador: AT000181- C..., SA. Motorista: DD. Bultos: 3,00
4. Pela Guia de remessa ALB2576/2022N, datada de 11.05.2022, emitida pela Primeira Autora, para a cliente E... S.L, consta o seguinte:
Descrição dos produtos fornecidos: | Comp | Larg | Esp | Peso | Uni |
Chapa Decapada | 3020,00 | 1500,00 | 3 | 11410 | 100 |
Chapa decapada | 6020,00 | 1500,00 | 3 | 4970 | 23 |
Peso bruto: 16.380Kg Dados do transportador: AT000181- C..., SA. Motorista: DD. Bultos: 6,00 |
5. Pela Guia de remessa ALB1981/2022, datada de 11.05.2022, emitida pela Segunda Autora, para a cliente F... S.L, consta o seguinte:
Descrição dos produtos fornecidos: Chapa Cauente | Comp 6000,00 | Larg 2000,00 | Esp 5,00 | Peso 1.008 | Uni 2 | |
Peso total: 1008kg | ||||||
6971 | ...- … DE/08213- POLINYA | Normal | C... |
10. Em resposta ao e-mail supra descrito a Ré enviou um e-mail, datado de 10.05.2022, com o seguinte teor: "Bom dia. Consigo fazer. Carrega 11/05 de manhã e entrega 13/05 de manhã.
..-RO-.. VI-...51.
Aguardo ordem de carga. Obrigado".
11. Em 11.05.2023, a Primeira Autora enviou um e-mail à Ré com o seguinte teor: "bom dia. A carga sofreu alteração ficou 3 descargas, ainda tem disponibilidade para carregar e qual é o preço de carga? Obrigada "
6934 | ...- … DE/08213- POLINYA/...32 | APROVADA | C... |
…. | 10H-12H |
12. A Ré bem inteirada dos bens a transportar e da forma de o fazer (por terra), até porque já o fizera outras vezes antes para a Primeira Autora, aceitou efetuar o transporte da mercadoria descrita em 3, 4 e 5, mediante o preço de €1.168,50.
13. Pela Primeira Autora e pela Ré foi subscrita uma "declaração de expedição internacional CMR, sob o n.° ...48", onde consta a assinatura e carimbo da ré e da Primeira Autora na quadrícula n.° 22 e 23, com os seguintes campos preenchidos:
1. expedidor: A...
2. destinatário: E....
3. Lugar da entrega: "..., Espanha"
11.Peso bruto: 16.380kg
16. Transportador: C..., Matrícula: ..-RO-..
18.Reservas e observações do Transportador: "O transportador não é responsável pelos danos resultantes de deficiência do acondicionamento e das cargas e descargas da mercadoria" e bem assim "Carga carregada e estivada pelo expedidor".
21. Feito em: ..., em 11.05.22
14. Pela Primeira Autora e pela Ré foi subscrita uma "declaração de expedição internacional CMR, sob o n.° ...49", 'onde consta a assinatura e carimbo da ré e da Primeira Autora na quadrícula n.° 22 e 23, com os seguintes campos preenchidos:
1. expedidor: A...
2. destinatário: D... S.L
3. Lugar da entrega: "..., ..., Espana" 11.Peso bruto: 6540kg
16. Transportador: C..., Matrícula: ..-RO-..
18.Reservas e observações do Transportador: "O transportador não é responsável pelos danos resultantes de deficiência do acondicionamento e das cargas e descargas da mercadoria" e bem assim "Carga carregada e estivada pelo expedidor
21. Feito em: ..., em 11.05.22
15. Pela Segunda Autora e pela Ré foi subscrita uma "declaração de expedição internacional CMR, sob o n.° ...47', onde consta a assinatura e carimbo da ré e da Segunda Autora na quadrícula n.° 22 e 23, com os seguintes campos preenchidos:
1. expedidor: B...
