ARRENDAMENTO
DENÚNCIA PELO SENHORIO
PARA REALIZAÇÃO DE OBRAS OU DEMOLIÇÃO
INDEMNIZAÇÃO
MONTANTE
PRESCRIÇÃO
Sumário

(Responsabilidade do relator)
I. A indemnização de dez anos de renda prevista no nº 9 do Artigo 1103º do Código Civil constitui uma penalidade com fonte contratual, não emergindo de responsabilidade civil aquiliana, sendo um exemplo de pós-eficácia aparente da obrigação contratual. Nessa medida, está sujeita ao prazo prescricional de vinte anos (Artigo 309º do Código Civil).
II. Os deveres acessórios de conduta integram uma complementação do conteúdo obrigacional do contrato fundada no princípio da boa fé (Artigo 762º, nº 2, do Código Civil), assumindo a feição de uma cláusula geral, de âmbito e conteúdo indeterminados, sendo a sua existência e intensidade definidas de acordo com o tipo de relação e a qualidade dos parceiros contratuais.
III. A invocação da cláusula geral dos deveres acessórios de conduta, na vertente de deveres de proteção pós-contratuais, deixa de ser pertinente a partir do momento em que existe regime legal específico que rege sobre os termos e condições da extinção da relação contratual duradoura, no caso os Artigos 1103º, nº 6, al. a) e nº 9, do Código Civil).
IV. Estas normas integram a categoria de regras destinadas à liquidação antecipada da obrigação de indemnização, prescindindo da determinação da existência de danos, determinando o quantum indemnizatório, independentemente de este ser superior, igual ou inferior aos danos efetivamente sofridos pelo lesado.

Texto Integral

Acordam os Juízes na 7ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

RELATÓRIO
BB, na qualidade de Liquidatário e Depositário da extinta DD, intentou contra FF, S.A., ação declarativa com processo comum, pedindo que o Tribunal:
a) condene a Ré a pagar-lhe, na qualidade de Liquidatário da extinta sociedade DD, Lda., o valor de € 6.825,80 correspondente a 10 anos de renda [€ 682,56 x 10], pela não execução das obras no prazo ordinário de 6 meses após a desocupação do locado, nos termos do disposto no artigo 1103.º, n.º 9 do Código Civil, por não cumprimento do disposto no artigo 1101.º, alínea b) do Código Civil;
b) condene a Ré a pagar ao Autor, na qualidade de Liquidatário da extinta sociedade DD, Lda., o valor de € 50.000,00 referente à má-fé contratual concatenada com o benefício patrimonial obtido pela Ré, que se traduziu na valorização do imóvel livre de pessoas e bens.
Para tanto, alegou, em resumo, o que se segue:
i. Em 3 de Outubro de 2018, por deliberação dos sócios, a sociedade DD, LDA. foi dissolvida e liquidada, tendo sido constituído liquidatário e depositário o sócio e gerente BB, ora Autor;
ii. A sociedade exercia a sua atividade comercial no prédio sito na Rua da (...) n.º 174 a 178, em Lisboa, por contrato de arrendamento;
iii. Atualmente o referido prédio encontra-se registado a favor de GG, S.A., por compra e venda celebrada em 2021 com a entidade HH, UNIPESSOAL, LDA., que por sua vez adquiriu o referido imóvel à FF, S.A., aqui Ré, em 3 de Setembro de 2018;
iv. A Ré, na qualidade de proprietária do prédio, foi intimada em Janeiro de 2014 pela Câmara Municipal de Lisboa para a execução de obras de conservação necessárias à correção de deficiências, e execução de obras necessárias à reposição do local de acordo com o projeto aprovado, com início em 60 dias, num prazo máximo de 12 meses;
v. Perante tal intimação, a Ré não realizou quaisquer obras no período de 60 dias, nem no período de 12 meses;
vi. Por meio de comunicação datada de 29 de Outubro de 2014, a Ré comunicou à sociedade DD a denúncia do contrato de arrendamento, invocando o fundamento de execução de obras de alteração e conservação que obrigavam à desocupação do locado, exigindo a entrega do imóvel devoluto de pessoas e bens até 30 de Maio de 2015;
vii. Na mesma missiva, a Ré como contrapartida da entrega do locado apresentou como valor indemnizatório, a liquidar à extinta DD, o equivalente a 1 ano de renda, perfazendo o valor de € 682,56;
viii. A Ré, em 21 de Abril de 2016, remeteu missiva à extinta DD, invocando como fundamento para a denúncia o Alvará de Obras com demolição nº (...)/2016, emitido pela Câmara Municipal de Lisboa, exigindo a entrega do locado devoluto de pessoas e bens em 15 dias;
ix. Nunca a Ré ofereceu a possibilidade de realojamento à extinta DD;
x. A Ré nunca executou quaisquer trabalhos de conservação ou restauro no prédio, nem mesmo trabalhos ligeiros ou pontuais;
xi. A extinta DD não procedeu à entrega voluntária do locado;
xii. Em 14 de Junho de 2017, a Ré propôs junto do Balcão Nacional do Arrendamento procedimento especial de despejo, tendo, no âmbito do mesmo, sido proferida decisão em 30 de Outubro de 2018, considerando justificada a denúncia e tendo sido ordenada a entrega do locado à Ré;
xiii. Em 8 de Fevereiro de 2018, a extinta DD entregou o locado e as chaves;
xiv. Em 3 de Setembro de 2018, quando a Ré vendeu o prédio, não tinha realizado qualquer obra ou reparação, nem sequer as tinha iniciado;
xv. O imóvel, atualmente, encontra-se inabitado, devoluto de pessoas e bens, com portadas entreabertas, grafitado e vandalizado, inexiste qualquer sinal de obras e o prédio está intocável desde a desocupação;
xvi. Em 2020, o Autor interpelou a Ré para pagamento de € 6.825,60, mas a Ré nada liquidou;
xvii. A extinta DD por força do despejo, não pôde fixar o seu estabelecimento comercial noutro local da Baixa, nem no Concelho de Lisboa, sendo obrigada a cessar actividade e consequentemente perdido a facturação e toda a sua clientela, devendo ser indemnizada no valor de € 50.000,00 referente à má-fé contratual.
A Ré FF, S.A. apresentou contestação, excepcionando a prescrição o direito de indemnização invocado pelo Autor e dizendo, em síntese, que: a sociedade deveria ter incluído esse direito na liquidação; a obra não se iniciou no prazo de seis meses por motivos alheios à Ré e que se deveu ao facto de a DD, LDA. ter-se recusado a entregar o locado por 4 anos, não sendo assim possível executar as obras antes da venda do imóvel; com as alterações operadas pela Lei n.º 31/2012, ficou fixado o montante máximo da indemnização pelo não início das obras em 10 anos de renda.
