CONTAS BANCÁRIAS
CONTAS SOLIDÁRIAS
PROPRIEDADE DAS QUANTIAS DEPOSITADAS
PRESUNÇÃO
ÓNUS DA PROVA
PEDIDO IMPLÍCITO
Sumário

(Elaborado pela relatora e da sua inteira responsabilidade – cf. artigo 663º, n.º 7 do Código de Processo Civil)
I – A determinação do exacto valor do processo constitui uma questão marginal no contexto do objecto processual delimitado pelas partes, repercutindo-se nas regras sobre a obrigatoriedade ou não de patrocínio judiciário, recorribilidade das decisões, eventual necessidade de reforço da taxa de justiça paga, mas não assume relevância para a definição do objecto do litígio.
II – O princípio do pedido, na vertente de que o Tribunal não pode conceder mais ou coisa diversa da que foi pedida, hoje mitigado pelo princípio do inquisitório, não impede a consideração do pedido implícito, isto é, aquele que, ainda que não revelado de forma expressa ou óbvia, está, pela natureza das coisas, presente ou pressuposto num outro.
III – No caso de contas bancárias solidárias, a questão da propriedade dos valores nela depositados e associados não equivale à identificação dos respectivos titulares, que contende apenas com a legitimidade para a sua movimentação.
IV – A co-titularidade em contas colectivas e solidárias não configura, por si só, a intenção de doar o respectivo ao momento da atribuição dessa co-titularidade, sendo necessário, a quem se arroga de donatário, alegar e provar a intenção de doar por parte do titular originário da conta.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
A, residente na Estrada …, Loures e B, residente na Rua …, Lisboa, na qualidade de herdeiros da herança aberta por óbito de CT[1], intentaram contra C, residente na Praça …, em Lisboa a presente acção declarativa de condenação, com processo comum, formulando os seguintes pedidos:
A condenação da ré a:
a) devolver à herança a quantia actualmente em falta nas contas bancárias objecto dos presentes autos: 96.616,71 € (noventa e seis mil e seiscentos e dezasseis euros e setenta e um cêntimos);
b) repor nas contas bancárias objecto dos presentes autos todas as quantias que, para além da referida em a), delas venha a retirar;
c) praticar todos os actos e assinar todos os documentos que as instituições bancárias - junto das quais estão abertas as contas bancárias objecto dos autos e melhor identificadas no artigo 3.º do articulado - lhe exijam que pratique e assine para que deixe de ser titular das ditas contas ou,
em alternativa, assinar uma declaração a autorizar que o representante da herança possa transferir a totalidade dos valores nelas existentes para uma outra conta bancária.
Alegaram para tanto, em síntese, o seguinte (cf. Ref. Elect. 30789356):
=> CT, pai dos autores, faleceu no dia 3 de Junho de 2021, sem testamento ou qualquer outra manifestação de última vontade, sendo os autores os seus únicos herdeiros;
=> O autor da sucessão era titular, entre outros bens, de três contas bancárias, duas junto do Novo Banco, SA, com os números 00137455306 (conta à ordem) e 000138337036 (conta poupança) e outra junto do Banco Bankinter, SA, com o número 500202502313;
=> À data da morte de CT, as contas do Novo Banco, SA tinham um saldo de 146.924,22 € e 92.682,48 € e a conta à ordem do Banco Bankinter, SA, um saldo de 69.012,77 €;
=> Todas as contas bancárias referidas tinham como co-titular, exclusivamente para efeitos de movimentação, a irmã do falecido, a ré C e todo o dinheiro e aplicações financeiras que existiam e existem eram, exclusivamente, propriedade do falecido CT;
=> Imediatamente após o falecimento deste, a ré tirou das contas bancárias diversas quantias, entendendo ter direito a metade das quantias nelas existentes;
=> A ré devolveu alguns valores, estando em falta a quantia de 96.616,71 €.
A ré deduziu contestação em que, para além da falta de personalidade judiciária da herança aberta por óbito de CT e impugnação parcial dos factos alegados na petição inicial, alegou, muito em síntese, que passou a acompanhar o irmão depois do respectivo divórcio da mãe dos autores, tendo aquele, a partir de 2018, adoecido, com internamento e a quem, mais tarde, foi amputado um pé, pelo que com ele passou a viver em comunhão de mesa e habitação, dando-lhe assistência 24 horas por dia, em regime de partilha de recursos, cozinhando e contribuindo para a economia doméstica e por isso tinham contas solidárias entre si, abertas por ambos e através de fluxos cruzados a partir de contas comuns e movimentação de fundos comuns, com excepção da conta aberta no BES, identificada sob o n.º 044006530003, pelo que apenas movimentou as contas para não ficarem imobilizadas e restituiu aos autores a metade que se presume do falecido irmão. Pugnou pela procedência da excepção e sua absolvição da instância ou, assim se não entendendo, pela improcedência da acção (cf. Ref. Elect. 31351598).
Os autores responderam sustentando a improcedência da excepção (cf. Ref. Elect. 31510183).
Realizada a audiência prévia foi julgada improcedente a excepção de falta de personalidade judiciária e foram aferidos positivamente os pressupostos processuais relevantes.
Foi fixado o valor da causa em 96.616,71 €.
O objecto do litígio foi definido como sendo: “Direito dos autores, enquanto herdeiros legitimários de CT, à totalidade dos montantes depositados e aplicações financeiras existentes em contas bancárias co-tituladas pelo seu falecido pai e pela ré sua tia.”
E foram enunciados os seguintes temas da prova, então sem reclamação (cf. Ref. Elect. 422152570):
“1 – Os montantes depositados e aplicações financeiras eram exclusivamente do pai dos autores.
2 – A ré era co-titular das contas bancárias do falecido irmão exclusivamente para efeitos de movimentação das mesmas no caso do entretanto falecido CT, por qualquer motivo, não as poder movimentar.
3 – A ré, após ter efectuado levantamentos das contas, disse aos autores seus sobrinhos que ia proceder à devolução imediata de todos montantes que levantara daquelas contas após o óbito do irmão.”
Por requerimento de 17 de Março de 2023, os autores deduziram ampliação do pedido, pretendendo a condenação da ré na devolução da quantia de 356.486,15 €, de que era titular o pai dos autores, alegando que quando se reportam na petição inicial a todas as quantias propriedade do pai nas entidades bancárias identificadas, tem de se entender todas as quantias, independentemente de estarem à ordem, a prazo ou investidas em quaisquer aplicações financeiras, seja qual for a sua natureza, sendo que na alínea b) do pedido formulado na petição inicial, pedem a condenação da ré a repor nas contas bancárias objecto dos autos todas as quantias que, para além da referida na alínea a), a ré venha delas a retirar, pelo que pretendem que seja considerada a quantia de 259.869,44 €, relativa a aplicações financeiras existentes à data do óbito, associadas às contas à ordem enunciadas na petição inicial, tendo sido aceite pela ré que aquilo que se discute nos autos é a totalidade das quantias propriedade do pai dos autores, ou seja, todos os montantes depositados e aplicações financeiras (cf. Ref. Elect. 35403623).
A ré opôs-se, por requerimento de 30 de Março de 2023, referindo que está em causa um novo pedido, que não aceita (cf. Ref. Elect. 35549000).
A ampliação do pedido foi indeferida por despacho de 28 de Abril de 2023, onde se considerou que estaria em causa a eliminação do pedido incerto e de condenação condicional deduzido na alínea b) do petitório inicial e a introdução de um montante acrescido no pedido da alínea a), que não tem suporte na alegação de facto da causa de pedir e que se traduz numa alteração do pedido, não aceite pela ré (cf. Ref. Elect. 424811958).
Por requerimento de 29 de Maio de 2023, os autores requereram ainda, em ampliação do pedido, que, em caso de condenação da ré, acresçam ao valor em que esta seja condenada os respectivos juros de mora à taxa legal aplicável, desde a citação e até integral pagamento, ao que a ré se opôs, por requerimento de 12 de Junho de 2023 (cf. Ref. Elect. 36092069 e 36231996).
A ampliação foi admitida por despacho de 4 de Julho de 2023 (cf. Ref. Elect. 427274631).
Realizada a audiência de julgamento, em 11 de Outubro de 2023 foi proferida sentença que julgou a acção procedente, com o seguinte dispositivo (cf. Ref. Elect. 427377729):
“Nestes termos e pelos fundamentos supra expostos, o Tribunal julga a presente acção procedente e reconhece que em 03/06/2021 eram propriedade exclusiva de CT os valores depositados na conta à ordem e na conta poupança abertas junto do “Novo Banco, SA” com os nºs 000137455306 e 000138337036, respectivamente, e na conta à ordem aberta junto do “Banco Bankinter, SA” com o nº 500/202502313, assim como os valores relativos às aplicações financeiras associadas a essas contas.
E, em consequência, condena a R. a:
- a entregar aos AA., únicos herdeiros do falecido CT, a quantia de € 96.617,48;
- a praticar todos os actos e assinar todos os documentos que as instituições bancárias exijam para que a mesma deixe de ser titular das ditas contas ou, em alternativa, assinar uma declaração que autorize a transferência da totalidade dos valores existentes naquelas contas para uma outra conta bancária.”
Inconformada com esta decisão, a ré dela veio interpor o presente recurso.
Em face da extensão das conclusões, a ora relatora proferiu despacho, em 9 de Julho de 2024, em que convidou a recorrente a apresentar nova alegação, em que conclua, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pretende a alteração da decisão recorrida (cf. Ref. Elect. 21854321).
A ré/recorrente acedeu ao convite, tendo apresentado a sua alegação[2], com as seguintes conclusões (cf. Ref. Elect. 708189):
A) O presente recurso versa sobre matéria de direito e sobre matéria de facto, estando ambas as impugnações interligadas.
B) Em matéria de direito, a sentença proferida viola o disposto nos arts. 361.º, 516.º e 1403.º, n. 2 do CC e arts. 296.º, n. 1, 297.º, n.º 1, 463.º, 615.º e 780.º, n.º 5 do CPC.
C) As contas bancárias à ordem podem ser singulares e colectivas; as colectivas, por sua vez, podem ser solidárias ou conjuntas. Há ainda a possibilidade de qualquer das contas colectivas ser mista, sendo solidária quanto a alguns dos titulares e conjunta quanto a outros. Nas contas bancárias conjuntas, a mobilização e disponibilidade dos fundos depositados exige a simultânea intervenção da totalidade dos titulares, enquanto nas contas solidárias basta a intervenção de qualquer dos titulares, indistinta e isoladamente, para a movimentar a débito ou a crédito.
D) Tratando-se no caso de contas bancárias solidárias, a lei estabelece uma presunção de contitularidade do dinheiro depositado nas mesmas (cfr. arts. 512.º e 516.º do CC e n.º 5 do art.º 780.º do CPC).
E) Demonstrando os autos a existência de 3 contas bancárias colectivas solidárias junto do Novo Banco (2) e do Bankinter (1) co-tituladas unicamente pela recorrente (rcte.) e pelo seu falecido irmão, Eng. CT, e uma conta bancária singular junto do Millennium BCP titulada por este, e em que a rcte. apenas figurava como procuradora, há que concluir que o falecido irmão discernia claramente entre fundos comuns e fundos exclusivos e que quando o intuito era meramente o de acautelar a possibilidade de movimentação da conta em caso de algum impedimento, conferia uma procuração – como sucedeu.
F) A circunstância de o falecido CT não co-titular com mais ninguém, nem mesmo com algum dos seus únicos filhos (os rcdos.) alguma outra conta bancária solidária ou conjunta que lhes conferisse algum poder de movimentação bancária em caso de impedimento seu, apenas reforça tal conclusão.
G) Os negócios que os rcdos. mencionam na sua p.i., feitos pelo pai CT, e os documentos que juntaram a eles atinentes, mostram que foram realizados através da utilização da conta singular daquele junto do Millennium BCP.
H) Como os autos documentam, a rcte. (e só a rcte.) ingressou naquelas contas bancárias junto do Novo Banco em 2013 e na do Bankinter em 2020, convertidas nessa ocasião em contas solidárias, assim se mantendo até ao óbito de CT.
I) E a conta bancária junto do Bankinter foi aberta exclusivamente através da transferência de fundos da conta solidária do Novo Banco, estendendo assim a compropriedade dos valores.
J) Dos autos não constam quaisquer extractos ou outros documentos registando os movimentos bancários a crédito à data do ingresso e imediatamente após o ingresso da rcte., em 2013, como co-titular das contas solidárias abertas junto do Novo Banco (contas n.º 000137455306 e n.º 000138337036), pelo que os rdos. não lograram demonstrar que a totalidade do capital existente nas contas solidárias movimentado ao longo de mais de 8 anos era pertença exclusiva do falecido CT, não ilidindo pois a presunção legal estabelecida a favor da rcte..
K) Por outro lado, atestam os autos que a rcte. fez depósitos na conta bancária n.º 000137455306 e por débito nessa conta adquiriu o seu veículo automóvel.
L) Os valores depositados nas contas solidárias referenciadas eram propriedade da rcte. e do seu falecido irmão, em partes iguais, sendo aqui aplicável a presunção do regime da compropriedade válida para todas as situações de contitularidade de contas bancárias (cfr. arts. 1403.º, n. 2 e 1404.º, ambos do CC).
M) Ainda que se tivesse provado que a totalidade do dinheiro das contas bancárias em causa tivesse sido depositada apenas pelo falecido CT (e não se provou), tal não seria suficiente para afastar a propriedade da rcte., porque sempre se teria de entender que, ao depositar dinheiro numa conta solidária, o falecido CT queria que a outra titular da conta, a rcte., dispusesse da metade desse dinheiro.
N) Aliás, a ora rcte. invocou expressa e subsidiariamente na sua contestação (art.º 80.º) a figura jurídica da doação manual, mas os AA., ora rcdos., nada responderam ou objetaram, o que equivale a dizer que abdicaram, também por essa circunstância, da faculdade de ilidir a presunção legal estabelecida a favor da rcte..
O) Os fundos existentes nas 3 contas solidárias identificadas eram propriedade da recorrente e do seu falecido irmão, em partes iguais, sendo isso que resulta de todo o acervo documental probatório constante dos autos e só assim pode ser interpretado o disposto nos arts. 516.º e 1403.º, n. 2 do CC e 780.º, n.º 5 do CPC.
P) Ao não reconhecer a compropriedade dos valores inscritos nas contas solidárias existentes e co-tituladas pela rcte. e seu falecido irmão, a sentença violou tais disposições legais.
Q) A sentença violou igualmente o disposto no art.º 361.º do CC e art.º 463.º do CPC, com que se conjuga.
R) Na verdade, não tendo sido lavrada após o depoimento de parte da R. qualquer assentada, tal significa que do mesmo não resultou nenhuma confissão.
S) Sendo assim, não poderia o tribunal “a quo” prevalecer-se de fragmentos de um depoimento não confessório subtraído ao escrutínio da R. e do seu mandatário para dele extrair surpreendentes incidências com valor probatório que afinal são elevadas em termos práticos ao patamar da confissão e produzir o mesmíssimo resultado.
T) Tais disposições (arts. 361.º do CC e 463.º do CPC) devem ser julgadas inconstitucionais quando interpretadas com o sentido, alcance e nos termos feitos pelo tribunal “a quo”, e com os resultados práticos verificados, designadamente por violação dos arts. 2.º, 3.º, 20.º e 202.º/2 da CRepP, na medida em ofendem a tutela efectiva dos direitos da rcte. e comporta uma decisão surpresa.
U) Por seu turno, tendo os AA. atribuído à acção, pelo somatório dos seus pedidos, o valor global de € 356.486,15, e uma vez que o tribunal, em sede de despacho saneador e nos termos do art.º 306.º do CPC, fixou, e bem, o pedido no montante líquido de € 96.616,71, reduzindo-o a esse concreto montante, viola o disposto nos arts. 296.º e 297.º do CPC o segmento decisório da sentença que consiste em que a rcte. assine uma declaração que autorize a transferência da totalidade dos valores existentes naquelas contas para uma outra conta bancária.
V) Essa violação torna-se mais nítida se levarmos em consideração que os AA., ora rdos., primeiro conformaram-se com o valor fixado à causa, não recorrendo do despacho saneador, e depois tentaram sem sucesso retomar o valor inicial da acção, através de uma ampliação do pedido, justamente para acomodar metade do somatório das aplicações financeiras.
W) A ora rcte. opôs-se a tal e a pretensão acabou por ser indeferida, pelo que nunca poderia o tribunal condenar a R. por um montante superior ao valor fixado, porque nenhum outro foi liquidado.
