Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
CESSAÇÃO DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO
EFEITO DA REVELIA
DIREITO À HABITAÇÃO
Sumário
I - Os efeitos cominatórios da revelia são aplicáveis em sede de cessação do contrato de arrendamento, sem prejuízo da necessidade de junção dos documentos relativos aos factos cuja prova deles dependa. II - O direito à habitação tutelado na Constituição da República Portuguesa está previsto sobretudo como incumbência do Estado, tem de ser conciliado com outros direitos fundamentais, como o da propriedade privada, e não obsta a que lei preveja a cessação do arrendamento por oposição à sua renovação.
Texto Integral
Acção Despejo nº2379/24.0T8VNG.P1
ACORDAM OS JUÍZES QUE INTEGRAM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO UJO(3.ª SECÇÃO CÍVEL):
Relator: Nuno Marcelo Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
1.º Adjunto: Jorge Martins Ribeiro
2.º Adjunto: Manuel Fernandes
RELATÓRIO.
AA, titular do NIF ..., e BB, com o NIF ..., casados e residentes na Rua ..., União das freguesias ... e ..., em Vila Nova de Gaia, intentaram a presente acção declarativa para despejo, com processo comum, contra CC, NIF ..., solteira, residente na Alameda ..., ..., 5º Esq., freguesia ..., também em Vila Nova de Gaia, pedindo:
a) Seja declarada a cessação em 31 de dezembro de 2023, por caducidade, do contrato de arrendamento celebrado entre AA. e Ré sobre a fração autónoma designada pelas letras “AH”, correspondente a habitação com entrada pela Alameda ..., localizada no 5º andar esquerdo recuado, do corpo I, com arrumos na cave, integrada no prédio urbano melhor identificado no Art.º 1º do presente petitório;
b) Seja condenada a Ré na entrega imediata aos AA., livre de pessoas e bens, da fração autónoma melhor identificada na alínea antecedente;
c) Seja condenada a Ré, ao abrigo do disposto no Art. 1045º do C.P.Civil, no pagamento aos AA., a título de indemnização por cada mês ou fração que decorra até entrega do locado livre de pessoas e bens aos AA., no montante de: i. € 700,00 (€ 350,00 x 2), referentes aos meses de Janeiro e Fevereiro de 2024; ii. € 700,00 por cada mês que ocupe o imóvel após Março de 2024; iii. bem como juros vencidos e vincendos, calculados à taxa supletiva legal civil desde a data de vencimento de cada montante indemnizatório, até efetivo e integral pagamento; e
d) Seja condenada a Ré no pagamento do montante de € 100,44, suportado pelos AA. com a tentativa de interpelação daquela através de notificação judicial avulsa, acrescida de juros vincendos calculados à taxa supletiva legal civil desde a citação até integral pagamento.
Fundamentaram os pedidos, em síntese, na oposição à renovação do contrato com prazo certo, mediante carta de comunicação recebida em 02 de Fevereiro de 2023, dirigida à renovação que ocorreria em 31 de Dezembro de 2023, bem como na falta de pagamento do valor correspondente às rendas nos meses subsequentes e nas despesas suportadas pelos AA. para a realização da notificação judicial avulsa destinada à comunicação da cessação contratual.
Devidamente citada, a ré não ofereceu contestação.
Na sequência, foi proferida sentença que julgou a acção totalmente procedente e condenou a ré em todos os referidos pedidos.
Inconformada, a ré veio interpor recurso que foi admitido como apelação, com subida nos próprios autos e efeito suspensivo, da referida sentença, que rematou com as seguintes conclusões:
1. As ações cíveis não contestadas podem ser alvo de recurso pelo reu, que tem legitimidade para o efeito.
2. O Despejo deve ser sempre acompanhado de prova forte dos factos alegados pelos AA.
3. A ausência de prova faz inquinar a legitimidade da parte e o sucesso da lide.
4. A ausência de contestação não vale por confissão de factos pessoais dos AA. uma vez que não são factos passiveis de contradita.