Conclui que deve ser a acção considerada totalmente improcedente por não provada e, em consequência, ser a Ré absolvida dos pedidos contra si formulados.
O Autor apresentar articulado de resposta às excepções invocadas pela Ré, dizendo, em suma, que:
§ A situação em causa nos autos não se enquadra no regime da responsabilidade extracontratual, nos termos da qual o legislador estipulou o prazo de 3 anos para o exercício do direito do lesado, mas sim no domínio da responsabilidade contratual em que o prazo de prescrição é de 20 anos;
§ Caso assim não se entenda, é de aplicar na situação concreta as duas espécies de responsabilidade e que por força do princípio da consumpção é de aplicar o regime da responsabilidade contratual;
§ O crédito reclamado nos presentes autos apenas foi conhecido e verificado pelo Autor em data posterior à dissolução e liquidação da DD, pelo que reveste a qualidade de activo superveniente;
§ Nos termos da lei, o Autor é credor do valor correspondente a 10 anos de renda, nada impedindo o Autor de cumular um pedido de indemnização por responsabilidade contratual.
Realizou-se audiência prévia, na qual se facultou às partes a discussão de facto e de direito, prevendo-se o conhecimento imediato do mérito da causa e da excepção invocada – prescrição.
Foi proferido saneador-sentença com o seguinte dispositivo:
«Tendo em atenção as considerações expendidas e as normas legais citadas, julga‑se:
1 – Procedente a excepção peremptória de prescrição quanto ao pedido formulado em a) e, em consequência, absolve-se a Ré do pedido quanto a este.
2 – Improcedente a acção quanto ao pedido formulado na alínea b) da petição inicial e, em consequência, absolve-se a Ré desse pedido.»
*
Não se conformando com a decisão, dela apelou o Autor, formulando, no final das suas alegações, as seguintes
CONCLUSÕES:
1. O Recorrente demandou a Ré FF Companhia de Seguros SA, na qualidade de Depositário e Liquidatário da extinta sociedade DD [titular que era do NIPC (...)], que tinha a sua sede na Rua (...), r/c vão de Escada, Lisboa;
2. O local da sede trata-se de uma parte do imóvel dado de arrendamento à extinta sociedade em 03.10.1962;
3. Em 29.10.2014, foi pela Ré FF remetida à extinta sociedade comunicação de Denúncia do contrato de arrendamento (vinculístico), com fundamento na necessidade de obras de alteração e conservação do prédio, que obrigavam à desocupação do locado, nos termos do disposto no art.º 1101.º al. b) do Cód. Civil.
4. Foi alegado como fundamento para o despejo a operação urbanística para a qual foi por despacho camarário atribuído o n.º de processo de obras 717/EDI/2014, já aprovado.
5. Posteriormente, em 21.04.2016 foram alegadas obras de demolição – (...)/2016, também aprovadas, para fundamentar o despejo.
6. Como contrapartida do despejo, a Ré propôs pagar à extinta sociedade o equivalente a um ano de renda (682,56€). O Recorrente não aceitou.
7. Não foi oferecida à extinta sociedade a possibilidade de realojamento.
8. Em sede de processo especial de despejo, a extinta sociedade defendeu-se alegando (1) carácter vinculístico, (2) denúncia imotivada pelo senhorio, (3) não realojamento da arrendatária e (4) valor reduzido da indemnização.
9. A entrega do locado verificou-se em 08.02.2018.
10. Por força do fundamento da denúncia recaía sobre a Ré o prazo de 6 meses para iniciar as obras, ou seja, as obras deveriam ter-se iniciado até 09.08.2018.
11. Dentro do referido prazo não foram iniciados quaisquer trabalhos, tendo inclusive o prédio sido vendido a um Terceiro HH Unip. Ld.ª em Setembro de 2018.
12. Ora, considerando que, à data da denúncia data da entrega do locado já a Ré dispunha de projeto de obra aprovado, alvará de demolição, empreiteiro para execução do projeto, qual o motivo para não iniciar as obras?
13. Assim, foi em 29.05.2023, impetrada ação declarativa de condenação contra a Ré FF Companhia de Seguros SA, peticionando o pagamento ao Recorrente do valor correspondente a 10 anos de renda pela inexecução das obras, nos termos do disposto no art.º 1103.º n.º 9 do Cód. Civil.
14. Em contestação, a Ré alegou que o direito do qual o Autor se arroga advém de uma responsabilidade extracontratual indemnizatória por factos ilícitos nos termos do disposto no art.º .1103.º e 1101.º do Cód. Civil, alegando para o efeito a exceção perentória da prescrição, e por isso o direito do Recorrente se encontrava prescrito, pois, a ação não foi impetrada três anos após a desocupação.
15. Do artigo 30.º da contestação resulta a confissão da Ré, da não execução de quaisquer obras no prazo de 6 meses.
16. O Recorrente respondeu à exceção alegando não estarmos perante o regime da responsabilidade extracontratual, pois, a obrigação de indemnizar não provém de nenhum facto ilícito, mas sim de uma relação contratual, ainda que cessada, contudo a obrigação de indemnizar emerge da própria relação contratual que entre as Partes existiu.
17. Concomitantemente foi ainda alegado, que tendo a Ré sido demandada nos termos do disposto no art.º 798.º do Cód. Civil, circunscrevendo o objeto dos autos ao domínio da responsabilidade contratual, ao qual por falta de disposição legal, se aplica o prazo geral da prescrição – 20 anos, nos termos do disposto no art.º 309.º do Cód. Civil.
18. Em resposta à exceção, o Recorrente admitiu a hipótese de um concurso, meramente aparente, entre as duas responsabilidades – Contratual e Aquiliana, resolvido pelo princípio da consumpção, beneficiando o direito do Recorrente do prazo ordinário de 20 anos, por aplicação do regime da responsabilidade contratual.
19. O Tribunal a quo sem realizar audiência de discussão e julgamento, pôs termo ao processo, e julgou procedente a exceção da prescrição, tendo proferido sentença, absolvendo a Ré dos pedidos formulados, por entender que o caso em apreço recaí no domínio da responsabilidade extracontratual, sendo de 3 anos o prazo para obter da Ré a condenação ao pagamento da indemnização correspondente a 10 anos de renda pela não execução das obras dentro do prazo de 6 meses após o despejo, encontrando-se em 2023 o direito do Autor já prescrito.
