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PARECERES
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
RELATÓRIO SOCIAL
PERÍCIA MÉDICO-LEGAL
ACTO SEXUAL DE RELEVO
VIOLAÇÃO
ABUSO SEXUAL
ABUSO SEXUAL DE PESSOA INCAPAZ DE RESISTÊNCIA
Sumário
I - É admitida a junção de Pareceres - jurídicos e técnicos- com o recurso interposto, uma vez que a tipologia dos pareceres em causa, ainda que se destinem a esclarecer o espírito de quem julga, não constituem provas ou meios de prova mas meras opiniões técnicas. II - A alusão a audiência, no artigo 165º, do Código de Processo Penal, como momento até o qual é de admitir a junção dos Pareceres, ainda se reporta à audiência que era realizada na hipótese de recurso, perante Tribunal Superior e que foi de natureza obrigatória. III- Tendo o Tribunal recorrido indagado de todos os factos, que foi suscitado a conhecer, desde logo da incapacidade da ofendida, elemento integrador da tipicidade objetiva dos crimes imputados ao arguido/recorrente, não se configura o vício de insuficiência da matéria de facto provada prevista no artigo 410º, nº 2 a) do Código de Processo Penal, o qual haveria de se evidenciar do texto da decisão recorrida por si só ou conjugado com as regras da experiencia comum e sem recurso a outras provas, o qual não se confunde com a insuficiência da prova, para os factos que erradamente, possam ter sido dados como provados, sem prova, e que constitui um erro de julgamento, que se inscreve na impugnação ampla da matéria de facto, previsto no artigo 412º, nº 3 e 4 do Código de Processo Penal. IV- A reprodução integral do relatório social, na decisão recorrida, quando não tenha condicionado a apreciação critica, daquele meio de prova, na decisão proferida, configura um mero erro cuja alteração/eliminação, não importa uma modificação essencial que, assim, reclama correção neste Tribunal, nos termos do artigo 380º, nº1 b) e 2 do Código de Processo Penal. V- Uma vez que a vítima, não é portadora de uma qualquer psicopatologia ou debilidade, que careça de ser medicamente avaliada, a fim de se aferir o grau de capacidade ou de incapacidade, de que é portadora, para entender e querer ou para opor resistência, a um qualquer ato sexual de relevo, não se impunha ao Tribunal, o recurso a uma perícia médico legal, ( artigo 151º, do Cód. Processo Penal) a determinar nos termos do art.º 340º, nº 1, do Cód. Processo Penal. VI- Está numa situação de incapacidade de opor resistência uma mulher adormecida, que atento o maior estado de sonolência e de entorpecimento, em que se encontrava, também por efeito de medicação que fez, não teve capacidade para reagir e impedir as situações, de cópula a que foi sujeita, contra a sua vontade, conhecida, do arguido. VII- O artigo 165º, do Código Penal, tutela não apenas indivíduos em situações de incapacidades permanentes, -as paralisias, o esgotamento total, as anomalias psíquicas, onde a vítima não possui capacidade para se determinar, consentindo, para os atos sexuais de relevo, - mas igualmente as incapacidades transitórias, não provocadas pelo agente do crime, como a embriaguez severa, não confundível com a excitação alcoólica, o sono narcótico, o sono anestésico, o hipnotismo, o desmaio, sono com privação de sentidos, bem assim como as de vítimas encontradas após espancamentos e atropelamentos, entre outros.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os juízes acima identificados da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa
I-Relatório
1.No dia 3.05.2024 sob a referência citius 435131621, foi proferido Acórdão no Tribunal de 1ª instância à margem referenciado que terminou com o seguinte dispositivo: “III – Dispositivo Tudo visto e ponderado, acordam os membros deste tribunal coletivo em julgar a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada e, em consequência: A) Absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, do crime de violência doméstica agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do Código Penal, de que vem acusado. B) Absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada, do crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164.º, n.º 2, do Código Penal, de que vem acusado. C) Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de dois crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previstos e punidos pelo artigo 165.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, cada um deles na pena de 3 (três) anos de prisão. D) Em cúmulo jurídico das penas parcelares referidas, condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 4 (quatro) anos, acompanhada de regime de prova, nos termos a delinear e acompanhar pela DGRSP, e sujeita à obrigação do arguido pagar à ofendida BB, no prazo de 1 (um) ano a contar do transito em julgado da presente decisão, a quantia arbitrada pelo tribunal, a título de reparação. E) Arbitrar à ofendida BB, a quantia de € 7 500 (sete mil e quinhentos euros), a título de reparação pelos danos não patrimoniais por ela sofridos, a suportar pelo arguido AA. F) Condenar o arguido AA no pagamento das custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) Unidades de Conta (cf. artigos 513.º e 514.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal, e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, com referência à Tabela III anexa a este último diploma legal).”
2. Inconformado com a sua condenação, o arguido interpôs recurso do Acórdão condenatório, concluindo a respetiva motivação nos seguintes termos-:
“CONCLUSÕES A. Vem o Recorrente condenado na pena de prisão suspensa na sua execução, acompanhada de regime de prova, pelo período de 4 (quatro) anos, pela prática em autoria material, sob a forma consumada e em concurso efetivo, de dois crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, crime previsto no artigo 165º do CP. B. Ora, para se dar como preenchido o tipo legal de crime, tem que se dar como provada a existência de uma situação de “incapacidade de opor resistência” da vítima. C. O Tribunal motivou a sua decisão de facto, quanto à alegada incapacidade da Ofendida, a partir das declarações da mesma e do documento do Infarmed junto pelo Arguido. D. Poderia o Tribunal ter apreciado os factos juridicamente relevantes para apurar a existência ou não do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência sem ter ordenado uma perícia médico-legal forense? E. O Tribunal tinha o poder-DEVER de ordenar a realização de uma perícia (art.151º e 340º do CPP), logo, ao não o fazer, encontra-se a decisão enferma do vício da insuficiência para a decisão de direito da matéria de facto provada, nos termos do art.410º nº2 alínea a) do CPP. F. Logo, tinha o tribunal a obrigatoriedade de requerer a presença de um perito que tivesse conhecimento suficiente para valorar aquilo que a ofendida diz ter sofrido. G. A este respeito, tenha-se especial atenção para as palavras da Exma. Professora Doutora Maria João Antunes, no Parecer que se anexa: “O Tribunal tinha o dever de ordenar a realização de perícia médico-legal e forense, com a indicação do objeto da perícia e a formulação dos quesitos a que importaria responder. Tinha o dever, que é também um poder, de ordenar a produção de um meio de prova cujo conhecimento era necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (artigo 340.º, n.º 1, do CPP). Não o tendo feito e tendo valorado outros meios de prova, o Tribunal desrespeitou o princípio da legalidade da prova, valorando de meios de prova que a lei proíbe por a apreciação dos 39 factos exigir especiais conhecimentos científicos (artigos 125.º e 151.º do CPP).” (página 9-10) H. Pelo que, não podia o Tribunal a quo bastar-se com a apresentação de documentos ou com a prestação de testemunhos! I. De acordo com conclusões de Parecer elaborado pela Ilustre Professora Catedrática da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra: a) O Tribunal não podia ter apreciado os factos juridicamente relevantes para o preenchimento do elemento típico “pessoa incapaz de opor resistência”, valorando as declarações da ofendida e o documento do Infarmed; b) Ao fazê-lo, o Tribunal desrespeitou o princípio da legalidade da prova, valorando meios de prova que a lei proíbe, por a apreciação dos factos exigir especiais conhecimentos científicos (artigos 125.º e 151.º do CPP). c) Para a apreciação dos factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, o Tribunal tinha o poder-dever de ordenar a realização de uma perícia médico-legal e forense (artigos 151.º e 340.º); por conseguinte, d) O acórdão do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa de 2 de maio de 2024 enferma do vício da insuficiência para a decisão de direito da matéria de facto provada (artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP); com efeito, e) A decisão de dar como preenchido o tipo legal de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência (artigo 165.