REAPRECIAÇÃO DA PROVA
MATÉRIA DE FACTO IRRELEVANTE
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
APRESENTAÇÃO DE PARTICIPAÇÃO CRIMINAL
Sumário

I – Na reapreciação da prova a Relação goza da mesma amplitude de poderes da 1.ª instância e, tendo como desiderato garantir um segundo grau de jurisdição relativamente à matéria de facto impugnada, deve formar a sua própria convicção.
II - Atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de atos inúteis (artigo 130.º do CPCivil).
III - Na vigência do Código de Processo Civil anterior, mas igualmente após 01/09/2013, ocasião em que passou a vigorar a Lei 41/2003, de 26 de Junho (NCPC) a matéria de facto à qual há que aplicar o direito tem de cingir-se a verdadeiros factos e não a questões de direito ou a meros juízos conclusivos, razão pela qual a revogação do artigo 646, n.º 4 do anterior CPC, não significa que o princípio nele estabelecido haja sido alterado devendo, assim, eliminar-se da fundamentação factual os pontos que neles se contenham meras conclusões.
IV - Da mera apresentação de uma participação criminal e sua posterior tramitação, não se pode imputar aos apresentantes qualquer atuação ilícita e culposa, porquanto constitui o exercício legal de um direito que é reconhecido em sede constitucional e processual penal, sendo que, só o exercício excessivo desse direito pode ser censurável.
V - O elemento descritivo típico da denúncia caluniosa consiste na consciência da falsidade da imputação do que se alega e pretende provar–má-fé substancial ou material–, não sendo, porém, uma mera resultante lógica da absolvição do arguido da correspondente factualidade.
VI - A falta de acervo factual que permita a verificação da factie species do crime de denúncia caluniosa inibe a configuração dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, por factos ilícitos, decorrentes da afirmação ou da divulgação de um facto suscetível de pôr em perigo o crédito ou o bom-nome de uma pessoa, razão pela qual, nada tem ficado provado sob tal conspecto, não se pode considerar ilícita a conduta dos réus falhando, assim, um dos pressupostos da facti species dos artigos 483.º e 484.º do CCivil.

Texto Integral

Processo nº 706/22.3T8AMT.P1-Apelação

Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este-Juízo Local Cível de Amarante
Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Dr. António Mendes Coelho
2º Adjunto Des. Dr. Nuno Araújo
5ª Secção
Sumário:
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Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