20. O Recorrente formulou contra a Ré dois pedidos - Primeiro - Pagamento da penalização/indemnização prevista no art.º 1103º n.º 9 do Cód. Civil, correspondente a 10 anos de renda pelo não início da obra; Segundo – Condenação ao pagamento do valor de 50.000,00€ ao Recorrente, por obtenção pela Ré de um benefício patrimonial [venda de um prédio livre de ónus e encargos] com violação dos princípios inerentes à boa-fé contratual.
21. O Tribunal a quo indeferiu o segundo pedido, por considerar que tal dano se encontra englobado no crédito indemnizatório consagrado no art.º 1103.º n.º 9 do Cód. Civil, cujo Tribunal julgou prescrito.
22. Serve de fundamento à presente revista a violação da Lei substantiva, pois, a sentença proferida comporta um erro de interpretação, aplicação e determinação da norma aplicável ao caso sub judice.
23. A Ré exerceu um direito que a Lei lhe confere – denunciou um contrato de arrendamento por necessidade de execução de obras de restauro, conservação e demolição, daqui não resulta a prática de qualquer facto ilícito.
24. Sucede, porém, que, no prazo de 6 meses após a desocupação não foram iniciadas quaisquer obras.
25. Atenta a data da entrega do locado – 08.02.2018, e a entrada da petição inicial – 29.05.2023, alegou a Ré que o direito do Recorrente, na qualidade de Liquidatário e Depositário da extinta arrendatária, se encontrar prescrito, por há muito se encontrarem decorridos os 3 anos da responsabilidade extracontratual nos termos do disposto no art.º 483.º e 498º ambos do Cód. Civil, regime no qual no entendimento da Ré e do Tribunal a quo se insere o caso dos autos.
26. Tratam-se duas pretensões distintas, porém, jamais o Recorrente teria direito a demandar a Ré nos termos em que demandou se entre as Partes não tivesse existido um contrato.
27. As partes permanecem entre si subjetivamente interligadas, os dois pedidos formulados inserem-se no domínio da responsabilidade contratual, porquanto, o Recorrente só tem direito a obter da Ré tal condenação por força do extinto contrato de arrendamento, e não por qualquer facto ilícito ou violação de direito absoluto.
28. Por força da relação contratual que existiu entre as Partes, o direito à indemnização do qual o Recorrente se arroga titular insere-se na responsabilidade contratual, porque resulta de um vínculo contratual que entre as partes existiu.
29. Sucede, porém, que, o motivo da denúncia do contrato gerou na esfera da Ré uma obrigação – Realização das Obras, a obrigação nasceu de um vínculo contratual que entre as Partes (Senhorio + Inquilino) existiu.
30. O Recorrente demandou e fundamento a sua pretensão com base da responsabilidade contratual, com exclusão de outra.
31. Discordamos com o enquadramento dos presentes autos no regime da responsabilidade extracontratual, pois, não está em causa nenhum ilícito, ou violação de direito absoluto, nem aderimos à fundamentação utilizada pelo Tribunal a quo.
32. Equacionando-se que, um dos pedidos formulados possa enquadrar-se na via extracontratual (condenação ao pagamento do valor de 50.000,00€), jamais poderá a indemnização pela não realização das obras revestir cariz delitual.
33. Tal penalização emerge, resulta e só se verifica por força da existência de um contrato prévio, o critério definidor do quantum indemnizatório é o próprio valor locatício, estamos no domínio da responsabilidade contratual.
34. Perante duas pretensões, e podendo cada uma delas revestir modalidades de responsabilidade diversas, o que discordamos, estamos perante um concurso de responsabilidades (contratual e extracontratual), há que apurar qual o regime a aplicar.
35. A diferença entre as duas modalidades reside essencialmente em dois critérios – na culpa (na extracontratual cabe ao Lesado provar a culpa do Agente e na obrigacional a culpa é presumida), e no prazo (na delitual o direito do lesado prescreve em 3 anos, na contratual prescreve do prazo ordinário).
36. Tal concurso não é, porém, real, efetivo, mas meramente aparente (concurso de normas) dado que sempre que há violação de contratos nos temos de mover no específico regime destes (que consome o regime delitual), imbuído do princípio da autonomia privada (405º, do CC) e da liberdade contratual (nº1, do art.º 406, do CC), em todas as suas vicissitudes, o qual, atento o espírito do sistema, se não pode abandonar, sequer em matéria de ressarcimento de danos.
37. É aparente o concurso entre a responsabilidade civil contratual e extracontratual, matéria no âmbito da qual, as diversas orientações se dividem em dois grupos (1) os denominados sistemas do cúmulo, (2) o sistema do não cúmulo (defendida por nós).
38. Na primeira orientação cabe três perspetivas, a) a de o lesado se socorrer, numa única ação, das normas da responsabilidade contratual e extracontratual, amparando-se nas que entenda mais favorável; b) a de conceder-se-lhe opção entre os procedimentos fundados apenas numa ou noutra dessas responsabilidades; e c) a de admitir, em ações autónomas, ao lado da responsabilidade contratual, a responsabilidade extracontratual.
39. A segunda orientação, a do sistema que exclui o cúmulo, consiste na aplicação do regime da responsabilidade contratual, em decorrência de um princípio de consumpção.
40. É doutrina e jurisprudencialmente aceite que, se de um vínculo negocial, resultarem danos para uma das partes, o pedido de indemnização deve alicerçar-se nas regras da responsabilidade contratual, a mesma solução se impondo quando o facto que produz a violação do negócio, ou melhor, da relação que dele deriva, simultaneamente preenche os requisitos da responsabilidade aquiliana.
41. A relação jurídica entre as Partes deriva de um contrato de arrendamento, as Partes só estão entre si interligadas por força de um contrato que entre elas vigorou.
42. Classificar o conflito como meramente aparente (resolvido com o princípio da consumpção), é solução que se mostra mais correta no plano sistemático e no da justiça material, razão pela qual seguimos a ideia de exclusão do cúmulo entre as duas modalidades de responsabilidade civil, pois, tal solução acautela devidamente todos os interesses atendíveis do lesado, sem sacrifício injusto da posição do responsável, só não sendo de adotar em face de preceito legal que estipule o contrário, o que não se verifica.