º do CP) não encontra na matéria de facto base que a suporte; f) Não podendo ser valoradas as declarações da ofendida e o documento do Infarmed, não pode ser dada como provada a incapacidade da ofendida BB para opor resistência aos atos sexuais de relevo que com ela praticou o arguido AA J. Com efeito, além da insuficiência da matéria de facto provada, também existe um erro notório na apreciação da prova. K. Existem incongruências no depoimento da Ofendida, depoimento este que se mostra contraditório até com as mensagens trocadas entre a mesma e o Arguido/Recorrente. L. Ora, as mensagens juntas e apreciadas pelo Tribunal não demonstram o estado emocional e fragilidade que alega a Ofendida nas suas declarações. M. Mais, se a Ofendida alega ter tomado medicação todo o dia e estava com sonolência e incapaz, as mensagens não corroboram com o que disse em Tribunal. N. Ora, além do arguido, ora Recorrente, ter sido condenado por factos que a Ofendida alega ter sofrido quando se encontrava num estado de incapacidade devido ao medicamento que tinha ingerido, importa também questionar como é possível que a mencionada ofendida se tenha mantido em alerta desde o início desse dia até às 3h da manhã, momento em que esta se desloca de Uber para casa do Recorrente. O. Contudo, o Tribunal deu como provada a incapacidade da Ofendida para opor resistência aos atos sexuais de relevo com ela praticados, incapacidade essa que decorreu da toma do medicamento “Rivotril”. P. Mas vejamos, diz o RCM do Rivotril que “A solução oral do rivotril é de 2,5 mg/ml, o que significa aproximadamente 0,1 mg por gota. Portanto: 5 gotas = 0,5 mg; 10 gotas = 1,0 mg. A dose inicial do clonazepam em gotas é de 2 a 3 gotas (0,2 mg a 0,3 mg) tomadas duas vezes por dia. Pode-se aumentar 1 a 2 gotas em cada tomada a cada três dias, até atingir a dose alvo diária de 1,0 a 2,0 mg por dia.” Q. Quanto a este aspeto, é necessário perceber quando é que se considera que a toma do medicamento é feita em sobredosagem e em que medida uma determinada dose é passível de provocar os efeitos referidos pela Ofendida e mesmo qual a duração de efeitos secundários/indesejáveis. R. Assim, refere o RCM do Rivotril que a dose terapêutica máxima para adultos (20 mg/dia) não deve ser excedida. S. Neste sentido, o Parecer técnico de farmacologia, que se junta em anexo “A dose diária recomendada é de 20 mg/dia, ou seja, 200 gotas diárias, devendo essas doses serem divididas em 3 doses iguais ao longo do dia.” Acrescentando que, “é frequente observar-se o aparecimento de fenómenos de tolerância e dependência” (pág. 5 do parecer). T. Ora, a ofendida refere que, naquele dia terá tomado mais do que as 3 gotas que habitualmente toma, mas não especifica em concreto quantas gotas terá ingerido. U. Apenas se poderá deduzir, pelo depoimento da Ofendida que não seriam mais de 10 ou 20 gotas do que a toma habitual “(00:19:49) eu tomei uma dose maior do que a minha médica recomendava em SOS mas não era algo que meu corpo estava… eu acredito que se eu tivesse tomado mais umas 10 gotas, umas 20 eu teria adormecido de certeza” mas como eu também estava na expectativa de ele entrar em contacto comigo eu não quis adormecer porque eu queria alguém do meu lado naquele momento.”. V. Pelo que, não se consegue compreender como é que o Tribunal chega à conclusão de que, por tomar um determinado número de gotas não apurado, ignorando a hora da última toma, os concretos efeitos e duração dos mesmos, apresentou a ofendida, sintomas que a impossibilitaram de reagir. W. Não nos parece possível que alguém consiga “controlar” os efeitos secundários que uma medicação provoca. Se a dose ingerida pela ofendida era passível de a deixar num estado de incapacidade de reagir, como é que poderia ter “controlado” os efeitos da medicação “porque estava na expectativa” de ver o arguido? X. Mais, se a Ofendida refere que não tomou mais 10 ou 20 gotas (do que a dose habitual), de acordo com o Parecer técnico que se junta ao presente recurso, não se tratou de uma sobredosagem, muito pelo contrário, encontra-se muito abaixo da dose diária recomendada. Y. Acresce a isto que, no caso em concreto da ofendida BB, como a mesma afirma nas suas declarações (00;18:49), já fazia uso do medicamento há bastante tempo e já teria criado resistência ao mesmo. Z. Face às conclusões do parecer Técnico farmacológico, atrevemo-nos a afirmar que, se fosse requerida a produção de prova pericial, ficaria cabalmente afastada a “alegada incapacidade” da ofendida e, consequentemente, afastado o ilícito do qual o Recorrente vem condenado. AA. Portanto, existe um erro grosseiro no julgamento da matéria de facto, com efeito, o Tribunal considerou provado um determinado facto sem que tenha sido efetuada prova em audiência de discussão e julgamento de que tal facto realmente ocorreu. BB. Trata-se de um erro que se forma no processo cognoscitivo e, sobretudo, valorativo do julgador, podendo desdobrar-se, por essa via, em erro na apreciação da prova e erro na respetiva valoração, traduzido na violação das regras de experiência que servem de parâmetro à apreciação da prova ao abrigo do disposto no artigo 127º do CPP. CC. Estabelece o artigo 127.º do CPP que “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”. DD. Este princípio da livre apreciação das provas não tem carácter arbitrário nem se circunscreve a meras impressões criadas no espírito do julgador, encontrando-se vinculado à busca da verdade e às regras da experiência e da lógica comum. EE. Ora, como já ficou claro, o Tribunal a quo considerou como preenchido o tipo de ilícito do crime de abuso de pessoa incapaz de resistência, tendo em conta unicamente o depoimento da Ofendida e numa interpretação tendenciosa da bula do medicamento Rivotril. FF. Não ficou provado em sede de audiência de julgamento que a Ofendida tivesse concretamente sentido os efeitos secundários que afirma ter sentido, nem tão pouco o Tribunal tinha meios para ter a convicção de que tais efeitos existiram, pelo que, a alegada incapacidade da Ofendida não foi dada como provada concretamente em audiência de julgamento. GG. Não resultando provados os factos: “13. Nessa data, o arguido e a ofendida BB conversaram por largo tempo, tendo a ofendida relatado ao arguido que padecia de depressão e ansiedade e tomava medicação – Clonazepan – que lhe causava sonolência e dificuldade em reagir. 16. O arguido sugeriu que fosse a sua casa, tendo a ofendida BB retorquido que não estava em condições por via da medicação que lhe causava sonolência. 19. Passado algum tempo, aproveitando que a ofendida BB dormia e ciente de que a mesma não o pretendia, o arguido introduziu, sem preservativo, o pénis ereto, na vagina da ofendida, friccionando-o e levando-a a acordar, contudo por via do estado de entorpecimento/sonolência em que se encontrava a ofendida não lhe disse que parasse, vindo o mesmo a ejacular. 20. Volvido algum tempo, aproveitando novamente o facto da ofendida BB estar a dormir e ciente de que a mesma não o pretendia, o arguido introduziu novamente o pénis, ereto, na vagina da vítima. 21. A ofendida BB acordou e, estando mais cônscia, disse-lhe, de forma direta e veemente, que cessasse a sua conduta, o que o arguido fez. 22. O arguido agiu, nas circunstâncias descritas, com o propósito de manter com a ofendida BB relações sexuais vaginais, e assim, satisfazer os seus desejos sexuais, o que logrou. 23. Bem sabia o arguido que a ofendida BB não desejava manter com ele relações sexuais ou outro ato/contato sexual nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referidas. 24. Não obstante, o arguido quis e agiu da forma descrita, querendo e aproveitando-se do facto de a ofendida BB estar a dormir e sob efeito de medicamentos, circunstâncias cuja conjugação bem sabia impedirem a vitima de conhecer as suas intenções e de opor resistência aos atos que com ela praticava e das quais se prevaleceu para melhor alcançar a sua pretensão, evitando que a mesma se opusesse à sua atuação uma vez que se encontrava incapaz de o fazer. 25. Bem sabia o arguido que ao agir do modo descrito violava a liberdade e autodeterminação sexual da ofendida BB. 26. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida criminalmente.” 32. Na sequência do comportamento do arguido, a ofendida BB alterou o seu comportamento, passando a estar apática. 33. O comportamento do arguido provocou sofrimento na ofendida BB, o qual se mantém no presente. HH. Pelo que, também, não se encontra preenchido o ilícito típico. II. Constituem elementos do tipo objetivo do crime em análise: a) a prática de ato sexual de relevo, sob a forma de cópula ou outra forma qualificada prevista no n.