EXTINÇÃO DA INSTÂNCIA
INUTILIDADE SUPERVENIENTE DA LIDE
ACÇÃO DE PRESTAÇÃO DE CONTAS
INVENTÁRIO
QUINHÃO HEREDITÁRIO
ALIENAÇÃO
Sumário

(Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art.º 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil)
1. A extinção da instância por inutilidade superveniente da lide dá-se perante a ocorrência de um facto ou de uma situação posterior à sua instauração e que implique a impertinência, ou seja, a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial por ausência de efeito útil, desnecessidade essa que deve ser aferida em termos objetivos, sob pena de se confundir com uma situação fronteira, mas, então, já um pressuposto processual, que é o interesse em agir.
2. Situações há em que, embora a parte insista na continuação da lide, o desenrolar da mesma aponta para uma decisão que será inócua, ou indiferente, em termos de não modificar a situação posta em juízo, caso em que cabe ao julgador optar, ou pela extinção da instância por inutilidade da lide (a apreciar objetivamente) ou pela exceção dilatória inominada (conceito de relação entre a parte e o objeto do processo) que perfilando-se, em regra, “ab initio” pode vir a revelar-se no decurso da causa.
3. O art.º 941.º do CPC consagra o regime adjetivo que procura garantir o cumprimento judicial da obrigação de prestação de contas que é uma obrigação de informação, e que existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias, regime que decorre, desde logo, em termos gerais, do art.º 573.º do CC.
4. O objetivo da prestação de contas é, em termos práticos, estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efetuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar uma situação de crédito ou débito.
5. Prevendo a lei, no art.º 2093.º do CC a obrigação do cabeça de casal prestar contas, ela só se extingue, mesmo que apresentadas sem documentos justificativos, se as contas tiverem sido aprovadas e aceites pelos demais interessados ou se se demonstrar a existência de qualquer outra causa extintiva daquela obrigação.
6. A interessada num inventário, cujo quinhão hereditário foi vendido à cabeça de casal no âmbito de uma ação executiva em que é executada, responde solidariamente pelos encargos da herança, continuando, por isso, a ter interesse direto na prestação de contas da administração dos bens das heranças abertas por óbito dos pais de ambas, de modo a poder obter informação sobre tal administração.
7. Por conseguinte, não há lugar, em consequência daquela alienação, à extinção, por inutilidade superveniente da lide, da instância respeitante à ação de prestação de contas previamente instaurada por aquela interessada.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO:
IM instaurou a presente ação especial de prestação de contas contra MG, alegando, em suma, que autora e ré são, juntamente com o irmão de ambas, PN, os únicos herdeiros das heranças abertas por óbito de sua mãe, AC, falecida no dia __. __.____, e de seu pai, MC, falecido no dia __.__.____.
A ré intentou providência cautelar de arrolamento dos bens deixados por óbito dos seus falecidos pais, na sequência do que, no dia __. __. ____, entrou em poder dos mesmos.
No dia __. __ . ____, a ré deu início ao processo de inventário notarial para parte  ilha das heranças abertas por óbito dos seus pais, no âmbito do qual veio a ser nomeada cabeça de casal.
Desde que entrou em poder de todos os bens que integram o acervo hereditário, a ré, na qualidade de cabeça de casal, nunca prestou contas da sua administração aos demais herdeiros.
A autora assim a petição inicial:
«Nestes termos e nos melhores em direito aplicáveis, requer a V. Exa. a citação da Ré para apresentar as contas referentes à administração da herança de AC e de MC, desde __. __.____, até à presente data, prosseguindo o processo os seus ulteriores termos até final».
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Ainda na petição inicial, a autora deduz incidente de intervenção principal provocada de PN.
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A ré contestou.
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O incidente de intervenção principal provocada foi deferido e PN chamado à ação.