5. Os AA. deviam ter demonstrado, através de documento – liquidação de IMI – que não possuíam qualquer outro imóvel para ser afeto à sua própria habitação ou de familiar próximo.
6. Na ausência de tal prova, deveria o tribunal a quo ordenar a junção de tal documento ou qualquer outro análogo, para os fins de demonstração firme dos factos alegados.
7. Não ausência de melhor prova, não existe matéria que legitime o Direito ao Despejo.
8. O Direito à Habitação é um Direito fundamental, sujeito à tutela constitucional, carecendo de tratamento diferenciado e bastante mais denso em virtude dos interesses em jogo.
9. Sendo um Direito Fundamental, qualquer despejo deve ser bem investigado, sob pena de se usarem meios lícitos no sentido de potenciar a especulação imobiliária.
Finalizou pedindo que, pela procedência do recurso, seja revogada a sentença e substituída por outra que absolva a Ré.
Os autores apresentaram resposta, na qual defenderam a improcedência do recurso e a manutenção da decisão recorrida, culminando com as seguintes conclusões:
I. Em face da violação do disposto do disposto no n.º 5 do Art. 139º do C.P.Civil deverá a Recorrente ser notificada para proceder ao pagamento da penalização prevista no n.º 6 do mesmo artigo;
II. Da análise das alegações da Recorrente não se extrai qualquer matéria factual ou de direito que determine decisão diversa da proferida na douta sentença Recorrida.
III. Pois, o presente recurso tem apenas por fim obstar ao trânsito em julgado da mesma.
IV. Fazendo um uso abusivo do presente meio processual.
V. Por conseguinte, em razão do disposto no Art. 542º do C.P.Civil, deverá ser determinado que a Recorrente litiga de má fé;
VI. E condenada a esse título em multa, bem como no pagamento de indemnização aos Recorridos no montante no valor de € 522,00 (Quinhentos e vinte e dois euros);
VII. Dos quais € 152,00 correspondem à taxa de justiça suportada pelos Recorridos para a apresentação das presentes contra-alegações de recurso e € 369,00 (trezentos e sessenta e nove euros) correspondem ao valor suportado pelos Recorridos com honorários de Mandatário para a elaboração e apresentação das presentes contra-alegações.
Nada obsta ao conhecimento do recurso, o qual foi admitido na forma e com os efeitos legalmente previstos.
*
OBJECTO DO RECURSO.
Sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso, o Tribunal só pode conhecer das questões que constem nas conclusões do recurso, as quais, assim, definem e delimitam o seu objeto (arts. 635º/4 e 639º/1 do CPC).
Assim sendo, importa em especial apreciar:
a) se não existe prova suficiente que justifique a legitimidade dos autores e o despejo decidido em primeira instância (conclusões 1 a 7);
b) se o direito fundamental à habitação deve obstar a tal despejo (conclusões 8 e 9).
Excluída do objecto do recurso fica a apreciação das questões novas suscitadas nas contra-alegações.
Quanto à primeira (conclusão I), porque a questão do cumprimento do disposto no art. 139.º do CPC deveria ter sido dirigida à primeira instância, a quem competia a sua apreciação, tendo ficado resolvida com a decisão que, não tendo merecido reparo posterior das partes, admitiu o recurso sem a imposição de qualquer penalidade acrescida.
Relativamente às restantes (conclusões III e segs.), porque os autores não interpuseram recurso, sequer subordinado, nem requereram a ampliação do seu objecto, nos termos do art. 636.º do CPC, sem prejuízo da possibilidade de conhecimento oficioso, se tal for justificado, da litigância de má-fé por parte da recorrente.
*
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO.
Importa considerar a factualidade relevante julgada provada em primeira instância, sem prejuízo da apreciação da questão relacionada com a falta de prova suscitada pela recorrente, incluindo da ausência de documento relativo à inexistência de outro imóvel para ser afeto a própria habitação dos autores ou de familiar próximo, cujo conhecimento por este Tribunal da Relação deverá ter lugar na parte subsequente desta decisão.