I-RELATÓRIO
AA, residente na Rua ..., n.º ...–3º, Felgueiras, intentou a presente ação comum contra BB e mulher CC, residentes na Rua ..., Amarante e DD, residente na Rua ..., ..., impetrando a condenação solidária dos réus a pagarem ao autor a indemnização global de € 29.840 euros, sendo € 20.000 euros a indemnização por danos morais e € 9.840 euros a indemnização por danos patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até efetivo e integral pagamento.
Em arrimo da sua pretensão, traçou o autor a seguinte narrativa fáctica:
- Que intentou contra os réus BB e mulher CC e DD o processo de execução n.º 2622/16.9T8LOU que correu termos pelo Juízo de Execução de Lousada J1, do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este. O título executivo era um escrito denominado “Declaração de Dívida”, datado de 18 de dezembro de 2008, assinado pelos réus e, no qual, eles se reconheciam devedores a EE da quantia de € 350.000 euros, a pagar em prazo nunca superior a cinco anos;
- O crédito de € 350.000 euros foi cedido pelo EE ao autor, por escrito de cessão de créditos de 12 de janeiro de 2016, onde aquele cedente garantia expressamente ao cessionário a existência e a exigibilidade do crédito objeto da cessão;
- No processo de embargos de executado que correu termos por apenso ao processo de execução, foi sentenciado que as assinaturas, na declaração de dívida, tinham sido falsificadas;
- Em 27 de Julho de 2016, os réus apresentaram nos Serviços do Ministério Público do Núcleo de Amarante do Tribunal Judicial da Comarca de Porto-Este, uma queixa-crime contra o autor e EE, que deu origem ao Proc. n.º 364/16.4T9AMT do Juízo Local Criminal de Amarante. Nesta queixa-crime (art.º 85) os denunciantes, ora réus, imputaram ao autor e ao EE, em autoria material, o crime de falsificação de documento previsto e punido nos termos do artigo 256º, n.º 1, alínea a), do Código Penal exarando no art.º 57 “Os denunciados ou alguém a seu mando elaboraram o documento dolosamente, bem como, dolosamente falsificaram as assinaturas dos denunciantes, agindo assim, com livre e consciente vontade e com a intenção de prejudicar os ora denunciantes”;
- Em 15 de Abril de 2019, o Ministério Público deduziu acusação contra o autor e EE, acusando-os de terem cometido em coautoria material, sob a forma consumada, um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256º, n.º 1, alíneas a), c), d) e e), do Código Penal;
- Por sentença de 10 de setembro de 2021, o autor foi absolvido da prática do crime de falsificação de documento e o EE condenado pela prática do mesmo crime na pena de 26 meses de prisão. Esta sentença transitou em julgado relativamente ao arguido AA, ora autor, em 11 de outubro de 2021;
- Os réus sempre souberam que foi o EE que falsificou ou mandou falsificar as suas assinaturas na confissão de dívida, mas resolveram imputar a coautoria de tal crime ao autor por ter sido ele que deu a declaração de dívida, à execução, enquanto título executivo;
- E sempre tiveram conhecimento de que o autor não forjou nem mandou forjar a declaração de dívida;
- Apresentando a queixa, bem sabendo que o autor não forjara as assinaturas e com o único intuito de contra ele ser movido procedimento criminal;
- A instauração do inquérito, com a consequente constituição do autor como arguido, causou ao autor preocupação, desgosto, apreensão, insónias, cefaleias e nervosismo;
- -O autor é considerado pelos que o conhecem como pessoa séria, honesta e trabalhadora, tendo desempenhado até há poucos anos atrás a sua atividade de arquiteto, de forma tida pelos seus clientes como zelosa e prestigiada.
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Citados os réus, contestaram, defendendo-se por impugnação e por exceção, tendo quanto a esta última esgrimindo a prescrição da responsabilidade extracontratual por factos ilícitos, exceção essa julgada improcede no despacho-saneador, mais imputando ao autor uma conduta dolosa como litigante de má-fé e aspirando à sua condenação em multa e indemnização aos réus.
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Teve lugar a audiência final que decorreu com observância das formalidades legais.
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A final foi proferida decisão que, julgando a ação improcedente, por não provada, absolveu os réus do pedido contra eles formulados.
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Não se conformando com o assim decidido veio o Autor interpor o presente recurso concluindo da seguinte forma:
1.ª – Por serem relevantes para a decisão da presente ação, devem ser dados como provados os factos alegados nos arts. 14º a 18º da petição inicial, pois estão provados por documento (certidão judicial);
2.ª – Além disso, os R.R. confessaram no art.º 14º da contestação os factos alegados nos arts. 14º, 15º, 17º e 18º da petição inicial, pelo que, nos termos do disposto nos arts. 46.º e 574.º do C.P.C., têm-se por confessados;
3.ª – Assim, deve ser dado como provado que no ponto 91 da referida queixa-crime os aqui R.R. afirmaram que “…tudo indica que terá sido o denunciado EE ou alguém a seu mando quem falsificou as assinaturas e o documento” (doc. n.º 1–pág. 9, com negrito e sublinhado nossos);
4.ª – Por outro lado, também deve ser dado como provado que no ponto 88 da queixa-crime os R.R. afirmaram: “Com efeito o Denunciado EE sabia que ao elaborar o documento e posteriormente ceder o crédito estava a prejudicar patrimonialmente os Denunciantes e a denegrir a sua imagem, honra e bom nome” (doc. n.º 1 – pág. 9, com negrito nosso);