X) De harmonia com o art.º 296.º do CPC, a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido. E nos termos do art.º 297.º do mesmo Código, quando pela acção se pretende obter um valor diverso da quantia em dinheiro, ou para lá deste, o valor da causa corresponde à quantia em dinheiro equivalente a esse benefício.
Y) Ora, nenhum valor foi atribuído ao benefício a que agora a sentença condenou a R., ora rcte., em violação de lei. Sem embargo,
Z) A rcte. impugna igualmente a matéria de facto adiante discriminada e dada como provada na sentença, e considera verificadas as nulidades da sentença previstas no art.º  615º/1, b) c), d) e e) do CPC, o que expressamente se argui, dando aqui por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais e por economia processual o aduzido nos pontos II e IV das alegações e todos os elementos documentais ali identificados, assim como as transcrições feitas.
AA) Impugna o ponto 5. da matéria fáctica, porque apenas alude à existência de 3 contas bancárias, as 2 do Novo Banco e uma do Bankinter, omitindo a existência da conta singular que o falecido CT titulava junto do Millennium BCP e em que a ora rcte. era simplesmente procuradora - facto que está documentado nos autos e desde logo na p.i. (arts. 24.º a 29.º); nos documentos juntos pelos próprios AA. com essa p.i. (docs. 8 e 9, especialmente fls. 48, 49, 52, 55, 58 e 61 dos autos), e através da procuração cuja cópia foi junta pela rcte. (requerimento de 16/04/2023 com a ref.ª 35695384).
BB) Impugna o ponto 8. da matéria fáctica, quando exara que a co-titularidade da rcte. nas contas bancárias identificadas justificaram-se exclusivamente para efeitos de movimentação das mesmas caso CT, por qualquer motivo, não pudesse movimentá-las.
CC) Contudo, para concluir assim a sentença omite e assim não explica a razão da abertura da referida conta singular junto do Millennium BCP e da diferença de critério adoptada pelo falecido CT, sendo manifesto que este sabia distinguir perfeitamente as situações de compropriedade ou co-titularidade solidária das de representação para efeitos de movimentação e que quando queria que alguém apenas tivesse poderes de movimentação da conta, conferia-lhe procuração para o efeito.
DD) E que sabia exatamente o que queria fazer e era determinado, nada o demovendo, resulta do perfil dele traçado pela testemunha dos AA., MR (depoimento gravado através do sistema h@billus Media Studio, com início pelas 12:24:49 e final às 12:38:19 do dia 31 de maio de 2023), já transcrito nas alegações e que aqui, brevitatis causa, se dá por reproduzido.
EE) Do mesmo passo fica por explicar (e a fundamentação da matéria fáctica não o faz) por que razão a rcte. foi a única pessoa que ingressou nas contas bancárias identificadas nos pontos 4. e 5. da matéria fáctica - mais ninguém, nem os filhos – a despeito de ser mais velha e por isso apresentando mais riscos de frustrar a consecução do pretenso desiderato.
FF) Impugna igualmente o ponto 11. dos factos provados, segundo o qual todo o dinheiro e aplicações existentes nas 3 contas bancárias solidárias pertenciam exclusivamente ao falecido CT, quando toda a matéria constante dos autos patenteia o contrário.
GG) É que nem os AA. fizeram qualquer prova dos movimentos bancários após o ingresso da rcte. nas contas solidárias existentes no Novo Banco para desse modo demonstrar que os saldos à data e os sucessivos fluxos financeiros subsequentes eram da exclusiva pertença do falecido CT, nem se faz a mínima alusão à circunstância de a ora rcte. ter feito depósitos seus na conta bancária do Novo Banco n. 000137455306 (cfr. comprovativos juntos com o requerimento ref.ª 36150454 de 02/06/2023) e que foi por débito dessa conta que adquiriu um veículo automóvel novo (conforme se detalha no seu requerimento com a ref.ª 36426952, de 01/07/2023, que aqui se dá por reproduzido, na íntegra) – mas tudo isso a sentença ignora.
HH) Por outro lado, os concretos negócios e aquisições que diziam exclusivamente respeito ao Eng. CT, carreados pelos AA. através dos seus docs. 8 e 9 juntos com a p.i., resultaram de movimentações operadas na conta do Millennium BCP (em que a ora rcte. era simples procuradora) – e não de qualquer conta solidária.
II) Acresce que de acordo com a testemunha Dra. HN (depoimento gravado através do sistema h@billus Media Studio, com início pelas 14:38:19 e final às 15:07:04 do dia 31 de maio de 2023 e absolutamente desvalorizado), acima transcrito e que aqui se dá por reproduzido por economia de meios, foi o irmão da ora rcte. que ficou incumbido da gestão e rentabilização do que constituía o património comum familiar após o óbito do pai de ambos.
JJ) Só isto aliás se compatibiliza com o facto de o irmão da rcte. a ter feito ingressar nas contas bancárias solidárias abertas junto do Novo Banco (ex-BES) e depois no Bankinter, uma conta solidária que, como se disse, foi aberta através de cheques provindos da conta solidária existente no Novo Banco (vide cheques que integram o doc. 7 junto com a p.i. e constantes de fls. 40 e 41 e também doc. 5 do requerimento da rcte. com a ref.ª 36150454 de 02/06/2023, conjugadamente com o extrato bancário junto pelos AA. como doc. 2 com o seu requerimento ref.ª 35282360 de 07/03/2023).
KK) Dá-se ainda a circunstância de os AA., 3 meses antes de proporem a acção, terem reconhecido em declaração prestada perante a Autoridade Tributária (em 11/08/2021) que apenas metade dos valores depositados e das aplicações feitas lhes eram transmitidos, conforme se aduz nos pontos 1.21 e seguintes do ponto II das alegações e aqui se dá por reproduzido, sendo que esse documento, apresentado nos autos por mandatário com poderes para confessar, equivale a uma confissão judicial com força probatória plena à luz do disposto no art.º  358.º, n. 2 do CC.
LL) Impugnam-se os pontos 9. e 10. da matéria dada como provada, segundo os quais << Na família do falecido CT e da Ré havia o hábito de os familiares serem co-titulares das contas uns dos outros para no caso de alguma impossibilidade de o proprietário do dinheiro existente na mesma a movimentar outro poder fazê-lo>> e <<Por isso o falecido pai dos AA. era e estes também eram e ainda são co-titulares de uma conta bancária cuja primeira titular é a sua tia e cujos valores são única e exclusivamente desta>>, porque se não existia uma única conta bancária solidária (e só esta permite movimentações livres de cada contitular) em que interviessem os AA., nada permite sustentar o padrão definido no ponto 9.
MM) A conta bancária a que se alude no ponto 10. não é uma conta solidária, mas uma conta conjunta com fundos exclusivamente pertencentes à rcte., como está reconhecido, e nelas incluiu o irmão e os AA., seus sobrinhos, sem que nenhum deles pudesse isoladamente movimentá-la, nem tal tendo sido alegado.
NN) E analisando a participação apresentada pelos AA. junto da Autoridade Tributária instruída com a relação de bens, percebe-se sem qualquer dificuldade que dessa relação não constam quaisquer contas bancárias, solidárias ou conjuntas, co-tituladas pelo falecido CT e os AA., seus filhos.
OO) Impugna-se finalmente o ponto 16. da matéria de facto, que deve ser excluído, porque, como se narra em II, pontos 3.1 e seguintes, e aqui se dá por reproduzido, não fazia parte dos temas da prova e não está justificada a sua inserção, mais a mais, porque isso equivaleria à subida do valor da causa fixado no transitado despacho saneador (art.º  306.º do CPC), no qual se circunscreveu o pedido e o valor ao montante liquidado, ou seja € 96.616,71 - quando os AA. haviam atribuído na sua p.i. o valor de € 356.486,15.
PP) Nos termos do art.º 662º/1 do CPC, o Tribunal da Relação deve alterar a decisão sobre a matéria de facto quando a prova produzida impuser uma solução diversa. Em nossa modesta opinião é esse o caso.
QQ) Atendendo ao que se detalha em todo o ponto II supra das alegações e que aqui se dá por reproduzido, a resposta à matéria de facto deveria, em conformidade, conter as alterações que se identificam:
- Deve alterar-se o ponto 8. para ficar a constar apenas o seguinte: “As três contas bancárias solidárias acima referidas em 4. e 5. tinham como cotitular a irmã do falecido, existindo ainda uma conta bancária junto do Millennium BCP em que o irmão da R., CT, era titular único, tendo aquela apenas poderes de movimentação por via de uma procuração emitida para o efeito”.
- Deve dar-se como não provado o restante segmento do ponto 8. e igualmente o teor dos pontos 9, 10 e 11, e excluir-se por irrelevante (e errado) o ponto 16.
RR) E relativamente à matéria dada como não provada, e face ao que vimos de expor, deve concomitantemente dar-se como provado o teor das alíneas C) a F), nos moldes que se propõem:
“C - Ainda em vida dos seus pais e após a morte deles, CT ficou a gerir todas as finanças da família, com o acordo e confiança da R., sendo por isso que tinham contas solidárias entre si.
D - As contas em discussão na petição - do Novo Banco e do Bankinter - foram abertas a partir de contas comuns e através de movimentação de fundos comuns, sendo essa a proveniência dos fundos nelas depositados.
E - O valor devolvido pela R. aos AA. relativamente às contas do "Novo Banco, SA" excedeu o valor correspondente a metade.
F - O propósito do falecido CT foi o de reconhecer que a R., sua irmã, era proprietária dos valores depositados nas contas bancárias identificadas em 4 e 5 e das aplicações e investimentos associados a essas contas, ainda que como donatária.”
SS) Como se disse supra no ponto II (1.2 e segs.), a Mma. Juiz “a quo” omitiu duas situações relevantíssimas, e só com essas omissões pôde concluir como vazou no ponto 8. dos factos provados.
TT) Por um lado omitiu a existência de uma outra conta bancária junto do Millennium BCP, em que o falecido Eng. CT era o único titular e em que a ora rcte. era simplesmente procuradora.
UU) Por outro lado também omitiu que a R., ora rcte., fez depósitos seus na conta bancária comum e solidária do Novo Banco n. 000137455306 e que foi por débito dessa conta que adquiriu um veículo automóvel novo.
VV) O tribunal “a quo” tudo isso ignorou, pelo que, estando obrigado a conhecer de todas as questões suscitadas pelas partes (art.º 608.º, n. 2 do CPC), incorreu em omissão de pronúncia, o que fere de nulidade a sentença (art.º 615º/1, d) do CPC).
WW) Do mesmo passo, a sentença padece de nulidade dada a contradição entre os fundamentos da decisão e a decisão.
XX) Alterada a matéria de facto nos termos propugnados, e s.m.o., daí decorrerá sem mais considerandos a absolvição da ora rcte.
Remata as suas conclusões pugnando pela procedência do recurso, com reconhecimento das nulidades suscitadas e revogação da sentença e sua consequente absolvição.
Os autores/recorridos contra-alegaram sustentando dever a decisão recorrida manter-se inalterada, reproduzindo as suas alegações em resposta ao aperfeiçoamento da recorrente (cf. Ref Elect. 38220413 e 709918).
*
II – OBJECTO DO RECURSO
Nos termos dos art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1 do Código de Processo Civil[3], é pelas conclusões do recorrente que se define o objecto e se delimita o âmbito do presente recurso, sem prejuízo das questões de que este tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso.
Na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abrange tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art.º 635º, n.º 3, do CPC), contudo o respectivo objecto, assim delimitado, pode ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (cf. n.º 4 do mencionado art.º 635º). Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objecto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objectiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não podendo o Tribunal ad quem pronunciar-se sobre questões novas - cf. António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª Edição Atualizada, pág. 139.
Assim, perante as conclusões da alegação da ré/apelante, o objecto do presente recurso consiste em aferir:
a) Da nulidade do despacho de fixação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova;
b) Das nulidades da sentença;
c) Da impugnação da matéria de facto;
d) Da titularidade dos valores depositados nas contas à ordem e aplicações financeiras associadas.
Colhidos que se mostram os vistos, cumpre apreciar e decidir.
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III - FUNDAMENTAÇÃO
3.1. – FUNDAMENTOS DE FACTO
Na primeira instância foram considerados provados os seguintes factos:
1. A e B são filhos de CT.
2. CT faleceu no dia 03/06/2021, no estado de divorciado, e sem testamento ou qualquer disposição de última vontade.
3. Por escritura de habilitação de herdeiros de 24/06/2021 A e B foram habilitados como únicos e universais herdeiros de CT.
4. CT era titular, entre outros bens, de três contas bancárias: duas abertas junto do “Novo Banco, SA” com os números 000137455306 (conta à ordem) e 000138337036 (conta poupança).
5. E outra conta aberta junto do “Banco Bankinter, SA” com o número 500/202502313.
6. À data do óbito de CT as contas do “Novo Banco, SA” tinham os saldos de 146 924,22 € (cento e quarenta e seis mil novecentos e vinte e quatro euros e vinte e dois cêntimos) e de 92.682,48 € (noventa e dois mil, seiscentos e oitenta e dois euros e quarenta e oito cêntimos), respectivamente, na conta à ordem e na conta poupança.
7. À data do óbito de CT a conta à ordem do “Banco Bankinter, SA” apresentava um saldo de 69 012,77 € (sessenta e nove mil e doze euros e setenta e sete cêntimos).
8. As três contas bancárias acima referidas tinham como co-titular a irmã do falecido, a ora ré CT, exclusivamente para efeitos de movimentação das mesmas caso CT, por qualquer motivo, não pudesse movimentá-las.
9. Na família do falecido CT e da ré havia o hábito de os familiares serem co-titulares das contas uns dos outros para no caso de alguma impossibilidade de o proprietário do dinheiro existente na mesma a movimentar outro poder fazê-lo.
10. Por isso o falecido pai dos AA. era e estes também eram e ainda são co-titulares de uma conta bancária cuja primeira titular é a sua tia e cujos valores são única e exclusivamente desta.
11. Todo o dinheiro e aplicações financeiras que existiam e existem nas três contas bancárias acima identificadas em 4. e 5. pertenciam exclusivamente ao falecido CT.
12. Após o falecimento de CT a ré retirou:
- das contas do Novo Banco, SA acima identificadas em 4. a quantia de 120.000,00 € (cento e vinte mil euros) no dia 08/06/2021, e a quantia de 62.090,03 € (sessenta e dois mil e noventa euros e três cêntimos) em 12/10/2021,
- da conta do Bankinter, SA acima identificada em 5., a quantia de 69.012,77 € (sessenta e nove mil e doze euros e setenta e sete cêntimos).
13. Em e-mail de 19/07/2021, dirigido a ambos os AA., a R. refere “(…) depois da conversa que tivemos e em que tudo me pareceu ter ficado claro àcerca da co-titularidade das contas e dos valores respectivos. Metade pertence-me. Já procedi à transferência para vós de metade do saldo existente no Novo Banco, e já dei instruções para ser feito o mesmo em relação à conta existente no Bankinter. (…)”.
14. Das contas do Novo Banco, SA, das quais a ré levantou um total de 182.090,03 € (cento e oitenta e dois mil e noventa euros e três cêntimos), devolveu a mesma já a quantia de 120.000,00 € (cento e vinte mil euros).
15. E da conta do Bankinter, SA, da qual levantou de 69.012,77 € (sessenta e nove mil e doze euros e setenta e sete cêntimos), a ré devolveu já a quantia de 34 485,32 €.
16. À data do óbito de CT a conta bancária n.º 500/202502313 do “Bankinter, SA” tinha associadas aplicações financeiras várias no valor total de 404.352,83 € (quatrocentos e quatro mil trezentos e cinquenta e dois euros e oitenta e três cêntimos) subscritas com capitais provenientes da conta à ordem nesse banco.
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O Tribunal a quo deu como não provados os seguintes factos.
A – Que a R., confrontada pelos sobrinhos e ora AA., lhes referiu que iria proceder à devolução imediata de todas as quantias para as contas bancárias que os mesmos lhe indicassem.
B - Que em razão dos sucessivos problemas de saúde de CT este e a R. viveram em economia comum durante mais de dois anos, estabelecendo uma vivência em comum de partilha de recursos.
C - Que ainda em vida dos seus pais e após a morte deles CT ficou a gerir todas as finanças da família, com o acordo e confiança da R., sendo por isso que tinham contas solidárias entre si.