Assim, foram estes os factos em que se estribou o tribunal recorrido: 1) Os AA. são proprietários da fração autónoma designada pelas letras “AH”, correspondente a uma habitação com entrada pela Alameda ..., localizada no 5º andar esquerdo recuado, do Corpo I, com arrumos na cave, integrada no prédio urbano sujeito ao regime de propriedade horizontal, sito à Alameda ..., ..., freguesia ..., concelho de VilaNova de Gaia, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de Vila Nova de Gaia sob o nº ... da referida freguesia, inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo .... 2) Por contrato de arrendamento habitacional a termo certo, celebrado em 11 de dezembro de 2014, o supra identificado imóvel foi dado de arrendamento pelos AA. a DD (progenitora da Ré), que o aceitou, tudo conforme documento 3 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido. 3) No âmbito do referido contrato, foi estipulada a duração de um ano, com início em 01/01/2015 e fim em 31/12/2015, e a renovação automática por iguais períodos de duração. 4) Bem como, a renda anual de € 4.200,00 (quatro mil e duzentos euros), paga em duodécimos mensais de € 350,00 (trezentos e cinquenta euros) no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito. 5) Por carta registada com aviso de receção, datada de 31 de janeiro de 2023 e recebida (pela Ré) em 02 de fevereiro de 2023, foi comunicado pelos AA. à arrendatária, DD, a oposição à renovação do referido contrato, tudo conforme documento 4 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido. 6) Em 30 de novembro de dois mil e vinte e três os AA. remeteram nova carta com vista ao agendamento da entrega do locado livre de pessoas e bens. 7) Carta recebida em 20 de Dezembro de 2023, tudo conforme documento 5 junto com a petição inicial, que se dá por reproduzido. 8) À qual não foi obtida qualquer resposta. 9) Terminado o contrato de arrendamento em 31 de Dezembro de 2023. 10) Não foi o locado entregue aos AA. livre de pessoas e bens até à presente data. 11) Apesar da não receção pelos AA. de qualquer comunicação da Ré 12) Em janeiro de 2024 aqueles tomaram conhecimento que em 08 de junho de 2023 tinha falecido a arrendatária DD. 13) Sem que, desde tal data, tivesse ocorrido qualquer atraso ou falta de pagamento das rendas. 14) Os AA. têm também conhecimento que a ora Ré é filha da arrendatária e desde a celebração e inicio do contrato de arrendamento, reside no locado com a sua progenitora. 15) Onde ainda mantém a sua residência. 16) Os AA. realizaram, infrutiferamente, diversas interpelações para que a Ré procedesse à entrega do locado livre de pessoas e bens, 17) A última das quais através de notificação judicial avulsa distribuída sob o n.º 1248/24.8T8VNG do Juiz 2 do Juízo Local Cível de Vila Nova de Gaia do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, 18) E com a qual os AA. suportaram o custo de € 100,44. 19) No entanto, no seu seguimento a 29 de fevereiro de 2024, a ré recusou-se receber a mesma. 20) Mantendo-se na presente data, sem fundamento legal bastante, a ocupar o imóvel e recusando a sua entrega
*
O DIREITO. Sobre os factos e as provas indicadas pela recorrente.
As alegações do recurso convocam sobretudo a apreciação dos efeitos da revelia em tema de despejo, embora, por pretenderem colocar em crise a factualidade julgada provada, devam igualmente ser analisadas à luz das exigências impostas para a impugnação da matéria de facto.
Todavia, a admissibilidade do recurso nessa matéria depende do cumprimento dos ónus previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil, cujo nº1 impõe ao recorrente, no que agora importa, que especifique:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Enquanto o número 2 prevê que quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes.
É patente, porém, que no caso em apreciação a recorrente não deu cumprimento às referidas exigências e que, nessa parte, as suas alegações não resistem ao “critério de rigor” que preside à interpretação do referido art. 640.º do CPC, “como decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes”, “impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” e determinando, ao invés, que seja “rejeitada a admissibilidade de recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto” (Abrantes Geraldes, Dos Recursos em Processo Civil, pp. 195 e 201-2).