º 2; b) com vítima incapaz de opor resistência; e c) que o agente se aproveite do estado de incapacidade da pessoa. JJ. O tipo objetivo de ilícito não se esgota com este elemento e o da prática de ato sexual, exigindo ainda que o agente se aproveite da incapacidade da vítima. KK. Importa, por isso, aferir o efeito concreto que resulta da toma daquela quantidade de medicamento para a capacidade e vontade de resistência em determinadas condições de tempo e lugar e não a sua qualificação médica abstrata. LL. No tocante ao elemento subjetivo, o dolo deverá abranger tanto o ato sexual de relevo, no caso a cópula, como a inconsciência ou a incapacidade da vítima de opor resistência e o seu aproveitamento pelo agente Autor. MM. Atento ao conceito de dolo, verifica-se que o dolo tem uma estrutura composta por dois elementos, o elemento intelectual ou cognitivo que se traduz no conhecer e o elemento volitivo que se traduz no querer. NN. Dentro da estrutura do dolo, o elemento intelectual precede sempre o elemento volitivo, porque só se pode querer aquilo que previamente se conheceu. OO. Faltando o elemento intelectual, está prejudicado o elemento volitivo, estando precludido ou excluído o elemento volitivo, falta um elemento do dolo, o que levaria à conclusão pela exclusão da imputação dolosa – exclusão do dolo. PP. Não ficou provado que o Recorrente era conhecedor da alegada “incapacidade “, aproveitando-se dessa “incapacidade” da Ofendida para manter relações sexuais com a mesma, agindo de forma livre, deliberada e consciente, movido por excitação lasciva, e ao abrigo de um estado de incapacidade da Ofendida que a tornava incapaz de lhe resistir. QQ. A condenação do Recorrente é feita com base nas declarações da ofendida BB, de mensagens trocadas entre o arguido e a ofendida e no documento do Infarmed referente ao medicamento “Rivotril”. RR. Sendo completamente ignorada a versão do Recorrente, referindo, até, o Tribunal que “as declarações do arguido não mereceram credibilidade por parte do tribunal, face ao depoimento da ofendida BB e da credibilidade que perpassou do mesmo”. SS. Existe claramente, durante o decurso do julgamento, uma clara violação à presunção de inocência. TT. Embora o Arguido, aqui Recorrente, tenha negado a prática dos factos, durante toda a audiência de julgamento existiu uma espécie de busca incessante por uma justificação para a prática dos factos. UU. O princípio da presunção de inocência impõe-se ao julgador ao longo de todo o processo e diz respeito ao próprio tratamento processual do Arguido. VV. Deste modo, impõe -se que, em matéria de apreciação da prova, se decida a favor do Arguido, atento a insuficiência de elementos de prova e/ ou a dúvida em relação à mesma. WW. Pois, o princípio do “in dubio pro reo” constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa, tendo incidência na motivação de todas as decisões processuais. XX. O princípio in dubio pro reo significa que num non liquet este seja valorado pro reo, isto é, o princípio demanda que o tribunal, caso não logre a prova dos factos que constituem o objeto do processo, dê a acusação como não provada e, consequentemente, decida a favor do arguido. YY. Deste modo, impõe -se que, em matéria de apreciação da prova, se decida a favor do Arguido, atento a insuficiência de elementos de prova e/ ou a dúvida em relação à mesma. ZZ. Por tudo o supramencionado, outra não será a conclusão de que o Arguido, ora Recorrente, deverá ser absolvido da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de dois crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previstos e punidos pelo artigo 165.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal. AAA. Contudo, sem prescindir do acima alegado, ainda que o Tribunal não tivesse chegado a esta conclusão, também a medida concreta da pena se encontra erradamente aplicada. BBB. Mostra-se que, em qualquer circunstância, a pena concreta em que foi condenado o Recorrente é excecionalmente severa, mais se questionando se, no caso em concreto, estaríamos na presença de dois crimes ou de um crime continuado! CCC. Apesar de entender o Recorrente que não se fez prova de danos no caso em concreto, atendendo que se impõe que o Arguido/Recorrente seja absolvido da prática dos crimes que lhe são imputados, impõe-se concluir não estarem preenchidos os pressupostos exigidos para que seja arbitrada a indemnização civil. Nestes termos e nos demais de Direito, que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e o Arguido, ora Recorrente, ser absolvido da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de dois crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previstos e punidos pelo artigo 165.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, ou, caso assim não se entenda, ser reduzida a medida concreta da pena, com o que Vossas Excelências Venerandos farão a acostumada Justiça.
3. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, subindo imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo, ou seja, nos termos legais.
4. O Ministério Público, em 1º instância, apresentou resposta à motivação do recurso, concluindo pela sua improcedência, essencialmente sustentando, que “Conclusões 1 -O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410º, n.º 2, alínea a), Código de Processo Penal, verifica-se quando o Tribunal não tiver considerado provado ou não provado um facto alegado pela acusação ou pela defesa ou de que possa e deva conhecer, nos termos do artigo 358º, nº. 1, Código de Processo Penal, se esse facto for relevante para a decisão da questão da culpabilidade, ou quando, podendo fazê-lo, não tiver apurado factos que permitam uma fundada determinação da sanção; A invocação de tal vício pelo arguido deve-se à circunstância de ter sido condenado pela prática dos crimes de abuso sexual de pessoa incapaz e não ter sido ordenada a realização de perícia. O Tribunal, face aos elementais probatórios carreados para os autos em sede de audiência de discussão e julgamento, conjugada com a prova já constante dos autos, dispôs de todos os elementos necessários e imprescindíveis à boa decisão da causa, o que fez. 2 - “No que se refere ao «erro notório na apreciação da prova», em nosso entender não estamos perante qualquer vício do acórdão, antes se entende é que o que o arguido pretende colocar em causa é a valoração da prova feita pelo Tribunal. Efetivamente, o douto acórdão contém uma minuciosa e claríssima fundamentação da matéria de facto dada como provada, sendo eu a motivação que a sustenta, é feita de modo coerente, lógico e compreensível, sendo cristalino raciocínio que o Tribunal realizou. Na verdade, claro se nos afigura que não existe qualquer violação do preceituado no artigo 127º do Código de Processo Penal, que nos remete para a livre apreciação da prova. Pois que o arguido não contrariou as regras de experiência, nem demonstrou que, por recurso a estas, a fixação factual, bem como a motivação e decisão vertida no acórdão, deveria ter sido diversa daquela que foi. Diversa questão é o arguido não concordar com tal raciocínio, mas isso, de modo algum, acarreta um vício do acórdão, antes se traduz numa diferente valoração da prova realizada, que não infirma a que foi feita pelo tribunal. O que nos leva a não ter tido o Tribunal dúvidas quanto aos factos que deu como provados, pelo que não está em causa a aplicação do princípio in dubio pro reo. 3 – Quanto à medida da pena, invoca o arguido que é “excecionalmente severa”, mas não indica os fundamentos de tal, ou seja, não indica quais os elementos que o Tribunal deveria ter tido em conta para a medida da pena ter sido diversa. Em nosso entender, a pena é justa, adequada e proporcional à gravidade dos factos e, simultaneamente, tem em conta a integração do arguido na sociedade. Pelo que deverá ser negado provimento ao presente recurso interposto arguido AA. Porém, VOSSAS EXCELÊNCIAS, decidindo, farão como sempre a costumada JUSTIÇA”.
5. O Ministério Público junto deste Tribunal da Relação emitiu parecer, louvando-se da Resposta ao Recurso, apresentada na 1ª Instância, e assim pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do Acórdão recorrido.
6. Cumprido o nº2, do artigo 417º, do C.P.P apresentou recorrente/arguido a reiteração da sua motivação de recurso trazendo à colação jurisprudência que entende respaldar a sua argumentação recursiva.
7. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal].
8. Definição do âmbito do recurso. Questão prévia:
Da admissibilidade da junção de Pareceres em sede de recurso.
O recorrente com o recurso interposto juntou um Parecer Jurídico da Senhora Professora Catedrática da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Maria João Antunes, e um Parecer Técnico da Professora convidada nas disciplinas de Farmacoterapia e Farmacologia da escola superior de saúde do Instituto Politécnico de Bragança.
Uma vez que estas tipologias de pareceres não constituem provas, ou meios de prova, ainda que se destinem a esclarecer o espirito de quem julga, mas meras opiniões técnicas a serem valoradas em sede própria, admite-se a sua junção em sede de recurso, em virtude de a alusão a audiência, feita no artigo 165º, do CPP, se reportava-se na hipótese de recurso, à audiência no tribunal superior, a qual foi de natureza obrigatória (Ac. do STJ de 90-02-14, A.J.,6,5, Código de Processo Penal , 1º vol. Simas Santos, Leal Henriques, 1996, pág. 650, Ac. do TRG nº 47/13.7TAGMR.G1, de 22.05.2017, Santos Cabral, Código de Processo Penal, Comentado, 2014, a fl. 698 ).