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No dia 5 de julho de 2023, a ré atravessou nos autos o seguinte requerimento (Ref.ª ____):
«1.º
No dia 30 de maio de 2023, conjuntamente com o seu marido LB (casados entre si no regime da comunhão de bens adquiridos) a Ré adquiriu, livre de quaisquer ónus ou encargos, e pelo preço de € 212.616,00 (duzentos e doze mil, seiscentos e dezasseis euros), o quinhão hereditário da interessada IM, aqui Autora, nas heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de AC (NIF ____) e de MC (____), no âmbito do processo de execução número ____/11.1TBCSC, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Oeste – Juízo de Execução – Juiz _, no qual a referida interessada figura como executada (...).
2.º
Ora, nos termos do disposto no artigo 277.º, alínea e), do CPC, a instância extingue-se sempre que se torne supervenientemente inútil, i.e., sempre que por facto ocorrido na pendência da instância, a continuação da lide não tenha qualquer utilidade.
3.º
Seja por motivo atinente ao sujeito, ou por motivo atinente ao objeto, ou por motivo atinente à causa, a respetiva relação jurídica substancial se torne inútil, i.e., deixe de interessar a sua apreciação.
4.º
A inutilidade da lide é, portanto, simples reflexo, no plano processual, da inutilidade da relação jurídica substancial, quer esta inutilidade diga respeito ao sujeito, ao objeto ou à causa.
5.º
Sempre que o efeito jurídico que se pretendia obter com a ação se mostre supervenientemente inútil, o processo não deve continuar – mas antes cessar.
6.º
No caso concreto, dúvidas inexistem de que a Autora IM, cedeu o seu quinhão hereditário, à aqui Ré, e com ele todos os direitos relacionados com a heranças dos seus falecidos pais.
7.º
Face ao exposto, entende a Ré que não fará sentido modificar-se a instância subjetivamente em consequência dessa transmissão, por ato entre vivos, de coisa ou direito litigioso, nos termos do disposto nos artigos 262.º , alínea a), e 263.º , n.º  1, do C.P.C, porquanto levaria a aqui Ré a ocupar também a posição de Autora na presente ação (motivo atinentes aos sujeitos)».
Conclui assim:
«Pelo que se requer V.ª Excia se digne declarar a extinção da instância porque se tornou inútil o prosseguimento da lide, por motivo relacionado com os sujeitos, nos termos do disposto no artigo 277.º , alínea e), do CPC».
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A autora respondeu a esse requerimento, pugnando pela sua improcedência.
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No dia 5 de março de 2024, o senhor juiz a quo proferiu a seguinte decisão (Ref.ª ____):
«Nesta ação especial de prestação de contas pelo exercício do cabeçalato, que IM instaurou contra MG;
A ré requer a declaração de extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, alegando que, entretanto, a autora cedeu à ré o seu quinhão hereditário.
A ré juntou escritura de compra e venda de quinhão hereditário, na qual agente de execução encarregada da venda em que é executada a aqui autora, declarou vender quinhão hereditário à ré, livre de quaisquer ónus ou encargos, pelo preço de €212.616,00, que declara já ter recebido e do qual dá a respetiva quitação.
A autora opõe-se.
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Cumpre decidir:
Atendendo ao alegado pelas partes, dúvidas não pode haver de que a lide se tornou supervenientemente inútil. Porquanto a ré adquiriu o quinhão que pertencia à autora, livre de quaisquer ónus ou encargos, não tendo feito qualquer ressalva quanto à prestação de contas. Sendo que apenas se presumem excluídos da alienação os diplomas e a correspondência do falecido, e as recordações de diminuto valor, cf. artigo 2125.º, n.º 3, do Código Civil.
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Pelo exposto, declara-se a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, cf. artigo 277.º, alínea e) do Código do Processo Civil.
(...)».
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Inconformada com o assim decidido, a autora interpôs o presente recurso de apelação, concluindo assim:
«1. Vem o presente Recurso de Apelação interposto da Sentença proferida pelo Tribunal “a quo” em __. __. ____, que declarou extinta a instância por inutilidade superveniente da lide, porquanto a Ré, ora Recorrida, adquiriu o quinhão hereditário da Autora, ora Recorrente, nas heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de AC e MC.