5.ª – Também deve ser dado como provado que os R.R. declararam no ponto 48 da participação-crime que não conheciam o denunciado e aqui A., tendo inclusivamente isto sido confessado pelos R.R. no art.º 13º da sua contestação (doc. n.º 1–pág. 6 v.);
6.ª – Como também deve ser dado como provado que o R. e denunciante BB sustentou em sede de inquirição em 13 de Março de 2017 que “Não sabe de quem se trata o cidadão AA, este encontra-se mencionado como denunciado em virtude de ter sido este cidadão a requerer uma ação executiva na Comarca do Porto Este–Lousada–Unidade Central, supostamente em virtude do lesado lhe ser devedor de 350.000€, dívida esta que nunca existiu. A qual foi falsamente elaborada pelo “EE” em “declaração de dívida” cf. fls. 57 datada de 18-12-2008” (doc. n.º 1–pág. 47, com negrito nosso).
7.ª – E igualmente também deve ser dado como provado que tudo isto foi igualmente sustentado pelo denunciante/ofendido e aqui R. DD em sede de inquirição em 13 de março de 2017 (doc. n.º 1–pág. 55);
8.ª – Por estarem provados por documento (certidão judicial) e por terem sido confessados pelos R.R. no art.º 13º da sua contestação, também devem ser dados como provados os factos alegados nos arts. 12º e 13º da petição;
9.ª – Assim, deve ser dado como provado que a aludida sentença penal estipula que não se provou “Que o arguido AA tenha elaborado, em conjunto com o arguido EE o documento aludido supra em 1) e que tenha agido em conjugação de esforços com este com vista a causar prejuízo patrimonial aos assistentes no valor suprarreferido em 9)” e que o R. BB “Por fim, e com relevo, referiu clara e expressamente que a sua perceção é a de que quem falsificou a declaração de fls. 57 foi só o arguido EE, o que, na ausência de prova palpável contra o arguido AA nos faz também duvidar da sua intervenção na falsificação de declaração em causa” (doc. n.º 1–pág. 75 v., com negrito nosso);
10.ª – Por conseguinte, e como está demonstrado por prova documental, os R.R. sabiam desde sempre que foi o referido pretenso credor EE que falsificou ou mandou falsificar as suas assinaturas na aludida confissão de dívida e que o A. só foi denunciado pelos R.R. por ter sido ele a requerer a ação executiva tendo por título executivo essa referida confissão de dívida, que lhe tinha sido transmitida pelo pretenso credor EE por cessão de créditos de 12 de janeiro de 2016 e onde aquele cedente garantia expressamente ao cessionário a existência e a exigibilidade do crédito objeto da cessão;
11.ª – E isso mesmo foi corroborado pelas declarações de parte do R. DD e pelo depoimento da testemunha FF, filha dos R.R. BB e CC;
12.ª – Assim, face ao alegado, os suprarreferidos factos 1 a 3 dos Factos Não Provados devem ser dados como provados;
13.ª – Por outro lado, também deve ser dado como provado o facto alegado no art.º 28º da petição inicial, ou seja, que o A. para se defender no referido processo-crime teve de contratar um advogado, a quem teve de pagar a título de honorários a quantia de 9.840,00€;
14.ª – Com efeito, este facto está provado não só pelo recibo verde junto como documento n.º 2 com a petição inicial, como também pelo depoimento da testemunha GG, ex-mulher do A., conforme, aliás, reconhece expressamente a meritíssima juíza a quo na fundamentação de facto e análise crítica da prova;
15.ª – No caso sub Júdice estão preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos, uma vez que os denunciantes e aqui R.R. estavam plenamente conscientes da falsidade da imputação da falsificação das suas assinaturas na aludida confissão de dívida;
16.ª – E com todos estes factos provados a ação deve ser julgada procedente, por provada, revogando-se a sentença recorrida;
17.ª – A sentença recorrida violou o disposto nos arts. 413º, 46º e 574º do Código de Processo Civil e arts. 483º e 496º do Código Civil.
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Devidamente notificado contra-alegaram os Réus concluindo pelo não provimento do recurso.
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Corridos os vistos legais cumpre decidir.
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II- FUNDAMENTOS
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 4, e 639.º, nºs 1 e 2, do C.P.Civil.
No seguimento destas são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:
a)- saber se tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto;
b)- decidir em conformidade face ao julgamento da impugnação da matéria de facto.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
É a seguinte a matéria de facto que vem dada como provado pelo tribunal recorrido:
1-) O autor AA intentou contra os réus BB e mulher CC e DD o processo de execução n.º 2622/16.9T8LOU que correu termos pelo Juízo de Execução de Lousada J1, do Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este. O título executivo era um escrito denominado “Declaração de Dívida”, datado de 18 de dezembro de 2008, assinado pelos réus e, no qual, eles se reconheciam devedores a EE da quantia de € 350.000 euros, a pagar em prazo nunca superior a cinco anos.
2-) O crédito de € 350.000 euros foi cedido pelo EE ao autor, por escrito de cessão de créditos de 12 de janeiro de 2016, onde aquele cedente garantia expressamente ao cessionário a existência e a exigibilidade do crédito objeto da cessão.
3-) No processo de embargos de executado que correu termos por apenso ao processo de execução, foi sentenciado que as assinaturas, na declaração de dívida, tinham sido falsificadas.
