I - A parte contra quem for produzida prova pode opor contraprova a respeito dos mesmos factos, com vista a “torná-los duvidosos”, nos termos do previsto no artigo 346.º do Código Civil e deve provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito contra si invocado, como prevê o número 2 do artigo 342.º.
II - O reconhecimento de que a prova de ocorrência de um facto é difícil ao autor não basta para que se proceda a uma inversão do ónus de prova não sendo de exigir à parte contrária a contraprova da sua (in)ocorrência.
III - As circunstâncias do caso concreto e a dificuldade de prova de certos factos, como seja a ocorrência de um furto, devem ser atendidas para que se não onere de tal forma a parte que invoca o direito que a mesma fique, na prática, impossibilitada de convencer o Tribunal da verdade da sua versão.
IV - Deve, contudo, ter-se presente que ocorrem situações de fraude consistentes em simulações de sinistros com vista ao acionamento de contratos de seguro (como sejam falsos acidentes, inundações, incêndios, roubos e furtos, entre outros).
V - O reconhecimento da necessidade de adequação do critério a atender na apreciação da prova não pode, assim, redundar na desoneração da parte provar a ocorrência dos factos de que resulte a probabilidade de ocorrência de um furto.
(Da responsabilidade da Relatora)
Relatora: Ana Olívia Loureiro
Primeira adjunta: Maria de Fátima Almeida Andrade
Segunda adjunta: Carla Jesus Costa Fraga Torres
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:
I – Relatório:
1 – Em 27-10-2021 AA propôs ação de processo comum contra A..., SA alegando que celebrou com esta um contrato de seguro que cobria, entre outros, o risco de furto de veículo de marca Porshe de que é proprietário e que o mesmo lhe foi furtado o que deu origem a participação criminal contra incertos. Pediu a condenação da Ré a pagar-lhe o valor do prejuízo sofrido com a perda do veículo, que calculou ser de 67.550,00€ e, ainda, o montante, a liquidar posteriormente, para ressarcimento do dano decorrente da privação do uso do referido automóvel desde a petição inicial e até ao pagamento da indemnização devida.
2 – A Ré contestou tendo impugnado a ocorrência do furto, defendendo que o direito à indemnização não pertence ao Autor – para o que alega que este adquiriu o automóvel com recurso a um financiamento sendo a mutuante a beneficiária do seguro -, que o contrato de seguro não cobre qualquer dano decorrente da privação de uso, dano esse que o Autor sequer sofreu já que tinha outros veículos ao seu dispor. Para o caso de procedência da ação afirmou, ainda, que o valor da indemnização a calcular deverá equivaler ao do veículo e não ao do capital seguro.
3 – Foi requerida pelo Autor e veio a ser deferida, a 31-01-2022, a intervenção principal provocada da empresa financiadora do crédito, B..., SA.
4 – A mesma apresentou articulado próprio em 07-03-2022 tendo pedido a condenação da Ré ao pagamento do valor ainda em dívida em cumprimento do contrato de financiamento celebrado com o Autor, que, contudo, não indicou qual fosse.
5 – A 09-03-2022 a Ré impugnou os factos alegados pela Interveniente como causa de pedir.
6 – Em 27-04-2022 teve lugar a audiência prévia em que se julgou sanada a arguida ilegitimidade ativa por força da intervenção principal admitida, se fixou o objeto do litígio, se selecionaram os temas da prova e foram admitidos os requerimentos instrutórios.
7 – A audiência de julgamento veio a realizar-se em duas sessões, a 20-12-2023 e a 24-01-2024, tendo sido proferida sentença em 21-02-2024 em que se condenou a Ré a pagar ao Autor 34.588,28 € e juros de mora desde a citação, e à Interveniente a quantia de 12.411,72 €.
8 – A interveniente principal requereu a retificação da sentença a 04-03-2024, alegando que a mesma padecia de lapso na contabilização do valor ainda em dívida pelo cumprimento do contrato de financiamento que celebrou com o Autor, por entender que a prova produzida conduzia à conclusão de que tal valor se cifrava em 16.262,76€
9 – O Autor opôs-se sustentando que a interveniente pretendia, com o pedido de retificação, vir aperfeiçoar o seu articulado inicial em que não alegou o valor em dívida.
10 – Por despacho de 08-04-2024 foi indeferido o pedido de retificação da sentença.
II - O recurso:
Recorreram todas as partes pretendendo a alteração parcial do julgamento da matéria de facto e a sua revogação.
· Pretende o Autor que Ré seja condenada a pagar-lhe 108.950 € e um valor, a liquidar ulteriormente, para ressarcimento do dano de privação do uso desde a prolação da sentença e até efetivo pagamento;
· A Interveniente principal sustenta a revogação da sentença de forma a que Ré seja condenada a pagar-lhe o valor de 16.031,07€ acrescido de juros.
· A Ré pretende a revogação da sentença concluindo-se pela sua absolvição por não se ter provado a ocorrência do furto que constitui a causa de pedir e, assim não se entendendo a redução da sua condenação ao valor de 42.000€, sendo 29.588,28€ a pagar ao Autor e 12.411,72 à Interveniente principal.
Para tanto, alegam o que sumariam da seguinte forma em sede de
CONCLUSÕES:
O Autor:
“1ª Está em causa no presente recurso a matéria de facto, com o devido respeito, indevidamente julgada e/ou ponderada inserta nos pontos 18 e 23 dos factos provados, a saber: 18. O veículo em causa é importado, sendo a primeira matrícula de 2012 da Bélgica, tendo um valor comercial à data do sinistro de € 47.000,00. 23. O A. e a família dispunham de outros veículos à data do sinistro, dispondo de outros meios de locomoção, mormente outros veículos automóveis.
2ª E, igualmente, está em causa no presente recurso o que desses factos decorreu em termos de decisão final, isto é, a não consideração do valor acordado entre recorrente e recorrida para aquela cobertura facultativa de Furto, Roubo ou Furto de Uso e, bem assim, o não arbitramento ao recorrente de qualquer indemnização pela privação do uso daquele seu veículo.
3ª Comecemos pela primeira questão – atribuição ao recorrente, pelo desaparecimento do veículo seguro, de quantia inferior ao capital seguro – e pela Motivação que consta da decisão aqui em crise: O doc. 2 da contestação, avaliação Eurotax quanto ao veículo, sendo uma avaliação genérica quanto ao valor, não teve em conta, como referido, designadamente pela testemunha BB (que foi perito averiguador da C... durante quase 15 anos), o valor comercial da viatura, que era superior, tendo sido avaliado por esta testemunha em cerca de € 47.000,00 (daí o facto provado sob o nº 18), o que, com a data da matrícula de 2012 e os kms que teria e pela aferição de venda de veículos semelhantes no Standvirtual (online), pensamos ser o valor adequado para o veículo em causa (avaliação essa que foi feita no próprio relatório da C... – doc. 3 da contestação, tendo ainda sido indicado o valor da compra por documento junto a 03/03/2023).
A testemunha da R., CC (parte do facto 18º dado como provado), consultor de sinistros, depôs quanto ao valor do veículo, referindo que o valor do veículo pelo Eurotax não reflecte o mercado pelo que segundo o estudo que realizou poderia rondar os € 42.000,00 (“mais dois mil ou menos dois mil”), daí que, em conjugação com a restante prova (designadamente, o relatório da C... e o testemunha de BB além do valor de venda indicado a 03/03/2023), se tenha considerado como valor de mercado do veículo à data do sinistro de € 47.000,00 (facto 18º dado como provado). Referiu, ainda, que o seguro não teria actualização automática, pelo que no caso teria de se considerar o valor venal. (o destacado e sublinhado é nosso).
4ª Com efeito, como decorre do ponto 10 dos factos provados foi celebrado, a 30/04/2020, um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel entre recorrente e recorrida para o veículo ..-SO-.., com a cobertura facultativa, ao que importa ao presente recurso, de Furto, Roubo ou Furto de Uso, com um capital seguro, à data do sinistro, de 60.000,00 € (sessenta mil euros).
5ª Alegou a recorrida na sua extensa e douta contestação que o veículo seguro valia, à data do sinistro, a quantia de 37.212,00€, conforme documento que fez juntar àquela peça processual, mas sem cuidar de explicitar se aquela avaliação Eurotax dizia respeito a preço de compra ou a preço de venda.
6ª Porém, nem com as testemunhas que a mesma arrolou, quais fossem os peritos que procederam à avaliação daquele veículo, sem que o tivessem visto, logrou demonstrar esse valor, tanto mais que as mesmas fizeram referência a um valor de cerca de 47.000,00 €.
7ª Mas lendo e relendo a douta e extensa contestação em local algum se encontra a mais ténue referência a uma questão de sobresseguro ou mesmo de sobreprémio, sendo que a ter-se verificada a primeira situação (sobresseguro), necessariamente teria de ter ocorrido a segunda, ou seja, a devolução do(s) sobreprémio(s) cobrado(s) ao recorrente com a consequente redução do capital seguro.
8ª Por isso, essa questão assim colocada foi abordada pela Meritíssima Juíza a quo como sendo uma questão de sobresseguro.
9ª Vejamos, então, o que rezava o contrato de seguro celebrado entre recorrente e recorrida a propósito do valor do veículo seguro, com início a 30/04/2020: - valor do veículo: - 54.500,00 €; - valor de equipamento especial: - 5.500,00 €.
10ª Em face deste valor, que no somatório ascendia ao tal valor de 60.000,00 € (54.500,00 € + 5.500,00 €), foi estabelecido um valor de prémio de seguro de 2.274,86 €, proposto pela recorrida e aceite e pago pelo recorrente.
11ª Este valor dos 60.000,00 € jamais foi um valor proposto e/ou declarado pelo recorrente à recorrida, pois que ocorreu até uma avaliação dos extras (Bancos, GPC/rádio Sony e Jantes) que incorporavam aquele veículo.
12ª E não há em toda a apólice a mais ténue referência ao facto de se ter de considerar o valor venal e/ou comercial no caso de ocorrer uma perda total daquele veículo e o consequente accionamento de uma das coberturas facultativas contratadas.
13ª Por isso não tem a mais ténue relevância, com o devido respeito, a referência ao valor comercial que é produzida no ponto 18 dos factos provados, pois que não decorre essa obrigação do clausulado na apólice em crise nos presentes autos.
14ª A avaliação que foi efectuada terá decorrido da utilização por parte da recorrida dos seus meios técnicos e humanos para o efeito – determinação do valor de determinado bem, no caso o veículo automóvel do recorrente – e não se tratou de celebrar este contrato de seguro (como todos os demais) às cegas.
15ª Aliás, importa aqui salientar que à data do furto ainda não tinha sequer terminado a primeira anuidade daquele contrato de seguro, sendo que nem a recorrida alegou e muito menos demonstrou se existia alguma tabela de desvalorização para aquele valor acordado de 60.000,00 €.
16ª A questão da determinação do valor de um veículo tem vindo a ser resolvida pela Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores utilizando-se a distinção entre valor venal ou valor comercial do veículo e o valor de uso que esse bem representa para o seu titular.
17ª São valores absolutamente distintos, sendo que o mercado pode atribuir um certo valor a um certo veículo, sem que isso possa significar, sem mais, que o seu titular esteja na disposição de dele dispor por essa quantia, ou mesmo que com o recebimento dessa quantia possa adquirir um outro que lhe dê igual satisfação às suas necessidades como acontecia com o outro. Se se atender apenas ao valor de mercado, nas palavras de Júlio Gomes, isso seria converter a responsabilidade civil numa forma de expropriação privada pelo preço de mercado.
18ª Assim, e não obstante a Meritíssima Juíza a quo ter tido por provada a matéria de facto constante do ponto 18 dos factos provados, jamais deveria ter considerado esse valor como o valor da indemnização devida ao recorrente.
19ª Com efeito, o valor acordado de 60.000,00 €, por não ter ocorrido sequer qualquer alegação por parte da recorrida na sua extensa e douta contestação de que não tinha tido a oportunidade de observar aquele veículo em momento anterior ao da contratação, ou que não lhe foram fornecidos elementos que lhe permitissem proceder à fixação de valor do veículo, foi aquele que a mesma verteu na apólice que juntou aos autos.
20ª E veja-se que é a própria recorrida que, naquela apólice, coloca os valores já adiantados na conclusão 9ª supra, que, sem margem para qualquer dúvida, representa um valor acordado pelas partes e não declarado pelo recorrente à recorrida.