2. Nos presentes autos de ação especial de prestação de contas, pretende a Autora, ora Recorrente, invocando a qualidade de herdeira das referidas heranças ilíquidas e indivisas, obter da Ré, ora Recorrida, na qualidade de cabeça de casal, a prestação de contas da respetiva administração, desde __. __. ____.
3. A Autora, ora Recorrente, baseia a exigência de prestação de contas pela Ré, ora Recorrida, na obrigação imposta ao cabeça de casal de prestar contas da administração da herança. Tratando-se, portanto, da obrigação estatuída no artigo 2093.º, n.º 1, do C.C., que impõe ao cabeça de casal a obrigação de prestar contas anualmente.
4. Pelo que, salvo melhor opinião, e contrariamente ao entendimento sufragado pelo Tribunal “a quo”, não se verifica qualquer causa de extinção da obrigação de prestação de contas pela Ré, ora Recorrida, nem qualquer ilegitimidade da Autora, ora Recorrente, para exigir o cumprimento de tal obrigação, mesmo na sequência da alienação do respetivo quinhão hereditário, através da qual a Autora, ora Recorrente, cedeu à Ré, ora Recorrida, a sua quota nas referidas heranças.
5. A cedência do quinhão hereditário da Autora, ora Recorrente, não a privou do direito de exigir da Ré, ora Recorrida, a prestação de contas pela administração das heranças em apreço, pois o que está em causa, em primeira linha, é o direito da Autora, ora Recorrente, à informação sobre a administração das heranças, sendo certo, de resto, que, nos termos do disposto no artigo 2128.º  do C.C., o alienante do quinhão hereditário responde solidariamente pelos encargos da herança, mesmo após a alienação do quinhão.
6. Daí que o alienante do quinhão hereditário – no caso, a Autora, ora Recorrente – haja de ser ainda considerada interessada na prestação de contas por parte da cabeça de casal que administra as heranças, assistindo-lhe, assim, o respetivo direito de exigir da Ré, ora Recorrida, a prestação de contas.
7. De resto, em consonância com a jurisprudência firmada nos Tribunais superiores, de acordo com a qual, uma vez que o alienante do quinhão hereditário responde solidariamente com o adquirente pelos encargos da herança, “(…) dúvidas não há de que tem interesse direto em exigir a prestação de contas pelo cabeça-de-casal, de modo a poder obter informação sobre a administração da herança, assim mantendo o direito de exigir a prestação de contas pelo cabeça-de-casal” (...).
8. Assim, não obstante ter adquirido o quinhão hereditário da Autora, ora Recorrente, a Ré, ora Recorrida, continua obrigada a prestar as pretendidas contas da administração das heranças, desde 27.04.2017, porquanto não logrou provar haver já prestado tais contas, nem a sua aceitação e aprovação por banda da Autora, ora Recorrente, inexistindo motivo para que seja declarada a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide.
9. Acresce que a aquisição do quinhão hereditário da Autora, ora Recorrente, pela Ré, ora Recorrida, ocorreu em sede de processo executivo, sendo certo que o valor da venda foi determinado tendo em consideração o Ativo da herança, que poderá ser diverso em função do que se apurar nos presentes autos de prestação de contas.
10. E a eventual alteração do Ativo da herança, mormente por se comprovar que ocorreu a dissipação de bens da herança, ou que a herança foi mal gerida e em proveito de terceiros, porventura beneficiando injustamente alguns herdeiros em detrimento de outros, pode determinar um valor superior do quinhão hereditário da Autora, ora Recorrente, justificando o recurso aos meios legais adequados para obter o preço justo, o que beneficiará a Autora, ora Recorrente, na medida em que será pago aos seus credores valor superior.
11. Há, pois, interesse e legitimidade da Autora na presente demanda.
12. A tanto acresce que existem bens que estão excluídos da alienação do quinhão, nos termos do artigo 2125.º, n.º 3, do Código Civil, que estabelece a presunção de exclusão da alienação e que diz respeito aos diplomas, à correspondência e a recordações de família de diminuto valor económico, como sejam fotografias ou vídeos.