4-) Em 27 de julho de 2016, os réus apresentaram nos Serviços do Ministério Público do Núcleo de Amarante do Tribunal Judicial da Comarca de Porto-Este, uma queixa-crime contra o autor e EE, que deu origem ao Proc. n.º 364/16.4T9AMT do Juízo Local Criminal de Amarante. Nesta queixa-crime (art.º 85) os denunciantes, ora réus, imputaram ao autor e ao EE, em autoria material, o crime de falsificação de documento previsto e punido nos termos do artigo 256.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal exarando no art.º 57.º “Os denunciados ou alguém a seu mando elaboraram o documento dolosamente, bem como, dolosamente falsificaram as assinaturas dos denunciantes, agindo assim, com livre e consciente vontade e com a intenção de prejudicar os ora denunciantes”.
5-) Em 15 de abril de 2019, o Ministério Público deduziu acusação contra o autor e EE, acusando-os de terem cometido em coautoria material, sob a forma consumada, um crime de falsificação de documento, previsto e punido pelo artigo 256.º, n.º 1, alíneas a), c), d) e e), do Código Penal.
6-) Por sentença de 10 de setembro de 2021, o autor foi absolvido da prática do crime de falsificação de documento e o EE condenado pela prática do mesmo crime na pena de 26 meses de prisão. Esta sentença transitou em julgado relativamente ao arguido AA, ora autor, em 11 de outubro de 2021.
7-) A instauração do inquérito, com a consequente constituição do autor como arguido, causou ao autor preocupação, desgosto, apreensão, insónias, cefaleias e nervosismo.
8-) O autor é considerado pelos que o conhecem como pessoa séria, honesta e trabalhadora, tendo desempenhado até há poucos anos atrás a sua atividade de arquiteto, de forma tida pelos seus clientes como zelosa e prestigiada.
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Factos não provados:
Temas de prova 1 a 3 e 6; a saber:
1-) Os réus sempre souberam que foi o EE que falsificou ou mandou falsificar as suas assinaturas na confissão de dívida, mas resolveram imputar a coautoria de tal crime ao autor por ter sido ele que deu a declaração de dívida, à execução, enquanto título executivo;
2-) Sempre tiveram conhecimento de que o autor não forjou nem mandou forjar a declaração de dívida;
3-) Apresentando a queixa, bem sabendo que o autor não forjara as assinaturas e com o único intuito de contra ele ser movido procedimento criminal;
4-) O autor intentou esta ação como retaliação da queixa-crime que os réus apresentaram, movidos unicamente pela convicção de que o autor estaria envolvido na falsificação e acreditando nesse envolvimento, fazendo o autor, deste processo, um instrumento de desforço contra os réus e um meio de locupletamento a suas expensas.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu a primeira questão que importa apreciar e decidir consiste em:
a)- saber se o tribunal recorrido cometeu erro na apreciação da prova e assim na decisão da matéria de facto.
O artigo 640.º do CPCivil estabelece os ónus a cargo do recorrente que impugna a decisão da matéria de facto, concretizando a forma como se processa a impugnação da decisão, reforçando o ónus de alegação imposto ao recorrente, prevendo que deixe expresso a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação em sede de reapreciação dos meios de prova.
Recai, assim, sobre o recorrente, face ao regime concebido, um ónus, sob pena de rejeição do recurso, de determinar com toda a precisão os concretos pontos da decisão que pretende questionar–delimitar o objeto do recurso-, motivar o seu recurso através da transcrição das passagens da gravação que reproduzem os meios de prova, ou a indicação das passagens da gravação que, no seu entendimento, impunham decisão diversa sobre a matéria de facto-fundamentação-e ainda, indicar a solução alternativa que, em seu entender, deve ser proferida pela Relação.
O controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar (até pela própria natureza das coisas) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialeticamente na base da imediação e da oralidade.
Ora, contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objeto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objetivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela sobre o julgamento do facto como provado ou não provado”.[1]
De facto, a lei determina expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador (artigo 607.º, nº 4 do CPCivil).
Todavia, na reapreciação dos meios de prova, a Relação procede a novo julgamento da matéria de facto impugnada, em busca da sua própria convicção, desta forma assegurando o duplo grau de jurisdição sobre essa mesma matéria, com a mesma amplitude de poderes da 1.ª instância.[2]
Impõe-se-lhe, assim, que “analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, quer a testemunhal, quer a documental, conjugando-as entre si, contextualizando-se, se necessário, no âmbito da demais prova disponível, de modo a formar a sua própria e autónoma convicção, que deve ser fundamentada”.[3]
Tendo presentes estes princípios orientadores, vejamos agora se assiste razão ao Autor apelante, neste segmento recursivo da impugnação da matéria de facto, nos termos por ele pretendidos.
Alega o apelante que devem, desde logo, ser dados como provados os artigos 12º, a 18º da petição inicial.
Esses pontos têm, respetivamente, a seguinte redação:
12º
“Na verdade, estipula a dita sentença que não se provou “Que o arguido AA tenha elaborado, em conjunto com o arguido EE o documento aludido supra em 1) e que tenha agido em conjugação de esforços com este com vista a causar prejuízo patrimonial aos assistentes no valor suprarreferido em 9)” (doc. n.º 1–pág. 71).
13º