21ª Daí que ao ver a recorrida acolhida a sua “tese” do sobresseguro ao arbitrar a indemnização de 47.000,00 € pela perda total do veículo seguro, violou a Meritíssima Juíza a quo o acordo estabelecido entre tomador do seguro (o recorrente) e seguradora (a recorrida).
22ª Por isso, vir a recorrida afirmar, ainda que timidamente, que se está perante uma situação de sobresseguro é, como é entendimento pacífico na Jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores, estar em abuso de direito na vertente do venire contra factum proprium, o que acabou legitimado pela decisão aqui em crise.
23ª É que celebrado o acordo entre as partes (recorrente e recorrida), jamais o recorrente poderia solicitar à recorrida qualquer redução do preço daquele seguro ou a recorrida exigir uma redução da indemnização devida ao recorrente após o sinistro ocorrido.
24ª Não faz qualquer sentido, como é sabido, aplicar-se ao caso dos autos o princípio do indemnizatório, por duas ordens de razão: - por um lado, porque estamos perante um valor acordado entre as partes; - por outro, porque há que considerar não o valor venal (ou de mercado) mas antes o valor de substituição, ou seja, o valor que era necessário despender para adquirir um veículo da mesma marca, modelo, tipo, idade, estado de conservação idêntico ao sinistrado, com os mesmos extras, o que, naturalmente, altera o valor do veículo relativamente ao valor de mercado.
25ª Porém, se do preâmbulo do DL nº 72/2008, de 16.04 decorre que o princípio do indemnizatório assenta basicamente na liberdade contratual, de modo supletivo, não é menos certo que os interesses protegidos com o funcionamento desse princípio são os das
seguradoras, tentando evitar “sobreindemnizações”, pois que “chamadas” a indemnizar a título de uma cobertura facultativa logo alegam o sobresseguro, sem que façam qualquer referência aos sobreprémios de durante anos foram cobrando.
26ª E mesmo que esse valor de 60.000,00 € não seja entendido como um valor acordado – o que não se concede ou concebe – ainda assim o mesmo não deixou de ser tacitamente aceite pela seguradora, pela aqui recorrida.
27ª É que como doutamente refere Arnaldo Oliveira (in Anotação ao artigo 131º, nº 2 da LCS) naturalmente, o valor estimado da coisa começará por ser indicado pelo tomador do seguro (nº 2 do artigo 49º, por analogia), mas sujeitando-se à aceitação do tomador.
Daí que legitimamente se possa afirmar que mesmo nessas situações estar-se-á perante m valor acordado e não perante um valor declarado. Tinha, com o devido respeito por opinião diversa, a recorrida a obrigação legal e processual de alegar e provar a situação fora do normal ou extraordinária de que o valor seguro foi fixado apenas com base na declaração ou indicação do tomador, o recorrente. Porém os autos demonstram à saciedade que jamais o fez…
28ª Vejamos, a título de mero exemplo, aquilo que doutamente se afirma no Ac. do TRL de 25.06.2009, no Proc. nº 1515/05.0TBMTJ.L1-2: (...) nem se invoque a “boa-fé” da ré no tocante à aceitação do valor supostamente “excessivo” indicado pelo autor. Aquela era sabedora da marca e modelo da viatura, bem como da matrícula respectiva – para além
de ser normal que solicitasse a exibição dos documentos respectivos – o que tudo, dando também acesso ao conhecimento da idade da viatura, que se sabe ser do ano de 1997, logo lhe permitia balizar o valor da mesma dentro de limites razoáveis. E, se ainda assim tivesse dúvidas, caber-lhe-ia, de acordo com as regras de normal diligência, através dos (seus) proverbialmente zelosos serviços de peritagem, proceder à avaliação da viatura. O que, concede-se, não fez, preferindo guardar-se para a eventualidade de lhe vir a ser exigida alguma responsabilidade contratual (o sublinhado e destacado é, de novo, nosso).
29ª Daí que se entenda que a recorrida ao vir, depois de chamada a capítulo, alegar (ainda que sem demonstrar) a existência de uma situação de sobresseguro está em abuso de direito na vertente de venire contra factum proprium, pois que aceitou celebrar aquele concreto contrato de seguro para aquele concreto veículo por aquele concreto valor.
30ª E proceder apenas nesse momento – quando é chamada a indemnizar – a uma “avaliação” do Eurotax – com a base de dados que possui e a que pode aceder, o sistema informático de que dispõe e a qualidade dos seus funcionários – quando no espaço de segundos pode calcular o valor real do seguro, é inconcebível e até um contrasenso nos tempos modernos que se abstenha de o fazer no momento da contratação, aceitando assim celebrá-lo, dando origem, segundo ela, a uma situação de sobresseguro.
31ª E se muito rapidamente consegue obter uma “avaliação” Eurotax, de modo quase instantâneo, no que respeita ao valor real de um veículo, este facto não pode deixar de ser considerado um facto conhecido da recorrida ou pelo menos conhecível e que, tal como agora, não poderia opor ao recorrente, tomador do seguro.
32ª A ser assim – como efectivamente é – dúvidas não podem subsistir de que ocorre violação ao disposto no artigo 227º do Cód. Civil, pois que Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé,
33ª pois que a recorrida deve acautelar a celebração dos contratos pelo valor real dos interesses/bens a segurar; e não o fazendo, com violação desse dever, não pode depois vir opor, sem mais, ao tomador do seguro, por abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium os valores que, após a participação de sinistro, resolveu apurar.
34ª O artigo 334º do Cód. Civil prescreve ser ilegítimo o exercício de um direito, quando o seu titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
35ª Daí que a postura de quem adopta um comportamento que entra em contradição com outra conduta anteriormente assumida – como sucede nos autos relativamente à avaliação que a recorrida faz do veículo do recorrente em momentos distintos – também conhecida pelo venire contra factum proprium, integra-se no princípio da tutela da confiança, numa linha de concretização da boa fé que deve existir nessas relações sociais e comerciais.
36ª É o conhecido princípio da responsabilidade pela confiança, pelo qual se imputa na esfera jurídica de quem adopta uma conduta contraditória com outra anteriormente assumida e que, desse modo, criou uma situação de confiança e que só a ela seja imputável, seja por isso responsabilizada. Nos dizeres de Menezes Cordeiro, in Da boa fé no Direito Civil, vol. II, Almedina, 1984, pág. 789 (...) Perante comportamento contraditórios a ordem jurídica não visa a manutenção do status gerado pela primeira actuação, que o Direito não reconheceu, mas antes a protecção da pessoa que teve por boa, com justificação, a actuação em causa.
37ª Invoca-se, com a devida vénia, a posição de Joana Galvão Teles que entende que com as alíneas d) e e) do nº 3 do artigo 24º da LCS visa-se igualmente, impedir atitudes abusivas por parte da seguradora que, conhecendo ou devendo conhecer os factos e circunstâncias em questão no momento de celebração do contrato, pretenda vir, mais tarde, invocar a sua omissão para, assim, se ver livre da execução do contrato.
38ª Ou mesmo aquilo que se afirmar num douto acórdão do TRG, brilhantemente relatado pelo Srª Desembargadora Rosa Tching, datado de 18.06.2013, do qual se retira o seguinte:
1º- Com vista a resolver as situações de sobresseguro e o “valor real” do veículo por ocasião do sinistro, o DL nº 214/97, de 16 de Agosto, veio estabelecer um regime especial para o seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel, derrogador da aplicação, nesta matéria, do disposto no art. 435º do Código Comercial. 2º- Assim, na sequência da consagração, no seu artigo 2º, do principio da alteração automática do valor seguro, veio o artigo 4º do mesmo diploma impor às seguradoras, contratantes de seguro facultativo, abarcando danos próprios, a elaboração de tabelas de desvalorizações periódicas automáticas para determinação da indemnização em caso de perda total. 3º- Da conjugação do disposto nos arts 3º, 4º e 8º nº 2 do DL nº 214/97, de 16 de Agosto, extrai-se que, no âmbito do seguro facultativo de danos próprios em viatura automóvel, enquanto não for actualizado, nos termos legais, o valor do veículo seguro, a considerar para efeitos de indemnização em caso de perda total, nem for comunicada essa actualização ao tomador de seguro, as seguradoras estão constituídas na obrigação de responder, em caso de sinistro, com base no valor seguro apurado à data do vencimento do premio imediatamente anterior à ocorrência do sinistro (o destacado e sublinhado, com a devida vénia, é nosso).
39ª Por isso, dúvidas não podem, nem devem, subsistir de que a quantia que é devida ao recorrente é a que corresponde ao valor acordado aquando da contratação da apólice em crise nos presentes autos (60.000,00 €) e que jamais se poderá permitir que a recorrida veja reduzido o montante da indemnização a pagar ao recorrente a esse título com a alegação de que estamos perante uma situação de “sobresseguro”, que viu a luz do dia apenas quando a recorrida foi chamada judicialmente a pagar uma indemnização ao recorrente (seu segurado), e que não fez a mínima referência a “sobreprémios” ou sequer os devolveu ao recorrente, o que a suceder – como foi o caso da decisão aqui em crise – legitima a recorrida a um não permitido abuso de direito na modalidade de venire contra factum proprium nos termos do disposto no artigo 334º do Cód. Civil.
40ª Por isso, e ainda que se mantenha a matéria de facto constante do ponto 18 dos factos provados, deve a recorrida ser condenada a pagar ao recorrente, a título de perda total pelo accionamento da cobertura facultativa de Furto, Roubo ou Furto de Uso, a quantia de 60.000,00 € (sessenta mil euros) pelas razões supra expendidas, por ter sido esse o valor acordado.
41ª Quanto à segunda questão – privação do uso – importa dizer que não assiste razão, com o devido respeito, à Meritíssima Juíza a quo quando absolveu a recorrida desse pedido.
42ª A este propósito, entendeu – e bem – a Meritíssima Juíza a quo dar como provado o que consta do ponto 15 dos factos provados, ou seja, um veículo de aluguer sem condutor semelhante ao SO tem um custo diário nunca inferior a € 50,00 (o sublinhado e destacado é nosso).
43ª Diremos, desde já, que um veículo semelhante ao do recorrente (Porsche ...) que é reconhecidamente um veículo topo de gama, terá mesmo, no mínimo, um custo diário de aluguer nunca inferior a 50,00 €; será superior a 100,00 € ou mesmo 150,00 € por dia.
44ª Mas teve, igualmente por provada a Meritíssima Juíza a quo a matéria de facto constante do ponto 14 dos factos provados, o qual, com o devido respeito por opinião diversa, integra de modo pleno a necessidade que o recorrente, e bem assim a sua esposa, tinham daquele veículo e o uso que do mesmo faziam diariamente, fosse para deslocações em trabalho ou lazer.
45ª E nem mesmo o que se afirma nos pontos 22 e 23 dos factos provados altera aquilo que ficou provado no ponto 14. Com efeito, foi ao longo de vários anos que o recorrente, a sua esposa e a empresa de ambos foram proprietários de vários veículos.
46ª Porém, e apesar daquilo que se afirma no ponto 23, quanto à expressão à data do sinistro, não foi produzida a mais ténue prova quanto a outros veículos que o recorrente ou a sua família detivessem no momento do sinistro, ou até mesmo se eram veículos semelhantes ao furtado (ligeiro de passageiros), ou veículos destinados à actividade comercial (ligeiros de mercadorias) do recorrente, tanto mais que a recorrida – que alegou esses factos – nem tampouco juntou aos autos uma singela certidão do registo automóvel desses mesmos “outros veículos”.
47ª Por isso, deve essa expressão, por falta de sustentação probatória, ser retirada do ponto 23 dos factos provados, o qual deverá passar a ter a seguinte redação:
O A. e a família dispunham de outros meios de transporte, dispondo de outros meios de locomoção, mormente outros veículos automóveis.
48ª Não resta a mais ténue dúvida de que o recorrente se encontra impossibilitado de utilizar aquele veículo no seu dia-a-dia, desde o dia do furto. E igualmente se encontra demonstrado que está o mesmo impedido de se poder servir – até por não ter sido ainda indemnizado – de um outro veículo de características semelhantes às do segurado.
49ª E porque nunca a recorrida se disponibilizou – como o demonstram os autos à saciedade –, mesmo depois de decorridos os 60 dias úteis contratuais para acionar a cobertura Furto, Roubo ou Furto de Uso, a pagar ao recorrente a indemnização que lhe era contratualmente devida, não pôde ainda o recorrente adquirir outro veículo para substituir o sinistrado, pelo que se encontra privado do uso daquele veículo e assim irá permanecer até que a recorrida o indemnize.