*
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina (Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V). e a jurisprudência (como de forma uniforme têm decidido todos os tribunais superiores portugueses, nos acórdãos, entre muitos, do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1. S1.) são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à apreciação do tribunal ad quem, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir as questões substanciais a seguir concretizadas – sem prejuízo de outras de conhecimento oficioso -, que sintetizam as conclusões do recorrente, constituindo, assim, o seu thema decidendum enunciadas nas conclusões:
- insuficiência da matéria de facto provada, artigo 410º, nº 2 a) do CPP
- erro notório na apreciação ou julgamento da prova, violação do princípio da legalidade da prova artigo 410º, nº 2 c) do CPP
- violação do princípio in dubio pro reo.
- medida da pena.
*
II – OS FACTOS PROCESSUAIS RELEVANTES
Perante as questões suscitadas no recurso torna-se essencial, para a devida apreciação do seu mérito, recordar a fundamentação em matéria de facto vertida na decisão recorrida:
“II – Fundamentação
1. Fundamentação de facto
1.1. Matéria de facto provada
Da audiência de julgamento, e com interesse para a decisão, resultaram provados os seguintes factos (não se pronunciando o tribunal sobre matéria de direito, juízos de valor e factos conclusivos, repetitivos ou irrelevantes, constantes das peças processuais juntas aos autos):
Da acusação
I – Relativamente à ofendida CC
1. O arguido e a ofendida CC, ambos de nacionalidade …, conheceram-se em Portugal e mantiveram uma relação de namoro entre os meses de … de 2018 e … de 2019, tendo passado a viver juntos no quarto do arguido numa …, em …, em …/… de 2019 até ao termo da relação.
2. Ao longo do relacionamento, o arguido, por diversas vezes, presencialmente, quer em privado quer na presença de terceiros, chamou “bola” e “burra” a CC bem como, quando achava que ela tinha errado, a apodou de “retardada” e “estúpida”.
3. Em data que, em concreto não foi possível apurar, a ofendida foi diagnosticada com depressão e tomou medicação que lhe causava cansaço e sonolência, não mostrando disposição para manter relações sexuais.
4. No dia … para … de … de 2019, o arguido e a ofendida foram passar a noite a casa de um amigo, situada na cidade de ….
5. De manhã, ao acordarem, o arguido aproximou-se da ofendida e iniciou uma relação sexual com esta.
6. A ofendida disse-lhe que não queria e pediu-lhe para parar.
7. Contudo, não se apercebendo da verdadeira vontade da ofendida, o arguido introduziu e friccionou o pénis na vagina de CC até ejacular.
8. A ofendida CC, com receio de causar um escândalo em casa dos amigos, não opôs outra resistência nem pediu socorro.
9. Ao chamar “burra”, “retardada” e “estúpida” à ofendida CC, agiu o arguido de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a ofendia na sua honra e consideração pessoais e estava ciente que o fazia também naquela que era a residência comum de ambos.
II – Relativamente à ofendida BB
10. BB é cidadã... e, desde … de 2018, vive em Portugal.
11. Em … de 2020, BB vivia na ..., em ... numa residência partilhada com três pessoas.
12. Em … de 2020, através da aplicação ..., marcou um encontro com o arguido, encontrando-se junto a uma das faculdades do ... donde seguiram para o ... situado na mesma zona.
13. Nessa data, o arguido e a ofendida BB conversaram por largo tempo, tendo a ofendida relatado ao arguido que padecia de depressão e ansiedade e tomava medicação – Clonazepan – que lhe causava sonolência e dificuldade em reagir.
14. No dia … de 2020, o arguido telefonou à ofendida BB e deslocou-se a sua casa, tendo a ofendida BB dado a conhecer ao arguido que, nesse dia, estava triste e abalada, tendo o arguido ficado ciente do seu estado emocional abatido.
15. À noite, o arguido telefonou novamente à ofendida BB, querendo ir visitá-la ao que aquela recusou por estarem várias pessoas na sua casa.
16. O arguido sugeriu que fosse a sua casa, tendo a ofendida BB retorquido que não estava em condições por via da medicação que lhe causava sonolência.
17. O arguido disse à ofendida BB que enviava um Uber, para a ir buscar, tendo a ofendida dado a sua anuência, deslocando-se então para casa do arguido.
18. Em casa do arguido, sita na ..., o arguido e a ofendida BB mantiveram relações sexuais, após o que a ofendida disse que tinha sono e que queria dormir.
19. Passado algum tempo, aproveitando que a ofendida BB dormia e ciente de que a mesma não o pretendia, o arguido introduziu, sem preservativo, o pénis ereto, na vagina da ofendida, friccionando-o e levando-a a acordar, contudo por via do estado de entorpecimento/sonolência em que se encontrava a ofendida não lhe disse que parasse, vindo o mesmo a ejacular.
20. Volvido algum tempo, aproveitando novamente o facto da ofendida BB estar a dormir e ciente de que a mesma não o pretendia, o arguido introduziu novamente o pénis, ereto, na vagina da vítima.
21. A ofendida BB acordou e, estando mais cônscia, disse-lhe, de forma direta e veemente, que cessasse a sua conduta, o que o arguido fez.
22. O arguido agiu, nas circunstâncias descritas, com o propósito de manter com a ofendida BB relações sexuais vaginais, e assim, satisfazer os seus desejos sexuais, o que logrou.
23. Bem sabia o arguido que a ofendida BB não desejava manter com ele relações sexuais ou outro ato/contato sexual nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referidas.
24. Não obstante, o arguido quis e agiu da forma descrita, querendo e aproveitando-se do facto de a ofendida BB estar a dormir e sob efeito de medicamentos, circunstâncias cuja conjugação bem sabia impedirem a vitima de conhecer as suas intenções e de opor resistência aos atos que com ela praticava e das quais se prevaleceu para melhor alcançar a sua pretensão, evitando que a mesma se opusesse à sua atuação uma vez que se encontrava incapaz de o fazer.
25. Bem sabia o arguido que ao agir do modo descrito violava a liberdade e autodeterminação sexual da ofendida BB.
26. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida criminalmente.
27. O arguido não nasceu em Portugal e tem nacionalidade ….
28. O arguido não tem filhos a viverem em Portugal e a seu cargo, nem possui outros familiares próximos que aqui residam.
Da contestação
29. O arguido é cidadão português tendo dupla nacionalidade, portuguesa e …. Da situação pessoal e económica do arguido
30. Do relatório Social do arguido consta que:
“INTRODUÇÃO O presente relatório social foi elaborado com base nas seguintes fontes e procedimentos:
• Entrevista ao arguido AA, realizada nas instalações destes Serviços;
• Consulta de cópias de documentos apresentados pelo próprio, concretamente Certificado de conclusão da licenciatura em ..., emitido pela ... a 01/08/2022, recibo de prestação de serviços … do arguido com ..., RL do mês de janeiro de 2024, recibo de fornecimento de eletricidade da morada dos autos, EDP, titulada pelo pai do arguido. Impressões do Instagram e WhatsApp relativas a publicações/intervenções da mãe e da irmã do arguido. Participação do arguido no ..., de …2020. Doação do arguido em 2023 para a .... Donativo relativo à educação de uma menor em país …- ... (2023);
• Entrevista com uma das vítimas no processo em causa, BB, nestes Serviços;
• Contactos telefónicos individuais com duas pessoas da esfera amical e académica do arguido, DD e EE;
• Consulta da informação disponibilizada pela PSP – ..., ..., com data de 27/02/2024;
• Consulta das peças processuais remetidas por esse Tribunal (acusação).
Não foi possível contactar a vítima CC, pois o número de telefone que nos foi facultado pelo Tribunal encontrava-se desativado.
O arguido não pode comparecer na primeira data de entrevista para que foi convocado, o que condicionou a elaboração mais célere deste documento.
Em sede de entrevista, realizada mais tarde, AA esforçou-se por transmitir uma imagem positiva e autovalorativa de si próprio e dos elementos do seu agregado familiar, exibindo profícua documentação relativa às suas intervenções de cariz social, económico e de voluntariado, assim como publicações de perfil … da sua irmã e da sua progenitora.