43. Para os defensores da Teoria do Cúmulo, o cúmulo cessa num concurso alternativo entre as duas modalidades de responsabilidade civil, cabendo ao Lesado (teoria da opção) com base nas suas pretensões optar, ou pela via obrigacional, ou delitual, podendo tal escolha beneficiar de aspetos de uma só das modalidades de responsabilidade, ou reunir pressupostos de ambas, tal teoria da opção levar-nos-á ao efeito obtido pela teoria do não-cúmulo, mas obtido por caminho diverso, acabando por prevalecer apenas uma das modalidades, tal como sucede na Teoria da Consumpção. Tal solução apenas nos diz que o Lesado poderá optar previamente pela modalidade da qual pretende beneficiar.
44. Destarte, e ex max ex vi, deverá – DESDE JÁ - a Ré ser condenada a liquidar ao Recorrente, a título de indemnização [face à confissão operada nos autos – art.30º  da Contestação], o valor de 6.825,80€ [682,56€ x 10], correspondente a 10 anos de renda, considerando o confessado, pela própria Ré, que as obras não foram por si iniciadas, nos termos do disposto no art.º 1103.º n.º 9 do Cód.Civil.
45. Subsequentemente, ordenar-se a baixa do processo para realização de audiência de discussão e julgamento, para apreciação do OUTRO pedido formulado nos autos pelo Autor, no valor de 50.000,00€, correspondente à má-fé contratual evidenciada pela Ré, que visando obter um benefício patrimonial [venda de um prédio livre de ónus e encargos], causou reflexamente a perda do estabelecimento comercial e clientela pelo Recorrente.
Pelo exposto, pois, e conforme mais dos autos ex max. ex. supl., deve o recurso de Apelação ser admitido, julgado procedente por provado, e consequentemente, legal determinação de custas e custas de parte, por assim se julgar ser conforme A Lei e o Direito.»
*
Contra-alegou a apelada, propugnando pela improcedência da apelação.
QUESTÕES A DECIDIR
Nos termos dos Artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de atuação do tribunal ad quem, exercendo um função semelhante à do pedido na petição inicial.[1] Esta limitação objetiva da atuação do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas, ressalvando-se as questões de conhecimento oficioso, v.g., abuso de direito.[2]
Nestes termos, as questões a decidir são as seguintes:
i. Natureza da indemnização pela não realização das obras pelo senhorio na sequência da denúncia justificada do contrato de arrendamento;
ii. Má fé contratual da Ré e consequente obrigação de indemnizar pelos danos causados com a perda do estabelecimento comercial e clientela.
Corridos que se mostram os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A sentença sob recurso considerou como provada a seguinte factualidade:
1. O Autor BB foi sócio e gerente da sociedade DD, LDA., com o NIPC (...), com sede na Rua (...), em Lisboa.
2. Em 3 de Outubro de 2018, foi registada a dissolução e encerramento da sociedade DD, LDA., sendo indicado o Autor como depositário.
3. A sociedade tinha a sua sede no prédio sito na Rua da (...) nº 178, vão de escada, em Lisboa.
4. O espaço comercial veio à posse da sociedade DD, LDA., por contrato de arrendamento, pelas seguintes condições:
§ Arrendamento: Não Habitacional;
§ Locado: Rua da (...) n.º 174 a 178;
§ Início: 03.10.1962;
§ Prazo: Indeterminado;
§ Renda: 56,88€/mês;
5. Em 3 de Setembro de 2018, foi registada a aquisição do direito de propriedade a favor de HH UNIPESSOAL, LDA. por compra à Ré.
6. Em 24 de Agosto de 2021, foi registada a aquisição do direito de propriedade a favor de GG, S.A., por compra a HH UNIPESSOAL, LDA..
7. Por ofício de 2 de Janeiro de 2014 da CÂMARA MUNICIPAL DE LISBOA, a Ré foi intimada para a realização de obras de conservação necessárias à correção de deficiências, com início em 60 dias e conclusão em 12 meses.
8. Por meio de comunicação datada de 29 de Outubro de 2014, a Ré comunicou à DD, LDA. a denúncia do contrato de arrendamento com efeitos a 30 de Maio de 2015, invocando o fundamento de execução de obras que obrigam à desocupação do locado.
9. Na mesma missiva, a Ré como contrapartida da entrega do locado apresentou como valor indemnizatório, a liquidar à DD, LDA. o equivalente a 1 ano de renda, perfazendo o valor de € 682,56.
10. O locado não foi entregue pela DD, LDA..
11. Em 21 de Abril de 2016, a Ré remeteu missiva à DD, LDA. confirmando a denúncia do contrato de arrendamento realizada através de carta de 29 de Outubro de 2014, juntando cópia certificada do Alvará de Obras com demolição e solicitando a desocupação e entrega do locado no prazo de 15 dias contados da receção da carta.
12. Na mesma missiva, a Ré como contrapartida da entrega do locado apresentou como valor indemnizatório, a liquidar à DD, LDA. o equivalente a 1 ano de renda, perfazendo o valor de € 682,56.
13. A DD, LDA. não procedeu à entrega voluntária do locado.
14. A Ré apresentou junto do Balcão Nacional do Arrendamento procedimento especial de despejo, tendo sido, em 30 de Outubro de 2017, proferida decisão judicial na qual foi reconhecido “o direito da autora à denúncia do contrato de arrendamento com a ré, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1103.° e 1101.°, alínea b) ambos do C.C. e do artigo 7.°, n.º 2 do Rjopa, com o pagamento de uma indemnização prevista no art.º 6.°, n.º 1, a), aplicável ex vi art.° 7.°, n.º 2, ambos do Rjopa” e “condenar a ré na desocupação imediata do vão de escada do prédio urbano sito na Rua da (...), n.º 178 (...)”.
15. Em 8 de Fevereiro de 2018, a DD, LDA. entregou o locado e as chaves.
16. De 8 de Fevereiro de 2018 a 3 de Setembro de 2018, não foi realizada qualquer obra no prédio.
17. Em 27 de Março de 2020, o Autor procedeu à interpelação da Ré para pagamento do valor de € 6.825,60, porém nada foi liquidado.
FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
Natureza da indemnização pela não realização das obras pelo senhorio na sequência da denúncia justificada do contrato de arrendamento
Resulta da matéria de facto provado que a Ré intentou contra a DD, Lda. procedimento especial de despejo, tendo sido proferida decisão, em 30.10.2017, que reconheceu o direito autora à denúncia do contrato de arrendamento com a ré, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 1103.° e 1101.°, al. b), do Código Civil, e do artigo 7.°, n.º 2 do Rjopa, com o pagamento de uma indemnização prevista no art.º 6.°, n.º 1, a), aplicável ex vi art.° 7.°, n.º 2, ambos do Rjopa, sendo ainda a Ré condenada na desocupação imediata do vão de escada do prédio urbano sito na Rua da (...), n.º 178.