50ª Como bem se percebe o que está em causa nos presentes autos, a este título, é a uma situação de mera privação do uso daquele veículo, pois que o recorrente não dispunha de meios financeiros fosse para adquirir outros veículo semelhante para substituir pelo furtado, fosse para proceder ao aluguer de um veículo igualmente semelhante.
51ª Não estamos, nos presentes autos, perante uma situação de privação do uso – pois que não ocorrem, ou estão peticionados lucros cessantes ou danos emergentes; por isso se afirmou que se está perante uma situação de mera privação do uso daquele veículo.
52ª Ainda assim a mera privação do uso do veículo é ressarcível, pois que não deixam de existir transtornos causados ao recorrente – proprietário – por não poder retirar as vantagens normais e expectáveis do seu direito de propriedade (do veículo furtado).
53ª Afirma, contudo, a Meritíssima Juíza a quo que esse dano – privação do uso – estava de todo o modo excluído por força do disposto na alínea s) do nº 1 da Cláusula 41ª das CGA. Porém, com o devido respeito, nada mais errado.
54ª Reza aquela Cláusula 41ª o seguinte: Claúsula 41ª – EXCLUSÕES 1. – Salvo convecção expressa em contrário, para além das exclusões aplicáveis ao Seguro Automóvel Obrigatório (regulado na parte I das presentes Condições Gerais), são ainda aplicáveis ao Seguro Facultativo as seguintes: (…) s) – Lucros cessantes ou perda de benefícios ou resultados advindos ao Tomador do Seguro ou ao Segurado em virtude de privação de uso, gastos de substituição ou depreciação do veículo seguro ou provenientes de depreciação, desgaste ou consumo naturais.
55ª Ora, como se observa dessa exclusão, ali apenas se excluem danos emergentes e/ou lucros cessantes; não está ali excluída a simples, a mera privação do uso que se traduz nos incómodos pelo não retirar vantagens daquele seu direito de propriedade.
56ª Não está, com o devido respeito por opinião diversa, vedada a situação a que está sujeito o recorrente desde o 61º dia útil após o furto daquele seu veículo – e por total inércia da recorrida– à atribuição de uma indemnização por força do previsto nessa al. s) do nº 1 da Cláusula 41ª das CGA.
57ª É que como os autos o demonstram à saciedade, a recorrida, ao invés de ao 61º dia útil após o furto proceder ao pagamento da quantia que estava contratualizada, acordada, resolveu lançar infundadas – como plenamente demonstrado – suspeitas de fraude com o único objectivo de se furtar ao pagamento da indemnização devida, quando o relatório produzido pela enidade C... estava datado de 04.06.2021.
E sem esse pagamento, que estava contratualizado, não tinha o recorrente possibilidades financeiras, como se referiu, de adquirir outro veículo de características semelhantes ao furtado/segurado, ou mesmo de proceder ao aluguer de um veículo de categoria semelhante.
58ª Por isso, com a devida vénia, permita-se-nos trazer aqui à colação, de entre muitos outros doutos acórdãos, o que se sumaria no douto acórdão do TRP, datado de 13.09.2022, no Proc. nº 216/22.9YRPRT: I - No âmbito de um contrato de seguro automóvel com cobertura de danos próprios, mesmo não estando contratada a cobertura de “Privação de Uso”, a seguradora é responsável pela indemnização dos danos que advierem ao segurado em razão da privação do uso do seu veículo quando esta se prolonga no tempo, por injustificado atraso no procedimento de regularização do sinistro. II - Essa responsabilidade funda-se na infracção de deveres de diligência e probidade, acessórios da obrigação contratual principal, de indemnização dos danos do sinistro. III - Não se tratando de uma pura obrigação pecuniária, designadamente quando compete ao segurador ordenar a reparação do veículo, a indemnização não corresponde apenas aos juros de mora, mas à compensação pelos prejuízos patrimoniais e não patrimoniais ocorridos, a determinar segundo juízos de equidade, se se verificarem os correspondentes pressupostos.
59ª Os autos demonstram, de novo à saciedade, que a recorrida fez letra morta dos mais elementares deveres de diligência e probidade, pois que dispondo de dois relatórios de averiguação (da C... e da SGS) que descartavam a possibilidade da existência de alguma fraude, manteve-se “firme” naquele seu propósito de não pagar a indemnização devida ao seu segurado, o recorrente.
60ª E chegou mesmo, já no decurso dos autos, a fazer juntar aos mesmos um “relatório” que, esse sim, albergava a sua “tese” de fraude ao seguro. Porém e como muito bem afirmou a Meritíssima Juíza a quo na sua decisão, no mesmo dia em que foi junto, no mesmo dia o recorrente requereu a emissão da competente certidão para participar criminalmente contra o seu autor que, diga-se, está já acusado da prática do crime de difamação.
61ª Mas também ao contrário do que afirma a Meritíssima Juíza a quo na sua decisão, na senda até do que era alegado pela recorrida no que respeita à privação do uso, uma tal cláusula não pode ser invocada se a mesma não estava incluída no contrato.
62ª Com efeito e como é sabido, no cumprimento de um contrato as obrigações de cada uma das partes não se esgotam na realização das prestações expressamente previstas, o que decorre, desde logo, do princípio geral da boa fé.
63ª De novo com a devida vénia, permita-se-nos trazer aqui à colação o que se decidiu no douto Ac. do TRC de 25/1/22 (proc. nº 168/18.0T8FVN.C2) onde se afirma que a prestação devida por cada um dos contraentes compreende, além dos deveres primários e secundários de prestação, “… deveres acessórios de conduta, que impõem a cada um dos contraentes o dever de tomar todas as providências necessárias (razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na prestação (…) deveres estes cuja violação não dá lugar a uma acção de cumprimento (art. 817.º), mas tão-só à obrigação de indemnizar os danos causados à outra parte.
E se uma seguradora não é diligente no cumprimento da prestação devida/convencionada, não está a tomar (…) todas as providências necessárias (e razoavelmente exigíveis) para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do credor na sua (da seguradora) prestação.”
64ª No caso dos autos não só a recorrida não cumpriu a sua obrigação contratual, como fez questão de não a cumprir refugiando-se numa teoria que não tinha sequer sustentação nos documentos que fez juntar aos autos, com o que pretendeu escapar quer ao pagamento da quantia acordada (60.000,00 €), quer a uma quantia que era devida ao recorrente pela privação do uso do seu veículo.
65ª E porque há claramente uma violação culposa por parte da recorrida no cumprimento de deveres acessórios de conduta, deveres de boa fé de actuação com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado, ainda que o risco de privação do uso não esteja contratualmente previsto, ainda assim não está a recorrida dispensada de pagar, a título de privação do uso, uma indemnização ao lesado, aqui recorrente (Ac. do STJ de 27.11.2018, in www.dgsi.pt).
66ª Peticionou, a esse título, o recorrente o pagamento da quantia diária de 50,00 €, a contar desde o 61º dia após a ocorrência do furto e o desaparecimento do veículo seguro, ou seja, desde o dia 26.04.2021, tanto mais que participou aquele furto à recorrida no dia 25.03.2021.
67ª Por isso, e até ao momento da prolação da decisão aqui em crise, que ocorreu no dia 22.02.2024, cifra-se na quantia de 48.950,00 € o prejuízo do recorrente (979 dias x 50,00 €), quantia na qual a recorrida devia ter sido condenada.
68ª E, tal como se peticionou, esse prejuízo diário de 50,00 € irá manter-se até que a recorrida indemnize o recorrente pela perda total daquele seu veículo, desconhecendo, como os autos bem o demonstram, o recorrente quando irá isso suceder, motivo por que relega para posterior incidente de liquidação a sua quantificação.”.
A Interveniente principal:
“1º Com o devido respeito, entende a Recorrente que a matéria de facto data como provada, foi indevidamente julgada, a saber: O Autor, para pagamento de parte do preço do veículo SO, celebrou um contrato de financiamento com a B... Crédito, em 13/03/2020, com o n.º ...48 e pelo valor total de € 28.674,48, tendo já pago o total de € 16.262,76, conforme documentos juntos pela interveniente e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (sublinhado e negrito nosso)
2º O Recorrido/Autor celebrou com a Interveniente Principal/ Recorrente B...Crédito um contrato de financiamento datado de 13/03/2020, no qual a aqui exponente lhe concedeu a quantia de €25.908,00 (vinte e cinco mil novecentos e oito euros) a reembolsar em 24 prestações mensais, iguais e sucessivas, no valor de €1.194,00 (mil, cento e noventa e quatro euros), para a aquisição de um veículo de marca Porsche, modelo ..., com a matrícula ..-SO-...
3.º Sucede, porém, que o referido montante de € 16.262,76 foi liquidado pelo Recorrido, AA, não raras vezes, com atrasos significativos,
4.º Motivo pelo qual, o valor supra indicado referia-se a capital, juros remuneratórios, bem como juros moratórios e despesas associadas.
5.º Não podendo, portanto, ser efetuado o simples cálculo aritmético da subtração ao total financiado da soma dos montantes pagos.
6.º À data da resolução do contrato de financiamento – 24/05/2022 - encontrava-se em dívida a quantia de € 14.998,82 (catorze mil novecentos e noventa e oito euros e oitenta e dois cêntimos). – cfr. documento nº 2, que se junta e reproduz.
7.º À quantia referida (€ 14.998,82) acrescem juros de mora desde aquela data até efetivo e integral pagamento.
8.º Pelo que, à data de prolação da sentença por este respeitoso tribunal – 22/02/2024 – o valor dos juros de mora ascendem a € 1.032,25 (mil e trinta e dois euros e vinte e cinco cêntimos).
9.º Neste sentido, resulta dos cálculos efetuados, que o valor em dívida à Interveniente Principal/ Recorrente “B... Crédito” atualmente ascende a € 16.031,07 (dezasseis mil e trinta e um euros e sete cêntimos) a que acrescem juros de mora até efetivo e integral pagamento.
10.º E, em relação a este ponto, importa realçar que o mesmo foi abordado em sede de audiência de discussão e julgamento, concretamente, na inquirição da testemunha arrolada pela Interveniente Principal/ Recorrente “B... Crédito” DD.
11.º Afigura-se que a douta sentença contém um lapso ao condenar a Ré/Recorrida “A... S.A”, a pagar à Interveniente Principal/Recorrente “B... Crédito” apenas a quantia de €12.411,72 (doze mil, quatrocentos e onze euros e setenta.
12.º À data da prolação de sentença – 22/02/2024 – os juros de mora ascendiam a € 1.032,25 (mil e trinta e dois euros e vinte e cinco cêntimos), o que perfazia o montante de 16.031,07 (dezasseis mil e trinta e um euros e sete cêntimos) a que acrescem juros de mora até efetivo e integral pagamento.
13.º Pelas razões que se pugnarão, e que aqui se submetem à douta apreciação deste Venerando Tribunal da Relação.
Nestes termos e nos melhores de Direito deve ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a douta decisão recorrida, e substituindo-se aquela por outra que condene a Ré/Recorrida A... S.A no pagamento do valor em dívida no contrato de financiamento nº ...48, no valor de € 16.031,07 (dezasseis mil e trinta e um euros e sete cêntimos) aos quais acrescem juros de mora desde 22/02/2024, até efetivo e integral pagamento.”
A Ré:
“1.ª - A decisão de primeira instância, quanto à matéria de facto, padece de incorreções de julgamento e insuficiência, atentos os meios probatórios constantes do processo – documentos e depoimentos das testemunhas, que impunham decisão diversa da recorrida, que abaixo melhor se especificará.
2.ª - A sentença enferma de erro de julgamento e interpreta defeituosamente a factualidade apurada, aplicando erradamente a Lei e as orientações jurisprudenciais, como infra se verá.
3.ª - O presente recurso versará a impugnação da matéria de facto dada como provada, uma vez que se conclui que a mesma não tem suporte na prova constante dos autos, bem como da produzida em audiência de julgamento, pelo que urge ser alterada a decisão da matéria de facto, nos moldes infra expostos.
4.ª - São os seguintes os pontos da matéria de facto que foram incorretamente julgados: No que respeita aos factos provados: 2. No dia 23.03.2021, por volta das 18h00, após a sua esposa ter chegado, o A. estacionou aquele veículo na Rua ..., nas proximidades da loja comercial que ali detém e onde exerce a sua actividade de decoração, que se situa na rua .... ....