1 – CONDIÇÕES PESSOAIS E SOCIAIS
À data das circunstâncias que deram origem ao presente processo judicial, concretamente em 2018/2019 e janeiro de 2020, AA frequentava a faculdade de …, onde ingressou após ter vindo do país de origem (...). Concluiu a licenciatura em … em …/2022 com a média final de 15 valores. Durante a frequência universitária relata ter participado no ..., em palestras e eventos e realizado um estágio de verão em 2021. É descrito pela fonte auscultada como Bom aluno e adotar interações adequadas em contexto académico.
Após a conclusão do curso, o arguido ingressou como ... estagiário no escritório de ... onde permanece como prestador de serviços …, na área do …, onde descreve dispor de um bom ambiente em contexto laboral.
À data dos alegados factos, o arguido resida em residência partilhada com outros estudantes universitários. Descreve ter sido neste contexto que coabitou temporariamente com a vítima CC, a quem, segundo o seu autorrelato, facultou suporte e apoio durante um período de inatividade académica e alegada instabilidade da vítima. Descreve que manteve o namoro à distância até … de 2019 com a vítima, que regressou ao país de origem de ambos, ..., pelo que se constituiu uma surpresa os alegados factos em juízo. Através da uma aplicação de encontros, o arguido conheceu em … de 2020 a vítima BB, negando ter perpetrado qualquer ofensa à mesma. BB descreve que atravessava um período de vulnerabilidade ao nível da saúde mental, quando estabeleceu uma ligação com AA que perdurou aproximadamente duas semanas, descrevendo o arguido como um indivíduo simpático que não deixava antever uma conduta ofensiva de cariz sexual. Refere nunca mais ter mantido contactos com AA.
O arguido, de 27 anos, descreve não ter qualquer historial aditivo, o que nos é corroborado pela fonte amical, e desfrutar de um bom estado de saúde geral.
Ao nível de ocupação de tempos livres, AA alude à leitura, escrita, videojogos, jantares e saídas com amigos, indicando dispor de um grupo de referência neste domínio.
AA descreve-se como ‘estudioso’ (sic) e desenvolver ações de …, concretamente junto das pessoas da sua esfera de vizinhança em … de 2020, período de confinamento decorrente da COVID 19. Igualmente há dois anos faz doações para promover a ..., tendo contribuído com … euros no ano de 2023. Também desde 2023, promove os estudos de..., num valor de … KSH anuais (aproximadamente 242 euros).
O arguido alude a proximidade afetiva e relacional com os pais e com a irmã, residentes no país de origem (...) pese embora a distância geográfica, tendo recentemente desfrutado de férias em ... com os pais.
Descreve um crescimento equilibrado do ponto de vista económico e afetivo junto da sua família, realçando a atividade do pai como ... na defesa dos ..., e a intervenção participativa da mãe, ... / ... junto dos direitos da ... e da irmã em associação de ...
Tem nacionalidade portuguesa no presente, aludindo à origem portuguesa dos seus ascendentes.
O arguido no presente reside sozinho na morada dos autos, que é propriedade do seu pai em Portugal.
Embora remeta episodicamente dinheiro para o pai, não tem encargos com o arrendamento da habitação, suportando o fornecimento de água, eletricidade e redes móveis da habitação. Por vezes subarrenda quartos do imóvel.
O arguido obtém com a sua atividade profissional 2.205 euros como prestador de serviços.
2 – REPERCUSSÕES DA SITUAÇÃO JURÍDICO-PENAL DO ARGUIDO
Face à sua constituição como arguido, AA refere não ter percecionado reações negativas na esfera de amizades e nos elementos da sua família, deslocando-se os pais a Portugal para lhe facultar suporte afetivo durante o período em que irão decorrer as audiências.
O arguido alude ao impacto psicológico da sua situação jurídico-penal, na medida em que não se revê numa conduta criminal.
Embora perspetive a sua absolvição, vivencia preocupação pelo impacto do desfecho processual na sua vida profissional, em caso de condenação.
Em caso de eventual condenação AA mostra-se disponível para cumprir o que for decidido pelo Tribunal no âmbito de uma medida a executar na comunidade.
Mediante informação da PSP rececionada nestes Serviços, AA não aparece associado a outras ocorrências criminais. Refere não ter tido contactos com o Sistema da Justiça Penal no ....
3 – CONCLUSÃO
Ao que apurámos, a socialização de AA processou-se no ... no seio da sua família de origem, onde não identificamos necessidades afetivas ou económicas, e onde indica dispor de suporte afetivo junto dos elementos do seu agregado.
O arguido releva no seu discurso o papel dos elementos da sua família em prol dos mais vulneráveis, nomeadamente na defesa dos direitos ….
AA veio para Portugal completar a sua formação académica em …, sendo cidadão português no presente e encontrando-se integrado profissionalmente na área dos estudos superiores.
Identifica-se no discurso do arguido tendência para se desresponsabilizar das condutas que deram origem ao presente processo judicial, o que nos aponta, em caso de condenação, para ausência de juízo crítico do desvalor da conduta criminal no seio das relações de intimidade, o que se constitui como uma vulnerabilidade em termos futuros e fator negativo em termos de inserção social.
Face ao exposto, consideramos que em caso de condenação, caso seja ponderada a execução de uma medida na comunidade, esta deverá assumir um carácter probatório, subordinada à frequência de um programa psicoeducacional que aborde a temática da violência doméstica, trabalhe a regulação emocional e promova a aquisição de estratégias alternativas ao comportamento violento, como forma de prevenir futuros comportamentos ilícitos.
Adicionalmente, atendendo à problemática criminal específica, afigura-se-nos que a intervenção junto de AA deverá contemplar a sujeição a avaliação e eventual acompanhamento psicoterapêutico e/ou psiquiátrico estruturado, designadamente com foco na sexualidade. Salientando-se, desde já, que esta intervenção só será possível executar numa medida não inferior a 24 meses, atendendo à especificidade da intervenção no caso em apreço.”
Dos antecedentes criminais do arguido
31. O arguido Não tem averbada qualquer condenação no seu certificado de registo criminal.
Mais se provou que
32. Na sequência do comportamento do arguido, a ofendida BB alterou o seu comportamento, passando a estar apática.
33. O comportamento do arguido provocou sofrimento na ofendida BB, o qual se mantém no presente.
*
1.2. Matéria de facto não provada
Dos factos que se mostram relevantes para a decisão, não se provou que:
Da acusação I – Relativamente à ofendida CC
a) a relação de namoro entre o arguido e CC mantivesse entre meados de 2018 até finais de … de 2019.
b) Ao longo do relacionamento, o arguido, por diversas vezes, presencialmente, quer em privado quer na presença de terceiros, disse à ofendida CC que ela precisava de emagrecer, que era o mais forte na relação e que se não fosse ele a relação não durava.
c) O arguido controlava se a ofendida CC bebia e fumava, se necessário cheirando-lhe o hálito, e se o tivesse feito, deixava de lhe falar bem como lhe exigia que mantivesse relações sexuais como se fosse sua obrigação.
d) O diagnostico de depressão da ofendida CC ocorreu quando esta passou a partilhar o quarto com o arguido.
e) Durante o período em que viveram juntos, por diversas vezes, aproveitando que a ofendida CC dormia e sem a auscultar, o arguido introduziu o seu pénis ereto na vagina da vítima, aí o friccionando até ejacular, mantendo coito vaginal com CC.
f) Pelo menos em duas ocasiões, a ofendida CC apercebendo-se da atuação do arguido disse-lhe que parasse, contudo o mesmo, ignorando-a, prosseguiu até ejacular.
g) Na relação sexual que manteve com a ofendida CC na manhã de … de 2019, esta tivesse repetido que não desejava manter relações sexuais e que o tentasse afastar com o braço.
h) Na relação sexual que manteve com a ofendida CC na manhã … de 2019, o arguido tivesse ignorado a vontade da ofendida CC.
i) A ofendida CC não opôs outra resistência nem pediu socorro face à pressão física exercida e superioridade física do arguido, que a intimidou.
j) O arguido quis e agiu do modo descrito, sabendo que, de forma recorrente, molestava psíquica e sexualmente a ofendida CC e que, de forma reiterada, lhe infligia maus-tratos psíquicos e a humilhava.
k) O arguido agiu, sempre, com o propósito de manter com a ofendida CC relações sexuais vaginais, e assim, satisfazer os seus desejos sexuais, o que logrou.
l) Bem sabia o arguido, em todas as ocasiões descritas, que a ofendida CC não desejava manter com ele relações sexuais nas circunstâncias de tempo, modo e lugar.