Assim, o contrato de arrendamento existente entre as partes foi extinto por denúncia do senhorio com fundamento na realização de obras de remodelação ou restauro profundo que obrigavam à desocupação do locado, condicionada ao pagamento pelo senhorio ao inquilino de uma indemnização no valor mínimo de dois anos de renda (Artigo 6º, nº1, al. a), do RJOPA/Decreto-lei nº 157/2006, de 8.8).
Nos termos do nº9 do Artigo 1103º do Código Civil, o «(…) não início da obra prevista na alínea b) do artigo 1101º, no prazo de seis meses contados da desocupação do locado, obriga o senhorio ao pagamento de uma indemnização correspondente a 10 anos de renda.»
O primeiro pedido formulado pelo autor/liquidatário da sociedade nesta ação é, precisamente, o de condenação da Ré FF, SA no pagamento de € 6.825,80, quantia correspondente a dez anos de renda porquanto a Ré não iniciou as obras no prazo de seis meses.
Neste âmbito, está provado que a sociedade inquilina entregou o locado e as chaves à Ré senhoria em 8.2.2018 e que, entre 8.2.2018 e 3.9.2018, não foi realizada qualquer obra no prédio, sendo este vendido pela FF a outra sociedade com registo da aquisição do direito de propriedade em 3.9.2018.
O tribunal a quo julgou procedente a exceção perentória da prescrição suscitada pela Ré, essencialmente com esta fundamentação:
«Não há dúvidas que a relação contratual entre a DD, LDA. e a Ré já havia cessado por denúncia em Outubro de 2014 (denúncia confirmada por sentença transitada em julgado) e que impôs àquela a entrega do locado.
Para além disso, a fonte da obrigação de realizar as obras de demolição no prazo de seis meses não decorre do contrato de arrendamento (extinto) ou negócio jurídico, fruto do exercício da autonomia provada, mas sim da própria lei (como norma geral de conduta), em concreto, o n.º 9 do artigo 1103.º do Código Civil.
Assim, a Ré denunciou justificadamente o contrato de arrendamento, mas posteriormente a essa denúncia, a lei impõe que cumpra com a justificação dessa denúncia - no caso concreto, a demolição – sob pena de ter de indemnizar quem era o arrendatário (não voltando a haver vínculo contratual entre ambas, pelo que não se impõe ao locador entregar a coisa locada, nem assegurar-lhe o gozo desta).
Também não se entende estarmos perante a chamada teoria da consumpção, porquanto o facto gerador da responsabilidade não é simultaneamente violador do contrato e um ilícito extracontratual.
Dito isto e partindo da premissa que estamos no âmbito da responsabilidade extracontratual, resta aplicar o prazo de prescrição de 3 anos, previsto no artigo 498.º do Código Civil.»
Não acompanhamos a fundamentação do tribunal a quo.
O contrato extinguiu-se por denúncia do senhorio com fundamento na necessidade de realização de obras de remodelação ou restauro profundos. «A denúncia assenta num direito potestativo que assiste a qualquer dos contraentes, cujo exercício, mesmo que cause prejuízos à outra parte, não é fonte de responsabilidade civil» - Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 3ª ed., p. 119. Todavia, nalguns casos, a lei prevê compensações para a contraparte pelo exercício do direito de denúncia, sendo uma delas precisamente a cominada no Artigo 1101º, al. b), do Código Civil, aplicável ao caso.
Em termos técnicos rigorosos, «Esta denúncia configura, em bom rigor, uma resolução do contrato, na medida em que assenta na invocação de uma justa causa para a cessação, unilateral, por parte do senhorio. Com efeito a denúncia é, por natureza, uma forma de extinção própria dos contratos de duração indeterminada, que não carece da invocação de qualquer fundamento, nem confere à contraparte o direito a indemnização. Ao invés, no caso da denúncia do contrato de arrendamento pelo senhorio constante do 1101º, a) e b) prevê-se quer a exigência de justa causa, quer o pagamento de uma indemnização ao arrendatário» (António Menezes Cordeiro (Coord.), Leis do Arrendamento Urbano Anotadas, 2014, p. 314).
Considerando que a justificação do direito potestativo de denúncia radica na necessidade da realização de obras de remodelação/restauro profundos, e para que este direito potestativo não seja exercido pelo senhorio em fraude à lei[3] e com o propósito exclusivo de se livrar do inquilino,  o Artigo 1103º, nº9, do Código Civil veio instituir uma penalidade para o senhorio de dez anos de renda, caso não inicie as obras no prazo de seis meses contados da desocupação do locado.  A opção do legislador foi esta: mantêm-se os efeitos da extinção do contrato de arrendamento em decorrência da denúncia, mas o senhorio, não iniciando as obras, fica sujeito a uma penalidade no valor de dez anos de rendas.
Ora, esta penalidade tem uma fonte eminentemente contratual, não emergindo da responsabilidade civil aquiliana (Artigo 483º do Código Civil).
 Com efeito, o artigo 1103º, nº 9, do Código Civil, constitui um exemplo de pós-eficácia aparente das obrigações contratuais que ocorre «quando os efeitos sejam imputados, por disposição legal expressa e específica, à extinção de certas obrigações» (António Menezes Cordeiro, “Da pós-eficácia das obrigações”, in Direito E Justiça, 2 (Especial), 1987, https://doi.org/10.34632/direitoejustica.1987.10726, p. 159), no caso à extinção das obrigações principais que decorrem para o senhorio do contrato de arrendamento na condição da realização de obras no locado. O facto extintivo vem a afirmar-se como constitutivo de situações novas (Op. Cit., p. 142). «O regime da pós-eficácia aparente é o que resulta das disposições legais que, expressa e especificamente, a consagrem» (Op. Cit., p. 147). A «pós-eficácia aparente, por definição, reporta-se a uma obrigação nova e não à continuação da prestação principal» (Op. Cit., p. 151), sendo exemplo a obrigação de reintegração na sequência de um despedimento indevido.
Noutra linha de análise, mas confluindo no resultado final para a solução d ocaso, afirma Mafalda Miranda Barbosa,  Lições de Responsabilidade Civil, Principia, p. 420, que: «Se, porventura, os deveres de conduta tiverem sido incorporados pelo ordenamento jurídico positivo e prescritos em termos gerais e abstratos por lei, isso significa que o legislador considerou que, naquelas circunstâncias, por referência a um determinado tipo contratual, eles eram devidos. O seu não-cumprimento implica necessariamente a culpa; se não existir culpa, é porque, em concreto, não se verificou a situação que foi delineada pelo legislador e, portanto, não existia o dever.»