3. Tendo nesse dia seguido para a sua residência, sita na Rua ... – ... – ..., num dos veículos ligeiros de mercadorias de que dispõe para transporte das mercadorias que comercializa – móveis, cortinados e peças de decoração – carregado de material que iria colocar em casa de um cliente no dia seguinte, ou seja, no dia 24.03.2021, e aquele veículo ficou ali estacionado, como aliás, sucedia diversas vezes por semana.
4. No dia seguinte, isto é, no dia 24.03.2021, por volta da hora de almoço, quando regressou ao seu estabelecimento comercial e se ia dirigir para a sua residência para almoçar, como sucede diariamente, iria utilizar aquele seu veículo ..-SO-.., 5. tendo o funcionário, que com ele tinha estado na casa do cliente, se ausentado para almoçar.
6. Quando chegou ao local, percebeu que aquele seu veículo já ali se não encontrava estacionado,
7. motivo por que, ao constatar esse facto, se deslocou ao Posto da G.N.R. ... para participar esse furto, conforme documento 2 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
8. O veículo em causa é importado, sendo a primeira matrícula de 2012 da Bélgica, tendo um valor comercial à data do sinistro de € 47.000,00. No que concerne aos factos não provados:
A) Os veículos de marca Porsche, modelo ..., não são objecto de furto, pois não só a sua tecnologia é praticamente inviolável, assim como não existe ‘interesse’ deste veículo no ‘mercado negro’, uma vez que o estereótipo de cliente Porsche não recorre a material alternativo (sucata). F) Não é possível o furto destes veículos com aparelhos à distância e para abrir a porta seria demorado, tendo de desmontar o veículo para o pôr em funcionamento, desligar as inúmeras centralinas e tentar sincronizar para colocar o veículo em andamento, o que tudo chamaria a atenção.
5.ª - Ora, entende a ora recorrente que deve ser alterada a matéria de facto assim apurada. Vejamos a prova produzida:
6.ª - Depoimento de EE, casado, 55 anos, diretor de pós-venda da D..., com domicílio na Avenida ... ... - ... (depoimento prestado por videoconferência).
O seu depoimento foi prestado na audiência de 20-12-2023 e está integrado de gravação digital de seguinte forma: 14:49:37 – 15:44:17
7.ª - Referiu que conhece bem a viatura em questão - ... de 2012, com número de chassi WP...26, com tipo de motor ..., tipo de caixa de câmbio ..., código de pneumático ..., número de motor ...08 e número de série da caixa coincidentes.
8.ª - Neste circunstancialismo, referiu não conhecer nenhuma outra forma, nenhum outro meio para abrir o carro sem ser com a chave. Obviamente, a não ser danificando o veículo, ou seja, forçar uma abertura, forçar a abertura do capot, partir os vidros.
9.ª - Mais referiu que este tipo de veículos estão dotados, de série, de um sistema de imobilização e de alarme que são, portanto, equipamentos de série. O sistema de imobilização impede que se desbloqueie a coluna da direcção e o alarme supervisiona o acesso através das portas ao carro, ou quando o carro é rebocado, ou colocado, por exemplo, em cima de um camião.
10.ª - Referiu, ainda a existência de um sensor de presença no habitáculo que ativa o alarme com o carro fechado e há uma tentativa de entrada no carro o que leva o alarme a disparar, o que faz com que toda a gente à volta o ouça.
11.ª - Ou seja, o sistema de imobilização só se desativa quando se acede ao veículo através de uma chave reconhecida.
12.ª - Referiu, ainda, que os carros saem da linha de montagem com duas chaves e que depois podem codificar-se mais, até um total de cinco. Depois, portanto, para fazer a codificação das chaves deve ser feita nos nos serviços oficiais e deve ser feito com, portanto, tendo o veículo, tendo uma chave e com o tester diagnosis do carro.
13.ª - Referiu que a codificação das chaves é sempre feita nas oficinas da Porsche.
14.ª - Disse, ainda, que quando se pede a duplicação da chave tem que se fazer a propriedade veículo e com o veículo presente.
15.ª - Esclareceu que os sistemas de proteção nunca tiveram problemas significativos. Referiu que conhece casos de carros que foram roubados ao proprietário, mas esses casos foram através de dano provocado ao veículo para o levar.
16.ª - Esclareceu que o sistema de bloqueiodo ... é mecânico com accionamento electrónico;
17.ª - Este depoimento, a exemplo do que considerou o Tribunal recorrido, foi bastante escorreito e coerente, referindo que não é possível abrir o veículo sem chaves ou comando à distância ‘com os meios oficiais que conhecemos;
18.ª - E que os meios ilegítimos, vulgo furtos ou roubos, forçando o veículo, o que pode acionar o sistema de alarme e imobilização, não sendo possível tecnicamente, contornar essa situação;
19.ª - Estamos perante um técnico oficial da marca, que não tem qualquer tipo de interesse na sorte da ação e que tem conhecimento efetivo das características técnicas do veículo seguro;
20.ª - Uma questão deveras importante, é que, efectivamente, o veículo foi entregue com duas chaves (como consta da informação junta a 31/10/2023), mas que foi feita uma terceira chave na Bélgica, mas que uma delas deve ter sido eliminada.
21.º - Depoimento de CC. O seu depoimento foi prestado na audiência de 20-12-2023 e está integrado de gravação digital de seguinte forma: 15:46:40 – 16:06:27 - (depoimento prestado por videoconferência).
22.ª - Esclareceu que a Apólice em causa não tem uma clausula de desvalorização automática e que a indemnização tem a ver com o valor do veículo no momento do sinistro.
23.ª - E, com base nesse pressuposto, estudou qual o valor do veículo à data do veículo, estimando o valor médio de 42 mil euros, como razoável, para uma indeminização a existir.
24.ª - Esclareceu que tomou em consideração os 246 mil quilómetros, o ano de fabrico: 2012 e o facto de ser um veículo importado.
25.ª - Mais esclareceu que se consegue encontrar no mercado de usados um veículo destas características pelo valor indicado e que esteja em razoável estado de conservação?
26.ª - Referiu que, aquando da celebração do contrato de seguro, foram mencionados como extras que, afinal, eram equipamento de série.
27.ª - Confirmou, a exemplo da testemunha anterior, que a viatura em causa tem um sistema de bloqueio à direcção, e o imobilizador do motor.
28.ª - O sistema de arranque deste veículo, portanto, o desbloquear da coluna de direcção e do próprio motor, só é possível, com uma ordem electrónica.
29.ª - Ou seja, a ordem é dada electronicamente às Centralina, que depois faz desactivar o bloqueio da coluna de direcção e o bloqueio do motor; Sempre através da chave original.
30.ª - Depoimento de FF, casado, 45 anos, perito averiguador na empresa E..., onde tem domicílio profissional. O seu depoimento foi prestado na audiência de 24-01-2024 e está integrado de gravação digital de seguinte forma: 09:51:44 – 11:30:47.
31.ª - No que respeita ao depoimento de FF, casado, 45 anos, perito averiguador na empresa E..., onde tem domicílio profissional.
32.ª - A testemunha é subscritora de um relatório junto aos autos, conformando-o na íntegra. 33.ª - Confirmou que efetuou vários contactos mormente com a G.N.R. ..., o ... e o centro Porsche;
34.ª - Apurou que o carro em causa não pode ser furtado sem uma chave original e que, na hipotética hipótese de existir o furto com recurso a um reboque também não é possível, por variadíssimos factores, primeiro, quando o carro estiver a ser furtado quando tem um certo grau de inclinação e o alarme dispara o que provoca um grande alarido.
35.ª - Referiu que não dá para desmontar a caixa por baixo, porque o Porsche ... é um carro baixo, desportivo, e que uma pessoa normal, com uma constituição física normal, não consegue colocar debaixo do carro para o levantar, senão tem que ter um macaco;
36.ª - A testemunha colocou em causa o valor da viatura segura à data do alegado sinistro: referiu que apurou dois veículos semelhantes à venda por cerca de 43 mil euros, sendo que são valores de proposta do vendedor e que o stand ganha, em média, 6 mil euros em cada carro para dar garantia e margem de lucro;
37.ª - Mais referiu que estranhou, a nível do contrato de seguro a inclusão de extras, dos estofos, das
jantes e penso que era o GPS que tinha, porque isso já vinha com o carro, era material de origem.
38.ª - Referiu, ainda, que achou estranho o alegado furto do Audi…, na mesma altura, que era do pai do Sr. BB, anterior proprietário do veículo seguro.
39.ª - Explicou que da informação da Porsche de que o carro não pode sair do local sem uma chave e dadas as circunstâncias todas, concluiu que o sinistro não se pode ter dado como participado.
40.ª - Referiu, que com uma chave original, não pode replicar essa chave fora da marca;
41.ª - Referiu, ainda, que apurou que o veículo seguro, à data do sinistro, já não se encontrava em
boas condições, tendo problemas mecânicos.
42.ª - Apurou que nas imediações do alegado local do furto, nenhuma das pessoas contactadas e que viviam perto nada disseram quanto ao furto.
43.ª - Entende que uma das razões para o desaparecimento do veículo seguro e o acionamento do seguro era a grande discrepância entre o capital seguro e o valor real da viatura.
44.ª - Acrescentou que de acordo com informação oficial, o veículo só pode ter sido furtado com a utilização de uma chave original.
45.ª - Confirmou que o local é uma pública situada numa artéria principal de ..., com várias casas de habitação e de comércio ao redor, com boa iluminação pública;
46.ª - Apurou a existência de furtos mas com veículos de outras gamas - Renault, Peugeot de menor dimensão e com tecnologias diferentes, com sistemas anti-arranques completamente distintos.
47.ª - Concretizou que o veículo seguro só funciona com chaves originais e estando todas em conformidade é que o carro é colocado em funcionamento. Não é possível colocar este carro em funcionamento com uma chave que não seja a original e que não seja daquele carro.
48.ª - As chaves emitem um sinal encriptado à centralina que aceita esse sinal e a porta é aberta. Se o código estiver em conformidade é aceite e coloca em funcionamento. Se o código não estiver o carro não arranca e até pode bloquear.
49.ª - Explicou ser impossível criar uma chave por radiofrequência, nem por manipulação pela tomada OBV ou manipulação da centralina;
50.ª - Disse que o veículo seguro era ainda dotado de um alarme anti-intrusão, que funciona com base na buzina do carro.
51.ª - E que, mesmo partindo o vidro, as portas não vão abrir pela parte de dentro.
52.ª - Referiu que não era possível alguém se ter introduzido dentro do veículo e, de alguma forma, o tivesse posto a funcionar sem ter chave original.
53.ª - E que o uso de uma grua não era compatível com o furto pois produziria muito ruido e envolvência, o que alertaria os vizinhos e os trauseuntes.
54.ª - Nenhum dos vizinhos contactados se apercebeu do furto nem de qualquer outra ocorrência estranha.
55.ª - Disse, ainda, que só com a chave original é que se consegue desactivar o alarme. Portanto, essa questão de, por exemplo, na hipótese de desmontar o veículo na zona inferior do tablier, laterais da consola central, desligar as centralinas, o imobilizador, a caixa do motor, os sistemas centrais, isto é uma operação complexa, demorada, ruidosa, que envolve várias pessoas e equipamentos – seriam precisas mais de 4 horas e seria facilmente detetável pelos vizinhos.
56.ª - Disse que os Porsches, modelo ..., têm a tecnologia anti-roubo e anti-intrusão que é praticamente inviolável, o que dificulta, em muito, o furto.
57.ª - Referiu que o valor de marcado de um veículo com as características do veículo seguro andará na ordem dos 35 mil euros;
58.ª - Acresce dizer que não se verificaram quaisquer vestígios no local indicado como local do furto, mormente vidros partidos ou outros;
59.ª - Na perspetiva da recorrente, não obstante alguns elementos de prova impusessem decisão diversa da proferida quanto a alguns dos factos impugnados – o que não deixaremos de referir nestas alegações – é o conjunto dessa prova, que adiante se indicará, devidamente conjugada e apreciada, que conduz à conclusão de que o furto não pode ter ocorrido, impondo-se que sejam dados como não provados, na sua totalidade, os factos dos pontos 2.º a 7.º dada como provada.
60.ª - Não existe prova direta do furto e, para além das declarações do próprio A., nenhuma prova foi feita no sentido de que o veículo seguro tenha estado no local do alegado furto no dia e período temporal em que se deu como provado que tal subtração ocorreu;
61.ª - De facto, não passa o crivo da mínima verosimilhança que um veículo tenha sido furtado de um local central, não obstante ser de noite, sem a utilização de uma chave original (as duas existentes estavam na posse do Autor ) e sabendo-se que a mera abertura da sua porta acionaria um alarme e a movimentação do carro exigira complexos trabalhos que demorariam algumas horas, chamando a atenção das várias pessoas que aí viviam.