D - Que as contas em discussão na petição - do Novo Banco e do Bankinter - foram abertas, no mesmo acto, pela R. e pelo seu irmão CT a partir de contas comuns e através de movimentação de fundos comuns, sendo essa a proveniência dos fundos nelas depositados, bem como pelo concurso de ambos para a obtenção e partilha de recursos.
E - Que o valor devolvido pela R. aos AA. relativamente às contas do “Novo Banco, SA” tenha excedido o valor correspondente a metade em consequência da perturbação emocional causada à R..
F - Que o falecido CT tenha manifestado a intenção de dar à ora R., sua irmã, metade dos valores depositados nas contas bancárias identificadas em 4 e 5 e das aplicações e investimentos associados a essas contas.
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3.2. – APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Por uma questão de precedência lógica impõe-se apreciar a questão suscitada pela recorrente no seu recurso a propósito da definição do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova, pois aquilo que for decidido a esse propósito influirá, por sua vez, na delimitação do objecto do presente recurso e, entre o mais, no âmbito da apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto provada e não provada.
3.2.1. Da definição do objecto do litígio e dos temas de prova na audiência prévia
No final da motivação do seu recurso, a apelante vem introduzir a questão da validade do despacho que fixou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova, em sede de audiência prévia, referindo, em primeiro lugar, que nada impede que a parte reclame do seu teor no recurso e, que, tendo em conta o valor fixado à causa – correspondente ao valor do pedido líquido formulado pelos autores, no montante de 96.616,71 € -, nenhum outro pedido poderia estar em apreciação nestes autos, daí que não podia o tribunal recorrido ter incluído no objecto do litígio a referência a aplicações financeiras e, bem assim, estas não deveriam integrar os temas da prova, pois que nenhum valor está peticionado a esse título, nem está abrangido pelo valor da causa, daí que tal despacho padeça de nulidade.
Quanto a esta matéria os autores/apelados apenas reiteraram que o tribunal recorrido esteve bem em decidir como decidiu relativamente aos valores existentes em aplicações financeiras.
Conforme decorre do relatório supra, no decurso da audiência prévia a senhora juíza a quo fixou o valor da causa em 96.616,71 €.
Logo de seguida fixou o objecto do litígio nos seguintes termos: “Direito dos autores, enquanto herdeiros legitimários de CT, à totalidade dos montantes depositados e aplicações financeiras existentes em contas bancárias co-tituladas pelo seu falecido pai e pela ré sua tia.”
E os temas da prova foram enunciados do seguinte modo:
“1 – Os montantes depositados e aplicações financeiras eram exclusivamente do pai dos autores.
2 – A ré era co-titular das contas bancárias do falecido irmão exclusivamente para efeitos de movimentação das mesmas no caso do entretanto falecido CT, por qualquer motivo, não as poder movimentar.
3 – A ré, após ter efectuado levantamentos das contas, disse aos autores seus sobrinhos que ia proceder à devolução imediata de todos montantes que levantara daquelas contas após o óbito do irmão.”
Estatui o art.º 296º, n.º 1 do CPC, que “a toda a causa deve ser atribuído um valor certo, expresso em moeda legal, o qual representa a utilidade económica imediata do pedido”.
O n.º 2 do mesmo preceito legal indica qual é a função do valor da causa: “Atende-se a este valor para determinar a competência do tribunal, a forma de processo comum e a relação da causa com a alçada do tribunal”.
Na petição ou requerimento inicial deve o autor ou requerente indicar o valor da causa (cf. art.º 552º, nº 1, al. f) do CPC), podendo o réu ou requerido impugná-lo, desde que indique o valor que entende adequado (art.º 305º, nº 1 do mesmo Código).
Haja ou não acordo das partes - expresso ou tácito (cf. art.º 305º, n.º 4 do CPC) - quanto ao valor da causa, a sua fixação compete sempre ao juiz, sem que este fique vinculado ao eventual acordo dos litigantes quanto a tal matéria – cf. art.º 306º, n.º 1 do CPC.
Com efeito, sempre que entender que o valor da causa indicado pelo autor/requerente e aceite pelo réu/requerido não corresponde à “utilidade económica imediata do pedido[4], deve determinar tal valor, “em face dos elementos do processo ou, sendo estes insuficientes, mediante as diligências indispensáveis” – cf. art.º 308º do CPC.
Para efeito de determinação do valor processual da causa releva a data da propositura da acção, ou seja, trata-se de regra geral no sentido de que o valor processual da causa consubstancia a sua utilidade económica, configurada na petição inicial, independentemente de depois disso algum facto a haver alterado – cf. art.º 299º, n.º 1 do CPC; Salvador da Costa, Os Incidentes da Instância, 2ª Edição, pág. 29.
Note-se que a determinação do exacto valor do processo constitui uma questão marginal no contexto do objecto processual delimitado pelas partes, mas porque dela decorrem efeitos processuais relevantes (como sejam a competência do tribunal e a forma do processo), a lei impõe uma intervenção oficiosa do juiz para assegurar a correcção do valor processual – cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I – Parte Geral e Processo de Declaração, 2018, pág. 343-355, referindo ainda que o valor da causa releva para diversos efeitos, como tributários, para determinação da competência do tribunal, obrigatoriedade do patrocínio judiciário, número de testemunhas, e em matéria de recorribilidade; no mesmo sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-03-2019, processo n.º 21112/16.3T8LSB-A.L1.S1[5].
Dispõe o art.º 306º do CPC que é incumbência do juiz fixar o valor da causa - o que deve fazer de forma generalizada e não apenas perante uma manifesta discrepância do valor atribuído pelas partes com a realidade -, sendo o momento processualmente adequado para tanto o da prolação do despacho saneador (cf. n.º 2).
A decisão incidental sobre o valor da causa irá repercutir-se, em função do aumento ou da redução do valor inicialmente atribuído pelo autor, na aplicação, designadamente, das regras sobre a obrigatoriedade ou não de patrocínio judiciário (art.º 40º do CPC) ou sobre a recorribilidade ou não das demais decisões proferidas ou a proferir (art.º  629º, n.º 1) e, bem assim, sobre a eventual necessidade de reforço da taxa de justiça paga.
Importa ter presente que os efeitos decorrentes da decisão de verificação do valor do processo apenas se produzirão depois do respectivo trânsito em julgado, pois que se trata de ponto fundamental para evitar a perturbação que uma outra solução poderia causar na tramitação da causa ou na afectação do processo a outro tribunal (cf. art.º 310º do CPC).
Por essa razão, justifica-se que tal decisão seja susceptível de recurso autónomo – cf. art.º 644º, n.º 1, a) do CPC -, sendo sempre admissível recurso com o fundamento de que o valor da causa (que a parte pretende seja fixado) excede a alçada do tribunal que proferiu a decisão incidental (cf. art.º  629º, n.º 2, b) do CPC).
No caso em apreço, como refere a apelante, o valor fixado pela senhora juíza a quo é inferior àquele que foi indicado pelos autores na petição inicial – 356 486,15 € - e embora não tenham sido aduzidas, em concreto, as razões para essa divergência, tendo-se procedido à audição da gravação atinente à audiência prévia, percebe-se que o entendimento da senhora juíza a quo quanto ao valor que acabou por atribuir à causa teve em conta a natureza do pedido formulado sob a alínea b) do petitório final, que, segundo referiu, não assentava na alegação de factos concretos sobre a eventual apropriação pela ré de valores atinentes às aplicações financeiras associadas às contas bancárias, cujo montante justificou a atribuição pelos autores do mencionado valor, não obstante estes tenham pugnado no sentido de a sua alegação ao longo da petição inicial evidenciar de modo inequívoco que se afirmam proprietários de todas essas quantias – cf. acta da audiência prévia realizada em 12 de Janeiro de 2023, com a Ref. Elect. 422152570 e minutos 1.25 a 12.15 da respectiva gravação.
Sucede, contudo, que nenhuma das partes interpôs recurso dessa decisão que, como já se referiu, impunha recorribilidade imediata, daí que a fixação do valor da causa tenha transitado em julgado – cf. art.º 620º, n.º 1 do CPC.
Por outro lado, já se viu o âmbito das repercussões processuais que decorrem da fixação do valor da causa, sendo que este, enquanto questão marginal no contexto do objecto processual delimitado pelas partes, não assume relevância para a definição do objecto do litígio, contrariamente ao que parece sustentar a apelante.
A fixação do valor pode estar correcta ou incorrecta em face dos critérios legalmente estabelecidos, mas daí não decorre que se devam ter por excluídos os pedidos deduzidos na acção que, segundo a perspectiva da parte, não hajam sido atendidos para efeitos de determinação do exacto valor da causa.
A fixação do valor da causa e a fixação do objecto do litigio corporizam questões distintas e têm finalidades diversas, pelo que aquele valor, correcto ou incorrecto, não terá necessária repercussão na enunciação dos temas da prova, até porque, neste caso, não obstante as considerações tecidas pela senhora juíza a quo para reduzir o valor indicado pelos autores, não deixou de expressamente incluir, seja no objecto do litígio, seja nos temas da prova, a questão da titularidade dos montantes existentes quer nas contas bancárias, quer nas aplicações financeiras.
Por outro lado, atento o disposto no art.º 596º, n.ºs 2 e 3 do CPC, as partes podem reclamar do despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova logo no momento subsequente à sua prolação em sede de audiência prévia ou quando notificadas de tal despacho, mas a decisão proferida sobre essa reclamação apenas poderá ser impugnada no recurso interposto da decisão final.
A reclamação pode ter como fundamentos a omissão de enunciação de pontos relevantes no que diz respeito ao objecto do litígio e aos temas da prova (deficiência); a inclusão de matéria que ultrapassa o objecto do processo ou a factualidade aduzida pelas partes (excesso); a ininteligibilidade ou o carácter dúbio do objecto do litígio ou de um tema da prova (obscuridade) – cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pág. 702.
Embora a lei preveja que a reclamação pode ter lugar perante o juiz da causa, tal não equivale ou autoriza a concluir que a não dedução da reclamação preclude a possibilidade de recurso incidente sobre essa matéria – cf. neste sentido, João Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Lisboa 202, Volume II, pág. 100 – “[…] se esse despacho pode ser impugnado no recurso da decisão final, então não transita em julgado até esse momento, pelo que a selecção realizada não implica nem que os factos seleccionados como temas da prova sejam realmente controvertidos, nem que não existam outros factos que também deveriam ser considerados controvertidos. É também por esta razão que a não dedução de reclamação não preclude a possibilidade de vir a ser interposto recurso da selecção da matéria de facto.”
Assim, ainda que a ré/recorrente não tenha reclamado do despacho que identificou o objecto do litígio e enunciou os temas da prova, não estava impedida de suscitar, no âmbito do recurso da decisão final, o excesso que nele alegadamente se tenha verificado, como veio fazer.
Todavia, a argumentação da recorrente para considerar que a inclusão no objecto do litígio e nos temas da prova do ponto atinente ao apuramento do direito dos autores sobre a totalidade dos montantes depositados e das aplicações financeiras extravasa aquela que deve ser a delimitação do objecto processual, cinge-se, apenas, à circunstância de os valores correspondentes a tais aplicações financeiras – expressamente alegados nos artigos 36º e 37º da petição inicial – não terem sido considerados no valor fixado à causa, o que, como se referiu, não tem reflexos na delimitação do referido objecto.
Acresce que há que ter presente que, subjacente ao pedido de devolução das quantias existentes nas contas bancárias, expressamente formulado na alínea a) do petitório, está necessariamente implícito o pedido de reconhecimento de que tais quantias pertenciam exclusivamente ao pai dos autores, conforme alegado e, do mesmo modo que esse reconhecimento está implícito no pedido de devolução do valor líquido referido naquela alínea, é ainda esse reconhecimento de titularidade quanto às aplicações financeiras associadas às contas bancárias que perpassa a matéria de facto vertida na petição inicial. Aliás, desconhecendo se algum valor teria já sido retirado pela ré ou admitindo que o viesse a ser, os autores formularam, precisamente, o pedido condicional ou eventual descrito na alínea b), visando assegurar que tais quantias pertenciam ao falecido pai e que lhes deveriam ser restituídas.
É sabido que o pedido está ligado ao princípio do dispositivo, sendo este um dos princípios nucleares do processo civil, de onde decorre que as partes dispõem do processo e da relação jurídica nele controvertida.
Porém, o processo não pode ser visto apenas como uma coisa das partes, pois que lhe estão associados interesses públicos relevantes, daí que, tendo presentes os princípios que enformam o actual Código de Processo Civil, há que reconhecer a necessidade de um equilíbrio entre o princípio do dispositivo e o do inquisitório, tendo sempre em vista a justa composição do litígio, por um lado, e a igualdade das partes, por outro.
A exclusividade do princípio do dispositivo foi abandonada, avançando-se para um sistema misto em que este é mitigado pelo princípio do inquisitório, visando arredar os espartilhos processuais que conduziam à prolação de decisões de forma em detrimento das substantivas.
Nesse sentido, o Professor Miguel Teixeira de Sousa referia que “as partes repartem com o tribunal o domínio sobre o processo e elas próprias são consideradas uma fonte de informações relevantes para a decisão da causa; - as partes e terceiros estão obrigados a um dever de cooperação com o tribunal; - a legitimação da decisão depende da sua adequação substancial e não apenas da sua correcção formal; - as regras processuais podem ser afastadas quando não se mostrem idóneas para a justa composição do litígio” – cf. Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 1997, pág. 59.
Neste enquadramento, há que não se ser demasiado formalista na interpretação e aplicação dos princípios em que se baseia o processo civil, sob pena de este não ser efectivo e nada resolver.
O princípio do pedido, que decorre do estatuído no art.º 3º, n.º 1 do CPC, incorpora dois sentidos: o de que o tribunal apenas pode apreciar um litígio se isso lhe for pedido e o de que o juiz não pode dar mais ou coisa diversa daquela que lhe é pedida, sob pena de a sentença padecer de nulidade (princípio da correlação ou da congruência entre o pedido e a sentença).
O juiz tem de apreciar e julgar um objecto – pedido e causa de pedir – que é definido, essencialmente, pelo autor, na petição inicial (coincidência entre o objecto do processo, o objecto da decisão e o caso julgado).
Para além da admissibilidade da flexibilização da segunda vertente do princípio do pedido, que tem vindo a ser reconhecida pela doutrina e pela jurisprudência, precisamente em prol da efectividade da justiça, há que ter presente que, diverso deste problema existe um outro, que com ele não se confunde, que é a questão relativa aos pedidos implícitos.
Como refere Miguel Mesquita, “O pedido implícito é aquele que, logicamente, com base na natureza das coisas, está presente na acção, apesar de não ter sido formulado expressis verbis. Quer dizer, o pedido deduzido na petição pressupõe outro pedido que, por qualquer razão, o autor não exprimiu de forma nítida ou óbvia” – cf. A flexibilização do princípio do pedido à luz do moderno Processo Civil, pág. 144[6].
Assim, na presença de um pedido implícito não há que falar de violação do princípio do pedido, ainda que o juiz deva contribuir, precisamente na audiência prévia, para a clarificação das pretensões deduzidas na acção. Exemplo lapidar, é a situação em que o autor, numa acção de reivindicação, se limita a pedir a condenação na entrega da coisa, caso em que se deve considerar implícito o pedido de reconhecimento do direito de propriedade – cf. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9-05-2024, processo n.º 6845/20.8T8ALM.L1-6, onde são referidos múltiplos arestos dos tribunais superiores onde se reconhece a existência de pedidos implícitos, mencionados no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30-05-2023, processo n.º 135/21.6T8LRA.C1.S1: acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 08-10-1998, processo n.º 83/98, em que se entendeu que “(...) o pedido resolutivo está implícito como condição processualmente declarativa que fundamenta a seguir o pedido condenatório de restituição do sinal”; de 12-10-2004, processo n.º 04A2667, que considerou que “no pedido de restituição do sinal em dobro está implícito o pedido de resolução do contrato promessa”; de 17-10-2013, processo n.º 04A2667, em que se decidiu que “em acção fundada no art.º 432.º do CC a resolução pode ser apenas um pressuposto do pedido de devolução do sinal e respectivos juros, sem que este seja expressa e necessariamente formulado”; de 19-05-2020, processo n.º 1642/13, em cujo sumário se pode ler “(...) VII - O pedido de anulação do contrato de seguro deve considerar-se contido, de forma implícita, na contestação quando ela assenta na existência de um vício na formação da vontade da seguradora, alegando que foi induzida em erro pelo segurado, decorrente da omissão sobre o seu estado de saúde.”