Por diferentes palavras, a indemnização de dez anos de renda (Artigo 1103º, nº9, do Código Civil) emerge da extinção do contrato de arrendamento por denúncia para a realização de obras, constituindo uma obrigação nova (eventual) que nasce com esta extinção do contrato e colhe nesta a sua razão de ser.
Destarte, estamos, ainda, em sede de responsabilidade contratual pelo que o prazo de prescrição aplicável é o geral de vinte anos (Artigo 309º do Código Civil) e não o prazo de prescrição de três anos da responsabilidade civil aquiliana (Artigo 498º, nº1, do Código Civil).
Estando demonstrado que a Ré não iniciou as obras no prazo de seis meses após a receção do locado, o primeiro pedido formulado pelo autor terá de proceder, revogando-se a decisão impugnada neste segmento.
Má fé contratual da Ré e consequente obrigação de indemnizar pelos danos causados com a perda do estabelecimento comercial e clientela
O apelante pretende que seja ordenada a baixa do processo para realização de audiência de discussão e julgamento, para apreciação do segundo pedido formulado no valor de 50.000,00€, correspondente à má-fé contratual evidenciada pela Ré que, visando obter um benefício patrimonial [venda de um prédio livre de ónus e encargos], causou reflexamente a perda do estabelecimento comercial e clientela pelo Recorrente.
Argumenta o apelante que a restauração natural não é possível, sendo necessário compensar a perda daquele que ficou mais desfavorecido na sua esfera por forma a tornar a situação o mais próximo possível da anterior, mediante o pagamento de um valor pecuniário por forma a ressarcir os prejuízos causados. Por força do despejo e da desocupação, sem realojamento, o recorrente encerrou uma atividade de 55 anos, perdeu toda a sua clientela e volume de negócios, ficou sem trabalho e sem sítio para manter a sua atividade de comerciante. Em contrapartida, a Ré, suportada pela lei, obteve um fundamento válido para cessar um contrato de cariz vinculístico e vender um prédio localizado em “pleno coração de Lisboa” a fundos de investimento, obtendo um ganho correspondente ao preço recebido pela venda do prédio.
O Tribunal a quo julgou improcedente este pedido adotando esta fundamentação:
«Ora, o Tribunal entende que a perda da clientela e da faturação são danos que estão contidos na penalidade prevista no n.º 9 do artigo 1103.º do Código Civil.
Assim, pela breve resenha histórica acima transcrita (provinda do Acórdão da Relação de Lisboa mencionado), resulta que legislador em 2012 quis responsabilizar o senhorio pelo não cumprimento da obrigação de iniciar as obras no prazo de seis meses tornando-o responsável por todas as despesas e demais danos, patrimoniais e não patrimoniais, ocasionados ao arrendatário, fixando um valor com referência à renda paga pelo arrendatário.
Tal resulta por ter deixado de existir um valor mínimo de indemnização e a possibilidade de reocupação – redação da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro -, impondo assim ao arrendatário fazer prova de danos superiores ao de dois anos de renda para um valor fixo, independentemente dos danos efetivamente sofridos pelo arrendatário (dispensando assim o arrendatário de fazer prova).
Dito isto, resulta que o Autor não pode exigir mais do que a lei prevê, ou seja, a indemnização correspondente a 10 anos de renda (independentemente do valor dessa renda).
E não se pode dizer que esse valor (10 anos de renda) se revela desrazoável, como afirma o Autor.
Assim, nos termos doutamente entendidos pelo Acórdão da Relação de Lisboa, de 15 de Maio de 2018 (já citado e também mencionado pelo Autor), “para que a opção do legislador – ao fixar o valor da indemnização em 10 anos de renda - pudesse ser censurada pelo juiz à luz do princípio da proporcionalidade teria de se apresentar como destituída de fundamento ou obedecer a um critério legislativo manifestamente desrazoável e inadequado.
Ora, tendo em consideração que no caso em apreciação o contrato de arrendamento perdurou desde 1/01/1969 a 30/04/2015, ou seja, mais de 45 anos, não se afigura manifestamente desrazoável o valor da indemnização em causa nos autos, o qual cabe na margem de discricionariedade legislativa, não se mostrando violado o princípio da proporcionalidade.”.
Dito isto, resulta que não existe fundamento para o Autor pedir a condenação da Ré em indemnização pela perda de faturação e de clientela.
Mas mesmo que assim não se entendesse, esse pedido de indemnização estaria sujeito ao prazo prescricional dos 3 anos, pelos mesmos motivos e fundamentos explanados para a questão da indemnização prevista no n.º 9 do artigo 1103.º do Código Civil.
O Autor invoca o argumento da culpa post pactum finitum para responsabilização da Ré.
Ora, a culpa post pactum finitum baseia-se na violação das regras de boa-fé.
O comando do artigo 762.º, n.º 2, implica que o sujeito cumpra a obrigação a que se encontra adstrito observando, para o efeito, o princípio da boa-fé. Fundando-se a culpa post pactum finitum neste normativo, após a cessação do contrato, as partes mantêm-se adstritas, ainda que de forma ponderada e sempre que assim se justifique, aos deveres laterais. Deveres jurídicos, esses, que se enquadram no conceito de obrigação latu sensu. O mesmo se diga quanto à culpa in contrahendo. O artigo 227.º encerra em si uma obrigação de agir segundo a boa-fé durante as negociações tendentes a um contrato, assim como na sua formação.
É precisamente por isso que nos remetemos para o disposto no n.º 2 do artigo 498.º do Código Civil, sendo o prazo de prescrição de três anos.»
Vejamos.