62.ª - Basicamente, sem uma chave original, e atendendo ás características do veículo – sistema de alarme e anti intrusão - o veículo, para que fosse furtado, estaria a ser desmontado em plena via pública, com pessoa ou pessoas no seu interior a trabalhar como se de mecânicos se tratassem, o que não é sequer possível crer que fosse possível;
63.ª - Entendemos, salvo o devido respeito, que o Meritíssimo Tribunal “a quo” não ajuizou bem a globalidade da prova produzida pois a mesma não se mostrou minimamente suficiente e coerente para alicerçar a convicção aduzida na douta sentença proferida, no sentido de se dar como demonstrada a ocorrência de um furto do veículo, sobretudo quanto confrontada com as regras da experiência e do normal acontecer.
64.ª - Não se ignora também que fruto da dificuldade probatória que acarreta a prova de um furto de um automóvel, tem a nossa Douta Jurisprudência entendido, dever “aligeirar” o cumprimento deste onus probandi, e considera que para a demonstração do evento danoso/furto, se haverá que exigir (apenas) a existência de uma participação às autoridades policiais, levada a cabo em circunstâncias tais que não ponham em causa a seriedade da mesma, isto é, que apontem para a verosimilhança da ocorrência do furto participado.
65.ª - Tendo em linha de conta este entendimento e analisando o acervo probatório carreado ao processo e o circunstancialismo que rodeia este evento/sinistro, impõe-se concluir (em sentido diverso do que foi decidido pelo Mmo. Tribunal a quo) que foram efetivamente apuradas circunstâncias (várias) que levam ao afastamento desta prova de primeira aparência do furto participado às autoridades e que inculcam no julgador uma dúvida séria a respeito da ocorrência do furto que serve de causa de pedir.
66.ª - Na realidade, e sempre com o merecido respeito por entendimento divergente, considera a Apelante Seguradora que a apreciação da prova levada a efeito, e o facto de se ter acolhido, sem mais, a versão dos factos descrita em audiência de julgamento pelas declarações de parte;
67.ª - Com efeito, são os seguintes os elementos de prova produzidos nos autos – que foram mal apreciador -, e que, no modesto entendimento da Apelante Seguradora, demandavam diversa decisão da proferida relativamente à factualidade aqui objeto de impugnação (toda ela contendendo com a ocorrência do sinistro e com as circunstâncias ao mesmo inerentes) na medida em que colocam, inelutavelmente, em causa, a verosimilhança dos factos vertidos na participação às autoridades:
- Depoimento das testemunhas EE, CC e FF e supra referidos que, em uníssono e sem qualquer hesitação, falaram na dificuldade de furtar o veículo sem a utilização de uma chave original, a impossibilidade de fazer clonagem sem a presença de uma chave original e da viatura e todos os sistemas anti roubo e anti intrusão que este tipo de veículo dispõe. Falaram, igualmente, sobre toda a dificuldade que o meliante enfrenta para furtar o veículo sem uma chave original, tendo de utilizar meios técnicos e equipamentos adequados, sendo impossível que tal passe despercebido, dado o barulho e movimentação.
68.ª - Acresce dizer que nenhum vestígio de furto foi encontrado no local.
69.ª - A entender-se de outra forma, estar-se-ia a desvirtuar por completo as regras do ónus da prova e, eventualmente, dar-se alento ao recurso aos meios judiciais para situações de verdadeiro aproveitamento das seguradoras (de entre as quais situações de fraude que são cada vez mais frequentes nos nossos Tribunais).
70.ª - Entendemos que estas circunstâncias apontadas pela aqui recorrente são idóneas e suficientes a causar a incontornável dúvida perante a descrição do evento conferida pelo A./Apelado.
71.ª - Andou mal o Meritíssimo Tribunal a quo ao não cotejar as declarações de parte e depoimentos testemunhais com o teor dos elementos de prova que supra salientamos;
72.ª - Assim sendo, e perante a prova produzida, a matéria ínsita nos artigos 2º a 7.º do elenco da factualidade considerada provada. dos factos provados deveria ter sido considerada NÂO PROVADA.
Expurgando-se, em consequência, dos artigos 7.º, 11.º e 17.º dos factos provados, todas as menções a “furto”.
De igual modo, e em face do supra elencado, deverá ser julgada provada e, nessa medida, aditada ao elenco dos factos provados, a materialidade vertida nos factos não provados, da seguinte forma:
A) Os veículos de marca Porsche, modelo ..., dispõem de uma tecnologia anti furto que é praticamente inviolável;
F) Não é possível o furto destes veículos com aparelhos à distância e para abrir a porta seria demorado, tendo de desmontar o veículo para o pôr em funcionamento, desligar as inúmeras centralinas e tentar sincronizar para colocar o veículo em andamento, o que tudo chamaria a atenção.
73.ª - Assim, a propugnada alteração da decisão sobre a matéria de facto implica, como consequência direta e necessária e salvo o devido respeito por diverso entendimento, a improcedência da presente ação.
74.ª - Das mais elementares regras sobre ónus da prova dimana que cabe ao Autor a alegação e prova dos factos em que assenta a sua pretensão (Cfr. art. 324º do Cód. Civil).
75.ª - Ao contemplar diverso entendimento, o Meritíssimo Tribunal “a quo” incorreu em violação do disposto nos arts. 342º do Cód. Civil e 516º do Cód. Proc. Civil, entre outros, motivo pelo qual a douta decisão ora posta em crise se mostra, assim, inquinada, devendo, pois, ser revogada na íntegra.
O que se deixa expressamente alegado, para todos os devidos efeitos legais.
Sem conceder, e para o caso de assim se não entender,
76.ª - A aqui recorrente entende, ainda, que o seguinte facto provado: 18. O veículo em causa é importado, sendo a primeira matrícula de 2012 da Bélgica, tendo um valor comercial à data do sinistro de € 47.000,00.
Não tem correspondência na prova produzida, devendo ser alterado.
77.ª - Vejamos a prova que foi feita nos autos quanto ao valor do veículo à data do acidente.
78.ª - De acordo com a prova testemunhal produzida – depoimento supra transcrito do Eng.º CC e da testemunha FF, e ainda do doc. 3 junto com a contestação – avaliação da EUROTAX temos o seguinte: Vejamos os dados do veículo e características do veículo: Trata-se de um veiculo importado e já com 245.970 Kms; O veículo em questão valia, no máximo, 37.212,00 €., admitindo-se, na melhor das hipóteses, um valor de 42.000,00 euros, já de si significativo.
79.ª - Face ao assim exposto, entendemos que o ponto 18 da matéria de facto provada deve ser alterada, passando o mesmo a constar o seguinte:
80.ª - O veículo em causa é importado, sendo a primeira matrícula de 2012 da Bélgica, tendo um valor comercial à data do sinistro de € 42.000,00.
81.ª - Assim, considerando a matéria de facto provada, bem como as normas legais e contratuais supra expostas, temos que a R. constituiu-se na obrigação de indemnizar o A., o proprietário do veículo, bem como a interveniente B... Crédito (face ao contrato de mútuo existente, que muito embora não se reflicta em termos de propriedade, sempre será de atender como crédito, tendo em conta o pedido efectuado e a intervenção suscitada nos autos pelo próprio A.), pelo valor global de €42.000,00, sendo €29.588,28 para o A. e €12.411,72 para a interveniente B... Crédito 82.ª - Ao contemplar diverso entendimento, o Meritíssimo Tribunal “a quo” incorreu em violação do disposto nos arts. 342º do Cód. Civil e 516º do Cód. Proc. Civil, entre outros, motivo pelo qual a douta decisão ora posta em crise se mostra, assim, inquinada, devendo, pois, ser revogada nos termos expostos.
Termos em que deverá ser concedido integral provimento ao recurso interposto, e Revogada a douta sentença proferida, nos termos supra expendidos, assim se fazendo Inteira justiça.”
III – Questões a resolver:
Em face das conclusões dos Recorrentes nas suas alegações – que fixam o objeto do recurso nos termos do previsto nos artigos 635º, números 4 e 5 e 639º, números 1 e 2, do Código de Processo Civil -, são as seguintes as questões a resolver, enunciadas por uma ordem de precedência lógica, são as seguintes:
1 – Em face da reapreciação da prova requerida pela Ré apurar se deve ser julgada não provada a ocorrência do furto que foi alegado como causa de pedir; em caso de improcedência dessa pretensão,
2 – Aferir se deve ser alterado o elenco dos factos provados no que tange ao valor do veículo furtado;
3 – Apurar se deve ser alterada a matéria de facto no sentido pretendido pelo Autor e pela Interveniente principal por forma a alterar a quantificação da indemnização devida a cada um deles (pelo dano da privação do uso e pelo valor das prestações em divida, respetivamente);
4 – Apreciar, independentemente da alteração da matéria de facto, a pretensão do Autor de ver a indemnização pela perda do veículo fixada com recurso ao valor de avaliação do mesmo em sede de contrato de seguro.
IV – Fundamentação:
Foram os seguintes os factos selecionados pelo tribunal recorrido como relevantes para a decisão da causa:
1. O A. adquiriu o veículo ligeiro de passageiros ..-SO-.., da marca Porsche, modelo ..., conforme documento 1 da PI e doc. junto a 24/10/2022, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
2. No dia 23.03.2021, por volta das 18h00, após a sua esposa ter chegado, o A. estacionou aquele veículo na Rua ..., nas proximidades da loja comercial que ali detém e onde exerce a sua atividade de decoração, que se situa na rua .... ....
3. Tendo nesse dia seguido para a sua residência, sita na Rua ... – ... – ..., num dos veículos ligeiros de mercadorias de que dispõe para transporte das mercadorias que comercializa – móveis, cortinados e peças de decoração – carregado de material que iria colocar em casa de um cliente no dia seguinte, ou seja, no dia 24.03.2021, e aquele veículo ficou ali estacionado, como aliás, sucedia diversas vezes por semana.
4. No dia seguinte, isto é, no dia 24.03.2021, por volta da hora de almoço, quando regressou ao seu estabelecimento comercial e se ia dirigir para a sua residência para almoçar, como sucede diariamente, iria utilizar aquele seu veículo ..-SO-..,
5. tendo o funcionário, que com ele tinha estado na casa do cliente, se ausentado para almoçar.
6. Quando chegou ao local, percebeu que aquele seu veículo já ali se não encontrava estacionado,
7. motivo por que, ao constatar esse facto, se deslocou ao Posto da G.N.R. ... para participar esse furto, conforme documento 2 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
8. Essa participação deu origem ao inquérito, que correu termos pelo Departamento de Investigação e Ação Criminal da Comarca de Lousada sob o n.º ...3/21.3GALSD, o qual foi arquivado em face da não existência de indícios quanto à autoria dos factos denunciados, do que foi o A. notificado no dia 13.04.2021, conforme documento 3 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
9. À data de 16.09.2020 (data que decorre de lapso manifesto, pois se queria dizer 16-09-2021) o veículo ..-SO-.. continuava desaparecido e com indicação para apreensão, conforme doc. 4 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
10. O A. tinha transferido a sua responsabilidade civil emergente da circulação daquele veículo ..-SO-.. para a R., através do contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...92, que se encontrava válida e eficaz à data do sinistro supra descrito, com a cobertura de responsabilidade civil perante terceiros e a cobertura facultativa de Furto, Roubo ou Furto de Uso, com um capital seguro, à data do sinistro, de 60.000,00 €, sem franquia contratual para furto ou roubo, conforme docs. 1 e 2 da contestação, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
11. O A. participou, no dia 25.03.2021, o furto daquele veículo à R., conforme doc. 5 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
12. Inicialmente a R. enquadrou os factos participados na cobertura referida, o que fez no dia 03.05.2021, conforme doc. 6 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
13. Posteriormente, não obstante as diversas insistências junto da R., designadamente por e-mail, conforme doc. 7 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, a mesma nada mais disse.
14. O A. e a mulher utilizavam aquele veículo no exercício da sua actividade comercial, quer para visitar clientes, quer para se deslocar aos locais onde tinha obras em curso, quer ainda para se deslocar aos mais diversos fornecedores, principalmente na zona norte do país.