Ora, é precisamente essa a situação dos autos. O pedido formulado pelos autores quanto à devolução das quantias que a ré retirou das contas bancárias co-tituladas pelo falecido pai, tem necessariamente subjacente a pretensão de reconhecimento da sua titularidade dos montantes ali existentes, direito a que se arrogam ao longo da petição inicial, não só relativamente às quantias depositadas à ordem e a prazo, mas também quanto aos valores que foram objecto de aplicações financeiras.
Ainda que não tenha sido alegado nenhum facto concretizador de eventual apropriação pela ré de valores que se encontravam aplicados, certo é que os autores, também relativamente a tais quantias, se afirmam titulares, por sucessão, do direito sobre elas incidente.
Certamente por essa razão, a senhora juíza a quo fez incluir no objecto do litígio e também nos temas da prova a questão de saber se os autores, enquanto herdeiros de CT, têm direito à totalidade dos montantes depositados e aplicações financeiras existentes nas mencionadas contas bancárias co-tituladas pelo falecido pai e pela ré, sua tia.
Assim, havendo que reconhecer que subjacente às pretensões expressamente formuladas se encontra um pedido de reconhecimento desse direito, pressuposto necessário e antecedente lógico do pedido de restituição, não existe qualquer excesso na definição do objecto do litígio ou no elenco dos temas da prova, que se cingiram às questões que foram colocadas e trazidas pelos autores para a definição do objecto processual.
Como tal, improcede a pretensão da apelante de ver declarada a nulidade do despacho que fixou o objecto do litígio e elencou os temas da prova.
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3.2.2. Da nulidade da sentença
A apelante vem também suscitar a nulidade da decisão recorrida referindo que na fixação da matéria de facto o tribunal omitiu duas situações relevantes, quais sejam: a existência de uma outra conta bancária junto do Millennium BCP, em que o falecido CT era o único titular e a recorrente procuradora, o que está demonstrado pela prova existente nos autos (artigos 24º a 29º da petição inicial, documentos juntos com esta e a procuração junta pela ré); a realização pela ré de depósitos na conta bancária comum e solidária do Novo Banco n.º 000137455306 e a partir da qual pagou o veículo automóvel por si adquirido, factos não considerados pelo tribunal recorrido, que estava obrigado a conhecer de todas as questões suscitadas pelas partes, pelo que a sentença padece de omissão de pronúncia.
Mais suscitou a nulidade decorrente de contradição entre os fundamentos e a decisão referindo que, tendo sido fixado o valor da causa em 96.616,71 €, a parte da decisão que ordena que a recorrente assine declaração que autorize a transferência da totalidade dos valores existentes naquelas contas constitui condenação em quantidade superior ao pedido, até porque existiu uma ampliação do pedido, a que a ré se opôs e o tribunal não admitiu.
Os autores/recorridos não se pronunciaram expressamente sobre as nulidades suscitadas, referindo apenas, a propósito da condenação em quantidade superior ao pedido, que, estando demonstrado que a ré nunca colocou qualquer dinheiro nas contas do irmão, outra coisa não restava ao tribunal senão decidir como decidiu.
A senhora juíza a quo proferiu despacho admitindo o recurso interposto mas não se pronunciou sobre a arguida nulidade, como se lhe impunha, atento o disposto nos art.ºs 641º, n.º 1 e 617º do CPC[7].
A omissão de despacho do juiz a quo sobre as nulidades arguidas não determina necessariamente a remessa dos autos à 1ª instância para tal efeito, cabendo ao relator apreciar se essa intervenção se mostra ou não indispensável – cf. António Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 215.
Tendo presente a natureza da questão suscitada e o enquadramento que deve merecer, não se justifica a baixa do processo para a pronúncia em falta, passando-se desde já ao conhecimento da suscitada nulidade.
As decisões judiciais podem estar feridas na sua eficácia ou validade por duas ordens de razões: por erro de julgamento dos factos e do direito; por violação das regras próprias da sua elaboração e estruturação ou das que delimitam o respectivo conteúdo e limites, que determinam a sua nulidade, nos termos do art.º 615.º do CPC.
Dispõe o art.º 615º, n.º 1 do CPC o seguinte:
1 - É nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
Para a correcta interpretação deste preceito importa distinguir entre nulidades de processo e nulidades de julgamento, sendo que apenas a estas últimas se aplica o normativo em referência.
Conforme impõe o n.º 3 do art.º 607º do CPC, o juiz deve especificar os fundamentos de facto e de direito da decisão, observando o disposto quer nesse normativo, quer no respectivo n.º 4, ou seja, o juiz deve discriminar os factos que julga provados e os que julga não provados, analisando criticamente as provas, o que fará em conformidade com a sua livre apreciação (princípio da liberdade de julgamento – cf. n.º 5 do art.º  607º do CPC).
É usual verificar-se alguma confusão entre nulidade da decisão e discordância quanto ao resultado, entre a falta de fundamentação e uma fundamentação insuficiente ou divergente da pretendida ou até entre a omissão de pronúncia (quanto a alguma questão ou pretensão) e a falta de resposta a algum argumento de entre os que são convocados pelas partes – cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, op. cit., pág. 737.
Quanto à omissão de pronúncia sobre questões suscitadas ou sobre pretensão deduzida, tem-se entendido que o dever de decidir tem por referência as questões suscitadas e bem assim as de conhecimento oficioso, mas tal não exige que se apreciem todos os argumentos (que são coisa diversa de “questões”).
O juiz deve conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, nos termos do art.º  608º, n.º 2 do CPC, o que não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias soluções plausíveis de direito para a solução do litígio, tenham sido deduzidos pelas parte ou possam ter sido inicialmente admitidos pelo juiz – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, volume 2º, 3ª edição, pp. 713 e 737.
No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-11-2005, processo n.º 05S2137 esclarece-se que:
“[…] a nulidade da sentença por omissão ou por excesso de pronúncia, resulta da violação do disposto no n.º 2 do art.º  660.º do CPC, nos termos do qual "[o] juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras" e "[n]ão pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras". É a violação daquele dever que torna nula a sentença e tal consequência justifica-se plenamente, uma vez que a omissão de pronúncia se traduz, ao fim e ao cabo, em denegação de justiça e o excesso de pronúncia na violação do princípio dispositivo que contende com a liberdade e autonomia das partes. Todavia, como já dizia A. Reis, há que não confundir questões suscitadas pelas partes com motivos ou argumentos por elas invocados para fazerem valer as suas pretensões. "São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. […] não pode falar-se em omissão de pronúncia quando o tribunal, ao apreciar a questão que lhe foi colocada, não toma em consideração um qualquer argumento alegado pelas partes no sentido de procedência ou improcedência da acção. O que importa é que o julgador conheça de todas as questões que lhe foram colocadas, excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras.”
Tendo presente este entendimento do que são questões a apreciar, há ainda que considerar que o facto material é um elemento para a solução da questão; não é a própria questão. Assim, “[…] o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido nos termos do artigo 5.º, n.º 1 e 2, do CPC, não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC. Reconduzem-se antes a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC. Segundo o ensinamento de Alberto dos Reis: «(…) quando o juiz tome conhecimento de factos de que não pode servir-se, por não terem sido, por exemplo, articulados ou alegados pelas partes (art.º 664.º), não comete necessariamente a nulidade da 2.ª parte do art.º 668.º. Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão.” – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23-03-2017, processo n.º 7095/10.7TBMTS.P1.S1.
A apelante vem invocar, precisamente, a falta de consideração de factos que entende terem sido alegados e estarem demonstrados e que não foram atendidos pelo tribunal recorrido, o que reconduz incorrectamente à figura da nulidade da sentença por omissão de pronúncia.
Aderindo ao entendimento supra exposto, a verificar-se que o tribunal, indevidamente, não considerou tais factos, estar-se-á perante um erro de julgamento, passível de ser superado em sede de impugnação da decisão da matéria de facto ou por iniciativa da Relação, nos termos do art.º 662º do CPC, mas não corporiza uma omissão de pronúncia que afecte a decisão proferida do vício de nulidade.
Por outro lado, a recorrente torna a mencionar o facto de a decisão recorrida a ter condenado a praticar os actos necessários à autorização de transferência da totalidade dos valores existentes nas contas bancárias, o que extravasa o valor fixado à causa, que foi o de 96 616,71 €, enquadrando essa circunstância no vício de contradição entre os fundamentos e a decisão e, simultaneamente, convocando a verificação de uma condenação superior ao pedido.
A oposição entre os fundamentos e a decisão corresponde a “uma «construção viciosa», ou seja, […] um vício lógico da sentença: o juiz elegeu deliberadamente determinada fundamentação e seguiu um determinado raciocínio para extrair uma dada conclusão; só que esses fundamentos conduziriam logicamente, não ao resultado expresso na decisão, mas a um resultado oposto a esse, isto é, existe contradição entre os fundamentos e a decisão (por ex., toda a lógica fundamentadora da sentença apontaria para a condenação do réu no pagamento da dívida reclamada pelo autor, mas o juiz, na sentença, decreta, de modo contraditório, a absolvição do réu do pedido). Não se trata de um qualquer simples erro material (em que o juiz escreveu coisa diversa da pretendia – contradição ou oposição aparente) mas de um erro lógico-discursivo em termos da obtenção de um determinado resultado – contradição ou oposição real. O que não se confunde, também, com o chamado erro de julgamento, isto é, com a errada subsunção da hipótese concreta na correspondente fattispecie ou previsão normativa abstracta, vício este só sindicável em sede de recurso jurisdicional.” – cf. Francisco Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Volume II, 2015, pp. 370-371.
Ora, a admitir-se que a decisão recorrida, ao condenar a ré na prática dos actos e na assinatura de todos os documentos exigidos pelas instituições bancárias para que aquela deixe de ser titular das contas ou assinar autorização de transferência da totalidade dos valores nelas existentes para outra conta bancária, extravasaria o âmbito da causa de pedir e do pedido formulados na acção, nunca se estaria perante uma decisão que, por si só, surgiria em sentido contrário à fundamentação aduzida – aliás, nem sequer expressamente convocada -, mas antes perante uma eventual condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido, o que integra a nulidade prevista na alínea d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, que não a da alínea c) do referido normativo legal.
Todavia, retomando os argumentos acima expendidos a propósito da legalidade do despacho de fixação do objecto do litígio e enunciação dos temas de prova, tendo em conta que os factos atinentes às aplicações financeiras foram expressamente alegados pelos autores e concretizado o respectivo valor, para além de se ter concluído que, subjacente à pretensão de restituição de todos os valores retirados das contas bancárias e, bem assim, daqueles que viessem a ser retirados das aplicações financeiras, figura um pedido implícito de reconhecimento da titularidade do direito a tais valores, há que concluir que a decisão recorrida, ao reconhecer que os valores relativos às aplicações financeiras associadas às contas bancárias em discussão nos autos eram propriedade exclusiva de CT e que a ré deve actuar no sentido de ser autorizada a transferência de todos esses valores para os autores, herdeiros daqueles, não extravasou o âmbito do pedido e da causa de pedir, pelo que não se verifica a nulidade apontada.
Improcede, assim, a arguição de nulidades da decisão recorrida.
*
3.2.3. Da Impugnação da decisão sobre a matéria de facto
Estabelece o art.º 662º n.º 1 do CPC que a Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos por assentes, a prova produzida ou um documento superveniente, impuserem decisão diversa.
Ao assim dispor, pretendeu o legislador que a Relação fizesse novo julgamento da matéria de facto, fosse à procura da sua própria convicção e, assim, se assegurasse o duplo grau de jurisdição em relação à matéria de facto – cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6-12-2016, processo n.º 437/11.0TBBGC.G1.S1.
Dispõe o art.º 640º, n.º 1 do CPC:
“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”
À luz do normativo transcrito afere-se que, em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
Fundando-se a impugnação em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados (existem três tipos de meios de prova: os que constam do próprio processo – documentos ou confissões reduzidas a escrito -; os que nele ficaram registados por escrito – depoimentos antecipadamente prestados ou prestados por carta, mas que não foi possível gravar -; os que foram oralmente produzidos perante o tribunal ou por carta e que ficaram gravados em sistema áudio ou vídeo), o recorrente deve especificar, na motivação, aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
O recorrente deve consignar, na motivação do recurso, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, o que se exige no contexto do ónus de alegação, de modo a evitar a interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente.
De notar que a exigência de síntese final exerce a função de confrontar o recorrido com o ónus de contra-alegação, no exercício do contraditório, evitando a formação de dúvidas sobre o que realmente pretende o recorrente – cf. António Abrantes Geraldes, op. cit. pág. 201, nota 345.
No acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 24-05-2016, processo n. 1393/08.7YXLSB.L1-7 refere-se:
“É ao impugnante que cumpre convencer o Tribunal de recurso que a primeira instância violou as regras de direito probatório aquando da apreciação dos meios de prova. Não basta uma mera contraposição de meios de prova (ainda que não constantes dos indicados na fundamentação do tribunal): é necessário que a parte que recorre proceda, ela própria, a uma análise crítica da apreciação do tribunal a quo, demonstrando em que pontos o Tribunal se afastou do juízo imposto pelas regras legais, dos princípios, das regras da racionalidade e da lógica ou da experiência comum.”
A recorrente convoca para reapreciação os factos vertidos nos pontos 4., 5., 8. e 11., 9. e 10. e 16. dos factos provados e C) a F) dos factos não provados, indicando a prova em que assenta a sua convicção de que tais factos devem obter diferente redacção ou não se encontram provados, pelo que se passa à apreciação da matéria de facto impugnada.
Pontos 4., 5., 8. e 11. dos factos provados e alíneas C) a F) dos factos não provados
O Tribunal recorrido deu como provado o seguinte:
4. CT era titular, entre outros bens, de três contas bancárias: duas abertas junto do “Novo Banco, SA” com os números 000137455306 (conta à ordem) e 000138337036 (conta poupança).
5. E outra conta aberta junto do “Banco Bankinter, SA” com o número 500/202502313.
8. As três contas bancárias acima referidas tinham como co-titular a irmã do falecido, a ora ré NT, exclusivamente para efeitos de movimentação das mesmas caso CT, por qualquer motivo, não pudesse movimentá-las.
11. Todo o dinheiro e aplicações financeiras que existiam e existem nas três contas bancárias acima identificadas em 4. e 5. pertenciam exclusivamente ao falecido CT.
E como não provados, os seguintes factos:
C - Que ainda em vida dos seus pais e após a morte deles CT ficou a gerir todas as finanças da família, com o acordo e confiança da R., sendo por isso que tinham contas solidárias entre si.
D - Que as contas em discussão na petição - do Novo Banco e do Bankinter - foram abertas, no mesmo acto, pela R. e pelo seu irmão CT a partir de contas comuns e através de movimentação de fundos comuns, sendo essa a proveniência dos fundos nelas depositados, bem como pelo concurso de ambos para a obtenção e partilha de recursos.
E - Que o valor devolvido pela R. aos AA. relativamente às contas do “Novo Banco, SA” tenha excedido o valor correspondente a metade em consequência da perturbação emocional causada à R..
F - Que o falecido CT tenha manifestado a intenção de dar à ora R., sua irmã, metade dos valores depositados nas contas bancárias identificadas em 4 e 5 e das aplicações e investimentos associados a essas contas.
O que fundamentou do seguinte modo:
“Na ponderação e análise da prova pessoal produzida teve-se em consideração que de todos os inquiridos apenas a testemunha AT e a R. (ouvida em depoimento de parte) se revelaram detentoras de conhecimentos profundos e esclarecedores acerca dos factos relevantes.
A R. pela óbvia razão de, sendo parte e irmã do falecido CT, ter conhecimento directo dos factos, e muito embora do seu depoimento de parte não tenha resultado confissão a mesma veio a reconhecer factos que lhe são desfavoráveis – como adiante melhor explicitaremos – valendo como elemento probatório que o Tribunal apreciou (cfr. art.º 361º CCivil).
Já AT foi casada com CT durante 36 anos e com ele e com a R., sua irmã, se relacionou desde a juventude, ainda antes do namoro com o falecido por os pais de ambos terem casas de veraneio na Costa da Caparica; e depois do divórcio, ocorrido em 2013, manteve relações de amizade com o falecido, com o qual ainda teve um período de reconciliação conjugal e do qual se manteve próxima até ao falecimento.
Por isso esta testemunha tem intenso conhecimento dos factos, do seu contexto, e das circunstâncias familiares. E, a despeito de ser mãe dos AA., apresentou depoimento escorreito, lógico e congruente, explícito e detalhado, que se revelou autêntico, genuíno e sincero.