2. destinatário: F... S.L
3. Lugar da entrega: "...32, F..., Espana" 11.Peso bruto: 1008kg
16. Transportador: C..., Matrícula: ..-RO-..
Já o dissemos noutros lugares que a garantia de um segundo grau de jurisdição em matéria de facto corresponde a um direito amplo das partes que não pode confundir-se com todo e qualquer dissentimento relativamente à ponderação jurisprudencial ajuizada em primeira instância.
Não é toda e qualquer insatisfação com a decisão factual que legitima o recurso nesta sede, mas apenas aquela que coloque em evidência um erro de julgamento (que não tem sequer que ser ostensivo) ou que demonstre desrespeito pelo que é o labor essencial da ponderação da prova, da sua concatenação e da sua avaliação à luz do que é verosímil e plausível ou, outras palavras, à luz da experiência que se espera do julgador.
Isso mesmo se aponta no ac. STJ, de 7.9.2017, no processo nº 959/09.2TVLSB.L1.S1: O nosso regime de sindicância da decisão de facto pela 2.ª instância tem em vista não um segundo julgamento latitudinário da causa, mas sim a reapreciação dos juízos de facto parcelares impugnados, na perspetiva de erros de julgamento específicos, o que requer, por banda do impugnante, uma argumentação probatória que, no limite, os configure.
Tendo por norte o que acabámos de expor, logo verificamos a falta de fundamento do recurso apresentado, quer no que tange ao fundo factual, quer ainda no que respeita à subsunção jurídica alcançada, ambas as atividades exaustiva e corretamente enquadradas na sentença sob censura.
Relativamente aos factos, ressuma, desde logo, à recorrente uma imprecisão no ponto 18 provado.
Diz-se aí o seguinte:
“Os funcionários da Primeira Autora acondicionaram a mercadoria na galera do camião, através de grua ou empilhadoras, seguindo as instruções do motorista da ré”.
Pretende a recorrente se dê apenas como demonstrado:
“Os funcionários da Primeira Autora acondicionaram a mercadoria na galera do camião”.
A diferença estará – retirando a parte do uso de grua ou empilhadoras – no seguimento ou não de instruções por parte do motorista da Ré.
Este motorista forneceu instruções para o acondicionamento da carga que, numa curva mais apertada, foi expelida do veículo porque as cintas se romperam?
E as cintas romperam-se por força de alguma das circunstâncias não provadas em a, b, d, e f que a Ré pretende ver dadas como provadas?
Vejamos quanto às instruções:
Neste tocante, o tribunal atendeu à prova direta (as guias CMR juntas a 12.2.2024 em nada auxiliam sobre saber quem e como acondicionou a carga e, menos ainda, por que razão a mesma caiu), sobretudo a produzida pelas testemunhas AA, supervisor desde há vários anos, com experiência vasta no trabalho de cargas e descargas, e BB, responsável de operações da A.
É certo que estas testemunhas – como, de resto, o motorista ao serviço da Ré, há apenas três anos, a testemunha DD – evidenciam ligações laborais às partes e, por via disso, os seus depoimentos devem ser apreciados com parcimónia.
Todavia, entre uns e outro, o que temos é uma abissal diferença de credibilidade: os primeiros depuseram de forma direta, escorreita, sem procurar mascarar a realidade, enquanto o segundo, que já estivera no local de carga outras vezes, procurou escamotear a sua responsabilidade nessa parte, o que não é congruente com o facto de ser a pessoa que iria, durante milhares de quilómetros, levar consigo carga pesada, com perigo para a sua vida e para terceiros.
Por essa razão, o alheamento que referiu ter sido a sua atitude neste ato de carga apresenta-se inverosímil. Um motorista de um camião que transporta toneladas de material não é apenas o condutor passivo da máquina, tem necessariamente de saber como está acondicionada a carga, sob pena de total irresponsabilidade sobre o que leva consigo e como o leva, com desprezo pela sua própria segurança e da dos demais que consigo cruzam.
De modo que, no confronto entre estes testemunhos, o relevo preponderante pende para os primeiros.