15. Um veículo de aluguer sem condutor semelhante ao SO tem um custo diário nunca inferior a € 50,00.
16. O veículo seguro tem reserva de propriedade a favor do B..., SA., tendo sido levantada a penhora que incidia sobre o mesmo, conforme doc. 1 da PI e documento junto a 24/10/2022, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
17. O local do furto tem iluminação e é, por vezes, patrulhado.
18. O veículo em causa é importado, sendo a primeira matrícula de 2012 da Bélgica, tendo um valor comercial à data do sinistro de € 47.000,00.
19. O modelo em causa tem um conjunto de técnicas destinadas a dificultar o furto desse tipo de automóveis, tais como encriptação do sinal da chave dirigido à centralina, alarme anti-intrusão (com funcionamento da buzina, designadamente pela quebra de vidros ou abertura de portas).
20. Não foram indicadas testemunhas do furto, nem visualizados vidros partidos no local.
21. O A. reside numa quinta de sua propriedade na ..., com piscina, salão de jogos, cavalos e encontra-se em fase de investimento, com plantação e ampliação da vinha.
22. O A. possuiu, ao longo dos anos, quer para uso pessoal, quer para a sua atividade, os veículos com as seguintes matrículas: ..-JO-..; ..-PC-.. (que deu à troca na compra do ...); ..-FI-.., que posteriormente teve perda total; ..-DI-..; ..-..-RA; ..-CH-..; e em nome da esposa existem ou existiram os seguintes veículos: ..-ZI-.., que era usado pelo filho e que atualmente já não têm; o reboque para cavalos P-83434; ..-GG-.. e ..-..-TU.
23. O A. e a família dispunham de outros veículos à data do sinistro, dispondo de outros meios de locomoção, mormente outros veículos automóveis.
24. O A., para pagamento de parte do preço do veículo SO, celebrou um contrato de financiamento com a B... Crédito, em 13/03/2020, com o n.º ...48 e pelo valor total de € 28.674,48, tendo já pago o total de € 16.262,76, conforme documentos juntos pela interveniente e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
Não se provaram todos os demais factos (excluindo a matéria conclusiva e de Direito, além da repetida e vertida em termos negativos que não podem aqui ser consideradas e cuja valoração se fez em termos parciais, de respostas positivas e restritivas supra explanadas), que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.
Assim, não se provou, nomeadamente, que:
A) Os veículos de marca Porsche, modelo ..., não são objeto de furto, pois não só a sua tecnologia é praticamente inviolável, assim como não existe ‘interesse’ deste veículo no ‘mercado negro’, uma vez que o estereótipo de cliente Porsche não recorre a material alternativo (sucata).
B) Foi apurado que nas imediações do local do furto não existem pessoas referenciadas por este tipo de criminalidade, assim como não existe registo de ocorrências de furto nas imediações.
C) Aquando da participação o A. não se encontrava nervoso nem preocupado com o sucedido, ou seja, com o alegado desaparecimento do seu veículo.
D) Existe elevadíssima sinistralidade, quer do veículo seguro, quer do segurado e respetiva empresa da sua esposa.
E) O veículo foi adquirido a GG, filho de HH, tendo este participado um furto de um Audi ....
F) Não é possível o furto destes veículos com aparelhos à distância e para abrir a porta seria demorado, tendo de desmontar o veículo para o pôr em funcionamento, desligar as inúmeras centralinas e tentar sincronizar para colocar o veículo em andamento, o que tudo chamaria a atenção.
G) Não era rotina parar o veículo no sítio onde diz ter sido furtado, até porque a residência tem garagem.
H) O A. está diretamente ligado ao comércio de automóveis.
I) O A. teve em seu nome a viatura Mercedes ..., que foi alvo de furto.
Com vista a sustentar tais alterações a Recorrente indica os meios de prova (documental e por depoimentos) a atender, tendo identificado as passagens dos depoimentos gravados que quer ver reapreciados, que, em parte, transcreveu.
Estão, assim, cumpridos os ónus previstos no artigo 640º do Código de Processo Civil Deve, pois ser apreciada a utilidade[1] e bom fundamento das pretensões de alteração da matéria de facto.
O objeto do recurso da A..., SA desdobra-se em duas diferentes pretensões, como já acima assinalado, sendo a primeira a de que se julgue não provada a ocorrência do furto (com a sua consequente absolvição) e a segunda, subsidiária e apenas para o caso da primeira não proceder, de que se altere o valor atribuído ao veículo alegadamente furtado.
Antes de se avançar para a reapreciação dos meios de prova indicados pelo Recorrente e dos demais que se entendam de atender (nos termos do artigo 640º, número 2 b) do Código de Processo Civil) impõe-se uma prévia reflexão sobre o ónus da prova dos factos relativos à ocorrência do sinistro que a Ré quer ver julgados não provados e sobre o padrão de exigibilidade que deve ser aplicado à prova do facto essencial que constitui a causa de pedir e que há de orientar a reapreciação da prova.
O artigo 342.º do Código Civil prevê que àquele que invoca um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado.
Assim não é, apenas, nos casos especialmente previstos na lei. Vejam-se, neste conspecto, os artigos 343.º, número 1 e 344.º do Código Civil.
A parte contra quem for produzida prova pode opor contraprova a respeito dos mesmos factos, com vista a “torná-los duvidosos”, nos termos do previsto no artigo 346.º do Código Civil.
Deve a parte contrária provar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito contra si invocado ("reus excipiendo fit actor"), como prevê o número 2 do artigo 342.º
Não oferece dúvida, perante tais preceitos, que os factos alegados pelo Autor com vista a sustentar que ocorreu furto do veículo (sinistro que constitui a sua causa de pedir) devem por ele ser provados, podendo a Ré fazer contraprova com vista a levantar dúvida sobre aqueles.
O reconhecimento de tal possibilidade à Ré – de lançar dúvida sobre a prova feita pelo Autor - é coisa distinta da afirmação, errada, de que é obrigação da mesma provar qualquer facto de sentido contrário. O primeiro enquadra-se no previsto no artigo 346º do Código Civil, a segunda hipótese decorre do artigo 342, número 2 do mesmo Diploma.
Ora, os factos alegados pela Ré com vista a pôr em dúvida a ocorrência do furto não são factos extintivos ou impeditivos do direito do Autor, não cabendo à mesma prová-los. O intuito da prova dos factos alegados pela Ré com vista a pôr em causa a ocorrência do furto é apenas o de dificultar à parte contrária a criação de uma convicção positiva sobre a ocorrência do mesmo.
Não ocorre, por igual, qualquer inversão do ónus da prova que a lei não prevê na situação dos autos. Tal inversão do ónus de prova não pode sustentar-se apenas com base no argumento de que a prova do furto é difícil ao Autor.
Dispõe o artigo 414.º do Código de Processo Civil que: “A dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita.”.
Deste preceito decorre que apenas em caso de dúvida sobre a realidade de um facto funcionará a regra da repartição do ónus da prova, como critério de decisão.
Estabelecido que não ocorre, no caso, qualquer fundamento para uma inversão do ónus probatório há que refletir sobre o grau de exigência que deve nortear a análise da prova.
Como já dito, só no caso de dúvida deve o juiz decidir contra a parte a quem incumbia o ónus da prova. A instrução/produção de prova tem por fim, nos termos dos artigos 411.º, número 1 do Código de Processo Civil e 341º do Código Civil, a descoberta da verdade. A mesma, contudo, é muito frequentemente um horizonte inalcançável pelo que, permanecendo a dúvida, o legislador fixou um critério a atender- é nesta circunstância que operam as regras de distribuição do ónus da prova. Assim, e no caso, na dúvida sobre a ocorrência do furto, a mesma deve operar contra o Autor.
A bitola que deve orientar o julgamento de facto de modo a que se possa afirmar que há ou não dúvida não resulta da lei e assentará na livre apreciação do julgador em face das circunstâncias do caso concreto. São inúmeras as referências normativas à livre apreciação do julgador que emanam do Código de Processo Civil, nomeadamente nos seus artigos 466.º, número 3, 489.º, 494.º, número 2 e 607.º, número 5.
Com exceção dos casos em que determinados factos ficam subtraídos à livre apreciação do julgador por se exigirem ou por terem sido produzidos meios de prova específicos à sua comprovação (vejam-se o caso da confissão ou dos documentos autênticos, como previstos nos artigos 350.º e 371.º do Código Civil), ou porque os mesmos escapam à capacidade de apreciação do juiz (vg. os que demandam conhecimentos técnicos específicos e demandam prova pericial, nos termos do artigo 388.º do Código Civil), com exceção destes casos especialmente previstos, dizíamos, a prova deve ser apreciada livremente pelo julgador, com recurso às regras da experiência e da lógica.
O legislador exige a motivação da convicção do julgador quando à prova produzida nos seguintes termos: “Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência” – cfr. artigo 607.º, número 4 do Código de Processo Civil.
Esta exigência de fundamentação afasta a discricionariedade na apreciação da prova obrigando o julgador a percorrer e a partilhar um caminho analítico de ponderação de vários fatores, sempre adequados a cada caso concreto, para procurar a verdade mediante as provas que são produzidas.
A afirmação de que um determinado facto se provou não tem de decorrer do afastamento total da dúvida sobre se o mesmo ocorreu, mas, pelo menos, deve criar-se no julgador uma convicção positiva de que há grande probabilidade de que tenha ocorrido ou, dizendo de outra forma, de que não há uma dúvida razoável de que possa ter ocorrido.
As circunstâncias do caso concreto e a dificuldade de prova de certos factos, se não permitem a afirmação de que ocorre inversão de ónus de prova, como acima já afirmamos, devem ser atendidas para que se não onere de tal forma a parte que invoca o direito que a mesma fique, na prática, impossibilitada de convencer o Tribunal da verdade da sua versão.
O que se deve exigir, em termos probatórios não é, assim e por regra, a atestação da absoluta verdade sobre um facto, mas a criação de uma convicção positiva de que, com grande probabilidade, tal facto terá ocorrido. Se se exigir uma tal densidade probatória de que resulte o afastamento de qualquer dúvida possível sobre os factos constitutivos do direito, poucas serão, na verdade, as pretensões que podem proceder.
Ora, no caso da prova do um evento como seja um furto, há que reconhecer a priori que ao lesado é muito difícil convencer, para além de qualquer dúvida razoável, de que o mesmo ocorreu, dada a forma normalmente escondida e furtiva como o mesmo ocorre, que pode levar à total ausência de vestígios da sua prática.
Contudo, volvendo ao caso concreto, o pragmatismo que deve orientar a busca pela verdade processual com vista a que a mesma se aproxime, na medida do possível, da verdade naturalística, exige não só que se tenham em conta as dificuldades da prova da ocorrência de um furto, como também que se tenha presente a ocorrência, não rara, de fraudes consistentes em simulações de sinistros com vista ao acionamento de seguros (como sejam falsos acidentes, inundações, incêndios, roubos e furtos).
Não pode, assim, a consideração das dificuldades probatórias levar a um resultado em que, na prática, se desonere a parte lesada de provar, com um mínimo de concretização, a ocorrência de factos de que resulte a probabilidade de ocorrência do furto. Tal redundaria na violação do disposto no artigo 342.º, número 1 do Código Civil.
Seguimos aqui, de perto, a fundamentação do acórdão deste Tribunal de 23-03-23[2], que subscrevemos na íntegra e que tem notável semelhança com o caso dos autos.
É, pois, este o critério que nos há de orientar na reapreciação da prova requerida: cabe ao Autor a prova da ocorrência dos factos por si alegados em sustentação da ocorrência do sinistro, devendo ter-se em conta a dificuldade de comprovação de alguns deles sem, contudo, se convolar a consideração dessa dificuldade em desoneração de prova. Para tanto há de apreciar-se a probabilidade e razoabilidade de certos comportamentos.
Recordemos o teor das alíneas que a Ré pretende ver julgadas não provadas:
“2. No dia 23.03.2021, por volta das 18h00, após a sua esposa ter chegado, o A. estacionou aquele veículo na Rua ..., nas proximidades da loja comercial que ali detém e onde exerce a sua actividade de decoração, que se situa na rua .... ....
3. Tendo nesse dia seguido para a sua residência, sita na Rua ... – ... – ..., num dos veículos ligeiros de mercadorias de que dispõe para transporte das mercadorias que comercializa – móveis, cortinados e peças de decoração – carregado de material que iria colocar em casa de um cliente no dia seguinte, ou seja, no dia 24.03.2021, e aquele veículo ficou ali estacionado, como aliás, sucedia diversas vezes por semana.