É sabido que «A relação obrigacional gera uma relação jurídica complexa, pródiga em deveres acessórios (ou laterais) de conduta impostos pela boa-fé. A estes deveres, de origem não convencional, são assinaladas duas funções essenciais: por um lado, auxiliam a realização positiva da finalidade prosseguida pela relação obrigacional, por outro, propõem defender os interesses de integridade pessoal e patrimonial das partes. E precisamente este segundo feixe dos deveres acessórios - normalmente designados como deveres de proteção - que, pela sua característica independência e autonomia em relação ao negócio jurídico (vontade) ou contrato (consenso/acordo), uma vez que são integrados pela lei, podem sobreviver à extinção dos deveres primários de prestação» (Jorge Artur Costa e José Miguel Pinto, “Entre o contrato e o delito: “cláusula do razoável”, terceira via da responsabilidade civil e culpa post pactum finitum”, in Cadernos de Direito Privado, nº 67, 2019, p. 23). Estes deveres acessórios de conduta «correspondem a uma complementação legal do conteúdo obrigacional do contrato fundada no princípio da boa fé – art.º 762º, nº2, do Código Civil» (Op. Cit., p. 25).  Têm a feição de uma cláusula geral, de âmbito e conteúdo indeterminados, sendo a sua existência e intensidade definidas de acordo com o tipo de relação e a qualidade dos parceiros contratuais. Os deveres acessórios de conduta, como os de proteção, podem vigorar após a extinção dos deveres de prestação, ocorrendo uma pós-eficácia em sentido estrito (Op. Cit., p. 34). «No âmbito dos deveres de proteção justifica-se a inversão do ónus da prova da (ilicitude e da) culpa a cargo do devedor/lesante, desde que estejam em causa deveres de proteção configurados perante pessoas determinadas, conhecendo um conteúdo razoavelmente específico, e por apresentarem uma conexão material com o perímetro do contrato, isto é, estão em jogo riscos específicos do contrato que o devedor/lesante tem o dever de evitar» (Op. Cit., p. 38).
Noutra vertente, a propósito da ressarcibilidade aquilina dos interesses primariamente patrimoniais, Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, p. 240,  afirma que: «A ninguém assiste um direito à conservação, ao aumento ou à não diminuição do património, como ninguém tem o direito de não realizar despesas ruinosas ou inoperantes, ou, em geral, de não sofrer menos-valias no seu acervo de bens em consequência de decisões que tome, agindo ou deixando de agir (v.g. celebrando ou deixando de celebrar certos negócios). Aqui radica a incapacidade do direito delitual de responder de forma global ao problema da ressarcibilidade dos danos provenientes da frustração da confiança alheia.»
Ora, a invocação da cláusula geral dos deveres acessórios de conduta, na vertente de deveres de proteção, deixa de ser pertinente a partir do momento em que existe regime legal específico que rege sobre os termos e condições da extinção da relação contratual duradoura, como é o caso. A regra especial, como é seu timbre, concretiza a solução geral, adaptando-a às vicissitudes da situação delimitada (cf. Pedro Romano Martinez, Introdução ao Estudo do Direito, AAFDL, 2022, pp. 236.238).
Com efeito, conforme visto supra, a extinção do contrato de arrendamento por denúncia do senhorio com fundando na necessidade de realização de obras de remodelação ou restauro profundos está condicionada ao pagamento de uma indemnização ao inquilino a liquidar até à entrega do locado (cf. Artigo 1103º, nº6, al. a), do Código Civil). Acresce que, caso o senhorio não inicie as obras no prazo de seis meses contados da desocupação do locado, o senhorio fica adicionalmente sujeito a uma penalidade de 10 anos de renda, sendo essa penalidade exigível no caso em apreço (cf. supra).
Ora, a indemnização correspondente ao pagamento de dois anos de rendas consignada no Artigo 1103º, nº 6, al. a), do Código Civil, constitui um exemplo de regras «(…) destinadas à liquidação antecipada da obrigação de indemnização, prescindindo da determinação da existência de danos (conformando, como visto, verdadeiras ficções legais de danos) e, nessa medida, determinam de forma definitiva e absoluta o valor quantum indemnizatório, independentemente de este ser superior, igual ou inferior aos danos efetivamente sofridos pelo lesado» (António Barroso Rodrigues, O Concurso de Responsabilidade Civil, Almedina, 2023, p. 397). Este raciocínio vale, mutatis mutandis, quanto à penalidade de dez anos de renda, ou seja, esta penalidade opera como um adicional (punitivo) à liquidação antecipada da obrigação de indemnização devida pelo senhorio pela extinção do contrato com este fundamento específico. Também aqui o legislador quantifica a priori os danos emergentes da cessação do contrato de arrendamento, precludindo uma avaliação concreta diversa.
Em diferentes palavras, a ponderação das consequências (presentes e futuras) patrimonialmente desfavoráveis na esfera jurídica do inquilino decorrentes da extinção do contrato de arrendamento foi formulada pelo legislador com referência a dois momentos distintos: uma indemnização que é concomitante com a extinção do contrato e, na eventualidade do senhorio não iniciar as obras no prazo de seis meses, uma penalidade contratual (adicional) de dez anos de renda. Ou seja, a ponderação efetuada e a técnica legislativa utilizadas inviabilizam a atuação da cláusula geral dos deveres acessórios de conduta de proteção pós-contratuais.
Resta, como último recurso, o teste da proporcionalidade da solução legal vigente, discussão que não foi empreendida nesses termos pelo apelante. A este propósito, tem interesse o aresto desta Relação de 15.5.2018, Manuel Marques, 4188/16 (longamente citado pela decisão impugnada):
«(…) é indubitável que o estabelecimento de uma indemnização para as situações em que o senhorio não inicia as obras no prazo razoável fixado pelo legislador ordinário, se apresenta como uma forma idónea de proteção do interesse do arrendatário, o qual se vê cessado o arrendamento, sem que concomitantemente o senhorio tenha usufruído do prédio para o efeito que determinou a extinção daquele contrato. É também necessária, pois que esse meio de satisfação do interesse do arrendatário é uma das formas menos restritivas do direito do senhorio para alcançar o mesmo fim, quando comparada com o direito de reocupação do locado por parte do arrendatário estabelecido na legislação pretérita.
A questão está, pois, em saber se o valor da indemnização a que alude o n.º 9 do art.º 1103º do C.C. se apresenta como excessivo (desproporcionado) para atingir o fim visado pelo legislador.
O direito que a lei ordinária vem reconhecendo ao senhorio de denunciar o contrato de arrendamento com fundamento na execução de obras decorre do direito de propriedade, o qual tem consagração constitucional (art.º 62º da CRP).
Simultaneamente, a lei tutela o direito do arrendatário, o qual emana, em última análise, do direito à habitação plasmado no art.º 65º da Constituição.
A tutela do direito do arrendatário tem variado ao longo do tempo, como se verifica da análise da evolução legislativa registada nesta matéria.