Não é crível que um motorista de pesados de mercadorias se alheie do modo de acondicionar uma carga cujo transporte é da sua responsabilidade durante milhares de quilómetros. Mais: tendo este motorista cintado e amarrado a carga, como está provado (ponto19), o que a Ré não escamoteia, caso a carga estivesse deficientemente acondicionada ou mal embalada – isto na ótica da Ré (art. 17.º da contestação) – não se vê por que razão este seu operário decidiu avançar para a viagem até Barcelona, com uma carga de toneladas nas traseiras, sabendo que a mesma estaria mal acondicionada.
Para além disso – e já no que tange à demonstração dos factos a, b, d) e f), que a Ré quer ver provados – não se percebe a pretensão da recorrente: pretende a mesma se dê como provado que o seu funcionário cintou e amarrou a carga (na ótica da Ré, já mal acondicionada antes disso) e o fez por instruções das AA., não curando, ele próprio, de evitar o seguimento da marcha perante tal situação de perigo, sobretudo quando teria verificado – como alega a Ré – que as chapas de maior dimensão estavam erradamente colocadas por baixo e as menores por cima?
Afinal, que responsabilidade será a deste motorista que – segundo diz – se ausentou do local enquanto terceiros acondicionaram a seu bel prazer a carga no camião que iria transportar e, depois, para além disso, ainda acedeu cintar e amarrar a carga que já estava acondicionada de forma deficiente apenas para satisfazer instruções do expedidor?
Obviamente, esta versão da Ré é absolutamente inaceitável e nenhuma prova razoável se pode considerar efetuada a respeito de uma tal hebetante alegação.
Por fim, afigura-se-nos inaceitável que uma empresa que se dedica ao transporte pesado de mercadorias possa afirmar sem corar caber à transportadora apenas o transporte das mercadorias, sendo-lhe indiferente como este é feito (não lhe cabendo qualquer obrigação adicional – conclusão IX do recurso)[1].
Termos em que se indefere a impugnação da decisão de facto.
Fundamentação de Direito
Tendo soçobrado a impugnação de facto, todo o edifício recursivo se esboroa e tanto bastaria para julgar o recurso improcedente porquanto a matéria de facto não foi alterada (art. 663.º, n.º 6, CPC).
A recorrente pontua, no entanto, pela violação do disposto nos arts. 17.º/4 e 18.º da CMR.
Escreveu Cervantes no Prólogo ao “Engenhoso Fidalgo D. Quixote de la Mancha” que “sem que eu jure, poderás acreditar que eu gostaria que este livro, como filho da inteligência, fosse o mais formoso, o mais airoso e mais sensato que se possa imaginar. Mas não pude contrariar a ordem da natureza, que nela cada coisa engendra uma sua semelhante”, “porque me acho incapaz de suprir essas faltas, pela minha insuficiência e poucas letras, e porque, pela minha natureza, sou mole e preguiçoso para andar em busca de autores que digam o que sei dizer sem eles”.
O maior romancista da história tinha argumentos de peso para dizer o que de mais interessante se escreveu na história das letras e da consciência humana.
Por assim ser, no tocante à subsunção jurídica, quedar-nos-emos pelo que de bem escrito consta da sentença recorrida, apenas pontuando aqui e ali com referências às normas citadas nas conclusões de recurso.
Diz-se na sentença, entre o mais:
«(…) a Convenção Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (doravante apenas CMR ou somente Convenção) «aplica-se a todos os contratos de transporte de mercadorias por estrada a título oneroso por meio de veículos, quando o lugar do carregamento da mercadoria e o lugar da entrega previsto, tais como são indicados no contrato, estão situados em dois países diferentes, sendo um destes, pelo menos, país contratante e independentemente do domicílio e nacionalidade das partes». – cfr. artigo 1º, n.º 1.
Portugal, tal como a Espanha, é um Estado parte, tendo ratificado a convenção em
22.09.1969 e, através do Decreto-Lei n.º 46/235 de 18.03.65, aprovou-a.