13. Deveras, é natural que o alienante não tenha querido incluir no objeto da alienação estes objetos que, porventura, não terão interesse para o adquirente mas que apresentam um elevado valor estimativo para o herdeiro.
14. Conclui-se, assim, que continua a assistir à Autora, ora Recorrente, o direito de exigir a prestação de contas pela Ré, ora Recorrida, relativas à administração das heranças abertas por óbito de AC e de MC, desde __. __. ____, cabendo a esta a obrigação de as prestar.
15. Pelo que mal andou o douto Tribunal “a quo” a interpretar o disposto nos artigos 2128.º do C.C e 277.º, alínea e), do C.P.C., considerando a instância extinta por inutilidade superveniente da lide.
16. Em consonância, deve a Sentença recorrida ser revogada, improcedendo a pretendida extinção da instância, a qual se deverá declarar válida e regular e seguir trâmites ulteriores».
Remata assim:
«Nestes termos e nos melhores de Direito (...), requer se dignem a revogar a Sentença recorrida, ordenando, em sua substituição, o prosseguimento dos autos.
Porém, V. Exas. decidindo, farão, como sempre, a melhor Justiça!
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A ré contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e, consequentemente, pela manutenção da decisão recorrida.
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II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art.º 639.º , n.º  1), que se determina o âmbito de intervenção do tribunal de recurso.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte e dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art.º 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art.º 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e, a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os art.ºs 627.º, n.º  1, 631.º , n.º  1 e 639.º ).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5.º , n.º  3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art.º 608.º , n.º  2, ex vi do art.º 663.º , n.º  2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir se a decisão recorrida deve ser revogada, por não se verificarem os pressupostos de que a lei faz depender a extinção da instância por inutilidade superveniente da lide, e substituída por outra que determine o prosseguimento dos autos.
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II – FUNDAMENTOS:
3.1 – Fundamentação de facto:
A factualidade relevante para a decisão do recurso é a que decorre do relatório que antecede, a que se acrescenta o seguinte:
- No dia __ de ____de ___, no Cartório Notarial sito __, em Lisboa, foi celebrada escritura pública de compra e venda de quinhão hereditário, além do mais, o seguinte:
«(...) compareceram:
PRIMEIRA
CLA, (...) que outorga na qualidade agente de execução encarregada de venda, expressamente mandatada para este efeito, no âmbito do processo de execução número ____/11.1TBCSC, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Oeste - Oeiras - Juízo de Execução - Juiz __, no qual é executada IM, (...) casada com PM (...) no regime de comunhão de adquiridos, (...).
SEGUNDOS
MG (...) e marido LB, (...) casados no regime de comunhão de adquiridos (...).
PELA PRIMEIRA OUTORGANTE, NA INVOCADA QUALIDADE, FOI DITO:       
Que, na qualidade em que intervém, pela presente escritura, vende aos segundos outorgantes, livre de quaisquer ónus ou encargos, e pelo preço global de €212.616,00 (duzentos e doze mil seiscentos e dezasseis euros), que declara já ter recebido e do qual dá a respetiva quitação, o quinhão hereditário que pertence à identificada executada, nas heranças ilíquidas e indivisas abertas por óbito de AC (...) e de MC (...)e que, segundo declaram, é previsivelmente composta pelos seguintes bens imóveis:
1) Fração autónoma designada pelas letras "LC",
2) Fração autónoma designada pelas letras "LD", e,           
3) Fração autónoma designada pela letra "P".         
Todas pertencentes ao prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Avenida ___, concelho de Lisboa;           
O pagamento do preço foi efetivado no processo judicial (...).
PELOS SEGUNDOS OUTORGANTES, FOI DITO:        
Que aceitam a presente venda nos termos exarados».
Motivação:
O teor do documento junto pela ré com o transcrito requerimento atravessado nos autos no dia 5 de julho de 2023 (Ref.ª ____).
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3.2 – Fundamentação de direito:
Nos termos do art.º 277.º, al. e), a instância extingue-se, além do mais, com a inutilidade superveniente da lide.