4. No dia seguinte, isto é, no dia 24.03.2021, por volta da hora de almoço, quando regressou ao seu estabelecimento comercial e se ia dirigir para a sua residência para almoçar, como sucede diariamente, iria utilizar aquele seu veículo ..-SO-..,
5. tendo o funcionário, que com ele tinha estado na casa do cliente, se ausentado para almoçar.
6. Quando chegou ao local, percebeu que aquele seu veículo já ali se não encontrava estacionado,
7. motivo por que, ao constatar esse facto, se deslocou ao Posto da G.N.R. ... para participar esse furto, conforme documento 2 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido”.
Foram ouvidos os depoimentos de parte do Autor e das testemunhas II bem como de EE, FF e de BB, (este último autor do relatório de averiguação pedido pela Ré à C...) e apreciados os teores dos documentos juntos com a petição inicial e a contestação, nomeadamente o auto de notícia referido na alínea 7 (de que resulta certificada a participação do furto nos termos que ali se dão por provados, mas já não que o mesmo tenha, de facto ocorrido) e os relatórios da C... (investigação técnica de sinistros) e da SGS (documentos números 3 e 4) cujos autores foram ouvidos.
Verificou-se que, além do depoimento do Autor nenhum outro meio de prova confirmou que o mesmo tenha estacionado o veículo alegadamente furtado no local por ele indicado no dia e hora que referiu, nem, tampouco, que tal comportamento ocorresse “frequentemente”, o que o próprio Autor negou, embora tenha afirmado que por vezes deixava esse ou outro automóvel durante a noite aparcado no local ao fim do dia para ir para casa no mesmo veículo que a sua esposa, que trabalhava com ele no mesmo local, muito próximo do local em que alegadamente ocorreu o furto.
Esta opção de deixar um veículo daquela marca e modelo e com o valor que tem, aparcado na via, com risco de ser furtado ou danificado, quando é certo que o próprio Autor e a testemunha II admitiram que a residência daquele distava cerca de 15 a 20 km do estabelecimento comercial onde o mesmo disse laborar com a esposa é irrazoável e não pode ser tida por provável.
Deteta-se nesta alegada opção uma anormalidade, um afastamento das regras da prudência, sem que tenha sido avançada qualquer razão válida que a justificasse naquele dia em concreto.
Tal opção é irrazoável tendo em conta a referida curta distância a que se situava a casa do Autor, onde, confirmou a testemunha II, o mesmo tinha, dentro da propriedade, espaço que lhe permite estacionar vários veículos em segurança.
Do depoimento de parte do Autor resultou, ainda, que aquele veículo era usado com frequência pela sua mulher, não tendo sido sequer avançada qualquer explicação para que a mesma tivesse regressado a casa com o seu marido num outro automóvel.
O depoente afirmou apenas que tal aconteceu sem avançar qualquer explicação para tal opção, que é, no mínimo, incauta. O Autor disse mesmo que “normalmente” cada um dos cônjuges regressava a casa no seu carro, mas que “uma vez ou outra” pode acontecer “por qualquer motivo” que assim não suceda. Exemplificou que tal pode acontecer quando vão “jantar perto” sem explicar, contudo, porque o teriam feito no dia em questão.
Afastou-se, neste ponto, da afirmação feita perante o averiguador da seguradora, como consta da página 2 do documento número 5 junto à contestação. Nesse momento terá afirmando que “frequentemente ao final do dia vai de ... para casa com a esposa numa das viaturas que possuem e deixam as outras estacionadas onde há lugar nas imediações do estabelecimento em ...”.
Também divergiu dessas declarações a afirmação do Autor de que no dia seguinte saiu de casa para ir trabalhar em casa de um cliente tendo, de caminho, apanhado o seu empregado quando, perante o averiguador teria afirmado que “No dia seguinte regressaram tendo-se ele dirigido para o estabelecimento onde ficou até cerca das 12h15. A essa hora quando foi “pegar" no veiculo, este não se encontrava no local, encontrando-se mesmo outro veiculo no seu lugar”.
O Autor foi confrontado com estas declarações e não negou tê-las prestado alegando apenas que “se realmente eu fiz essas declarações não é verdade”.
Nenhum outro meio de prova, além do depoimento de parte do Autor, confirmou que o veículo alegadamente furtado tenha ficado aparcado no lugar por ele indicado ou que costumasse ali ser estacionado.
Acresce que ficou por explicar, na versão apresentada pelo Autor em audiência de julgamento, como regressaria a sua mulher à loja no dia seguinte – já que admitiu ser ela quem normalmente conduzia o Porshe e o dia seguinte foi um dia de trabalho (quarta feira) -, já que ele próprio (e não ambos) terá saído de casa em direção à casa de um cliente, para o que apanhou JJ em casa deste, porque o mesmo ia ajudá-lo na tarefa de montagem de cortinados.
Desconhece-se se no dia seguinte a esposa do Autor não saiu de casa de automóvel, ou se regressou ao local de trabalho um terceiro veículo. O Autor afirmou, de facto, ter três automóveis. Assim sendo, poderia a sua mulher, no dia seguinte, ter-se deslocado de automóvel.
Não faz qualquer sentido, todavia, que, depois, ao final da manhã, o Autor se dirigisse à loja no seu automóvel pois das duas uma: ou a sua esposa ali tinha ido ter com outro carro, caso em que os dois não poderiam, novamente, regressar a casa com três automóveis; ou a sua esposa não se teria dirigido à loja nesse dia, caso em que o Autor permaneceria com dois veículos naquele local e só poderia regressar com um a casa. Em qualquer desses cenários, também no dia seguinte ao do alegado furto um dos automóveis do casal ficaria aparcado na via pública e não na residência do casal.
Acresce ponderar que não foi feita qualquer prova de indícios do furto – vestígios de vidros partidos, de uso de reboque ou de acionamento de alarme – de que o veículo era dotado -, sendo certo que, ao contrário do afirmado na sentença, o local de onde o mesmo foi furtado não é ermo.
Pelo contrário, é muito próximo de uma rua central e tem, em todas as direções, casas e prédios com janelas voltadas para aquele local que tem iluminação pública e onde estacionam vários veículos[3].
As imagens juntas e o próprio depoimento do Autor confirmam que se trata de local muito movimentado, com inúmeros lugares de aparcamento, todos usados.
As dificuldades, a que infra melhor nos referiremos, de furto deste tipo de veículo e os sistemas de segurança de que estava dotado levam a crer que a sua subtração num local iluminado, próximo de habitações e com tanto movimento de pessoas e veículos seria uma opção pouco apetecível para quem pretendesse furtá-lo sem correr sério risco de ser visto e de levantar suspeitas.
Apurou-se, ademais, por via do extrato de pagamentos à Via Verde juntos com o mesmo documento, que no mesmo dia do alegado furto o veículo passou na portagem de .../... que dista cerca de 27 km do local pelas 23.13 horas. Tal distância demorará, já que o trajeto inclui a passagem por uma localidade, cerca de 20 minutos a percorrer, pelo que, a ser verdade a versão do Autor de que ali aparcou o veículo pelas 18 horas não mais regressando ao local até à hora do almoço do dia seguinte, o veículo teria de ter sido furtado antes das 23 horas. Também essa hora não é de se considerar como a mais conveniente à perpetração do crime em causa, já que, tendo em conta o local, próximo a uma via central e junto a habitações onde vários veículos estacionam, era ainda muito provável que o ato fosse testemunhado por alguém de passagem ou que estivesse de saída ou a chegar ao parqueamento.
Foi, ainda, feita prova, por via do depoimento de KK, agente da GNR, de que se trata de via sujeita a patrulhamento, embora a forma como o mesmo foi descrito revele que as passagens naquele local serão muito espaçadas.
Quanto à prova dos sistemas de segurança do veículo ficou o Tribunal a quo convencido da veracidade do depoimento de EE, com o que se concorda, dada a forma explicativa e serena com que depôs. Não tendo afirmado que era “impossível” furtar um veículo desta marca e modelo, disse, contudo, que o mesmo tem um sistema de alarme e de imobilização difíceis de contornar, que a clonagem de chaves é pouco provável dada a complexidade e equipamentos que tal tarefa exigiria. Tal depoimento é corroborado pelas informações prestadas pela D... a 05-12-2022 e a 02-02-2023. Também BB, autor do relatório de averiguação pedido pela Ré à C..., admitiu que pudessem existir sistemas sofisticados de intrusão sem arrombamento no veículo em causa.
Do teor destes depoimentos resultou que o veículo em causa é dotado de um muito bom sistema de segurança, com alarme e várias formas de bloqueio no caso de tentativa de intrusão ou reboque, mas não afastou, como pretende a Ré, a possibilidade de se considerar que é, ainda assim, possível a sua subtração.
A entrega, pelo Autor, das chaves (duas) do veículo ao perito averiguador LL após a participação do sinistro (chaves essas que, entretanto, lhe foram devolvidas) não permitiu mais do que concluir que ambas eram usadas, tendo uma quilometragem idêntica.
De tudo o exposto resulta que apenas dois meios de prova confirmam a versão dos factos apresentada na petição inicial: o depoimento do próprio Autor e a ida do mesmo à GNR para participar do acidente. Ou seja, além da versão do Autor nenhum outro meio de prova suporta a ocorrência do furto, nem, sequer, de que o veículo em causa tivesse sido aparcado no dia, hora e local indicados.
Ninguém depôs no sentido de que isso acontecesse com mais ou menos frequência ou que tivesse ocorrido apenas nesse dia. O depoimento do Autor, como referido, divergiu em parte do que consta das declarações que prestou perante o perito averiguador da seguradora. Acresce que tal depoimento revelou, em vários momentos exaltação, sobretudo notada quanto questionado sobre a sinistralidade de outros veículos de sua propriedade, sobre a anulação de seguros de que era tomador e sobre o local onde tinha as chaves do veículo quer no dia do furto, quer quando lhe foram pedidas pelo perito averiguador
Ora, pelo menos o facto relativo ao estacionamento do veículo no dia do alegado furto, o Autor poderia ter tentado provar com base noutros depoimentos, mormente e se não outro, o da outra condutora habitual do veículo, sua esposa, que, segundo ele, chegou à loja no dia 23-03-2021 conduzindo o mesmo, após o que o depoente o foi estacionar na via perpendicular (embora o mesmo, por lapso, tenha várias vezes referido ser paralela) a tal estabelecimento por, alegadamente, não haver lugar mais próximo da loja para parquear.
Ninguém disse ter visto tal veículo no local; nenhuma testemunha ouviu qualquer alarme, ninguém viu vestígios de entrada forçada nem foi explicada qualquer razão para que naquele concreto dia a esposa do Autor não tivesse regressado a casa no referido automóvel, onde poderia aparcá-lo em segurança.
Acresce que todos os contornos do alegado aparcamento são pouco plausíveis e, ainda que seja possível que tal possa ter acontecido, não pode afirmar-se haver uma probabilidade de que assim tenha sido, por tal contrariar as regras da experiência comum.
Sob pena de se desonerar completamente o lesado de fazer qualquer prova do sinistro não pode, sem mais, apenas com base no facto de o mesmo ter ido participar um furto, concluir-se que o mesmo tenha, com um mínimo de probabilidade acontecido. Como é manifesto, qualquer pessoa que pretenda beneficiar de seguro com tal cobertura, ainda que não tenha razão para tal, saberá que tem de fazer tal participação. Satisfazendo-se o Tribunal com tal meio, único, de prova – resultante da alegação do Autor perante a GNR e perante o Tribunal (onde, sem surpresa, afirmou o mesmo que comunicou aquando da participação criminal) -, estar-se-ia a desonerar a parte de convencer, com o mínimo de verossemelhança, dos factos que lhe incumbe provar. No caso, à míngua desse meio de prova somam-se as considerações acima feitas sobre a improbabilidade quer do parqueamento naquele local quer do furto do veículo dotado de tão elevado sistema de segurança de um local iluminado, frequentado e situado junto de habitações antes das 23 horas da noite.