Ora, designa-se de contrato de transporte internacional de mercadorias a convenção pela qual alguém (transportador) se obriga perante outrem (expedidor), mediante um preço, a realizar, por si ou por terceiro, a mudança de coisas de um local (designado local de expedição) para outro (destino), sitos em países diferentes.
(…)
Nos termos do artigo 9.º da Convenção, a declaração de expedição, até prova em contrário, faz fé das condições do contrato e da receção da mercadoria pelo transportador No n.º 2 deste artigo 9.º Na falta de indicação de reservas motivadas do transportador na declaração de expedição, presume-se que a mercadoria e embalagem estavam em bom estado aparente no momento em que o transportador as tomou a seu cargo, e que o número de volumes, as marcas e os números estavam em conformidade com as indicações da declaração de expedição.
Igualmente, o transportador considera-se responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega, presumindo-se a sua culpa (cfr. artigo 17.º do referido diploma legal).
Com efeito, de acordo com o disposto no art.º 17.º, n.º1 da CMR, o transportador é responsável pela perda total ou parcial ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega.
(…)
Por outro lado, e como o evidencia o já mencionado Acórdão do STJ 14.6.2011, disponível em www.dgsi.pt, considerando que se está na presença de uma prestação de resultado final, em que o transportador se encontra obrigado a alcançar o efeito útil, contratualmente previsto, «basta ao credor demonstrar a não verificação desse resultado, ou seja, a não entrega da mercadoria pelo transportador, no local e tempo acordados, para estabelecer o incumprimento do devedor, sendo, então, que este apenas se desonera da responsabilidade, através da impossibilidade objetiva e não culposa da prestação, provando que a inexecução é devida a causa que lhe não é imputável, como, por exemplo, a existência de fatores externos que a excluam, de circunstâncias exoneratórias da sua responsabilidade, previstas pelas disposições conjugadas dos artigos 17º, nº 2 e 18º, da Convenção CMR.».
(…)
Quanto à natureza da responsabilidade de transportador, na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem-se entendido que incumbe ao credor a prova da perda da mercadoria e que a CMR não estabelece qualquer presunção do dano favorável ao credor, mas contém uma presunção de culpa do devedor/transportador, quando já se mostra provada a perda da mercadoria, por força do teor dos arts. 17.º e 18.º da CMR. (cf. Acórdão Supremo Tribunal de Justiça de 6.04.2021, processo n.º 21305/18.9T8PRT.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt)
Por Acórdão de STJ de 05-06-2012, Revista n.º 3303/05.4TBVIS.C2.S1: “Nas prestações de resultado, como acontece no contrato de transporte internacional de mercadorias por estrada, em que o transportador se encontra obrigado a alcançar o efeito útil contratualmente previsto, basta ao credor demonstrar a não verificação desse resultado, ou seja, a não entrega da mercadoria pelo transportador, no local e tempo acordados, para se estabelecer o incumprimento do devedor.” (…)
E mais adiante explica que o art. 17.º, n.º 1, da CMR estabelece uma “presunção de culpa do transportador, que só fica desobrigado desta responsabilidade, nos termos do 2, do mesmo art. 17, da CMR, se a perda, avaria ou demora teve por causa” alguma das previsões aí equacionadas.
Na verdade, tal como refere o ac. do Tribunal da Relação do Porto de 11.09.2023, proc. 1471/18.7T8VFR.P1, relatado por Eugénia Cunha, «[e]ncontrando-se a matéria da responsabilidade do transportador rodoviário internacional de mercadorias regulada nos artigos 17º a 29º, da CMR, é aquele artigo que, no nº1, consagra o princípio regra da responsabilidade do transportador, ao dispor: “O transportador é responsável pela perda total ou parcial, ou pela avaria que se produzir entre o momento do carregamento da mercadoria e o da entrega, assim como pela demora da entrega”, sendo que, tradicionalmente entendida tal responsabilidade como subjetiva, assente na culpa do transportador, com uma presunção de culpa, vem, atualmente, a ser tida como responsabilidade objetiva, pois sendo o objeto do contrato de transporte uma obrigação de resultado, se este não for cumprido gera-se uma presunção de responsabilidade, a cobrir todos os pressupostos da responsabilidade civil, com exceção dos danos, estes sempre a provar pelo interessado.»