Conclusão que imediatamente se retira, na leitura das motivações do recurso, em atenção à inexistência de qualquer indicação sobre concretos pontos de facto incorrectamente julgados, à falta de menção aos específicos meios probatóriosque impusessem decisão diversa da recorrida sobre esses pontos e à total ausência de referência à decisão que, no entender de quem recorre, deveria ter sido proferida sobre os factos impugnados.
Tratou-se, pois, de mera manifestação de inconsequente inconformismo por parte da recorrente, legitimadora de decisão de rejeição ou improcedência do recurso, no que se refere, em especial, às suas primeiras três conclusões, sem prejuízo da questão jurídica cuja apreciação ele também suscita a respeito dos efeitos da revelia e que, em face de tal natureza, deverá ser conhecida em segmento ulterior do presente acórdão.
Acresce, agora especificamente a propósito das conclusões acima expostas em 5 e 6, a irrelevância das alterações propostas para a apreciação do mérito da causa.
Com efeito, a decisão que decretou o despejo fundamentou-se na circunstância de, estando em causa um contrato de arrendamento com prazo certo, ou não vinculístico, porque celebrado em finais de 2014, ao abrigo das regras do Novo Regime do Arrendamento Urbano, aprovado pela Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro, os senhorios terem eficazmente impedido a sua renovação, por carta datada de 31/01/2023, em conformidade com as exigências previstas no artigo 1097.º/1, a), do Código Civil.
De acordo com tal disposição legal, o senhorio pode impedir a renovação automática do contrato mediante comunicação ao arrendatário com a antecedência mínima seguinte: a) 240 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a seis anos; b) 120 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a um ano e inferior a seis anos; c) 60 dias, se o prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação for igual ou superior a seis meses e inferior a um ano; d) Um terço do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação, tratando-se de prazo inferior a seis meses.
Acrescentando o nº2 que a antecedência a que se refere o número anterior reporta-se ao termo do prazo de duração inicial do contrato ou da sua renovação, ao passo que o nº3 determina que a oposição à primeira renovação do contrato, por parte do senhorio, apenas produz efeitos decorridos três anos da celebração do mesmo, mantendo-se o contrato em vigor até essa data, sem prejuízo do disposto no número seguinte.
Ora, neste enquadramento jurídico em que se moveu a decisão recorrida, e que se afigura fundado em atenção ao pedido e à causa de pedir, é perfeitamente irrelevante a questão da faltarem documentos comprovativos de que os autores não possuíam qualquer outro imóvel para ser afeto à sua própria habitação ou de familiar próximo.
Uma vez que tal matéria apenas poderia ter interesse se o contrato de arrendamento dos autos tivesse sido celebrado com duração indeterminada e o fundamento do pedido de despejo radicasse na denúncia do contrato a que alude o art. 1101.º do Código Civil.
Não estando em causa nem uma coisa nem outra, mas apenas a oposição à renovação do arrendamento com prazo certo, impõe-se concluir que a matéria factual invocada no recurso e os documentos a que ela se refere, vistos o pedido e a causa de pedir, são manifestamente irrelevantes para a decisão sobre o mérito da causa.
Constatação que, de acordo com as regras gerais de gestão processual e de proibição da prática de actos inúteis, consagradas nos arts. 6.º e 130.º do CPC, determina a inviabilidade de, independentemente do cumprimento dos ónus previsto no art. 640.º daquele código, censurar a decisão recorrida pela falta dos referidos factos e documentos.
Com efeito, como tem sustentado a jurisprudência, “nada impede a Relação de apreciar se a factualidade indicada pelos recorrentes é ou não relevante para a decisão da causa, podendo, no caso de concluir pela sua irrelevância, deixar de apreciar, nessa parte, a impugnação da matéria de facto, por se tratar de ato inútil” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09/02/2021, tirado no processo 27069/18.3T8PRT.P1.S1 e disponível em texto integral, em linha, no sítio jurisprudencia.pt).