Nessa sentença é ainda referido que o assistente BB “Por fim, e com relevo, referiu clara e expressamente que a sua perceção é a de que quem falsificou a declaração de fls. 57 foi só o arguido EE, o que, na ausência de prova palpável contra o arguido AA nos faz também duvidar da sua intervenção na falsificação de declaração em causa” (doc. n.º 1–pág. 75 v.).
14º
Ora, e antes de mais, já no ponto 91 da sua participação-crime os denunciantes, aqui R.R., afirmaram que “…tudo indica que terá sido o denunciado EE ou alguém a seu mando quem falsificou as assinaturas e o documento” (doc. n.º 1–pág. 9).
15º
Com efeito, no art.º 88 da participação-crime afirmam: “Com efeito o Denunciado EE sabia que ao elaborar o documento e posteriormente ceder o crédito estava a prejudicar patrimonialmente os Denunciantes e a denegrir a sua imagem, honra e bom nome” (doc. n.º 1–pág. 9).
16º
Aliás, os denunciantes declararam no ponto 48 da participação-crime que não conheciam o denunciado AA, aqui A. (doc. n.º 1–pág. 6 v.).
17º
E o denunciante e ofendido BB sustentou em sede de inquirição em 13 de março de 2017 que “Não sabe de quem se trata o cidadão AA, este encontra-se mencionado como denunciado em virtude de ter sido este cidadão a requerer uma ação executiva na Comarca do Porto Este–Lousada–Unidade Central, supostamente em virtude do lesado lhe ser devedor de 350.000€, dívida esta que nunca existiu. A qual foi falsamente elaborada pelo “EE” em “declaração de dívida” cf. fls. 57 datada de 18-12-2008” (doc. n.º 1–pág. 47).
18º
E tudo isto foi igualmente sustentado pelo denunciante/ofendido e aqui R. DD em sede de inquirição em 13 de março de 2017 (doc. n.º 1–pág. 55)”.
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Importa, porém, atentar que, com a prova de tal factualidade o que o apelante pretende é que se deem como provados os pontos 1-) a 3-) da resenha dos factos não provados.
Ora, os referidos pontos do elenco dos factos não provados não contêm quaisquer factos, antes encerram meras conclusões.
Analisando.
O primeiro dos citados pontos, contém inferências e juízos de valor sobre o conhecimento e as intenções dos réus, bem como sobre a imputação intencional de um crime ao autor. Ao invés de descrever factos objetivos e concretos, a frase apresenta uma interpretação subjetiva sobre o comportamento dos réus, mais especificamente acerca do que eles sabiam e por que razão imputaram a coautoria do crime ao autor.
Ora, o que devia ter sido alegado eram factos específicos de onde pudesse ser retirada tal conclusão, como por exemplo, factualidade que demonstrasse quando em que circunstâncias tiveram os Réus conhecimento desses factos, ou mesmo que ações concretas os realizaram para obter tal conhecimento.
O segundo faz uma inferência sobre o estado mental ou o conhecimento dos réus (isto é, o que eles “sabiam” ou “tinham conhecimento”), ao invés de relatar factos concretos e objetivos. A frase não descreve um facto observável, mas sim uma conclusão sobre o que os réus supostamente sabiam em relação à declaração de dívida e à não participação do autor em qualquer ato de falsificação.
Também aqui o que devia ter sido alegado era um continente factual que levasse a essa conclusão, como seja, porque meio os réus obtiveram esse conhecimento, quando e como foram informados de que o autor não esteve envolvido na falsificação, e outros detalhes objetivos capazes de demonstrar esse conhecimento.
O terceiro ponto faz também afirmações sobre o conhecimento dos réus (que teriam “sabido” que o autor não forjou as assinaturas) e sobre as intenções subjetivas dos mesmos ao apresentar a queixa (que teria sido com o “único intuito” de iniciar um procedimento criminal contra o autor).
Tais afirmações não descrevem factos concretos e objetivos que possam ser comprovados diretamente, mas sim uma interpretação ou conclusão sobre as motivações e o estado mental dos réus.
O que era necessário era a alegação de elementos objetivos que demonstrassem que os réus sabiam que o autor não falsificou as assinaturas e que o objetivo da queixa foi apenas gerar um procedimento criminal.
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Importa não esquecer que o artigo 607.º, nº 4 do CPCivil[4] dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz tomará em consideração os factos admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
No âmbito do anterior regime do Código de Processo Civil, o artigo 646.º, nº 4 do CPCivil, previa, ainda, que: têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documento, quer por acordo ou confissão das partes”.
Esta norma não transitou para o atual diploma, o que não significa que na elaboração da sentença o juiz deva atender às conclusões ou meras afirmações de direito.
Ao juiz apenas é atribuída competência para a livre apreciação da prova dos factos da causa e para se pronunciar sobre factos que só possam ser provados por documento ou estejam plenamente provados por documento, admissão ou confissão.
Compete ao juiz singular determinar, interpretar e aplicar a norma jurídica (artigo 607.º, nº 3 do CPCivil) e pronunciar-se sobre a prova dos factos admitidos, confessados ou documentalmente provados (artigo 607.º, nº 4).
Às conclusões de direito são assimiladas, por analogia, as conclusões de facto, ou seja, “os juízos de valor, em si não jurídicos, emitidos a partir dos factos provados e exprimindo, designadamente, as relações de compatibilidade que entre eles se estabelecem, de acordo com as regras da experiência”[5].
Antunes Varela considerava que deve ser dado o mesmo tratamento “às respostas do coletivo, que, incidindo embora sobre questões de facto, constituam em si mesmas verdadeiras proposições de direito”[6].