Ora, como explica Mónica Alexandra Pereira - a que acima já fizemos referência - na sua dissertação de mestrado, apresentada à UP e intitulada O Contrato de Transporte de Mercadorias Rodoviário - A Responsabilidade do Transportador, 2011 (p. 20), ao confrontar os dois regimes (o do transporte nacional com o do transporte internacional), “o art. 17.º, n.º 4 da C.M.R. acrescenta ainda que o transportador fica exonerado da responsabilidade quando a perda ou avaria resulte de riscos inerentes ao uso de veículos abertos e não cobertos com encerado, quando este uso foi ajustado de maneira expressa e mencionado na declaração de expedição (a presunção do art. 18.º não se aplica neste caso se houver falta de uma importância anormal ou perda de volume); à natureza de certas mercadorias, sujeitas, por causas inerentes a essa própria natureza, quer a perda total ou parcial, quer a avaria, especialmente por fractura, ferrugem, deterioração interna e espontânea, secagem, derramamento, quebra normal ou acção de bicharia e dos roedores; ao transporte de animais vivos (o transportador só pode invocar este benefício se apresentar provas de que, tendo em conta as circunstâncias, tomou todas as medidas que normalmente lhe competiam e acatou as instruções especiais que lhe possam ter sido dadas.). Temos pois, que o regime exoneratório da C.M.R. é um pouco mais amplo que a lei portuguesa. Nos termos do art. 18.º da C.M.R. cabe ao transportador fazer prova de que a perda, avaria ou demora teve como causa um dos factos enumerados no n.º 2 e n.º 4 do art. 17.º da C.M.R.. No entanto, no que toca ao n.º 4 do art. 17.º, se o transportador provar que a perda ou avaria teve como causa algum dos factores aí previstos, presume-se que a perda ou avaria resultou do mesmo».
Mais adiante esclarece:
Por último, no que concerne ao ónus da prova, o nosso ordenamento jurídico estabelece como regra geral que aquele que invoca um direito tem de fazer prova dos factos constitutivos do direito alegado (art. 342.º, n.º 1 do Código Civil). Contudo, salvaguarda, no art. 344.º, n.º 1 do Código Civil que esta regra inverte-se “quando haja presunção legal, dispensa ou liberação do ónus da prova, ou convenção válida nesse sentido, e, de um modo geral, sempre que a lei o determine.”. Ora, no âmbito da responsabilidade contratual por incumprimento não imputável ao devedor (art. 790.º do Código Civil), vigora a regra geral referida. Todavia, perante a responsabilidade contratual culposa do devedor (art. 798.º do Código Civil), o art. 799.º, n.º 1 do Código Civil constitui uma inversão ao ónus da prova, porquanto estatui que “[I]ncumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não procede de culpa sua.”, pelo que caberá ao transportador ilidir a presunção de culpa que incide sobre si, tendo de provar que a falta de cumprimento ou cumprimento defeituoso da obrigação que assumiu face ao expedidor não se deveu a culpa sua» (p. 26).
Perante estas explicações, queda-se da maior acuidade a ponderação da primeira instância:
«In casu, provou-se, que a mercadoria foi entregue ao transportador, que a aceitou no estado em que se encontrava (não tendo feito qualquer reserva quanto ao estado da mercadoria - artigo 9, n.º 2, da CMR, ainda que se vislumbrem reservas que infra falaremos), tendo sido nesse dia assinadas as correspondentes guias de transporte (facto 13, 14, 15). O carregamento foi feito pelos trabalhadores da Primeira Autora, mas foi o motorista da Ré procedeu à amarração e cintagem da mercadoria.
No dia 13.05.2022, durante o transporte da mercadoria, de Portugal para Espanha, na autoestrada em Espanha, na sequência de uma curva mais acentuada, as cintas romperam-se e parte das chapas transportadas, foram expelidos do veículo, acabando por cair na estrada.