Sendo certo que este entendimento tem sido mantido na jurisprudência, mesmo em arestos mais recentes, destacando-se que “de acordo com os princípios da utilidade e pertinência a que estão sujeitos todos os atos processuais, o exercício dos poderes de controlo sobre a decisão da matéria de facto só é admissível se recair sobre factos com interesse para a decisão da causa, segundo as diferentes soluções plausíveis de direito que a mesma comporte” e, por isso, que “o dever de reapreciação da prova por parte da Relação apenas existe no caso de o recorrente respeitar os ónus previstos no art. 640.º, n.º 1 do CPC, e, para além disso, a matéria em causa se afigurar relevante para a decisão final do litígio” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 3/11/2023, relatado por Mário Belo Morgado, no processo 835/15.0T8LRA e acessível na base de dados da Dgsi em linha).
Assim se justifica, pois, o juízo de clara improcedência das conclusões 5 e 6 da motivação do recurso.
*
Sobre os efeitos da revelia.
Já no plano estritamente jurídico, os fundamentos do recurso, sobretudo as conclusões 4 e 7, convocam a apreciação dos efeitos da revelia em sede de arrendamento e do acerto da decisão do tribunal recorrido na parte em que julgou a factualidade provada com base na ausência de contestação e, em conformidade, decretou com tal fundamento a cessação do contrato.
Não existindo dúvidas, a este propósito, de que a primeira instância proferiu a sua decisão de facto por não ter “sido deduzida contestação, nos termos do artigo 567.º, 1, do CPC”, e por isso que, de seguida, declarou “confessados os factos articulados pelos autores na petição inicial” e passou a reproduzir aqueles que, na sua perspectiva, para justificar a solução jurídica do pleito, eram os mais significativos.
Ora, dispõe o art. 567.º/1 do Código Civil que, se o réu não contestar, tendo sido ou devendo considerar-se citado regularmente na sua própria pessoa ou tendo juntado procuração a mandatário judicial no prazo da contestação, consideram-se confessados os factos articulados pelo autor.
No entanto, o art. 568.º daquele diploma afasta tais efeitos, entre outras circunstâncias de que agora não importa cuidar, por falta de pertinência para o caso, quando a vontade das partes for ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela ação se pretende obter, no termos da alínea c), ou quando se trate de factos para cuja prova se exija documento escrito, segundo a alínea d).
De acordo com a doutrina, “sendo o réu considerado revel, por falta de contestação (dentro do prazo legal), nas condições descritas, a consequência imediata da falta é a confissão dos factos articulados pelo autor”, razão pela qual, “todos os factos narrados na petição se consideram provados, por virtude da falta de contestação” (cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual do Processo Civil, 2.ª ed., pp. 344-5).
Acrescentando, porém, que isso já não sucederá “quando a vontade das partes seja ineficaz para produzir o efeito jurídico visado pela acção, isto é, quando a acção respeite a relações jurídicas indisponíveis”, como sucede “no caso típico das acções de estado”.
Tal como o regime da revelia não terá aplicação quanto “aos factos para cuja prova se exija documento escrito”, assim ocorrendo, por exemplo, na “hipótese de o autor alegar a existência de um contrato-promessa de compra e venda de imóvel (…), desde que o autor não tenha juntado documento descrito comprovativo da realização do contrato” (cfr. Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Ob. cit., pp. 350-2).
Da mesma forma, tem a jurisprudência decidido que “a falta de contestação determina a confissão dos factos articulados pelo autor quando o réu não contestante tenha sido ou deva considerar-se regularmente citado na sua própria pessoa, ou haja juntado procuração a mandatário judicial, no prazo da contestação. O efeito deste comportamento omissivo do réu constitui a designada confissão tácita ou ficta (ficta confessio)”, salientando, porém, que “a revelia não produz efeitos em relação aos factos para a prova dos quais se exija documento escrito” e que “face ao que dispõe o n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil, a exigência de forma escrita para os contratos de arrendamento é meramente ad probationem” (cfr. Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 6/6/2024, proferido no processo nº2038/23.0T8MTS, sendo relatora Judite Pires, e acessível na já citada base de dados em linha).