Já quanto às restantes testemunhas, AC, que pouco conhecimento tinha do falecido CT e da R., revelou conhecimento circunscrito a uma concreta realidade: sendo o mesmo funcionário do “Bankiter” coordena equipa de profissionais externos, prestadores de serviços, que angariam clientes, dessa equipa fazendo parte uma colaboradora que angariou CT como cliente. A testemunha esteve apenas 3 vezes pessoalmente com o Eng.º CT, uma delas, estando este sozinho, aquela em que a testemunha fez a apresentação institucional do Banco e deu origem à abertura da conta em causa nos autos; outra, um encontro fortuito numa pastelaria; a última delas, uma reunião em casa do Eng.º CT relacionada com o uso do homebanking, altura em que a testemunha conheceu a R. e apenas se cumprimentaram, tendo-se tratado de reunião apenas com CT (mais tarde voltou a estar com a R., que o visitou no Banco por razões pessoas dela, não relacionadas com a conta em causa nos autos).
Como se vê, desse depoimento extrai-se com utilidade para a discussão, e apenas instrumental, que foi o Eng.º CT que foi angariando como cliente para o Banco, foi ao Eng.º CT sozinho que foi feita a apresentação institucional do Banco que originou a abertura da conta, e na reunião havida em casa daquele, apesar de aí se encontrar a R. e de a reunião versar sobre a utilização do homebanking, apenas o Eng.º CT nela interveio.
MR foi empregada doméstica do casal CT e AT e depois do divórcio continuou a ser empregada de ambos (também já trabalhou para o A. A e trabalha para a A. B).
Relevantemente revelou que quando o Eng.º CT estava mais doente a R. frequentava mais assiduamente a casa do irmão ajudando-o, nomeadamente em assuntos de organização doméstica e idas ao médico, dormiu lá algumas vezes quando aquele estava pior, mas nunca ali viveu.
Também AT prestava auxílio a CT.
Quando eram efectuadas compras destinadas a ambos, pagavam-nas a meias; e das 2 ou 3 vezes em que a R. lhe deixou envelopes com a retribuição fê-lo quando o Eng.º CT estava internado e a mando do mesmo, que telefonicamente avisou MR de que tal aconteceria.
HN, prima direita da R. e do falecido CT, disse que na juventude eram primos próximos, até porque moravam na mesma zona da cidade. Depois houve inevitável afastamento, fruto do desenvolvimento das suas vidas, mas foram sempre mantendo contacto embora nos últimos anos se tenha tornado mais próxima da prima.
Sabe o que a prima lhe vem contando, e pouco foi, especialmente acerca do apoio que a R. deu ao irmão no final de vida deste. E nada de concreto revelou saber acerca das contas bancárias em causa, nem da origem dos montantes existentes nas mesmas.
António de Sousa Nunes teve relação profissional directa com a R. durante cerca de 30 anos que depois de tornou relação de amizade, e por vezes contactam. Sabe pela R. das angústias que viveu com a doença do irmão e do apoio que lhe deu. Mas nada sabe sobre as contas em causa nos autos, quem eram os seus titulares, que valores tinham, de onde vinham, etc.
Ficamos assim especialmente reconduzidos ao depoimento testemunhal de AT e ao depoimento de parte da R..
[…]
Também os factos 4 e 5 mereceram o acordo das partes, sendo que o facto 4 resulta ainda do doc. 2 da petição e o facto 5 do doc. 3 da petição. […]
Os factos 8 e 9 fundam-se no depoimento de AT, e para o facto 9 atendeu-se também ao depoimento de parte da R. e à lógica, porquanto o facto vertido em 9 é coerente com a circunstância de durante o casamento de AT com o falecido também ela ter sido co-titular de uma conta bancária da cunhada (cfr. depoimento de AT), de apenas após o divórcio de CT a R. se ter tornado co-titular das contas do mesmo (cfr. depoimento de AT e depoimento de parte da R.), e de ainda na pendência da acção, e apesar do litígio entre as partes, os AA. continuarem a ser co-titulares de conta bancária da R., sua tia: a saber, a conta do “Novo Banco”, provinda do “BES”, com o nº 044006530003, a que ambas as partes fazem referências nos autos e cuja múltipla titularidade ressalta do doc. 4 da petição (a fls. 33-34); elementos estes que também fundamentam o facto 10.
Para o facto provado 11 e não provado D teve-se presente que apesar de em vários passos do seu intrincado e confuso depoimento de parte a R. ter pretendido assinalar que eram de ambos os irmãos os capitais existentes nas contas do “Novo Banco, SA” nºs 000137455306 e 000138337036 e na conta do “Banco Bankinter, SA” nº 500/202502313, escalpelizado o seu depoimento se verifica ter a mesma referido que (1) foi após o divórcio do irmão - que ocorreu em 2013 - que se tornou co-titular das contas deste, reportando-se necessariamente às contas do Novo Banco, já que a do Bankinter apenas foi aberta em 30/09/2020 (cfr. doc. 1 junto com o requerimento dos AA. refª 44933859); que (2) as contas pré-existentes do irmão tinham capitais provenientes do trabalho do mesmo - o que é consentâneo com o depoimento de AT, a qual referiu que aquando do divórcio os fundos existentes nas contas bancárias do casal eram provenientes do trabalho e de poupanças de ambos, que nessas contas não havia fundos da R. nem de qualquer herança dos pais, mais tendo dito que aquando do divórcio dividiram a meias o dinheiro nelas existente; e referiu ainda a R. (3) não saber concretamente com que dinheiro foi aberta a conta do “Novo Banco” (necessariamente se referindo á conta á ordem, já que a conta poupança está associada àquela), mas pensar que proveio de uma conta do “Millenium BCP” da qual ela era apenas procuradora e na qual não havia dinheiro seu.
Logo, quando a R. se tornou co-titular das contas bancárias abertas pelo irmão no “Novo Banco” os capitais aí existentes eram exclusivamente dele.
Por outro lado, do seu depoimento de parte resulta ainda que (1) a R. nunca se envolveu em negócios, designadamente nunca interveio nem teve interesses nos do irmão; (2) os rendimentos da R. foram sempre exclusivamente provenientes do seu trabalho e posteriormente da sua reforma; (3) esses rendimentos foram sempre depositados na conta do antigo “BES” de que ela é 1ª titular, ou seja, a conta nº 044006530003 do “Novo Banco”, que não está em discussão nos autos.
Assim, se todos os seus rendimentos foram sempre depositados naquela conta nº 044006530003 do “Novo Banco”, não podem de forma alguma ter alimentado as contas do “Novo Banco, SA” nºs 000137455306 e 000138337036 nem a conta do “Banco Bankinter, SA” nº 500/202502313, que estão efectivamente em discussão.
E essa conta do “Banco Bankinter, SA” nº 500/202502313 foi aberta em 30/09/2020 apenas por CTe da sua única titularidade, como se vê do doc. 1 junto com o requerimento dos AA. refª 44933859, tendo havido alteração para introdução da R. como 2ª titular apenas em 23/11/2020 (cfr. doc. pela R. com refª 44831243).
E nos dias 07/10/2020 e 09/10/2020 – antes portanto, de a R. se ter tornado 2ª titular dessa conta – foram nela depositados cheques no montante de € 250.000,00 provenientes da conta do Novo Banco nº 000137455306 (cfr. análise conjugada do doc. 5 junto pela R. com reqtº refª 45747767 e doc. 2 junto pelos AA. sob refª 44933859), de aquele logo utilizou € 150.000,00 para subscrição de fundos de investimento associados à mesma conta (cfr. doc. 2 junto pelos AA. sob refª 44933859).
De outra banda, do 2º extracto bancário que integra o doc. 2 doc. junto pelos AA. sob refª 449338592, se constata que em 29/03/2021 foi efectuada para aquela conta uma transferência de € 200.000,00 provinda da “Magnoleme, Ldª”, sociedade de que era sócio e gerente CT, como ficou patente do depoimento de AT e do depoimento de parte da R., certo ter esta referido expressamente que nada tinha que ver com os negócios do irmão, nada investiu neles, e, por conseguinte, não participava nos respectivos lucros.
Portanto, a conjugação e análise dos elementos acabados de mencionar permite afirmar que todo o dinheiro e aplicações financeiras existentes nas três contas bancárias pertenciam exclusivamente ao falecido CT e não provieram de quaisquer contas ou fundos comuns com a R. sua irmã, nem de qualquer concurso de ambos na obtenção e partilha de recursos. Tal como permite ainda concluir que nenhuma das contas foi aberta, no mesmo acto, pela R. e pelo seu irmão CT […]
O facto C não resultou provado por total ausência de prova a seu respeito, certo que para o seu segmento final se tiveram presentes os fundamentos que sustentam os factos 8 e 9.
Também quanto aos factos E e F nenhuma prova foi feita a respeito dos mesmos, sendo que o facto F seria logicamente inconciliável com a motivação que presidiu à co-titularidade da 2ª R. nas contas do irmão (cfr. facto 8).”
Relativamente a estes factos a recorrente começa por se insurgir contra a circunstância de não ter sido dado como provado que o falecido CT era ainda titular de uma conta bancária junto do Millennium BCP, relativamente à qual aquela figurava como procuradora, o que estaria demonstrado pelos documentos 8 e 9 juntos com a petição inicial e procuração junta com o requerimento de 16 de Abril de 2023, facto que entende ter relevância por provar que o falecido, quando pretendia que alguém tivesse poderes de movimentação da conta, conferia-lhe procuração para o efeito, pelo que a contitularidade revela que o objectivo não era o de conferir poderes para movimentação, mas sim que os valores depositados eram de propriedade comum.
Mais refere o seguinte:
=> Se tais quantias pertencessem apenas ao falecido CT este teria co-titulado as contas com os filhos, ora autores, por serem pessoas muito mais novas e seus herdeiros;
=> A sentença omite que a apelante fez depósitos na conta do Novo Banco n.º 000137455306 e que foi por débito dessa conta que adquiriu um veículo automóvel, o que revela que os montantes ali existentes também são seus;
=> Os negócios que diziam unicamente respeito ao falecido eram financiados a partir da conta titulada apenas por este junto do Millennium BCP:
=> O falecido passou a gerir o património familiar após o óbito do seu pai, ou seja, os fundos comuns, reconhecendo a irmã, a ora ré, como sua titular, ao abrir contas solidárias, conforme retira do depoimento das testemunhas MR e HN;
=> A declaração prestada pelos autores junto da Autoridade Tributária, onde referem apenas metade dos valores depositados e das aplicações feitas equivale a uma confissão extrajudicial no sentido de que a outra metade pertence à ré, até porque a declaração é posterior à mensagem de correio electrónico desta, de 19 de Julho de 2021, onde afirma que metade desses valores lhe pertence;
=> A testemunha AT não soube identificar nenhuma das contas bancárias em que teria sido co-titular com o falecido e desconhecia as contas deste com a ré e a sociedade por ele detida;
=> Não tendo a ré participado na reunião com a testemunha AC, em que este explicou como utilizar o homebanking, significa que a finalidade da sua inclusão na conta não foi a da sua movimentação.
Pretende, assim, a apelante que o ponto 8. passe a ter a seguinte redacção: “As três contas bancárias referidas em 4. e 5. tinham como co-titular a irmã do falecido, existindo ainda uma conta bancária junto do Millennium BCP em que o irmão da ré, CT, era titular único, tendo aquela apenas poderes de movimentação por via de uma procuração emitida para o efeito”, dando-se como não provado o restante segmento do ponto 8. e o ponto 11. e como provado o vertido nas alíneas C), D), E) a F) dos factos não provados com a redacção que propõe.
Os autores/recorridos sustentam que a conta bancária existente no Millennium BCP não tinha que ser considerada porque já não existia à data do óbito de CT, importando apenas aferir a titularidade dos fundos existentes nas contas identificadas; mais referem que as declarações da ré revelam a inconsistência da sua versão, sendo que nenhuns fundos advenientes dos pais desta e do falecido existiam nas referidas contas ou eram geridos por CT, tanto mais que aqueles faleceram em 1982 e 2004 e até 2013 nunca existiram contas comuns de CT e da ré, além do que nunca foram abertas contas comuns, mas apenas esta última foi acrescentada como titular; argumentam também que as declarações emitidas pelos bancos apenas mencionam a titularidade formalmente existente e o facto de referirem apenas metade dos valores nada tem que ver com uma eventual admissão de que o pai era apenas proprietário dessa metade; os depósitos verificados na conta do Novo Banco destinaram-se apenas a restituir ao falecido CT o valor por este transferido para pagamento do preço da aquisição do veículo automóvel pela ré e não como reforço da conta em causa.
Procedeu-se à audição integral do depoimento de parte e prova testemunhal produzida na audiência de julgamento, sendo que a conjugação de tais depoimentos com os elementos documentais carreados para os autos, não obstante a argumentação aduzida pela apelante, não permite infirmar aquele que foi o juízo probatório formulado pela 1ª instância, o qual se encontra cabalmente justificado, não se aferindo razões para divergir daquela que foi a convicção alcançada.
Relativamente aos factos vertidos nos pontos 4. e 5., ainda que anunciados como sendo objecto da impugnação dirigida pela ré à decisão sobre a matéria de facto, na verdade, nenhum pedido de alteração da sua redacção é formulado a final, para além do que resultam, como se refere na decisão recorrida, da admissão das partes quanto à existência das três contas bancárias ali identificadas, tal como é suportado pelos documentos n.ºs 2 e 3 juntos com a petição inicial[8], que correspondem, respectivamente, ao extracto bancário emitido pelo Novo Banco relativamente aos valores existentes nas contas identificadas no ponto 4., por referência à data de 30 de Junho de 2021[9] e ao extracto atinente à conta identificada no ponto 5., com referência ao período de 1 a 30 de Junho de 2021, neles se mencionando os depósitos e investimentos existentes.
Assim, nada há a censurar na redacção dos pontos 4. e 5. dos factos provados, que se mantêm inalterados.
No que diz respeito à inclusão no ponto 8. da menção à existência de uma conta bancária titulada pelo falecido CT junto do Millennium BCP, importa notar, desde logo, que esta conta não está em discussão nos autos, nem os autores a ela se referem na sua petição inicial como existente e aprovisionada à data do óbito do seu pai ou a valores que dela tenham sido retirados pela ré, pois que foi apenas referida nos artigos 24º a 28º da petição inicial para justificar que sobre ela foram emitidos cheques, apenas pelo falecido CT, para pagamento do preço de aquisição, por este, de uma quota na sociedade “O Retiro dos Leitões, Unipessoal, Lda.” e de uma fracção autónoma e pagamento de despesas, conforme consta mencionado na cláusula Terceira do contrato de divisão e cessão de quota (documento n.º 8) e se afere dos documentos que constituem o n.º 9, ambos juntos com a petição inicial, e assim reforçar que também nessa conta a ré não possuía fundos, não tendo tido qualquer intervenção nesses negócios.
Ora, o art.º 552º do CPC, nas alíneas d) e e) do respectivo n.º 2, impõe ao autor, no âmbito do processo comum de declaração, o ónus de expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir e as razões de direito que servem de fundamento à acção e o de formular o pedido.
Apesar do que acima se aludiu a propósito do princípio do dispositivo e da maior flexibilidade e de reforço de determinadas vertentes do inquisitório, estabelecidos quanto ao ónus de alegação de factos substantivamente relevantes, seguro é que a iniciativa do processo e a conformação essencial do respectivo objecto incumbem e continuam a incumbir às partes, sendo o autor quem tem o ónus de delimitar adequadamente o thema decidendum, formulando o respectivo pedido e definindo o núcleo essencial da causa de pedir em que assenta a pretensão deduzida – cf. neste sentido, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7-04-2016, processo n.º 842/10.9TBPNF.P2.S1.
Quem dirige uma pretensão ao Tribunal tem de expor a situação de facto com base na qual se afirma a titularidade do direito que pretende ver tutelado. É a causa de pedir, entendida como “o facto jurídico de que procede a pretensão deduzida”, que assume uma função individualizadora do pedido e, como tal, do objecto do processo – cf. art.º 581º, n.º 4 do CPC.
A causa de pedir, independentemente do entendimento que se perfilhe acerca dos factos que a integram (nomeadamente se abrange todos os necessários à procedência da acção ou apenas aqueles que se reconduzam aos elementos essenciais de um determinado tipo legal), cumpre sempre uma função individualizadora do pedido e, portanto, do objecto do processo. Por isso, há-de conter, pelo menos, os factos pertinentes à causa e que sejam indispensáveis para a solução que o autor quer obter: os factos necessários e suficientes para justificar o pedido – cf. José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, volume II, 3ª edição, 1981, pág. 351.