E que nenhuma da mercadoria transportada chegou ao destino, havendo, por outro lado, mercadoria danificada (cf. factos provados 19 a 22).
Portanto, concluiu-se, desde logo, por não ter chegado ao destino que as Autoras viram a sua mercadoria perdida (artigo 20.º da Convenção) que consubstancia um dano com o transporte efetuado pela Ré Transportadora. Assim, incumbia à Ré afastar a presunção de culpa que decorre do artigo 17.º.
Para isso, deve atender-se aos seguintes artigos:
O art. 17.º, n.º2 da CMR prevê a exclusão da responsabilidade do transportador se a perda, avaria ou demora se dever a: a) Culpa do interessado; b) Ordem do interessado; c) Vício próprio da mercadoria; d) Circunstâncias que o transportador não podia evitar e a cujas consequências não podia obviar, e o ónus da prova da verificação de qualquer das situações que permitem a exclusão da responsabilidade cabe, ao transportador: conforme resulta dos princípios gerais sobre a repartição do ónus da prova (art. 342.º, n.º 2 CC).
Ou conforme artigo 17.º, n. º4, da CMR: Tendo em conta o artigo 18.º, parágrafos 2 a 5, o transportador fica isento da sua responsabilidade quando a perda ou avaria resultar dos riscos particulares inerentes a um ou mais dos factos seguintes: a) Uso de veículos abertos e não cobertos com encerado, quando este uso for ajustado de maneira expressa e mencionada na declaração de expedição; b) Falta ou defeito da embalagem quanto às mercadorias que, pela sua natureza, estão sujeitas a perdas ou avarias quando não estão embaladas ou são mal embaladas; c) Manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que atuem por conta do expedidor ou do destinatário; d) Natureza de certas mercadorias, sujeitas, por causas inerentes a essa própria natureza, quer a perda total ou parcial, quer a avaria, especialmente por fractura, ferrugem, deterioração interna e espontânea, secagem, derramamento, quebra normal ou acção de bicharia e dos roedores; e) Insuficiência ou imperfeição das marcas ou dos números dos volumes; f) Transporte de animais vivos.
Dispondo, por sua vez o artigo 18.º, n. º 2: Quando o transportador provar que a perda ou a avaria, tendo em conta as circunstâncias de facto, resultou de um ou mais dos riscos particulares previstos no artigo 17º., parágrafo 4, haverá presunção de que aquela resultou destes. O interessado poderá, no entanto, provar que o prejuízo não teve por causa total ou parcial um desses riscos.
É desta presunção que a aqui Ré, transportadora, se pretenderia fazer valer na sua defesa, ao alegar que foram os funcionários da expedidora quem procedeu ao carregamento e acondicionamento da mercadoria em causa, pois que resulta do nº 4 do art 17º que «o transportador fica isento da sua responsabilidade quando a perda ou avaria resultar dos riscos particulares inerentes, entre o mais, ao facto referido na sua al c)»: o da «manutenção, carga, arrumação ou descarga da mercadoria ter sido (feita) pelo expedidor ou pelo destinatário ou por pessoas que atuem por conta do expedidor ou do destinatário».
Sucede que a Ré não logrou provar a matéria em causa. In casu, conforme ficou demonstrado, não obstante o carregamento da mercadoria na galera do camião da Ré ter sido feito pelos trabalhadores da Primeira Autora, acondicionaram a mercadoria na galera do camião, através de grua ou empilhadoras, seguiram as instruções do motorista da ré (Cf. facto provados n.º 17 e 18).
E, por outro lado, a ré também não logrou provar que, não obstante o carregamento ter sido feito pelos funcionários da Primeira Autora, acomodação foi feita colocando os lotes de maior dimensão em cima e os de menor dimensão em baixo e, nem tão pouco, que a queda se deveu à acomodação, pois uma implica a outra (factos não provados c) e d)).»