A inutilidade superveniente da lide, como causa de extinção da instância, dá-se quando, por facto ocorrido na pendência da instância, a pretensão do autor não possa subsistir por motivos atinentes ao sujeito ou ao objeto do processo ou à causa na relação substancial que lhe está subjacente.
A al. e) do art.º 277.º prende-se com o princípio da estabilidade da instância que se inicia com a formulação de um pedido consistente numa pretensão material com solicitação da sua tutela judicial (pretensão processual) aquele decorrente de um facto jurídico causal (essencial ou instrumental) da qual procede (causa de pedir).
A lide torna-se supervenientemente inútil se ocorreu um facto ou uma situação posterior à sua instauração e que implique a impertinência, ou seja, a desnecessidade de sobre ela recair pronúncia judicial por ausência de efeito útil, desnecessidade essa que deve ser aferida em termos objetivos, sob pena de se confundir com uma situação fronteira, mas, então, já um pressuposto processual, que é o interesse em agir.
Situações há em que, embora a parte e insista na continuação da lide, o desenrolar da mesma aponta para uma decisão que será inócua, ou indiferente, em termos de não modificar a situação posta em juízo.
Cabe, então, ao julgador optar ou pela extinção da instância por inutilidade da lide (como se disse, a apreciar objetivamente) ou pela exceção dilatória inominada (conceito de relação entre a parte  e  o objeto do processo), que perfilando-se, em regra, “ab initio” pode vir a revelar-se no decurso da causa.
O interesse processual determina-se perante a necessidade de tutela judicial através dos meios pelos quais o autor unilateralmente optou[1].
Dispõe o art.º 941.º que «a ação de prestação de contas pode ser proposta por quem tenha o direito de exigi-las ou por quem tenha o dever de prestá-las e tem por objeto o apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas por quem administra bens alheios e a eventual condenação no pagamento do saldo que venha a apurar-se».
Conforme referem Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Sousa, «em termos de direito substantivo, a obrigação de prestar contas decorre de uma obrigação de caráter mais geral – a obrigação de informação – consagrada no art.º 573.º do CC. A jurisprudência tem enfatizado que a ação especial de prestação de contas é uma das formas de exercício deste direito de informação, cujo fim é o de estabelecer o montante de receitas cobradas e das despesas efetuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar a situação de crédito ou de débito. Nos termos daquele preceito, a obrigação de informação existe sempre que o titular de um direito tenha fundada dúvida acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (RG 95/19, 406/16).
Inexistindo norma legal que genericamente determine quando é que alguém tem de prestar contas, o art.º 941.º pressupõe a existência de normas de direito substantivo que imponham tal obrigação. O direito em causa pode ser de natureza obrigacional, real, familiar ou sucessória»[2].
Miguel da Câmara Machado afirma que o art.º 941.º  consagra «(...) o regime adjetivo que procura garantir hoje o cumprimento judicial da obrigação de prestação de contas que é uma obrigação de informação, a qual existe sempre que o titular de um direito tenha dúvida fundada acerca da sua existência ou do seu conteúdo e outrem esteja em condições de prestar as informações necessárias (regime que decorre desde logo, em termos gerais, do artigo 573.º  do Código Civil). O objetivo, em termos práticos, é estabelecer o montante das receitas cobradas e das despesas efetuadas, de modo a obter-se a definição de um saldo e a determinar uma situação de crédito ou débito»[3].
A lei prevê a obrigação do cabeça de casal prestar contas.
Com efeito, reza assim o art.º 2093.º do CC:
«1. O cabeça de casal deve prestar contas anualmente.
2. Nas contas entram como despesas ou rendimentos, entregues pelo cabeça de casal aos herdeiros ou ao cônjuge meeiro nos termos do artigo anterior, e bem assim o juro do que haja gasto à sua custa na satisfação de encargos da administração.
3. Havendo saldo positivo, é distribuído pelos interessados, segundo o seu direito, depois de deduzida a quantia necessária para os encargos do novo ano».