O art.º 5º, n.º 1 do CPC impõe às partes o ónus de alegar os factos essenciais que constituem a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas, ou seja, quanto aos primeiros, devem ser alegados os factos essenciais à procedência do pedido, aqueles que são constitutivos do direito do autor.
Distingue-se, dentro dos factos integradores da procedência do pedido, o núcleo essencial, constituído pelos factos principais, ou seja, os elementos típicos do direito que se pretende fazer valer, e os factos acessórios ou complementares, aqueles que concretizam ou qualificam os primeiros, conforme previsto na norma de procedência (processualmente, são aqueles que integram a causa de pedir mas não individualizam a causa nem a sua omissão determina a ineptidão da petição), sendo, como aqueles, decisivos para a viabilidade ou procedência da acção/reconvenção/defesa por excepção.
Distintos dos factos principais e dos complementares, são os factos instrumentais, que não integram a causa de pedir, ou seja, são factos indiciários ou presuntivos dos factos integrantes da causa de pedir, são meros factos probatórios, que, como tal, estão fora do ónus de alegação – cf. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, pp. 48-54.
De acordo com o estatuído na alínea b) do n.º 2 do art.º 5º do CPC, o juiz deve considerar os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar.
Significa isto, no entender de Rui Pinto, que, não podendo as partes dar como certo que o tribunal trará para o processo os factos complementares, que não deixam de ser factos constitutivos do direito alegado (e como tal sujeitos ao ónus da prova), aquelas têm o ónus de alegar, para além dos factos principais, os factos complementares, sem prejuízo de estes poderem surgir ao longo da instrução da causa – cf. op. cit., pág. 56.
Diversamente, António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa sustentam que a consideração dos factos complementares ou concretizadores em resultado da instrução tem agora natureza oficiosa, não sendo exigida a concordância da parte para a sua atendibilidade, mas sempre com a exigência de que sobre eles seja garantido o exercício do contraditório, o que passa, designadamente, pelo anúncio às partes pelo juiz, antes do encerramento da audiência, que está a equacionar utilizar esse mecanismo de ampliação da matéria de facto (com a possibilidade de requererem a produção de novos meios de prova) – cf. op. cit., pp. 28- 29; em sentido diverso, José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1ª, 3ª edição, pp. 17-18, onde se reconhece a possibilidade de qualquer uma das partes manifestar-se no sentido de integrar o facto na matéria da causa, não sendo de dispensar uma atitude positiva das partes nesse sentido, atento o princípio do dispositivo que emana do n.º 1 do art.º  5º do CPC.
É assim que na enunciação dos factos provados e não provados o juiz terá de efectuar “uma pronúncia (positiva, negativa, restritiva ou explicativa) sobre os factos essenciais (nucleares) que foram alegados para sustentar a causa de pedir ou para fundar as excepções, e de outros factos, também essenciais, ainda que de natureza complementar que, de acordo com o tipo legal, se revelem necessários para que a acção ou a exceção proceda.” – cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipes Pires de Sousa, op. cit., pág. 719.
Já os factos instrumentais não integram a causa de pedir, são meramente factos indiciários ou presuntivos de factos integrantes da causa de pedir, ou seja, factos meramente probatórios, que, resultando da instrução da causa, podem ser considerados oficiosamente pelo juiz, não sendo imprescindível a sua alegação, podendo ser livremente averiguados e discutidos na audiência final em torno da produção e valoração dos meios de prova e no confronto com os temas da prova enunciados, sendo que sobre eles não tem de existir necessariamente uma pronúncia judicial, posto que sirvam apenas de apoio à formação da convicção acerca da restante factualidade, bastando para tal que sejam enunciados na motivação da sentença – cf. António Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipes Pires de Sousa, op. cit., pág. 29.
Como tal, a introdução da menção nos presentes autos à conta que o falecido CT mantinha junto do Millennium BCP, que não subsistiria à data do seu óbito, surge apenas enquanto enquadramento ou demonstração de que, já então, os fundos nela existentes, seriam próprios e exclusivos daquele, pois que era ele quem, por si só, emitia os cheques, efectuava o pagamento de despesas e ordenava transferências, sem intervenção da ré, pelo que se trata de mero facto instrumental que, na economia do objecto processual aqui em causa, não exige a sua inclusão no elenco da matéria de facto provada ou não provada.
Por outro lado, a pronúncia efectuada pela ré na sua contestação a propósito da conta do Millennium BCP visou, é certo, demonstrar que tanto essa conta como as existentes junto do Novo Banco e Bankinter aqui em discussão, foram abertas pelo irmão através de “fluxos cruzados a partir de contas comuns e através de movimentação de fundos comuns” (cf. artigo 53º da contestação) e que os fundos nestas depositados eram pertença quer de CT, quer da ré, em termos iguais.
Sucede que a titularidade dos fundos depositados na conta junto do Millennium BCP, pela circunstância de a ré aí não figurar como co-titular, mas apenas possuir uma procuração para a respectiva movimentação, não serve os seus propósitos, que, diversamente, em sede de contestação, alegou ter aquela sido aberta pelo irmão, com fundos comuns, para, posteriormente, e em sentido contrário, vir aos autos explicar que, afinal, apenas dispunha de uma procuração emitida pelo seu irmão a seu favor para a sua movimentação, pretendendo agora convencer que isso revela um desiderato que é distinto do que se deve intuir da sua inclusão como co-titular nas contas junto do Novo Banco e Bankinter. De todo o modo, mesmo a admitir-se esta modificação de sentido, está em causa um ponto com natureza de facto instrumental, meramente probatório, com vista a tentar convencer da titularidade dos fundos por via dessa realidade que é apenas marginal ao que se discute nos autos.
Note-se que não foi junta ao processo a ficha de assinaturas relativamente à abertura de conta junto do Millennium BCP[10], mas apenas a procuração em referência, com data de 3 de Março de 2015, mediante a qual CT, já divorciado, constituiu a ré sua procuradora, conferindo-lhe poderes para movimentar, a crédito e a débito, a conta n.º 45441512886[11].
Não obstante a demonstração deste facto, em conformidade com o acima aduzido, crê-se que a sua utilidade será a de enquadrar o relacionamento bancário existente entre o falecido CT e a sua irmã, mas não surge como facto essencial ou complementar da causa de pedir que suporta os pedidos deduzidos pelos autores, tanto mais que a conta existente junto do Millennium BCP não figura entre aquelas que evidenciavam valores na titularidade de CT. à data do seu óbito, conforme se afere pela declaração de imposto de selo relativo a participação de transmissões gratuitas, apresentada pelo autor junto da Autoridade Tributária – cf. documento junto com o requerimento de 25 de Janeiro de 2023, com a Ref. Elect. 34848512.
Além disso, a prova testemunhal produzida é manifestamente insuficiente para concluir que a conta existente no Millennium BCP possuía fundos comuns à ré e ao irmão falecido, advenientes de eventual património comum deixado pelos pais de ambos, tendo a própria ré sido claramente contraditória nas afirmações que fez a esse propósito, pois que tanto admitiu que o dinheiro existente nas contas de que se tornou titular e em que era procuradora era proveniente do irmão e do casal que este formou com a ex-mulher, a testemunha AT, como afirmou que a conta do Millennium BCP teria sido nova, e que teria dinheiro proveniente de contas anteriores e que ambos tinham juntos há anos, gerando uma confusão sobre a que contas se reportava, tanto referindo tê-las aberto com o irmão, como depois reconhecendo que eram pré-existentes e de que se tornou titular e onde existia dinheiro do trabalho dele, do seu rendimento, vindo a esclarecer depois que a conta do Novo Banco terá sido aberta com dinheiro vindo da conta do Millennium BCP, em que apenas era procuradora e onde não entrou qualquer dinheiro seu – cf. gravação aos minutos 7.10 a 7.50; 10.20 e 58.40 e seguintes do seu depoimento.
Aliás, a propósito desta conta junto do Millennium BCP, a testemunha AT, mãe dos autores, ex-mulher do falecido CT, com quem esteve casada durante 36 anos, com quem se relacionou durante mais de 50 anos e de quem se divorciou em 2013, tendo depois tido um breve período de reconciliação em 2015, esclareceu, embora sem referir em concreto o número de conta, que foi também titular em contas junto dessa instituição durante muitos anos, no Santander e no Novo Banco e que nunca lá existiu nenhum dinheiro da herança dos sogros ou dinheiro decorrente de partilhas por óbito destes, sendo que durante o seu relacionamento com o falecido CT, este apenas teve contas tituladas consigo e com dinheiro de ambos, de onde saíam todos os valores para fazer face às despesas e que ao momento do divórcio e depois da separação subsequente à reconciliação efectuaram as divisões e não ficaram a movimentar as contas um do outro - cf. gravação do seu depoimento aos minutos 2.30 e seguintes; 5.10 e seguintes.
Não se vislumbra, assim, por um lado, utilidade na inclusão no ponto 8. dos factos provados da referência à conta que terá existido junto do Millennium BCP e em que a ré terá sido procuradora, precisamente em momento posterior ao divórcio do irmão, e, por outro, não se descortinam razões para divergir da convicção da 1ª instância quanto ao segundo segmento desse facto, no que diz respeito à circunstância de a ré ali figurar como co-titular, apenas para movimentação das contas, precisamente porque tal se destinou, tão-somente, a assegurar uma qualquer impossibilidade de movimentação por parte do referido CT e, bem assim, porque a ré nenhum dinheiro seu colocou nessas contas, seja adveniente de herança dos seus pais, seja decorrente da sua reforma, como bem resulta da fundamentação aduzida pelo tribunal recorrido a propósito dos factos descritos nos pontos 8. e 11. dos factos provados.
Atente-se que a testemunha AT foi muito clara ao afirmar que, segundo o conhecimento adquirido ao longo dos anos em que esteve casada com CT e segundo aquilo que este lhe transmitiu, iria colocar a irmã, ora ré, como sua co-titular nas contas “por uma questão de saúde, se acontecesse alguma coisa, tal e qual eu fiz com os meus filhos” – cf. minuto 7.15 e seguintes do seu depoimento.
Explicou, aliás, a razão de ser dessas preocupações, referindo ter passado a ser uma «norma» na família, após o seu pai ter sido acometido por doença numa noite e no dia seguinte já não poder assinar nada, pelo que se habituaram a ter contas tituladas entre si, na família, incluindo nas contas da ré, precisamente para poderem socorrer-se dos meios económicos para prosseguirem o dia-a-dia. Esclareceu também que, quando se separou, saiu da conta da ré e aí entraram os seus filhos, sobrinhos desta última, tendo sido muito clara ao afirmar que a ré não tinha capacidade para ser a titular de metade dos fundos existentes nas contas em discussão nos autos, atento o seu rendimento, que apenas advinha do seu salário e, depois, da sua reforma – cf. minuto 9.50 e seguintes do seu depoimento.
Ademais, nenhum dos argumentos invocados em sede de motivação do recurso, fracamente suportados em meios de prova - que se cingiram a depoimentos de testemunhas que manifestamente não revelaram especial conhecimento sobre a organização existente seja entre o pretérito casal CT e AT, seja, depois do divórcio, entre aquele e a irmã, ora recorrente -, se apresenta com valia suficiente para infirmar a convicção do tribunal recorrido ou a ponderação por este efectuada da prova carreada para os autos.
Já se viu que o facto de a irmã ter beneficiado de uma procuração para movimentar a conta que terá existido junto do Millennnium BCP titulada por CT surgiu numa altura – 2015 – em que, precisamente, como referiu AT, esta já se havia divorciado (em 2013) e no ano em que, após uma breve reconciliação, se tornou a separar daquele, pelo que nada mais revela para além de que foi esse o meio utilizado para permitir à irmã a movimentação da conta caso tal se revelasse necessário, certo que, como a própria reconheceu, nenhum dinheiro seu ali existia então.
Por outro lado, a circunstância de a opção subsequente ter sido de inclusão da ré como co-titular não revela, por si só, que esta é dona de quaisquer dos fundos nelas existentes, até, porque, como os elementos documentais revelam, as contas abertas junto do Novo Banco e do Bankinter foram-no inicialmente apenas por CT. e não simultaneamente por este e pela irmã, que apenas foi incluída mais tarde, como se afere da ficha de assinaturas correspondente e fichas de alteração, juntas com os requerimentos dos autores e da ré, respectivamente, de 7 de Março de 2023, 25 de Fevereiro de 2023 e 2 de Junho de 2023[12].
E ainda que não tenha sido esclarecida a razão por que, em 2013, na sequência do divórcio, a irmã ingressou como co-titular, quando relativamente à conta junto do Millennium BCP foi apenas passada procuração, certo é que a explicação cabal, credível e racional conferida pela testemunha AT é cristalina, pois que referiu que o ex-marido necessitava de ter um segundo nome na sua conta bancária e que para esse efeito se terá socorrido da irmã, na sequência da sua saída, desconhecendo por que razão foi efectuada essa opção ou por que não foram chamados os filhos, mas daí resultando que a razão de ser era a existência de outra pessoa que a pudesse movimentar e não um eventual reconhecimento de que os valores aí depositados ou aqueles que o viessem a ser posteriormente seriam comuns – cf. minuto 39.45 e seguintes do seu depoimento.
O facto de os filhos serem mais novos, previsivelmente com maior longevidade ou melhor saúde, em nada depõe, por si só, no sentido visado pela recorrente, qual seja, de que ali passaram a existir valores comuns aos dois titulares, valores que, aliás, não logrou demonstrar lá ter depositado.
Note-se que as passagens dos depoimentos das testemunhas MR, funcionária doméstica em casa dos autores, assim como na casa de CT., quer quando este era casado com AT, quer depois, desde há cerca de 14 anos e HN, prima da ré e do falecido, em nada corroboram a versão que a recorrente pretende fazer prevalecer quanto à titularidade comum dos fundos existentes nas contas bancárias, pois que a primeira arredou logo um dos argumentos utilizados pela ré, qual seja o de que após o divórcio do irmão e quando este adoeceu passou a viver em economia comum com ele, na sua casa, partilhando receitas e despesas, afirmando tal não ter sucedido, que a ré nunca morou lá em casa e que apenas existiram alguns períodos, quando o irmão estava pior, em que lá pernoitou, sendo as despesas sempre suportadas pelo falecido, incluindo a sua retribuição e a segunda, nenhum conhecimento concreto revelou sobre a organização e gestão das contas bancárias, aludindo genericamente a valores ou bens que teriam sido deixados pelos pais da ré e do irmão falecido e que teriam ficado no banco em que o pai era gerente (Banco Espírito Santo), mas apenas com referências genéricas, vagas, imprecisas e decorrentes de conversas mantidas com o primo, desconhecendo em absoluto de que conta se trataria - cf. minutos 2.50 e seguintes e 8.10 e seguintes da gravação dos respectivos depoimentos.
No que diz respeito à existência de depósitos efectuados pela ré na conta bancária junto do Novo Banco com o n.º 000137455306 e a partir da qual esta teria retirado fundos para proceder ao pagamento do preço de um veículo automóvel por si adquirido, trata-se de argumento que não colhe, porquanto, por um lado, os extractos bancários existentes nos autos revelam, efectivamente, a transferência de cerca de 7.000,00 € efectuada pela ré para a conta de CT, mas que surge na sequência da saída de valores que se destinaram a pagar o preço da aquisição de um veículo automóvel, como revelam os documentos juntos pelos autores com o requerimento de 14 de Junho de 2023[13], onde consta a troca de mensagens ocorrida entre o interlocutor junto da empresa Santogal P – Comércio e Reparação de Automóveis, S. A. e a ré C, para acertar o negócio da aquisição por esta de um veículo, valores de compra e de entrada e cópia dos cheques emitidos por CT, sacados sobre a aludida conta, que correspondem ao total da entrada e do preço (13 103,22 € por cheque e transferência no valor de 5.000,00 €, em 9 de Dezembro de 2020, num total de 18.103,22 €).
Por outro lado, todo o depoimento da ré se revelou inconsistente a propósito dos reforços que insistentemente afirmou efectuar naquela conta, como nas outras, advenientes da sua reforma, que, conforme acabou por admitir, era depositada, à partida, numa conta de que era a titular, afirmando que a sua única fonte de rendimento era, precisamente, a sua reforma, assim como nunca interveio nos negócios realizados pelo irmão, o que afasta quer a obtenção de lucro, quer outra fonte de aquisição de rendimentos – cf. minuto 53.12 e seguintes do seu depoimento.