Em qualquer das circunstâncias apontadas, confirmando-se que, em concreto, determinada expressão tem natureza conclusiva ou é de qualificar como pura matéria de direito, deve continuar a considerar-se não escrita porque o julgamento incide sobre factos concretos.


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Desta forma, eliminam-se da resenha dos factos não provados os citados pontos.

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Isto dito, torna-se evidente, que ainda que se deem como provados os artigos 12º a 18ª da petição inicial, deles não se retiram as conclusões que os pontos 1º a 3º dos factos não provados encerram.
O artigo 12º contém uma afirmação proferida no âmbito da sentença penal, sendo que, da não prova de um facto não se retira o facto contrário.
O artigo 13º encerra igualmente de uma afirmação proferia pelo Réu BB sobre quem, segundo a sua perceção, terá falsificado a declaração de dívida.
Os artigos 14º e 15º expressam apenas a opinião dos Réus de quem terá falsificado a mencionada declaração de dívida.
O vertido nos artigos 16º 17º e 18 é inócuo, pois que, da afirmação feita pelos Réus de que não conheciam o Autor, não resulta que eles sempre souberam que foi o EE que falsificou ou mandou falsificar as suas assinaturas na confissão de dívida, e que sempre tiveram conhecimento de que o autor não forjou nem mandou forjar a referida declaração de dívida.
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Como assim, atento o carácter instrumental da reapreciação da decisão da matéria de facto, no sentido de que a reapreciação pretendida visa sustentar uma certa solução para uma dada questão de direito, a inocuidade da aludida matéria de facto para efeitos de dar como provado o requisito da ilicitude das conduta dos Réus para efeitos de preenchimento da factie species do artigo 483.º do CCivil, sua justifica que este tribunal indefira essa pretensão, em homenagem à proibição da prática no processo de atos inúteis (artigo 130.º do CPCivil).
Como refere Abrantes Geraldes,[7]De acordo com as diversas circunstâncias, isto é, de acordo com o objeto do recurso (alegações e, eventualmente, contra-alegações) e com a concreta decisão recorrida, são múltiplos os resultados que pela Relação podem ser declarados quando incide especificamente sobre a matéria de facto. Sintetizando as mais correntes: (…) n) Abster-se de conhecer da impugnação da decisão da matéria de facto quando os factos impugnados não interfiram de modo algum com a solução do caso, designadamente por não se visionar qualquer solução plausível da questão de direito que esteja dependente da modificação que o recorrente pretende operar no leque de factos provados ou não provados”.
Bem pode dizer-se, pois, que a impugnação da decisão sobre matéria de facto, neste conspecto, é mera manifestação de “inconsequente inconformismo[8], razão pela qual nos abstemos de reapreciar relativamente ao ponto em questão.[9]