A questão a decidir neste recurso consiste em saber se a circunstância de, na pendência da presente ação de prestação de contas, a aqui ré/recorrida, cabeça de casal no processo de inventário instaurado para partilha das heranças abertas por óbito de seus pais, AC e MC, ter adquirido, nos termos da escritura acima transcrita e no âmbito da ação executiva que, com o n.º  ____/11.1TBCSC, corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Oeste - Oeiras - Juízo de Execução - Juiz _, no qual é executada a sua irmã, aqui autora/recorrente, o quinhão hereditário de que esta era titular naqueles heranças, torna esta ação supervenientemente inútil, nos termos acima apontadas e, consequentemente, a extinção da respetiva instância.
Conforme esclarece Luís Filipe Pires de Sousa, a obrigação de prestação de contas pelo cabeça de casal «só se extingue, mesmo que apresentadas sem documentos justificativos, se as contas tiverem sido aprovadas e aceites pelos demais interessados ou se se demonstrar a existência de qualquer outra causa extintiva daquela obrigação», acrescentando que «se tais contas não foram aprovadas extrajudicialmente, não fica o cabeça-de-casal desonerado de as apresentar judicialmente».
No caso sub judice, não se verifica qualquer causa de extinção da obrigação de prestação de contas pela ré, na qualidade de cabeça-de-casal da herança aberta por óbito de seus pais.
O que aqui está em discussão, reitera-se, é saber se a aquisição pela ré/recorrida, cabeça de casal, nos termos acima descritos, do quinhão hereditário da autora/recorrente implica a extinção da presente instância por inutilidade superveniente da lide.
Afigura-se-nos que não!
A venda do quinhão hereditário de que a autora/recorrente era titular nas heranças abertas por óbito dos seus pais, operada pelo agente de execução no âmbito da ação executiva acima identificada, a favor da ré/recorrida, que exerce funções de cabeça de casal no inventário instaurado para parte  ilha daquelas heranças, não a priva do direito a exigir desta a prestação de contas pela administração que vem fazendo da administração de tais heranças.
Tal como já salientado, o que está em causa numa ação especial de prestação de contas como a presente é, em primeira linha, o direito à informação da autora quanto à administração das heranças pela ré.
Na situação presente, a autora, cujo quinhão hereditário foi onerosamente alienado no âmbito da ação executiva acima identificada, pelo respetivo agente de execução, tem de ser considerada ainda interessada na prestação de contas por parte da cabeça de casal e adquirente daquele quinhão, a aqui ré; ou seja, a autora continua a ter direito à prestação de contas.
Dispõe o art.º 2128.º do CC que «o adquirente de herança ou de quinhão hereditário sucede nos encargos respetivos; mas o alienante responde solidariamente por esses encargos, salvo o direito de haver do adquirente o reembolso total do que assim houver despendido».
No tocante aos encargos da herança, estatui o art.º 2068.º do CC que a herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido e pelo cumprimento dos legados.
Em anotação ao art.º 2128.º do CC:
- afirma Cristina Araújo Dias que «(...) havendo alienação da herança ou do quinhão hereditário, transmitindo-se os bens para o adquirente, justo é que se transmitam também os encargos. Todavia, poderiam os terceiros ficar prejudicados se, transmitindo-se os bens e os encargos da herança para o adquirente este não apresentasse um património semelhante ao do alienante. Por isso, além do adquirente suceder nos encargos da herança ou do quinhão hereditário também o alienante responde por esses encargos.
(...) Esta responsabilidade do alienante é originária e solidária, ou seja, o alienante não responde apenas subsidiariamente, na falta de bens do adquirente para suportar os encargos, e responde como se não tivesse alienado a herança ou o quinhão hereditário (podendo até, no limite, responder pela totalidade dos encargos)»[4].
- afirma Cristina Pimenta Coelho que «estabelece-se que o adquirente da herança será o responsável pelos encargos da mesma, o que se compreende na medida em que aquilo que se adquire é um património autónomo com um especial regime de responsabilidade por dívidas.