Nesta matéria, não é, pois, invocado qualquer elemento de prova objectivo susceptível de abalar a convicção do tribunal recorrido, que ficou consignada do seguinte modo: “Por outro lado, do seu depoimento de parte resulta ainda que (1) a R. nunca se envolveu em negócios, designadamente nunca interveio nem teve interesses nos do irmão; (2) os rendimentos da R. foram sempre exclusivamente provenientes do seu trabalho e posteriormente da sua reforma; (3) esses rendimentos foram sempre depositados na conta do antigo “BES” de que ela é 1ª titular, ou seja, a conta nº 044006530003 do “Novo Banco”, que não está em discussão nos autos. Assim, se todos os seus rendimentos foram sempre depositados naquela conta nº 044006530003 do “Novo Banco”, não podem de forma alguma ter alimentado as contas do “Novo Banco, SA” nºs 000137455306 e 000138337036 nem a conta do “Banco Bankinter, SA” nº 500/202502313, que estão efectivamente em discussão. […] E nos dias 07/10/2020 e 09/10/2020 – antes portanto, de a R. se ter tornado 2ª titular dessa conta – foram nela depositados cheques no montante de € 250.000,00 provenientes da conta do Novo Banco nº 000137455306 (cfr. análise conjugada do doc. 5 junto pela R. com reqtº refª 45747767 e doc. 2 junto pelos AA. sob refª 44933859), de aquele logo utilizou € 150.000,00 para subscrição de fundos de investimento associados à mesma conta (cfr. doc. 2 junto pelos AA. sob refª 44933859). De outra banda, do 2º extracto bancário que integra o doc. 2 doc. junto pelos AA. sob refª 449338592, se constata que em 29/03/2021 foi efectuada para aquela conta uma transferência de € 200.000,00 provinda da “Magnoleme, Ldª”, sociedade de que era sócio e gerente CT., como ficou patente do depoimento de AT e do depoimento de parte da R., certo ter esta referido expressamente que nada tinha que ver com os negócios do irmão, nada investiu neles, e por conseguinte não participava nos respectivos lucros.”
Mas a apelante sustenta ainda que os autores, ao apresentarem a declaração perante a Autoridade Tributária, em 11 de Agosto de 2021, com alusão apenas à transmissão de metade dos valores depositados e das aplicações realizadas, emitiram uma declaração que equivale a uma confissão extrajudicial com força probatória plena, nos termos do art.º 358º, n.º 2 do Código Civil, sendo que, se se assumissem como titulares da totalidade dos valores, poderiam ter declarado os valores totais, o que não fizeram por reconhecer que ao pai cabia apenas metade desses montantes.
Quanto a isto, os autores/recorridos referem que as declarações emitidas pelos bancos mencionam a titularidade formalmente existente, que nada tem que ver com a propriedade dos fundos, pelo que o facto de ali apenas constar metade do valor existente, nada tem que ver com o admitirem que o pai apenas era proprietário dessa metade.
A natureza jurídica da confissão (meio de prova) tem sido discutida, referindo Pires de Lima e Antunes Varela, que deve ser tida como um acto jurídico (uma declaração de ciência), sujeita ao regime fixado no art.º  295º do Código Civil – cf. Código Civil Anotado, Volume II, 3ª Edição Revista e Actualizada, pág. 313; no mesmo sentido, António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I – Parte Geral, Tomo IV, 2007, pág. 490.
Corresponde ao “reconhecimento da realidade dum facto (passado, ou presente duradoiro) desfavorável ao declarante, isto é, dum facto constitutivo dum seu dever ou sujeição, extintivo ou impeditivo dum seu direito ou modificativo duma situação jurídica em sentido contrário ao seu interesse, ou, ao invés, a negação da realidade dum facto favorável ao declarante, isto é, dum facto constitutivo dum seu direito, extintivo ou impeditivo dum seu dever ou sujeição ou modificativo duma situação jurídica no sentido do seu interesse” – cf. José Lebre de Freitas, Código Civil Anotado, Volume I, 2ª Edição Revista e Actualizada, Ana Prata (Coord.), pág. 471.
A confissão judicial só tem o valor de prova plena quanto reduzida a escrito – cf. art.ºs 463º, n.º 1 do CPC e 358º, n.º 1 do Código Civil.
A confissão extrajudicial terá força probatória plena quando conste de documento, autêntico ou particular (subscrito pelo confitente), e seja feita à parte contrária ou a quem a represente – cf. art.º 358º, n.º 2 do Código Civil.
A confissão extrajudicial para gozar da força probatória plena deve ser dirigida à parte favorecida pela realidade do facto confessado, prescindindo-se, porém, da efectiva recepção pelo destinatário, ou seja, conforme sustenta o Professor Lebre de Freitas, é “uma declaração dirigida, mas não uma declaração recetícia” – cf. op. cit., pág. 478; em sentido diverso, José Alberto González, Código Civil Anotado, Volume I – Parte Geral, 2011, pág. 469.
Para além de tais pressupostos, é necessário que se verifiquem ainda os requisitos de capacidade e de legitimidade, previstos no art.º 353º do Código Civil.
A confissão que não seja escrita ou, sendo judicial, não seja reduzida a escrito, bem como a confissão extrajudicial a que falte o requisito da direcção à parte contrária, está sujeita à livre apreciação do julgador – cf. António Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado, I – Parte Geral, CIDP, pág. 1034.
Além disso, todas as modalidades de confissão extrajudicial não abrangidas pelo n.º 2 nem pelo n.º 3 do art.º  358º do Código Civil são apreciadas livremente pelo tribunal, tal como resulta do n.º 4 deste normativo legal, como sucede com a confissão não dirigida a pessoa alguma, a dirigida à parte contrária em documento escrito, incluindo o documento electrónico, a que falte algum requisito legal (art.º  366º do Código Civil) e a confissão verbal registada em reprodução mecânica – cf. Lebre de Freitas, op. cit., pág. 479.
Como é evidente, a participação de transmissões gratuitas efectuada junto da Autoridade Tributária[14] pelo autor, dando conta de que a quota-parte transmitida dos valores existentes junto das instituições bancárias era de ½, porque não dirigida à ré, não tem a virtualidade de representar uma confissão extrajudicial com força probatória plena, devendo apenas ser livremente apreciada pelo tribunal, como foi, pelo que não se detecta a violação de qualquer regra de direito probatório material, nem, por outro lado, tal declaração tem a virtualidade de imputar aos autores um qualquer reconhecimento sobre a limitação da titularidade do falecido pai a metade dos valores existentes.
Cumpre ainda referir que a pretensão da recorrente em dar como provado o facto vertido na alínea F) dos factos não provados com a redacção proposta de: “O propósito do falecido CT. foi o de reconhecer que a ré, sua irmã, era proprietária dos valores depositados nas contas bancárias identificadas em 4. e 5. e das aplicações e investimentos associados a essas contas, ainda que como donatária”, não é sustentada em qualquer meio de prova produzido nos autos, que aquela tão-pouco identifica, remetendo, singelamente, para aquilo que a própria alegou na sua contestação[15], já em sede de argumentação jurídica, pretendendo identificar na abertura de conta solidária uma doação manual de coisa móvel, acompanhada da entrega da coisa e da tradição e aceitação da donatária, o que, naturalmente, extravasa o âmbito da matéria de facto a elencar na decisão.
Por fim, diga-se que não se compreende a alegação da recorrente quanto a uma suposta violação do estatuído no art.º 463º, n.º 1 do CPC, porquanto a senhora juíza a quo consignou expressamente na fundamentação da decisão da matéria de facto – conforme consta da transcrição supra – que do depoimento prestado pela ré não resultou confissão, ainda que tenha referido factos que, conforme adiante explicitou, sendo-lhes desfavoráveis, auxiliaram na formação da convicção do tribunal recorrido, o corresponde a estrita observância do disposto no art.º 361º do Código Civil, dado que, não estando reunidos os requisitos para a eficácia probatória plena, a declaração de reconhecimento de factos desfavoráveis pode constituir meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador (donde, como é evidente, não se configura qualquer interpretação das normas em causa que contenda com qualquer princípio constitucionalmente consagrado e que, tão-pouco, a recorrente cuidou de concretizar).
Com efeito, no decurso do depoimento de parte esta pode afirmar a realidade de factos que tanto lhe podem ser favoráveis, como desfavoráveis, quanto à relação com os fundamentos da pretensão processual a que se reporta o depoimento.
Tal como já se vinha admitindo na vigência do Código de Processo Civil, hoje é tanto mais seguro, face à consagração processual da admissibilidade das declarações de parte (cf. art.º  466º do CPC) e ao princípio da aquisição processual, que o tribunal deve avaliar, em termos de livre apreciação, a declaração da parte sobre a ocorrência de factos que lhe são favoráveis, nos termos do art.º  361º do Código Civil – cf. neste sentido, António Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 520; José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, op. cit., pág. 282; Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, pág. 661.
Pelas razões supra expendidas, não há que modificar o sentido da avaliação probatória efectuada pela 1ª instância, improcedendo a pretendida modificação visada pela recorrente, pelo que se mantêm inalterados os pontos 4., 5. e 8. dos factos provados e as alíneas C) a F) dos factos não provados.
De todo o modo, tendo em conta um certo pendor conclusivo[16] que emerge da redacção do ponto 11. dos factos provados e para evitar que a matéria considerada como facto provado reflicta, indevidamente, uma apreciação de direito, por envolver uma “qualquer valoração segundo a interpretação ou aplicação da lei, ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica”, a redacção do ponto 11. passará a ser a seguinte:
11. Todo o dinheiro depositado e todas as aplicações financeiras que existiam à data do óbito de CT e que existem nas contas bancárias identificadas nos pontos 4. e 5. adveio exclusivamente de rendimentos que aquele obtinha por força dos seus negócios, aplicações e salário/pensão.
Improcede, assim, nesta parte, a impugnação da matéria de facto.
Pontos 9. e 10. dos factos provados
O Tribunal deu como provado o seguinte:
9 - Na família do falecido CT e da Ré havia o hábito de os familiares serem co-titulares das contas uns dos outros para no caso de alguma impossibilidade de o proprietário do dinheiro existente na mesma a movimentar outro poder fazê-lo.
10 - Por isso o falecido pai dos AA. era e estes também eram e ainda são co-titulares de uma conta bancária cuja primeira titular é a sua tia e cujos valores são única e exclusivamente desta.
A fundamentação destes pontos de facto fornecida pelo tribunal recorrido foi acima reproduzida.
A recorrente entende que estes factos deveriam ser dados como não provados, porquanto a testemunha AT não conseguiu identificar as contas bancárias em que funcionou o regime de solidariedade, nem a conta mencionada no ponto 10., que não é identificada, serve para demonstrar que essa era uma prática familiar.
A propósito da análise supra efectuada seja ao depoimento de parte da ré, seja ao depoimento da testemunha AT resulta já evidenciada a razão pela qual a prática mencionada existia, sendo certo que a própria ré reconheceu que essa situação ocorria, e que mantém uma conta, já muita antiga, de família, em que entrou o irmão, depois esteve a cunhada e depois os sobrinhos, e que é uma conta sua, em que estes e o irmão eram co-titulares – cf. minuto 50.00 e seguintes do seu depoimento.
Independentemente da natureza lateral ou instrumental destes factos, tendo existido um juízo probatório específico sobre a sua verificação e sendo certo que a própria ré os admitiu, não se vislumbra motivo para os arredar do enunciado de factos, pelo que se mantêm, inalterados, na decisão em causa.
Ponto 16. dos Factos Provados
O tribunal deu como provado ainda:
16 - À data do óbito de CT a conta bancária nº 500/202502313 do “Bankinter, SA” tinha associadas aplicações financeiras várias no valor total de € 404.352,83 (quatrocentos e quatro mil trezentos e cinquenta e dois euros e oitenta e três cêntimos) subscritas com capitais provenientes da conta à ordem nesse banco.
Tendo aduzido ainda a seguinte fundamentação:
“Para o facto 16 atentou-se aos elementos constantes do doc. 11 da petição, fls. 68 ss., exclusivamente no que concerne à conta nº 500/202502313, alcançando-se o valor referido no facto por simples operação aritmética.”
A recorrente pugna pela eliminação deste ponto da matéria de facto por não integrar os temas da prova, invocando que a sua consideração implicaria um aumento do valor da causa fixado no despacho saneador; além disso, refere ainda que o total das aplicações mencionadas no documento n.º 11 é de 628.649,88 €, sendo a metade desse valor de 314.324,94 €, pelo que não corresponde ao montante indicado pelo tribunal.
No que diz respeito à inclusão ou não da matéria atinente aos fundos colocados em aplicações financeiras no objecto do litígio e nos temas da prova, remete-se para tudo quanto acima se expendeu e onde se concluiu pela sua expressa integração nestes últimos[17], sem que tal tenha implicado modificação do objecto processual ou um extravasar da sua delimitação.
Por outro lado, também já se analisou e concluiu que a fixação do valor da causa não tem efeitos preclusivos relativamente ao objecto do litígio e à delineação dos temas da prova, pelo que nada obsta à integração do facto em referência na matéria de facto provada.
No que diz respeito ao valor indicado no ponto 16. como sendo o valor das aplicações financeiras associadas à conta bancária existente no Bankinter, S. A. com o n.º 500/202502313[18], há que realçar que aquilo que se consignou naquele ponto foi o montante qua tale das aplicações financeiras associadas a essa conta, sem qualquer consideração sobre a sua titularidade (total ou parcial, seja pelo falecido, seja pela aqui ré).
Por outro lado, o documento n.º 11 junto com a petição inicial – que corresponde a uma “Declaração” emitida pelo Bankinter, com data de 26 de Julho de 2021, e que identifica as posições/responsabilidades do falecido CT junto daquela instituição, à data do seu óbito – alude a duas contas de depósito à ordem (contas n.ºs 500-202502362 e 500-202502313) e ainda, a uma conta de suporte gestão de carteira, a que está associada a custódia de títulos, com o n.º 500-202502339, pelo que nem todos os montantes ali mencionados estão associados à conta identificada no ponto 16..
De todo o modo, verifica-se que a soma dos valores reportados a custódia de títulos e agrupamentos de fundos associados à conta n.º 500-202502313 ascende a um total de 507.519,82 €.
Contudo, nos artigos 36º a 38º da petição inicial os autores alegaram que as aplicações financeiras associadas à identificada conta totalizavam, à data do óbito do pai, o montante de 404.352,83 €, sendo em relação a esse valor que pretendem ver reconhecida a exclusiva titularidade de CT, pelo que não se impõe corrigir o valor em causa, mas apenas alterar a redacção do ponto 16. de modo a consignar que pelo menos existiria esse valor, pelo que este passará a ter o seguinte teor:
16. À data do óbito de CT, a conta bancária n.º 50-202502313 junto do Bankinter, S. A. tinha associadas várias aplicações financeiras, que ascendiam a um valor de, pelo menos, 404.352,83 € (quatrocentos e quatro mil trezentos e cinquenta e dois euros e oitenta e três cêntimos), subscritas com capitais provenientes da conta à ordem nesse banco.
Improcede, quanto ao mais, a impugnação dirigida contra a decisão sobre a matéria de facto.
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3.2.4. Da titularidade dos valores depositados nas contas à ordem e aplicações financeiras associadas
Da análise das alegações apresentadas pelos recorrentes e das respectivas conclusões decorre que todos os fundamentos invocados no presente recurso e que se reportam à discussão do mérito da causa tinham como pressuposto a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
Com efeito, tal dependência entre o fundamento do recurso atinente ao mérito da causa e a pretendida alteração da decisão sobre matéria de facto emerge de forma clara das conclusões, em concreto, da respectiva alínea XX) e porque a recorrente assenta o erro na apreciação jurídica da causa na circunstância de, conforme pugnou em sede de impugnação da matéria de facto, estar demonstrado que as contas à ordem em causa nos autos foram aprovisionadas com valores não só obtidos pelo falecido CT., mas também por si própria, delas co-titular.
Tendo soçobrado a impugnação que incidiu sobre os pontos 8. 1 11. dos factos provados e, bem assim, quanto aos factos não provados, que como tal se mantêm, e não merecendo censura o enquadramento jurídico configurado na sentença recorrida – censura que o apelante tão-pouco lhe dirige, porque se limita a pugnar pela procedência da acção com base na pretendida, e não deferida, alteração daquela matéria de facto – não se vislumbram razões para modificar o sentido da decisão proferida pelo Tribunal a quo, que se subscreve, por se mostrar acertada a fundamentação nela vertida, sendo decisão que aborda e decide de forma clara, correta e adequada o litígio dos presentes autos, o que fez nos seguintes termos:
“É sabido que a titularidade das chamadas contas bancárias plurais não se confunde com o direito aos fundos depositados, porquanto a primeira prende-se com as relações externas, ou seja, entre os titulares do depósito e o banco depositário, ao passo que a segunda diz respeito às relações internas, ou seja, às que respeitam aos depositantes entre si.