m) Agiu o arguido da forma descrita, querendo e aproveitando-se das circunstâncias de a ofendida CC estar a dormir e sob efeito de medicamentos, cuja conjugação bem sabia impedirem a vítima de conhecer as suas intenções e de opor resistência aos atos que com ela pretendia praticar, para melhor alcançar a sua pretensão.
n) Ao agir da forma descrita na manhã de … de 2019, o arguido quis e logrou recorrer à força e superioridade física para vencer a resistência da ofendida CC, estando ciente de que por via dessa atuação conjugada com a maior inibição da ofendida por se encontrar em casa alheia, melhor a submeteria à sua vontade como sucedeu.
o) Bem sabia que ao agir da forma descrita condicionava gravemente a vida e bem-estar psicossocial e que violava a liberdade e autodeterminação sexual da ofendida CC, ofendendo-lhe a respetiva dignidade humana e pondo em perigo a sua saúde psíquica.
p) Em relação aos factos vertidos nas alíneas b), c), e e) a o), agiu o arguido, de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
II – Relativamente à ofendida BB
q) Após a ofendida BB ter dito que tinha sono e queria dormir (nos termos plasmados em 18 dos factos provados), o arguido tenha retorquido “que gostava de acordar pessoas a transar com elas” ao que a ofendida BB lhe disse que não queria que agisse assim consigo.
1.3. Motivação da decisão de facto
O Tribunal formou a sua convicção a partir da análise crítica de toda a prova produzida em audiência e constante dos autos, segundo juízos de experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova (cf. artigo 127.º do Código de Processo Penal). “A livre apreciação da prova a que alude o artigo 127º do Código de Processo Penal, não é reconduzível a um íntimo convencimento, a um convencimento meramente subjetivo, sem possibilidade de justificação objetiva, mas a uma liberdade de apreciação no âmbito das operações lógicas probatórias que sustentem um convencimento qualificado pela persuasão racional do juízo e que, por isso, também externamente possa ser acompanhado no seu processo formativo segundo o princípio da publicidade da atividade probatória.” - cf. Acórdão do STJ de 3/03/1999, in BMJ 485, pág. 248.
Concretizando:
Quanto ao relacionamento do arguido com a ofendida CC
O arguido prestou declarações negando a prática dos factos. Disse terem namorado entre … de 2018 e … de 2019. Que se tratou de um relacionamento intenso, com altos e baixos, com muitas brigas e com muito amor.
Chamava-a de “Bola” muitas vezes, mas era num contexto carinhoso, chamando-a também de “Bolinha”. Em igual contexto carinhoso também a chamava de “Burra” e “retardada”. Nega que lhe tenha chamado “estúpida”.
A CC foi diagnostica com depressão e tomava medicação que afetava a sua predisposição sexual e provoca-lhe cansaço, sonolência acha não.
Negou que alguma vez tivesse praticado relações sexuais com a CC aproveitando-se do facto de estar a dormir e sem a consultar, negando também que alguma vez a CC, apercebendo-se dessa situação, lhe tivesse pedido para parar e ele não o tivesse feito.
Relativamente ao dia … para … de … de 2019, disse terem passado a noite em casa de um amigo, em …. Que na manhã seguinte, ao acordarem, falaram sobre o facto de manterem relações sexuais, ambos acordaram em tal, pelo que mantiveram relações sexuais até ejacular.
Relativamente ao consumo de tabaco disse ter-se exaltado com a CC, não pelo tabaco, mas pela mentira.
A ofendida CC, prestou um depoimento de forma calma, serena e circunstanciada, porém, por vezes de forma algo confusa e até contraditória.
Disse ter namorado com o arguido entre … de 2018 e … de 2019 e descreveu o início da relação como normal. Com o tempo aconteceram pequenas coisas que a afetaram, relatando que o arguido dizia que ela não era tão inteligente nem tão atraente, mesmo na presença de outras pessoas. Chamava-a também de “retardada”, “bola” (referindo-se ao seu peso), “idiota” e “burra”, dizendo que nada do que ela falava era interessante, isto também em público, perante outras pessoas. Disse que era habitual o arguido chamar-lhe este tipo de nomes. Disse que esta era uma forma do arguido a rebaixar e diminuir.
Disse também que o arguido ficava incomodado se ela saía com os amigos, que eram comuns e da faculdade.
Relatou que no dia …/2019, disse ao arguido que ia com os amigos a uma festa no ... e o arguido ficou incomodado com isso e enviou-lhe mensagens para voltar para casa, que essa sua atitude não era correta.
Nesse mesmo dia fumou um cigarro e bebeu álcool. Quando chegou a casa, o arguido apertou muito a sua bochecha, abrindo a sua boca para a cheirar e arguido discutiu consigo e insultou-a, mas não se recorda as palavras exatas, afirmando que o arguido “ficou gritando que fez errado” (SIC.). Referiu que isto aconteceu uma única vez. Quando o arguido sentia o cheiro dizia que aquilo era errado, que não gostava daquelas “merdas”, ficava emborrado, ignorava-a e evitava-a.
Afirmou que o arguido era controlador, que o mesmo lhe dizia “não acha que já bebeu demais”, mais referindo que, um dia, numa brincadeira, enviou uma foto ao arguido com o cabelo roxo, com um produto para alisamento do cabelo, mas dizendo-lhe que o tinha pintado daquela cor e o arguido insultou-a.
Disse que tinha uma depressão e sofria de crises de ansiedade, o que o arguido sabia, e que tomava medicação quer para a depressão quer para a ansiedade. A medicação para a depressão reduzia a líbido e a medicação para a depressão era para induzir o sono e causava-lhe sonolência.
Relativamente ao relacionamento sexual entre ambos, disse que geralmente as coisas aconteciam, não havia perguntas se queria ou não.
Relatou que uma vez o arguido tentou iniciar relações sexuais, ela acordou e disse que não e o arguido parou. À data, não viu gravidade na situação porque acha que o arguido não se apercebeu que ela estivesse a dormir e ele parou quando lhe disse que não queria.
Outra vez, quando acordou de manhã, o arguido disse-lhe que ela devia tomar a pílula do dia seguinte porque tinham “transado sem camisinha”, mas ela não acordou durante a noite, não sabe o que se passou.
Noutra ocasião, de … para … de …, dormiram em casa do FF, um amigo comum. De manhã, o arguido foi para cima de si e iniciou a relação sexual, numa altura em que estava acordada e consciente. Disse-lhe que não queria e pediu para o arguido parar e começou a empurrá-lo (o que disse ter feito durante todo o ato). Porém, o arguido não parou até ejacular. Mais referiu que não gritou porque estava em casa de um colega.
Afirmou ainda que achou que o arguido não tinha entendido que ela não queria manter relações sexuais e, por isso, dia 12 de …, questionou o arguido sobre a situação, através de mensagens. Nessa altura falou, no geral, que não queria manter relações sexuais.
Questionada sobre o motivo pelo qual ficou com a convicção de que o arguido não tivesse apercebido que ela não queria manter relações sexuais naquele momento quando, segundo a própria, esteve durante todo o ato a verbalizar que não e a afastar o arguido com o braço, a mesma não logrou esclarecer de forma cabal e convincente essa sua convicção, afirmando até que achou que o arguido pudesse ter achado que esse seu comportamento (de verbalização que não queria e empurrá-lo com o braço) poderia fazer parte do próprio ato, fazendo alusão a homens com fetiche por estupro, referindo, contudo, que o arguido nunca manifestou esse tipo de gostos nem tal foi alguma vez falado entre ambos.
Disse ter demorado a denunciar o caso porque achava que só tinha acontecido consigo, mas que recebeu uma mensagem de uma pessoa (GG) no Instagram a dizer para ter cuidado, que uma amiga dele tinha sido abusada e viu a fotografia do arguido. Nessa altura ficou em choque e fez a denúncia.
Esclareceu ainda que conheceu a ofendida BB cerca de uma semana antes de ter apresentado a queixa, no metro, e esclareceu as circunstâncias em que tal ocorreu.
Afirmou também que o arguido reclamava por não terem relações sexuais, assumindo que tinham muito poucas relações sexuais. Disse que o arguido falava que era obrigação do namoro manter relações sexuais.
Sobre o relacionamento do arguido com a ofendida CC depuseram também as testemunhas HH, FF, EE, II e JJ, que afirmaram conhecer o arguido e a ofendida CC da Faculdade de … que todos frequentavam.