Por conseguinte, não vingará a isenção da responsabilidade do transportador a que se reporta o artigo 17.º, n.º 4, alínea c) (cfr. artigo 18.º n.º2) da Convenção, não tendo a ré provado qualquer circunstância suscetível de a desresponsabilizar pela perda e avaria da mercadoria transportada, pelo que terá esta de ser responsabilizada por esses factos.
Importa, ainda, fazer referência à reserva contida da CMR dos autos, pois a Ré invocou a sua desresponsabilidade com base nela.
No caso vertente conforme factos provados 12 a 14, a CMR continha a seguinte reserva: O transportador não é responsável pelos danos resultantes de deficiência do acondicionamento e das cargas e descargas da mercadoria” e bem assim “Carga carregada e estivada pelo expedidor”.
É essencial perceber o que são as reservas apostas na n. º18 da guia de transporte do modelo uniforme.
Conforme se lê na pagina 293 do “Contrato de Transporte internacional rodoviário de Mercadorias- convenção CMR” de José Luís Saragoça “A reserva é uma declaração unilateral do transportador que enuncia uma ou várias circunstancias que o impedem de aceitar as indicações do expedidor, em relação às quais tenham uma razão séria para suspeitar que tais indicações não representam exatamente as mercadorias por ele recebidas e o seu estado ou em relação às quais não tenha tido meios razoáveis para verificar a exatidão.
As reservas devem ser específicas, não sendo válidas reservas genéricas que não indiquem, com precisão, as objeções do transportador quanto às menções de guia de transporte que representem o resultado das verificações por ele efetuadas.”
E continua “exemplo de reservas especificas: -o cartão n.º -10 estava aberto”- 10 volumes entregues e não treze(…)”.
Quanto às reservas genéricas também dá exemplos “- as mercadorias são aceites para transporte na condição de não estarem avariadas e da embalagem ser habitual; - as perdas ou avarias nas mercadorias transportadas são da responsabilidade do expedidor”.
Mais esclarece na página 294 “por esta razão, em princípio, não são admissíveis reservas previamente impressas ou apostas mediante carimbo”
Perante estas exemplificações e no confronto com a noção de “reservas do transportador” cremos que dúvidas não há sobre a classificação da reserva contida nesta CMR como genérica, pois não representa qualquer objeção do transportador após a verificação da mercadoria a ser transportada. Por outro lado, tendo sido previamente impressa (facto 31) também inculca a ideia de ser genérica e por isso, não poderá ser considerada válida, não vingando por isso a alegação da ré.»
Por estas razões, impõe-se a improcedência do recurso.
DISPOSITIVO
Pelo exposto, decidem os Juízes deste Tribunal da Relação julgar o recurso improcedente e manter a sentença recorrida.
Custas pela recorrente.
Porto, 21.10.2021
Fernanda Almeida
José Nuno Duarte
Anabela Morais
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[1] Adiante identificaremos a obra (disponível em linha: 24881.pdf (up.pt)), mas por ora subscrevemos as palavras de Mónica Pereira: “O transportador compromete-se a proporcionar um certo resultado, pois embora a deslocação seja a razão de ser do contrato de transporte, a colocação da mercadoria no lugar destinado é igualmente fundamental, porquanto de nada serve ao expedidor contratar o transportador para deslocar a mercadoria se este não a conseguir fazer chegar ao local de destino. Como tal, não é suficiente que realize todos os esforços ao seu alcance para tentar cumprir o contrato, uma vez que, aqui, deve o próprio resultado. Para além disto, para o cumprimento do contrato é necessário que a mercadoria chegue ao destino nas mesmas condições em que foi recebida pelo transportador, portanto o transporte das mercadorias não pode ser feito de qualquer maneira, deve ser realizado para que os bens cheguem ilesos ao destino. Assim, verificamos que há um conjunto de deveres laterais que devem ser observados pelo transportador, sem os quais não é possível alcançar o cumprimento perfeito do contrato8. O transportador tem o dever de proteger a mercadoria, devendo velar pela sua segurança de forma a prevenir a ocorrência de qualquer dano, perda ou avaria” (p. 16 e 17).