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Pretende depois o apelante que devia ter sido dado como provado o artigo 28º da petição inicial.

Este ponto tem a seguinte redação:

Acresce, além disso, que o A. para se defender no referido processo-crime teve de contratar um advogado, a quem teve de pagar a título de honorários a quantia de 9.840,00€”.

Para o efeito convoca o documento nº 2 junto com a petição e o depoimento da testemunha GG, ex-mulher do Autor.

Diga-se, desde logo, que a materialidade factual contida neste artigo da petição inicial não foi contemplada na decisão da matéria de facto, pois que, não consta da resenha dos factos não provados.

Ora, tendo em atenção o pedido formulado e a sua componente indemnizatória, não se divisa a razão pela qual tal facto não foi objeto de decisão no julgamento da matéria de facto, a não ser, pois que outra circunstância não se nos antolha, por mero lapso do julgador.

Isto dito, com a petição inicial o apelante juntou cópia de um recibo verde da Autoridade Tributária do qual se extrai que foi pago o montante de € 9.840,00 relativo à prestação de serviços de advocacia no processo nº 364/16.4T9AMT do Juízo Criminal de Amarante, montante que a testemunha GG, ex-mulher do Autor, no seu depoimento confirmou ter sido pago.


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Como assim, adita-se aos factos provados o seguinte ponto:

9-) “O A. para se defender no referido processo-crime teve de contratar um advogado, a quem teve de pagar a título de honorários a quantia de 9.840,00€”.


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A segunda questão colocada no recurso prendia-se com:
b)- decidir em conformidade face ao julgamento da impugnação da matéria de facto.

Ora, permanecendo inalterado a fundamentação factual dada como assente pelo tribunal recorrido, exceto do que diz respeito ao aditamento do facto supra, nada temos a censurar à subsunção jurídica que dela fez o tribunal recorrido,

Na verdade, da apresentação da participação criminal e sua posterior tramitação, não se pode imputar aos réus qualquer atuação ilícita e culposa, porquanto constitui o exercício legal de um direito que é reconhecido em sede constitucional e processual penal, sendo que, só o exercício excessivo desse direito pode ser censurável.

Acontece que, para esse efeito, tinha de estar demonstrado nos autos que aquele exercício teve em vista denegrir a imagem e o bom-nome do autor, que a denúncia tivesse sido caluniosa, isto é, que os réus tivessem participado criminalmente contra a ora autor com consciência da falsidade da imputação, o que não tem respaldo no quadro factual que ficou provados nos autos.

Acresce que, o elemento descritivo típico da denúncia caluniosa consiste na consciência da falsidade da imputação do que se alega e pretende provar–má-fé substancial ou material–, não sendo, porém, uma mera resultante lógica da absolvição do arguido da correspondente factualidade.