A titularidade da conta não pré-determina a propriedade dos fundos nela existentes, que podem pertencer apenas a algum ou alguns dos seus titulares ou até porventura a um terceiro, não sendo confundível a titularidade da conta com a propriedade dos valores/importâncias nela depositados.
De igual modo a questão da propriedade dos fundos depositados é distinta do regime de movimentação dos depósitos: a conta solidária confere a todos os titulares a faculdade de mobilizar os fundos depositados na conta, mas não pré-determina a propriedade dos activos contidos na mesma.
As contas solidárias obedecem ao regime jurídico das obrigações solidárias (art.º 512º nº 1 do CCivil), pelo que se presume que os titulares da conta participam no crédito em partes iguais (art.º 516º nº 1 CCivil). Presunção que é ilidível nos termos do art.º 350º do CCivil, pelo que àquele que invocar o direito à totalidade dos montantes depositados cabe ilidir a presunção de comparticipação em partes iguais.
No caso os AA. ilidiram tal presunção, demonstrando que todo o dinheiro e aplicações financeiras que existiam e existem nas três contas bancárias em causa na acção pertenciam exclusivamente ao seu falecido pai CT (cfr. facto 11) e que a ora R., irmã do falecido, era co-titular das contas exclusivamente para efeitos de movimentação das mesmas caso CT., por qualquer motivo, não pudesse movimentá-las (cfr. facto 8), correspondendo a uma prática familiar habitual, como se alcança dos factos provados 9 e 10.
Por sua vez a R., tentando afastar as consequências da ilisão daquela presunção, defendeu que a circunstância de o seu irmão ter aberto com ela contas solidárias ab initio configuraria uma doação manual de coisa móvel, acompanhada da entrega da coisa e da tradição e aceitação da donatária.
Independentemente de não ter resultado provado que as contas bancárias foram abertas ab initio como solidárias na co-titularidade dos dois irmãos e sem necessidade de nos debruçarmos sobre as implicações daí advenientes para inferir estar ou não em causa uma doação, podemos desde já afirmar inexistirem elementos para concluir pela existência de doação.
Na verdade, em abono da posição defendida pela R. já muita jurisprudência se produziu, designadamente no STJ, entre a qual se contam os vários acórdãos invocados pela R..
No entanto, todos eles – nomeadamente aquele cujo sumário a R. transcreveu na sua peça – evidenciam a imprescindibilidade do animus donandi porquanto se trata de requisito essencial e estruturante do contrato de doação, prova que cabia à R. fazer (cfr. art.º 342º nº 2 CCivil).
Expressivamente, a respeito da doação por via da constituição de depósito bancário, referem Pires de Lima e Antunes Varela (in Código Civil Anotado em anotação ao art.º 940º, citando Acórdão do STJ de 08/05/1973, no Bol.Min. Just., n.º 227-pág. 133 CCivil) que "a mera constituição de um depósito bancário em nome conjunto do doador e de uma ou mais pessoas, para que funcionem como depositantes solidários, não representa necessariamente uma doação, enquanto não se conhecer a intenção do dono do dinheiro depositado. Em si mesma, a operação negocial é uma atribuição incolor que tanto pode assentar sobre um empréstimo ou uma doação, como sobre um puro mandato, etc.” (sublinhado nosso).
Efectivamente, o simples facto de se consentir na constituição de um depósito bancário, solidário, simultaneamente em nome do dono do dinheiro e de terceiro não permite, sem mais, concluir no sentido da ocorrência de animus donandi por banda do primeiro, mas já poderá a constituição de uma conta solidária por iniciativa do primeiro, em nome de ambos, a par da prova do animus donandi, levar à conclusão de que foi intenção daquele depositar o seu numerário para que o valor correspondente passasse a pertencer também ao outro contitular (cfr. Acórdão do STJ, de 06/10/2005, proferido no processo 04B2753).
Isto é, a conta bancária em co-titularidade será meio idóneo para efectuar a tradição da quantia depositada se, simultaneamente, se provar o animus donandi (Acórdão do STJ, de 03/03/2005, proferido no processo 04B3711).
Ora, a R. não logrou fazer prova de que o irmão lhe quisesse dar metade (ou alguma outra proporção) dos fundos existentes nas contas bancárias em causa (cfr. facto não provado F), intenção que, aliás, seria incompatível com a demonstrada intenção que presidiu à co-titularidade das contas (cfr. facto 8) pelo que não é possível equacionar ter ocorrido a doação propugnada pela R..”
Não se descortinam razões para divergir do assim decidido.
Em corroboração, sempre se dirá que a abertura de conta é, como refere António Menezes Cordeiro, o negócio bancário nuclear, que marca o início de uma relação bancária complexa entre o banqueiro e o seu cliente – cf. Manual de Direito Bancário, Coimbra 1998, pág. 457.
No que diz respeito à titularidade, a conta pode ser individual ou colectiva, consoante seja aberta em nome de uma ou de várias pessoas.
No caso de contitularidade, a conta pode ser solidária, conjunta ou mista nos seguintes termos:
a) conta solidária: qualquer dos titulares pode movimentar sozinho livremente a conta; o banqueiro exonera-se, no limite, entregando a totalidade do depósito a um único dos titulares;
b) conta conjunta: só pode ser movimentada por todos os seus titulares, em simultâneo;
c) conta mista: alguns dos titulares só podem movimentar a conta em conjunto com outros – cf. A. Menezes Cordeiro, ob. cit., pág. 461.
O depósito bancário, em sentido próprio, é um depósito em dinheiro, constituído junto de um banqueiro, sendo uma operação associada a uma abertura de conta e traduzindo-se num contrato pelo qual uma pessoa entrega uma quantia pecuniária a um banco, que dela poderá livremente dispor, obrigando-se a restituí-la mediante solicitação, e de acordo com as condições estabelecidas.
Nas contas de depósito solidárias, como se disse, qualquer um dos titulares tem a faculdade de exigir, por si só, a prestação integral, ou seja, o reembolso de toda a quantia depositada, caso em que a prestação assim efectuada liberta o devedor (banco depositário) para com todos eles - cf. art.º  512.º do Código Civil.
Questão diversa é a de saber qual a quota-parte que cada um dos titulares detém no saldo da conta solidária, pelo que são duas realidades distintas a titularidade da conta e a propriedade dos fundos, tal como se explana na decisão recorrida.
Quando a conta reveste a característica de solidariedade, convoca-se a aplicação do disposto no art.º 516º do Código Civil[19], de tal modo que a repartição da propriedade do dinheiro respeita às relações internas dos titulares da conta bancária ou aos respectivos herdeiros, em caso de sucessão mortis causa, facto a que o banco é alheio.
No caso em apreço, não obstante a ré pretenda prevalecer-se dessa presunção de metade para cada um dos titulares das contas, certo é que, como sustentou o tribunal recorrido, os autores lograram afastar a presunção, precisamente por estar demonstrado que a ré era co-titular apenas para efeito de movimentação das contas, caso o falecido CT não as pudesse movimentar, a que acresce a circunstância de estar também provado que todo o dinheiro depositado e utilizado para as aplicações financeiras existentes à data do óbito de CT nas contas bancárias identificadas nos pontos 4. e 5. adveio exclusivamente de rendimentos que aquele obtinha por força dos seus negócios, aplicações e salário/pensão – cf. pontos 8. e 11. dos factos provados.
Neste sentido, veja-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-05-2022, processo 4482/20.6T8LSB.L1.S1 – “[…] por ser de presumir, nos termos dos artigos 512.º e 516.º do C. Civil, que apenas metade dos valores depositados e associados à conta bancária em causa eram da exclusiva propriedade da falecida BB e por tal presunção judicial só numa ação judicial (como a presente) ser ilidível; e considerou/concluiu, em termos favoráveis ao A., que este ilidiu tal presunção, ou seja, que demonstrou que a totalidade dos valores depositados e associados à conta bancária em causa eram da exclusiva propriedade da falecida BB. Na verdade, quando estamos perante quantias e valores depositados e associados a contas bancárias, a questão da propriedade de tais valores não se confunde ou reconduz à questão de saber quem são os titulares das contas bancárias em que tais disponibilidades e valores monetários se encontram depositadas, sendo hoje pacífica a distinção entre a titularidade dos depósitos e a propriedade dos fundos depositados. Efetivamente, o depósito de dinheiro/valores num banco não passa de um mero contrato obrigacional, “pelo qual uma pessoa (depositante) confia dinheiro a uma instituição bancária (depositário), a qual, tornando-se proprietária dos fundos depositados, fica com direito de livremente dispor deles para as necessidades da sua atividade profissional e assume a obrigação de restituir outro tanto em conformidade com o estipulado pelas partes”, contrato de que, após ser validamente celebrado (isto é, após, o depositante haver entregue os fundos a depositar - contrato real), resulta a obrigação de restituir a cargo do banco, obrigação de restituir que, no chamado depósito ou conta coletiva solidária, vincula o banco a restituir a totalidade dos fundos depositados a qualquer um dos titulares da conta. Ou seja, na conta coletiva “solidária” – como era o caso – o direito que está em causa, em relação ao banco, é o direito que qualquer dos titulares tem de poder movimentar sozinho e livremente a conta, direito este que, é absolutamente pacífico, está dissociado da propriedade das quantias depositadas, se deve presumir igual entre todos os titulares da conta (cfr. artigo 516.º do C. Civil).”
Afastada a presunção e demonstrado que a ré obteve, da parte do banco, a restituição de quantias que não lhe cabiam, segundo a titularidade do crédito nas relações internas entre os credores, terá de satisfazer os herdeiros, repondo os montantes que indevidamente lhe foram entregues, pois na sua esfera patrimonial apenas poderia reconhecer-se um direito próprio sobre o numerário se lhe coubesse, como proprietária, qualquer parte no saldo do depósito – cf. art.º 533º do Código Civil; acórdãos dos Tribunais da Relação de Guimarães de 4-07-2016, processo n.º 1171/09.6TBPTL-A.G1; e da Relação de Coimbra, de 9-11-2021, processo n.º 1377/20.7T8GRD.C1.
E, ao contrário do que pretende a recorrente, a circunstância de o seu falecido irmão a ter incluído como co-titular nas mencionadas contas solidárias não significa, por si só, que tenha ocorrido uma doação manual de coisa móvel acompanhada da tradição da coisa, pois, como bem se refere na decisão recorrida, sempre seria necessário demonstrar o animus donandi, o que a ré não logrou provar - cf. art.ºs 940º e 947º do Código Civil; cf. acórdãos dos Tribunais das Relações de Lisboa de 14-09-2023, processo n.º 906/20.0T8EVR.L1-6; de Évora, de 30-01-2020, processo n.º 1818/17.0T8STB.E1; do Porto, de 27-02-2023; processo n.º 492/21.4T8VNG.P2; da Relação de Coimbra, de 30-05-2023, processo n.º 167/21.4T8TCS-A.C1 – “[…] o facto de alguém depositar dinheiro uma quantia numa conta solidária, em seu nome ou no nome do depositário, não significa que o primeiro faça à segunda uma doação. O mesmo sucede quando ocorre uma modificação subjectiva na titularidade do depósito através da adição de outros titulares: também neste caso, este alargamento subjetivo da titularidade do depósito não envolve, como corolário que não possa ser recusado, a doação pelo titular originário da conta aos titulares supervenientes da propriedade económica do dinheiro depositado, devendo antes entender-se, na falta de outros elementos, que aquele - e só aquele - continua a ser proprietário económico desse dinheiro. A observação da realidade social mostra que ao aproximar-se o fim da vida é comum os titulares de depósitos bancários - antecipando e prevenindo as dificuldades inerentes à sua gestão e movimentação, pessoal e direta, resultantes das limitações crescentes das suas competências pessoais, ou mesmo visando evitar a sujeição tributação pelo facto da transmissão mortis causa - adicionarem como titulares os filhos ou outros parentes ou só alguns daqueles filhos ou destes parentes ou mesmo constituírem com estes depósitos plurais (art.º ° 349.° do Código Civil). Mas deste facto não decorre necessariamente, pelas razões já apontadas, a aquisição, pelos últimos, de qualquer direito às quantias depositadas; esse direito continua a radicar na esféria jurídico-patrimonial do titular originário do depósito e, verificado o facto lamentável da morte daquele, as quantias depositadas são devolvidas às pessoas que disponham de uma qualquer vocação sucessória, de harmonia com as regras dessa vocação.”
Em face disto, nada havendo a censurar, resta apenas confirmar a decisão recorrida, que se deve manter inalterada.
Improcede, assim, a apelação.
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Das Custas
De acordo com o disposto no art.º 527º, n.º 1 do CPC, a decisão que julgue a acção ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da acção, quem do processo tirou proveito. O n.º 2 acrescenta que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.
Nos termos do art.º 1º, n.º 2 do Regulamento das Custas Processuais, considera-se processo autónomo para efeitos de custas, cada recurso, desde que origine tributação própria.
A recorrente decai quanto à pretensão que trouxe a juízo, pelo que as custas (na vertente de custas de parte) ficam a seu cargo.
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IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes desta 7.ª Secção do Tribunal de Relação de Lisboa, em julgar improcedente a apelação, mantendo, em consequência, a decisão recorrida.
As custas ficam a cargo da apelante.
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Lisboa, 22 de Outubro de 2024
Micaela Marisa da Silva Sousa
Augusta Ferreira Palma
Carlos Oliveira
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[1] Tendo sido suscitada a falta de personalidade judiciária da herança de CT identificada na petição inicial como demandante, em sede de despacho saneador, proferido em 12 de Janeiro de 2023, tal questão foi apreciada considerando-se a acção intentada pelos referidos autores, únicos herdeiros de
CT – cf. Ref. Elect. 422152570.
[2] Requerimento tempestivo, posto que a recorrente considera-se notificada a 15 de Julho de 2024, tendo o requerimento sido apresentado em 5 de Setembro de 2024.
[3] Adiante designado pela sigla CPC.
[4] Expressa em dinheiro, no confronto do pedido com a causa de pedir e que constitui o critério geral para a determinação do valor da causa – cf. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume 1º, 3ª Edição, pág. 586.
[5] Acessível na Base de Dados Jurídico-documentais do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça, IP em www.dgsi.pt, onde se encontram disponíveis todos os arestos adiante mencionados sem indicação de origem.
[6] In Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 143º, N.º 3983 Novembro-Dezembro 2013.
[7] Cf. Ref. Elect. 434904746, de 23 de Abril de 2024.
[8] Cf. Ref. Elect. 30789356.
[9] Tenha-se em conta que CT faleceu no dia 3 de Junho de 2021 – cf. ponto 2. dos factos provados.
[10] Não obstante a ré a ter protestado juntar, sem que nunca o tenha vindo fazer, conforme requerimento de 25 de Fevereiro de 2023, com a Ref. Elect. 35180532.
[11] Cf. Documento junto com o requerimento de 16 de Abril de 2023, com a Ref. Elect. 35695382.
[12] Cf. Ref. Elect. 35282360, 35180532 e 36150454.
[13] Cf. Ref. Elect. 36248627.
[14] Cf. Documento junto com o requerimento de 25 de Janeiro de 2023, com a Ref. Elect. 34848512.
[15] Cf. Artigo 80º da contestação.
[16] Não se desconhecendo, contudo, a possibilidade de se afirmarem juízos que densifiquem ou concretizem uma realidade de facto, conforme se retira do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 28-09-2017, , processo n.º 659/12.6TVLSB.L1-S1; no mesmo sentido, o Prof. Miguel Teixeira de Sousa, sustenta que a “chamada «proibição dos factos conclusivos» não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil – cf. Matéria de facto; julgamento; “factos conclusivo”, Jurisprudência (785) 6-02-2018, acessível em Blog do IPPC https://blogippc.blogspot.com/search?q=jurisprud%C3%AAncia+%28785%29.
[17] Cf. Ponto I dos Temas da Prova.
[18] Cf. Ponto 5. dos factos provados.
[19]Nas relações entre si, presume-se que os devedores ou credores solidários comparticipam em partes iguais na dívida ou no crédito, sempre que da relação jurídica entre eles existente não resulte que são diferentes as suas partes, ou que um só deles deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do crédito.”