Acresce que a Ré juntou aos autos, como anexo do relatório de averiguação que constitui o documento número 4, comprovativo da Conservatória do Registo Automóvel de que resulta que o veículo em questão fora penhorado em 18-12-2020, ou seja, escassos quatro meses antes do alegado furto. Do mesmo relatório constam os registos de passagem em portagens emitidos pela Via Verde de que decorre que o referido veículo entre 27-12-2020 e 13-01-2021 circulava com frequência quase diária, não havendo, contudo, qualquer prova de registo de passagem em portagens desde tal data e até ao dia 23-03-2021, pelas 23.13 horas. Ou seja, o veículo, após o registo da penhora, circulou ainda durante vinte e seis dias e não há evidência de qualquer outra passagem em portagens desde essa altura até à data do furto. Tal circunstância é estranha, devendo ter-se presente que, feita a penhora nos termos das disposições conjugadas dos artigos 2º, e) do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 768º, número 1 e 755º, número 1 do Código de Processo Civil, (por comunicação ao serviço de registo competente), deve ser apreendido o documento de identificação do veículo e a remoção do mesmo que só não ocorre se se entender que a mesma é desnecessária à sua salvaguarda ou se não for possível localizá-lo com vista à apreensão. No caso, não ocorreu qualquer apreensão do veículo até à data do seu alegado furto, tendo o mesmo continuado a circular, contudo, apenas durante 26 dias. Todavia, não há registo dessa circulação desde o vigésimo sexto dia após o registo da penhora até ao dia do alegado furto. A mencionada penhora veio a ser registada já em maio de 2021.
Da conjugação destes meios de prova deve, pois, concluir-se que existe uma dúvida fundada sobre a ocorrência do furto do veículo, bem como sobre o aparcamento do mesmo no local de onde alegadamente terá desaparecido.
Altera-se, em consequência, a matéria de facto provada, eliminando-se as alíneas 2 a 4 e 6 que passarão a não provadas.
A alínea 7, por sua vez passará a ter a seguinte redação: Na tarde do dia 24-03-2021 o Autor deslocou-se ao Posto da G.N.R. ... para participar o furto do veículo identificado em 1, conforme documento 2 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
A alínea 17 passará a ter a seguinte redação: O local onde o Autor alegou ter parqueado o veículo referido em 1 no dia 23-01-2021 tem iluminação e é, por vezes, patrulhado.
Não se vê qualquer razão para alterar a alínea 5 dos factos provados (“tendo o funcionário, que com ele tinha estado na casa do cliente, se ausentado para almoçar”), por ser absolutamente desnecessário para a apreciação da causa.
Tampouco há razão para alterar a redação da alínea 11 dos factos provados (“ O A. participou, no dia 25.03.2021, o furto daquele veículo à R., conforme doc. 5 da PI, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.”) por forma a eliminar a menção a furto que ali se faz já que não há dúvidas sobre a participação de um furto, mas, apenas, sobre a ocorrência do mesmo
De igual modo, e em face do supra elencado, deverá ser julgada provada e, nessa medida,
aditada ao elenco dos factos provados, a materialidade relativa aos sistemas de segurança do veículo em causa da seguinte forma:
- Os veículos de marca Porsche, modelo ..., dispõem de uma tecnologia anti- furto de difícil violação.
No entanto, pelas razões expressas na motivação da sentença - que bem analisou os elementos documentais e os depoimentos de EE, diretor de pós-venda da D... e de BB, autor do relatório de averiguação pedido pela Ré à C... como já acima referido - não pode afirmar-se, como pretende a Ré, que o sistema de segurança do veículo torne impossível o seu furto, admitindo-se apenas que o mesmo possa ocorrer por via de sistema de intrusão com tecnologia desconhecida e que, por não se saber como funciona, não pode afirmar-se que obrigaria a que o furto demorasse muito tempo ou chamasse à atenção de terceiros.
Pelo que se mantém o teor das alíneas A) e F) dos factos não provados, sem prejuízo do aditamento do facto provado acima referido:
Os veículos de marca Porsche, modelo ..., dispõem de uma tecnologia anti-furto de difícil violação.
De facto, como acima já afirmado, cabia ao Autor e à Interveniente a prova da ocorrência do sinistro enquanto facto constitutivo da causa de pedir, complexa, em que baseavam as suas pretensões. Os pedidos de ambos, de condenação da Ré no pagamento de indemnizações, baseavam-se na alegação de uma ocorrência – o furto -, prevista em contrato de seguro que cobria tal risco.
Na falta da prova de que tenha ocorrido o furto do veículo em causa não há, pois, qualquer fundamento para a procedência das pretensões em apreço, devendo a Ré ser absolvida dos pedidos deduzidos pelo Autor e pela Interveniente.
Em face da procedência da primeira pretensão recursória, de que decorre a revogação da sentença com a consequente absolvição da Ré de todos os pedidos, fica prejudicado o conhecimento das demais questões enunciadas.
V – Decisão:
Nestes termos julga-se procedente a apelação da Ré A..., SA, e, em consequência, revoga-se a sentença, absolvendo a mesma de todos os pedidos.
Custas da ação e do recurso pelos Recorridos, na proporção dos seus decaimentos, nos termos do previsto no artigo 527º, número 1 do Código de Processo Civil.
Porto, 21-10-2024
Ana Olívia Loureiro
Fátima Andrade
Carla Fraga Torres
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[1] Conforme consta do sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-02-2021, tirado no processo 27069/18.3T8PRT.P1.S1 disponível em https://jurisprudencia.pt/acordao/199600/. No mesmo sentido se decidiu em mais recente Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 28 de setembro de 2023, tirado no processo 2509/16.5T8PRT.P1.S1e disponível em https://jurisprudencia.pt/acordao/218090/, onde se pode ler: “Por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto se entender que os concretos factos objecto da impugnação, atentas as circunstâncias do caso e as várias soluções plausíveis de direito, não têm relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual puramente gratuita ou diletante.”
[2] Disponível em TRP 30/21.9T8PVZ. Ali se pode ler: Ali se pode ler: “A nosso ver a prova de um facto num processo judicial e para fins jurídicos é, por princípio, a demonstração de um alto grau de probabilidade (e não de mera possibilidade) de o mesmo corresponder à realidade material dos acontecimentos (dita verdade ontológica). O poder soberano que o Tribunal exerce, impondo às partes, mais que os efeitos jurídicos dos factos, os efeitos práticos da decisão jurisdicional, supõe e exige, como matriz radical da sua própria legitimidade, não uma qualquer probabilidade (apenas mais provável que não) mas um alto grau de probabilidade.
Por princípio, a prova alcança a medida bastante quando os meios de prova conseguem criar na convicção do juiz a ideia de que o facto em discussão, mais do que ser possível e verosímil, possui um alto grau de probabilidade e, sobretudo, a um grau de probabilidade bem superior e prevalecente ao de ser verdadeiro o facto inverso. Donde resulta que, em princípio, se a prova produzida for residual, o tribunal não tem de a aceitar como suficiente ou bastante só porque, por exemplo, nenhuma outra foi produzida e o facto é possível.
Esta regra carece, contudo, de adequação prática. Trata-se de uma regra que o julgador, com recurso ao bom senso e ao justo equilíbrio das coisas, há-de definir e aplicar caso a caso, em função das exigências de justiça que o mesmo coloca, determinadas a partir de aspectos como o da acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da acção.
Na verdade, se o padrão de prova for particularmente exigente tal pode conduzir à negação dos direitos, na medida em que dificulta a demonstração dos pressupostos de facto do direito. Todavia, a aceitação de um padrão pouco exigente importa precisamente o mesmo risco, na exacta medida em que ao facilitar a prova de quase tudo acaba por contemporizar com estratégias processuais vagas, difusas e pouco sustentadas, seja do lado activo seja do lado passivo da lide e, portanto, potencia a possibilidade de se fazer a prova do que não é verdade, perturbando o reconhecimento dos direitos correspondentes ao que realmente sucedeu. Por conseguinte, caso a caso o juiz deve adequar essa regra – esse grau de exigência – aos contornos da concreta situação que tem para julgar e ao contexto da prova dos factos que a corporizam. (…) Quando os factos têm intervenção humana ou resultam de acções humanas é necessário atentar que as pessoas movem-se por interesses, motivações, objectivos, propósitos, emoções, impulsos. Estes são resultado do funcionamento do intelecto da pessoa enquanto animal dotado de razão, consciência, identidade pessoal. Nessa medida, perscrutar a realidade de um facto humano ou com intervenção humana é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa actuação, que lhe dá origem e a orienta, e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de actuação de qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias. (…) Comportamentos privados de racionalidade, opostos ou diferentes da actuação que o comum dos cidadãos teria, cuja lógica ou motivação não é sequer perceptível ou se mostra destituída de coerência, são estranhos e como tal, ainda que possíveis, são pouco prováveis, indiciando que ou o comportamento não foi realmente aquele que é afirmado ou o seu objectivo é diferente daquele que se pretende. […] existe alguma jurisprudência que depois de afirmar a dificuldade em fazer a prova de que o veículo foi furtado para efeitos de accionamento do seguro que cobre o risco de furto ou roubo do mesmo, se inclina para atribuir à participação do furto às autoridades policiais pelo lesado a natureza de «prova de primeira aparência» (cf. Acórdão desta Relação de 08.11.2022, proc. n.º 2842/20.1T8STS.P1), considerando-a «suficiente… desde que a seguradora não consiga afastar essa prova de primeira aparência» (cf. Acórdão desta Relação de 28.10.2021, proc. n.º 1857/19.7T8VNG.P2), em resultado do que incumbiria à «seguradora, para afastar a sua responsabilidade … pôr em causa a aludida verosimilhança das alegações fácticas da autora fundada naquela prova» (cf. Acórdão desta Relação de 10.01.2022, proc. n.º 6509/18.2T8MTS.P1).
Outro Acórdão entende mesmo que «o indeferimento da pretensão do beneficiário de seguro pode resultar da suspeita de que o mesmo facto foi falsa e ilicitamente por si alegado. Mas, porque encerra uma suspeição criminal, esse indeferimento pressupõe estejam reunidos indícios que diríamos quase suficientes, isto é, ainda que não revistam a característica de provas que ultrapassem a dúvida sobre uma possível condenação (caso fosse submetido a julgamento criminal), tornem mais verosímil a conclusão pela fundamento da suspeita de burla» (cf. Acórdão desta Relação de 09.12.202, proc. n.º 3521/17.2T8GDM.P2).
Diferentemente e mais no sentido da nossa opinião, outro Acórdão manifesta que incumbe a quem «invoca a titularidade de um direito indemnizatório que lhe assiste por via da celebração de um contrato de seguro …, em consequência de se ter verificado um furto, … a prova da verificação do furto, uma vez que este surge como elemento constitutivo do seu direito. Porém, como a prova da verificação do furto de um veículo é normalmente difícil de efectuar por este ocorrer de forma sub-reptícia, impõe-se ao autor não uma prova directa deste, mas sim que, tendo apresentado a respectiva queixa junto das entidades policiais, forneça ao tribunal elementos probatórios coadjuvantes que permitam formular um juízo de verosimilhança relativamente a essa queixa. Se esses elementos probatórios coadjuvantes não são produzidos, a prova da verificação do furto não poderá ser feita apenas com base na participação que foi apresentada nas autoridades policiais» (cf. Acórdão desta Relação de 10.07.2019, proc. n.º 1521/17.1T8AMT.P1).
A este respeito afigura-se-nos que não existem razões nem fundamento para a propósito de acções deste género nos afastarmos das regras legais do ónus da prova e do regime imperativo consagrado no artigo 347.º do Código Civil. Tais regras são, aliás, modelações legais do princípio da livre apreciação da prova, razão pela qual, em respeito pelas regras do Estado de Direito democrático que balizam o âmbito dos poderes dos vários órgãos de soberania, devem ser acatados pelo julgador de modo estrito”.
Do mesmo relator, Aristides Rodrigues de Almeida, veja-se também acórdão mais recente, de 21 de março de 2024, no processo 1769/21, disponível em https://jurisprudencia.pt/acordao/223751/pdf/, em que se julgou bastante a prova produzida sobre um furto de veículo em face da conjugação do depoimento do lesado com o de três testemunhas que confirmaram o local de estacionamento do veículo e a duração desse mesmo estacionamento. Tratava-se neste segundo caso, de um veículo sem alarme e que funcionava ainda “de forma arcaica”.
[3] Tal resulta das imagens juntas com o relatório que constitui o documento número 4 da contestação (fls 9 e seguintes desse documento) sendo que ao Autor apenas foram exibidas as duas primeiras imagens tendo a Mmª Juíza afirmado ser desnecessário, perante elas, averiguar melhor a localização do alegado sinistro no site googlemaps o que, contudo, deveria ter sido feito. Bastam, não obstante, as imagens de fls. 10 a 12 desse relatório para se comprovar de que o local em causa não é ermo e é muito próximo de residências com janelas voltadas para o local, que tem iluminação pública e que tem vários lugares de parqueamento que são muito usados, como as imagens revelam.