À luz destas orientações legais, doutrinais e jurisprudenciais, parece-nos manifesto que a decisão recorrida fez a correcta aplicação das regras inerentes à revelia da ré e decidiu acertadamente a matéria factual pertinente para a boa decisão da causa.
Assim, verificando previamente que a cessação do arrendamento, como é óbvio, não representa um efeito jurídico para o qual a vontade das partes seja ineficaz, posto que elas podem livremente iniciar ou finalizar a execução desse contrato, o tribunal a quo julgou provados os factos que, carecendo de prova documental, foram acompanhados dos documentos comprovativos (1 a 7, 12, 17 e 18) e considerou demonstrados os restantes por mero efeito, legalmente fundado, da revelia da ré.
Em consequência, impõe-se concluir que, com ressalva dos referidos documentos, a procedência do pedido de despejo não depende, em caso de falta de contestação, da apresentação de prova plena ou de valor reforçado, ao arrepio do que se defendeu no recurso e, bem assim, que não existe nos autos qualquer motivo, factual ou jurídico, impeditivo da legitimidade dos autores para deduzir semelhante pedido.
Sendo certo, ademais, que a verificação de tal pressuposto processual sempre teria de analisar-se em função da relação material controvertida tal como foi configurada pelos autores na petição inicial, e independentemente da prova produzida, que já releva somente quanto ao mérito da causa, como resulta do disposto no art. 30.º do Código de Processo Civil.
Improcedem, por isso, as conclusões 4 e 7 do recurso.
*
Sobre o direito à habitação e o despejo.
A nossa Constituição, no âmbito dos direitos e deveres económicos, sociais e culturais, tutela o direito à habitação, nos termos do seu art. 65.º/1, estabelecendo que todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.
Trata-se, no entanto, de um direito de natureza programática (art. 9.º/al. d), da CRP), especialmente dirigido para o Estado preservar e promover, e a quem, por isso, segundo o nº2 daquele art. 65.º, incumbe: a) Programar e executar uma política de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e de equipamento social; b) Promover, em colaboração com as regiões autónomas e com as autarquias locais, a construção de habitações económicas e sociais; c) Estimular a construção privada, com subordinação ao interesse geral, e o acesso à habitação própria ou arrendada; d) Incentivar e apoiar as iniciativas das comunidades locais e das populações, tendentes a resolver os respectivos problemas habitacionais e a fomentar a criação de cooperativas de habitação e a autoconstrução.
Tal como recai sobre o Estado o dever de adoptar uma política tendente a estabelecer um sistema de renda compatível com o rendimento familiar e de acesso à habitação própria (art. 65.º/3).
Assim sendo, e tal como no Acórdão deste Tribunal da Relação do Porto de 23/9/2024 (relatado por Eugénia Cunha no processo 2018/23.6YLPRT e pesquisável na mesma fonte), consideramos que “revestindo o direito à habitação, acima de tudo, natureza programática, dirigindo-se ao Estado, que o assegura por variados meios (e, desde logo, no referido art. 864º, encontra- -se salvaguardada a parte mais frágil e de essencial relevo do direito à habitação, com proteção das pessoas mais vulneráveis, situações essas em que mais se reclama e justifica especial proteção), apesar daquele direito ser um direito fundamental, de natureza social, o mesmo não pode ser conseguido à custa da violação da lei e de direitos legítimos de outrem, sendo o assegurar daquele direito incumbência do Estado, não de particulares”.
Para além disso, o direito à habitação tem de ser conciliado com os demais de idêntica força e natureza, também protegidos constitucionalmente, incluindo o direito à propriedade privada, a que se refere o art. 62.º/1 da nossa lei fundamental, segundo o qual, a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão em vida ou por morte, nos termos da Constituição.