No entanto, e apesar do princípio geral do limite da responsabilidade pelos encargos da herança às forças da mesma (art.º 2071.º), a lei estabeleceu a responsabilidade solidária do alienante. Ou seja, os credores da herança poderão demandar quer o adquirente, quer o alienante. Caso seja o alienante a responder, beneficiará de direito de regresso contra o adquirente que é, no fundo, o responsável pelos encargos»[5].
- afirmam Pires de Lima / Antunes Varela que «a responsabilidade do adquirente da herança (ou do quinhão hereditário) pelos respectivos encargos, imposta por este artigo 2128.º, facilmente se compreende.
Admitir a transmissão da titularidade dos bens e direitos, compreendidos na herança ou no quinhão, inclusivamente a título gratuito, para pessoa que pode não possuir a mesma solvabilidade patrimonial que o alienante, poderia acarretar prejuízos injustos para terceiros.
E é precisamente a intenção de prevenir prejuízos injustos para terceiros que constitui a ratio iuris do preceito e explica o seu alcance, que é o de abranger não apenas os encargos impostos pelo de cujus em benefício de terceiros, mas também os verdadeiros ónus reais que recaiam sobre os bens hereditários, mesmo que constituídos por lei antes do de cujus.
(...) o alienante da herança responde perante os terceiros beneficiários do encargo, não subsidiariamente (com direito a benefício de excussão), como seria próprio do fiador (art.ºs. 627.º, n.º 2, e 638.º, n.º 1), mas solidariamente, tal como em princípio responderia, se não tivesse alienado a herança ou o quinhão»[6].
Perante o que fica exposto, considerando que a autora/recorrente, não obstante o seu quinhão hereditário ter sido alienado (onerosamente) em favor da ré/recorrida e cabeça de casal, nos termos que acima se deixaram descritos, responde solidariamente com esta, pelos encargos da herança, dúvidas não há de que tem interesse direto em exigir que a mesma preste contas da administração dos bens das heranças abertas por óbito dos pais de ambas, de modo a poder obter informação sobre tal administração[7].
Por outras palavras: a autora/recorrente, não obstante tal alienação, conserva, de pleno, o direito de exigir que a ré/recorrida, cabeça de casal, sua irmã, preste contas da administração dos bens das heranças abertas por óbito dos pais de ambas, cabendo a esta última a obrigação de as prestar.
Em jeito de remate final, como bem salienta Lopes Cardoso, «a prestação forçada de contas pode ser exigida pelas pessoas directamente interessadas na partilha»[8].
É o caso da autora/recorrente!
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IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em revogar a decisão recorrida, determinando, em consequência, que os autos baixem à 1.ª instância, onde deverão prosseguir seus regulares termos conforme for de direito.
As custas da apelação, na vertente de custas de parte, são a cargo da ré/apelada (art.ºs 527.º , n.º s 1 e 3, 607.º , n.º  6 e 663.º , n.º  2).

Lisboa, 22 de outubro de 2024
José Capacete
Ana Mónica Mendonça Pavão
Ana Rodrigues da Silva
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[1] Acompanhámos o Ac. do S.T.J. de 15.03.2012, Proc. n.º 501/10. 2TVLSB.S1 (Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt.
[2] Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, 2.ª Edição, Almedina, 2022, pp. 407-408.
[3] Processos Especiais, Vol. II (Coord, de Rui Pinto e Ana Alves Leal), AAFDL Editora, 2020, p. 225.
[4] Código Civil Anotado, Livro V, Direito das Sucessões, Almedina, 2018, p. 171.
[5] Código Civil Anotado, Vol. II (Coord. Ana Prata), Almedina, 2017, p. 1029).
[6] Código Civil Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, pp. 208-209.
[7] No mesmo sentido do aqui decidido, veja-se o Ac. da R.E. de 31.01.2019, Proc. n.º 537/10.3TBTVR.E1 (Ana Margarida Leite), in www.dgsi.pt.
[8] Partilhas Judiciais, Vol. III, 4.ª edição, Almedina, 1991, p. 71.