A testemunha HH disse ter ouvido o arguido chamar “idiota” e “retardada” à CC, o que era frequente e acontecia na faculdade, esclarecendo que tal ocorria no bar, na zona de jogos de matraquilhos e na sala de estudo. Referiu ainda que o arguido o fazia de um jeito desrespeitoso e que a CC respondia “não fala assim”, que se sentia envergonhada, mas não armava discussão.
Disse que o arguido usava tais expressões com outras pessoas, incluindo com ela própria. Que tais expressões não são consideradas normais no ... ou no ... e que as mesmas são consideradas ofensivas nesses locais.
Referiu não se recordar de ter ouvido o arguido chamar “bola” ou “bolinha” à CC e que nunca presenciou quaisquer limitações impostas pelo arguido à CC, afirmando que a CC tinha uma vida social ativa e o arguido não e que quando a CC saía bebia um pouco e o arguido não gostava.
Admitiu já ter estado com a CC no hospital por esta estar em coma alcoólico e acha que o arguido também já esteve com a CC no hospital, por uma outra vez, e pelo mesmo motivo. Disse que a CC também tomava medicação para a depressão.
A testemunha FF afirmou que o arguido tratava a CC de forma humilhante e degradante, apelidando-a de “gorda” e dizendo que a mesma tinha “voz de travesti”, o que era vulgar acontecer na faculdade em contexto de grupo de amigos.
Relatou ainda uma situação, em que a CC se encontrava no ..., com amigos, mas o arguido não, e que este telefonou várias vezes à CC durante a noite.
Disse que não se recorda da CC ter consumos de substâncias ilícitas, mas que a mesma consumia álcool e, numa situação ou noutra, incorria em excesso, afirmando que esta, por duas vezes, entrou em coma alcoólico, o que disse ser normal em contexto de faculdade.
Afirmou que o arguido e a CC dormiram uma vez em sua casa, mas não ouviu nem viu nada fora do normal.
Por fim, disse que depois do arguido e da CC terem terminado a relação de namoro, teve um relacionamento com a CC e, quando o arguido descobriu, este deixou de falar consigo.
A testemunha EE, disse não se recordar de ouvir o arguido a proferir insultos contra a ofendida CC, referindo que, à data trabalhava e não ia com frequência à Faculdade.
Em sua opinião, a relação entre o arguido e a CC era normal, não tendo presenciado nada que a chocasse. Disse que o casal não era muito parecido pois ambos tinham formas distintas de pensar, referindo que a CC era mais agitada e o arguido mais calmo.
Afirmou ainda não se recordar de ter visto a CC a ser agressiva ou rude para com o arguido.
A testemunha KK disse ter convivido com o arguido e com a CC, tendo frequentado o mesmo grupo de amigos e que nunca assistiu a insultos (como gorda, retardada) dirigidos pelo arguido à CC.
A relação de ambos pareceu-lhe normal, nada lhe tendo chamado a atenção.
O convívio com o arguido e a CC era residual, almoçando com eles cerca de uma vez por semana e em festas. Nas festas, todos estavam embriagados.
A testemunha JJ disse ser da mesma turma de Faculdade do arguido e da CC, mas que não estava nem saía à noite com eles.
Disse que o arguido e a CC eram um casal normal e que em contexto de amizade entre …, é habitual usar os termos “retardado” e “idiota”.
Prestaram também depoimento as testemunhas LL e MM, estas, no essencial, depondo sobre a personalidade do arguido, não demonstrando conhecimento direto dos factos em julgamento.
A testemunha LL, que disse ter tido um relacionamento de namoro com o arguido no ano de 2020 e por um período de cerca de seis meses, afirmou que mantém com este uma relação de amizade (referindo que o arguido é um dos seus melhores amigos); que durante o seu relacionamento o arguido nunca a tentou controlar; nunca se sentiu forçada a manter com este relações sexuais; que as pessoas tratam-se por “retardado”, mas nunca se sentiu ofendida com tal; e ser hábito do arguido pedir desculpa, até mesmo por coisas que não fez.
Relativamente à testemunha MM, pai do arguido, referiu conhecer a ofendida CC, por ter sido namorada do arguido e com quem esteve presencialmente, por dois dias, e não conhecer a ofendida BB. No que se refere ao arguido, disse, no essencial, que o mesmo sempre foi respeitoso; é uma pessoa equilibrada; pede desculpa por tudo e por nada (acha mesmo que o arguido usa, de forma excessiva, o pedido de desculpa). Quanto ao relacionamento deste com a ofendida CC, referiu que, em seu entender, eles são pessoas diferentes; que a CC revelou alguma instabilidade (esclarecendo que a mesma demonstrou momentos de tristeza e outros em que estava tudo bem); e que as expressões em causa nestes autos, imputadas ao arguido, são expressões usadas pelos jovens, mas para si não são expressões corretas e foi esse o valor (incorreção de tais expressões) que transmitiu ao arguido seu filho. Nesta sede, atendeu ainda o tribunal ao teor das mensagens trocadas entre o arguido e a ofendida CC, constantes do apenso a estes autos, e as juntas pelo arguido em sede de contestação, constantes de fls. 286 verso a 299.
Quanto ao relacionamento do arguido com a ofendida BB.
O arguido prestou declarações negando também a prática dos factos.
Disse que se encontraram na aplicação ... em … ou … de 2020.
Saíram juntos duas ou três vezes antes da BB ir a sua casa. Esta não lhe disse que estava com depressão nem que tomava medicação.
Negou que no dia em que a BB foi a sua casa, na ..., tivesse ido primeiro a casa desta e aí constatado que a mesma estava triste e abalada e que tivesse percecionado que a mesma estivesse emocionalmente abatida. Negou igualmente que nesse mesmo dia, à noite, tivesse telefonado à CC, querendo ir visitá-la e que esta tivesse recusado por estarem várias pessoas na sua casa, tendo-lhe sugerido que fosse ela a casa dele e bem assim que esta lhe tivesse respondido que não estava em condições de ir por causa da medicação que tomou que lhe causava sonolência.
Pelo contrário, disse o arguido que ele e a BB combinaram que esta iria a casa dele por mensagem. Que a BB disse que não queria ir a pé porque estava frio e ele ofereceu-se para pagar um Uber e chamou um que levou a BB até sua casa.
Na sua casa, mantiverem relações sexuais consensuais e durante a noite mantiveram relações sexuais, por três vezes, consentidas e com preservativo.
Acredita que não tenha acontecido a BB acordar durante o ato sexual, lhe pedido que parasse e ele tivesse parado.
Depois desse dia não voltaram a encontrar-se. Ele queria, mas ela não, tendo-lhe a BB dito, quatro ou cinco dias depois do encontro, o que tinha acontecido, relatando os acontecimentos tal como estão descritos na acusação.
A ofendida BB prestou um depoimento claro, seguro, circunstanciado e, de forma genuína, evidenciou o trauma sofrido pelo facto de ter sofrido um envolvimento sexual, que não consentiu e ocorrido num momento em que não tinha capacidade para exteriorizar a sua vontade quanto à execução do mesmo, bem como o sofrimento que tal lhe causou, o qual ainda hoje sente, evidenciado pela forma sofrida e a voz trémula e, por vezes até, embargada, com que relatou os factos.
Sempre com clareza e rigor, afirmou que no início do mês de janeiro de 2020 começou a falar com o arguido através da aplicação .... O primeiro encontro físico entre ambos aconteceu no dia …de 2020 no ..., no ..., onde conversaram durante toda a tarde. Esclareceu que, nesse dia, foi buscar o arguido à Faculdade de …, que o mesmo frequentava.
Nesse mesmo dia disse ao arguido que no dia seguinte (…) completaria um ano de namoro com o ex-namorado e que essa ia ser uma data muito difícil para ela. Verbalizou isso com o arguido porque ela própria se estava a preparar para ter um dia péssimo. O arguido confortou-a e disse-lhe que estaria lá para ela.
Referiu que sofre de depressão e ansiedade, diagnosticada desde os 21 anos de idade.
Disse ainda que no dia 18 de janeiro de 2020, passou o dia em casa e, porque se sentia péssima, tomou medicação em dose superior à que habitualmente tomava. Que a medicação acalma o sistema nervoso e, segundo a própria “não passa muita coisa na sua cabeça, deixa você sem sentimentos”. À noite parecia um “zombie”, conversava, mas o corpo estava muito pesado.