Sendo certo que no direito à propriedade privada está incluído, “como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição que envolve até o direito de não usar o bem” (Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/5/2024, relatado por Anabela Morais, no processo 6323/19.8 T8MTS e disponível em www.dgsi.pt).
Identicamente, o direito à habitação deve ainda ser harmonizado com o princípio da liberdade contratual e a possibilidade da extinção dos contratos por mútuo consenso ou nos demais casos que, para tutela de outros interesses relevantes, estão previstos na lei (arts. 405.º e 406.º/1 do Código Civil).
Daqui resulta, devidamente ponderados os valores jurídicos em questão, que na devida ponderação entre o peso relativo atribuído ao direito à propriedade privada, à autonomia da vontade e ao direito à habitação, o legislador pode estabelecer, ainda que taxativamente, os casos em que, no âmbito do arrendamento, deva prevalecer a faculdade de fazer cessar o contrato, nomeadamente, em caso de incumprimento de deveres por um dos contraentes ou mesmo apenas para, evitando a eternização da execução do arrendamento, obstar à excessiva desvalorização da propriedade.
É o que se passa, nomeadamente, nas causas previstas no art. 1097.º do Código Civil para a oposição à renovação do contrato, onde a lei procurou harmonizar com razoabilidade os referidos direitos, quando em situação conflituante, sem causar agravo excessivo em qualquer um deles.
Em conformidade, aliás, com o princípio da concordância prática entre valores igualmente protegidos constitucionalmente, com emanação no art. 18.º/2 da CRP e cujo sentido essencial é o de assegurar o melhor equilíbrio possível entre direitos em colisão.
Partilhamos, pois, do entendimento segundo o qual “o artigo 65º da Constituição da República Portuguesa implica para o Estado uma obrigação positiva de criação de um regime jurídico do arrendamento para habitação, que discipline o acesso dos cidadãos a uma habitação, pela via do arrendamento, devendo as rendas ser compatíveis com o rendimento familiar (cfr. o artigo 65º, nº 3), dado que o arrendamento habitacional constitui um dos instrumentos de satisfação ou de concretização do direito fundamental à habitação”, sem prejuízo, porém, de ser “indubitável que as normas que reconhecem ao senhorio o direito de denúncia do contrato de arrendamento, com a antecedência legal fixada na lei, não infringem aquele preceito constitucional” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/3/2024, tirado no processo 4161/21.7T8MA, relator: Paulo Dias da Silva, e disponível no indicado sítio em linha).
Em suma, a oposição à renovação do contrato de arrendamento constitui manifestação legalmente admissível do princípio da autonomia da vontade, fundada na tutela da propriedade dentro de justos limites e não contende com a essência do direito à habitação invocado pela recorrente.
Por estas razões, improcedem as demais conclusões da motivação da recorrente e esgota-se o objecto de apreciação deste tribunal.
Destacando-se a este propósito que nenhuma outra questão foi colocada pela ré, para além do pedido de despejo e, como se disse, quanto aos autores, que as matérias por eles suscitadas competem à primeira instância ou, em qualquer caso, não integram o objecto do recurso.
Sempre se dirá, porém, que os autos não evidenciam sinais de litigância de má-fé de qualquer das partes, tanto mais que, a nosso ver, a interposição de recurso, constituindo o exercício de um direito processual, apenas poderia constituir fundamento para aquele efeito se, para além de manifestamente improcedente, tivesse excedido de forma evidente os fins para os quais está previsto, o que não se vislumbra ter ocorrido no caso apreciado.
*
DECISÃO Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida. Custas pela recorrente, atento o seu decaimento (art. 527.º do CPC).
*
SUMÁRIO
………………………………
………………………………
………………………………
(o texto desta decisão não segue o Novo Acordo Ortográfico)
Porto, 21/10/2024
Nuno Marcelo de Nóbrega dos Santos de Freitas Araújo
Jorge Martins Ribeiro
Manuel Domingos Fernandes