(…)
Posteriormente, com as alterações operadas pela Lei n.º 31/2012, o art.º 1103º do CC passou a estabelecer que a indemnização pela denúncia corresponde a um ano de renda, garantindo-se ainda, no que toca aos contratos habitacionais celebrados antes da vigência do RAU, o realojamento do arrendatário se este tiver idade igual ou superior a 65 anos ou deficiência com grau de incapacidade igual ou superior a 60% (art.º 28º, n.º 5 do NRAU); e, em caso de incumprimento da obrigação de iniciar as obras em seis meses contados da desocupação do locado, por motivo não imputável ao senhorio, obriga o senhorio ao pagamento de uma indemnização correspondente a 10 anos de renda.
Por último, na redação atualmente vigente (operada pela Lei n.º 43/2017, de 14/06), a indemnização pela desocupação correspondente a dois anos da renda, de valor não inferior a duas vezes o montante de 1/15 do valor patrimonial tributário do locado, mantendo-se a indemnização correspondente a 10 anos de renda pelo não começo pelo senhorio das obras no prazo acima referido.
Desta resenha decorre que ao longo dos anos o legislador ordinário tutelou o interesse do arrendatário decorrente da denúncia do contrato de arrendamento por motivo de realização de obras por duas vias: estabelecimento de uma indemnização e/ou direito à reocupação no edifício renovado ou reconstruído um espaço de habitação aproximadamente correspondente ao que antes ocupava.
O direito à indemnização tem uma medida diferente consoante ela corresponda à cessação do contrato de arrendamento (art.º 1103º, n.ºs 6, 7 e 8 do CC) ou à penalização pelo não início das obras no prazo legal de 6 meses (n.º 9 do citado artigo).
É que, enquanto na 1ª situação nos encontramos perante um caso de concordância prática entre bens ou interesses conflituantes, de natureza idêntica (o direito de propriedade do senhorio e o direito à habitação do arrendatário decorrente do contrato de arrendamento), na segunda situação, ao sacrifício do direito à habitação do arrendatário não corresponde um benefício para o senhorio, por este não ter iniciado as obras no prazo razoável fixado na lei.
Perante uma tal situação, compreende-se que a indemnização seja de valor mais elevado, tanto mais que a lei deixou de prever o direito do arrendatário à reocupação do locado.
Essa diferença estriba-se no propósito do legislador de penalizar a atitude do senhorio ao por termo ao contrato de arrendamento, afetando o direito de habitação do inquilino, sem que, no prazo de seis meses contados da desocupação do locado, tenha concomitantemente exercitado o seu direito à realização das obras. Ou seja, sacrifica-se totalmente o direito do arrendatário para nada.
Por outro lado, para que a opção do legislador – ao fixar o valor da indemnização em 10 anos de renda - pudesse ser censurada pelo juiz à luz do princípio da proporcionalidade teria de se apresentar como destituída de fundamento ou obedecer a um critério legislativo manifestamente desrazoável e inadequado.
Ora, tendo em consideração que no caso em apreciação o contrato de arrendamento perdurou desde 1/01/1969 a 30/04/2015, ou seja, mais de 45 anos, não se afigura manifestamente desrazoável o valor da indemnização em causa nos autos, o qual cabe na margem de discricionariedade legislativa, não se mostrando violado o princípio da proporcionalidade.»
Aqui chegados, afigura-se-nos que o montante dos valores recebidos pelo inquilino, na sequência da extinção do contrato, são proporcionais e adequados. Com efeito, o contrato de arrendamento iniciou-se em 3.10.1962 e o locado foi entregue em 8.2.2018, daqui resultando que o locado foi utilizado pelo inquilino durante 56 anos. O inquilino recebe (aquando e posteriormente à cessação do contrato) um total de 12 anos de rendas, ou seja, um valor equivalente a 21% da duração do contrato.
Desproporcional e inusitado é o valor do segundo pedido formulado pelo autor porquanto € 50.000 equivale a 73 anos de vigência do contrato (a renda mensal era de € 56,88)!...
A fundamentação autónoma da condenação em custas só se tornará necessária se existir controvérsia no processo a esse propósito (cf. art.º 154º, nº 1, do Código de Processo Civil; Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs. 303/2010, de 14.7.2010, Vítor Gomes, e 708/2013, de 15.10.2013, Maria João Antunes).
DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar:
a) Parcialmente procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida sob 1, julgando-se improcedente a exceção perentória da prescrição quanto ao pedido formulado sob a), condenando-se a Ré a pagar ao autor € 6.825,80;
b) No mais, improcedente a apelação, mantendo-se a improcedência do pedido formulado sob b).
Custas pelo apelante e pela apelada, na vertente de custas de parte, na proporção de 88% e 12%, respetivamente (Artigos 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº6 e 663º, nº2, do Código de Processo Civil).

Lisboa, 22.10.2024
Luís Filipe Pires de Sousa
Cristina Silva Maximiano
José Capacete

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[1] Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7ª ed., 2022, p. 186.
[2] Abrantes Geraldes, Op. Cit., pp. 139-140.
Neste sentido, cf. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13, de 10.12.2015, Melo Lima, 677/12, de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, de 17.11.2016, Ana Luísa Geraldes, 861/13, de 22.2.2017, Ribeiro Cardoso, 1519/15, de 25.10.2018, Hélder Almeida, 3788/14, de 18.3.2021, Oliveira Abreu, 214/18, de 15.12.2022, Graça Trigo, 125/20, de 11.5.2023, Oliveira Abreu, 26881/15, de 25.5.2023, Sousa Pinto, 1864/21, de 11.7.2023, Jorge  Leal, 331/21, de 11.6.2024, Leonel Serôdio, 7778/21. O tribunal de recurso não pode conhecer de questões novas sob pena de violação do contraditório e do direito de defesa da parte contrária (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17.12.2014, Fonseca Ramos, 971/12).
[3] Existe um «princípio geral de inadmissibilidade de fraude à lei, implícito e transversal ao sistema», sendo «abrangidos por um juízo de desvalor jurídico todos os atos que conduzam ao enfraquecimento da força jurídica de regras vinculativas: estas, dirigindo-se embora a hipóteses estruturalmente distintas da que corresponde ao ato em fraude à lei, tutelam constelações de interesses que são vulneradas pelos resultado final de um ato em fraude à lei. Com efeito, o ato em fraude à lei carateriza-se pela neutralização da aplicabilidade de uma ou mais regras vinculativas ancorada num esquema jurídico-formal não compreendido no tipo da regra (nem na sua letra nem no seu espírito)» - Ana Filipa Morais Antunes, A Fraude à Lei no Direito Civil Português, Almedina, pp. 237-238.