Desta forma, a falta de acervo factual que permita a verificação dos elementos integrantes do crime de denúncia caluniosa inibe a configuração dos pressupostos da responsabilidade civil extracontratual, por factos ilícitos, decorrentes da afirmação ou da divulgação de um facto suscetível de pôr em perigo o crédito ou o bom-nome de uma pessoa, razão pela qual, nada tem ficado provado sob tal conspecto, não se pode considerar-se ilícita a conduta dos réus falhando, assim um dos pressupostos da facti species dos artigos 483.º e 484.º do CCivil.


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Nestes termos, procede a conclusão 13ª e improcedem todas as restantes e, com elas, o respetivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, confirmar a decisão recorrida.
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Custas pela Autora apelante (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 21/10/2024
Manuel Domingos Fernandes
Mendes Coelho
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo [com a seguinte declaração de voto:
“Concordando com a decisão, não acompanho, porém, as conclusões V e VI do seu sumário e correspondentes segmentos da fundamentação. Por considerar, ressalvando o devido respeito por opinião diversa, que é injustificada a indagação sobre os elementos típicos da denúncia caluniosa, pelo que, importaria apenas, em sede de qualificação jurídica apropriada para a causa de pedir, averiguar a responsabilidade civil por ofensa ao bom nome, cujos requisitos, nos termos dos arts. 483.º e 484.º do Código Civil, com aqueles elementos não são coincidentes. Desde logo, porque podem estar verificados mesmo que a imputação seja verdadeira (cfr., por todos, P. Lima e A. Varela, CC Anotado, I Vol., 4.ª ed., p. 486 e o Acórdão do STJ de 29/1/2015, processo 24412/02.6TVLLSB.L1.S1 in www.dgsi), ao passo que a denúncia caluniosa pressupõe que o agente conheça ou, pelo menos, tenha como segura a falsidade dos factos. Mas também porque a responsabilidade civil baseada na ofensa ao bom nome pode dar-se por mera culpa, na modalidade de negligência consciente (cfr. art. 483.º do CC e Acórdão do STJ de 20/4/2022, processo 28126/17.4 T8LSB.L1.S1, no mesmo sítio), enquanto o tipo criminal é necessariamente doloso. Assim, não subscrevo a ideia de que a falta de verificação dos elementos integrantes do crime de denúncia caluniosa impeça a presença dos requisitos da responsabilidade civil em causa. E entendo, com o devido respeito, que afastada a ilicitude da conduta, porque levada a efeito no exercício de um direito, que os factos apurados nos autos não demonstram ter sido excessivo, tanto bastaria para confirmar a sentença recorrida e que por aí deveria ter-se quedado a subsunção jurídica dela e do acórdão”.]
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[1] Miguel Teixeira de Sousa in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, p. 348.
[2] Cfr. acórdãos do STJ de 19/10/2004, CJ, STJ, Ano XII, tomo III, pág. 72; de 22/2/2011, CJ, STJ, Ano XIX, tomo I, pág. 76; e de 24/9/2013, processo n.º 1965/04.9TBSTB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[3] Cfr. Ac. do S.T.J. de 3/11/2009, processo n.º 3931/03.2TVPRT.S1, disponível em www.dgsi.pt.
[4] No que diz respeito aos factos conclusivos cumpre observar que na elaboração do acórdão deve observar-se, na parte aplicável, o preceituado nos artigos 607.º a 612.º CPCivil aplicáveis ex vi artigo 663.º, nº 2 do mesmo diploma legal.
[5] José Lebre de Freitas e A. Montalvão Machado, Rui pinto Código de Processo Civil–Anotado, Vol. II, Coimbra Editora, pág. 606.
[6] Antunes Varela, J. M. Bezerra, Sampaio Nora, Manual de Processo Civil, 2ª edição Revista e Atualizada de acordo com o DL 242/85, S/L, Coimbra Editora, Lda., 1985, pág. 648.
[7] In Recursos em Processo Civil Novo Regime, 2.ª edição revista e atualizada pág. 297.
[8] A.S. Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”; Almedina, 5.ª edição, 169.
[9] Importa lembrar que no preâmbulo do Dec. Lei n.º 39/95, de 15 de fevereiro (pelo qual foi introduzido o segundo grau de jurisdição em matéria de facto) o legislador fez constar que um dos objetivos propostos era “facultar às partes na causa uma maior e mais real possibilidade de reação contra eventuais (…) erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito (…)” (negrito e sublinhados nossos).