Durante esse dia 18 de janeiro trocou mensagens com o arguido e este disse que a podia visitar antes de ir jantar com uns amigos e assim o fez. O arguido foi a sua casa e conversaram, nada mais se tendo passado.
Arguido voltou de madrugada, mandou-lhe mensagem e sugeriu que ela fosse a sua casa. Respondeu que não tinha condição para ir a casa dele, mas acabou por ir a casa do arguido, de Uber, pedido pelo arguido.
Na casa deste, manteve relações sexuais consentidas com o arguido, que não demoraram muito tempo porque disse ao arguido que “estava muito cansada, queria muito dormir e só queria algum tipo de aconchego ali com alguém”. Virou para o lado e dormiu. O arguido deitou-se a seu lado e dormiram.
Mais referiu que depois acordou, ainda de noite, quando o arguido já estava a penetrá-la, estando ela de costas ou de lado (afirmou que não estava de frente para o arguido porque não tinha a visão do rosto dele, vendo apenas a almofada e a cartela dos preservativos). Não tinha força para se mexer ou verbalizar alguma coisa, tentou fazer força para verbalizar alguma coisa e para se mexer, mas apenas conseguiu mexer os olhos, não tendo sido capaz de qualquer reação, e “rezou” para que aquilo parasse o mais rápido possível. O ato finalizou e agradeceu na sua cabeça de não ter durado muito tempo e desejou para amanhecesse rápido e pudesse ter forças para sair dali o mais rápido possível.
Voltou a adormecer e acordou uma segunda vez, numa altura em que já conseguia ver luz, com o arguido por trás de si a penetrá-la novamente. Nessa altura conseguiu verbalizar qualquer coisa de que não queria (não tendo concretizado quais), tendo o arguido parado, mas não sabe se o arguido ejaculou ou não. Após, o arguido deitou-se.
Aguardou que o dia ficasse mais claro, com mais sol, levantou-se e disse ao arguido que tinha um compromisso e saiu. O arguido disse que ia levá-la a casa, mas ela recusou. Estava muito desorientada e no caminho de casa parou num café no ... (“...”) e ficou ali a tentar perceber o que havia acontecido consigo e nessa altura apercebeu-se que lhe faltava o cabo do carregador. Contactou o arguido que o foi levar à “...” onde se encontrava. O arguido tentou novamente levá-la a casa, mas ela não quis.
Dez dias depois, um amigo seu notou que o seu comportamento tinha mudado, que ela estava estranha e apática, dizendo-lhe que ela tinha algo que estava a esconder, altura em que acabou por lhe contar o sucedido.
Referiu ainda que apenas viu uma embalagem de preservativo rasgada, utilizada na primeira relação sexual e esclareceu como conheceu a ofendida CC, apresentando, nesta sede, uma versão coerente com a apresentada por esta ofendida.
O tribunal valorou ainda o teor das mensagens trocadas entre o arguido e a ofendida BB, juntas pelo arguido em sede de contestação e que se mostram juntas aos autos de fls. 299 verso a 3020.
Aliás, confrontada a ofendida com as mensagens trocadas com o arguido no dia em causa nestes autos, mais precisamente com a primeira mensagem de fls. 303, esclareceu de forma veemente o sentido da mesma, dizendo que essa era a sua intenção, ou seja, que não queria que o arguido a acordasse, que o mesmo só a acordasse se fosse para “foder”, o que não foi o caso, porque o arguido não a acordou antes de praticar o ato sexual consigo.
No mais, atendeu ainda o tribunal ao documento do Infarmed referente ao medicamento “Rivotril”, junto aos autos pela defesa e já no decurso da audiência de julgamento, no qual se pode ler, além do mais, na parte referente aos “Efeitos indesejáveis” o seguinte: “Doenças do sistema nervoso: diminuição da concentração, sonolência, reação lentificada, hipotonia muscular [que se traduz na diminuição do tónus muscular]” (sublinhado nosso).
No mesmo documento e, na parte relativa à “Sobredosagem” e seus “Sintomas” consta o seguinte: “Geralmente as benzodiazepinas causam sonolência, ataxia [perda do controlo dos músculos que pode afetar as pernas, braços, mãos, dedos, a própria fala e até o movimento dos olhos], disartria [nome dado a uma alteração no organismo que faz com que ele deixe de ser capaz de articular palavras usando os músculos da face e da boca] e nistagmo [movimentos involuntários e repetitivos dos olhos]” (sublinhado nosso).
Nos termos do disposto no artigo 374.º do Código de Processo Penal, ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Impõe-se neste momento proceder ao exame crítico das provas que, aferido com critérios de razoabilidade, permita aos destinatários da decisão avaliar cabalmente as razões da decisão e o processo lógico-formal que serviu de suporte ao seu conteúdo, começando pela factualidade relativa à ofendida CC.
As declarações do arguido e o depoimento da ofendida CC foram coincidentes quando ao início e ao fim do namoro (entre setembro de 2018 e setembro de 2019), pelo que foi este o período considerado pelo tribunal que, por essa razão, julgou não provado que tal relacionamento tivesse decorrido no hiato temporal constante da acusação (cf. facto 1 dos factos provados e alínea a) dos fatos não provados).
Arguido e CC foram também coincidentes no facto de ter sido diagnosticada depressão à CC; que esta, por via disso, tomava medicação que lhe causava cansaço e lhe retirava disposição para manter relações sexuais. No que tange a causar-lhe sonolência, o arguido revelou desconhecimento, uma vez que afirmou achar que tal não ocorria. Porém, a ofendida CC foi muito assertiva ao afirmar que a medicação lhe causava sonolência, pelo que, dúvidas não se suscitaram que tal ocorria, pelo que tal factualidade foi julgada provada (cf. ponto 3 dos factos provados). No entanto, nenhum dos dois afirmou o momento em que tal diagnóstico foi feito, pelo que, e na ausência de outro meio de prova que permitisse concluir por tal, é manifesto não ter resultado provada a factualidade inserta na alínea d) dos factos não provados. No que concerne ao relacionamento entre ambos, o arguido admitiu que chamava a CC de “Bola”, “Bolinha”, “Burra” e “retardada”, mas sempre num contexto carinhoso, negando que a tivesse apelidado de “estúpida”.
Tais expressões foram também confirmadas pela ofendida CC, que disse que tal acontecia quer quando estavam os dois sozinhos quer quando estavam acompanhados por terceiros. Porém, nega que tal tivesse uma conotação carinhosa, dizendo que com a expressão “Bola” o arguido se referia ao seu peso e que o uso de tais expressões era uma forma do arguido a rebaixar e diminuir.
Também a testemunha HH afirmou ter ouvido o arguido a chamar “idiota” e “retardada” à CC, de modo desrespeitoso e que deixava a CC envergonhada. Do mesmo modo, a testemunha FF disse que o arguido tratava a CC de forma humilhante e degradante.
Neste particular, importa trazer à colação o teor das mensagens trocadas entre o arguido e a ofendida CC (constantes no apenso a estes autos), das quais se extrai que no que concerne à expressão “Bola”, a foi utilizada por várias vezes pelo arguido e em contexto que não o de rebaixamento ou de diminuição da personalidade da ofendida, e contra as quais a ofendida não se insurgiu, pelo contrário, ocasiões houve em que foi a própria ofendida a utilizar tal expressão relativamente a si própria, sendo patente que tal expressão, tal como o termo “Bolinha” era utilizado de forma natural entre os dois, deixando até transparecer um certo contexto de carinho.
Desta forma, ficou claramente demonstrado que o arguido dirigiu tais expressões à ofendida CC (cf. vertido no ponto 3 dos factos provados), a isso não obstando os depoimentos das testemunhas EE, II e JJ, porquanto, pese embora tenham afirmado que o relacionamento entre o arguido e a ofendida CC lhes parecesse normal, nunca tendo assistido ao arguido a dirigir tais expressões à ofendida CC, certo é que, por um lado, todos referiram que, à data, o convívio que tinham com o casal era diminuto ou residual e, por outro, o próprio arguido admitiu em julgamento ter dirigido à CC tais expressões, com exceção do vocábulo “idiota”.
Do mesmo modo, ficou também claramente demonstrado que ao dirigir as expressões “burra”, “retardada” e “estúpida” à ofendida, o arguido sabia que a ofendia na sua honra e consideração pessoais, deixando de fora igual raciocínio no que tange à expressão “Bola”, nos precisos termos consignados no ponto 9 dos factos provados. Na verdade, no que tange à expressão “bola”, e por força do que acima se deixou expresso, não é possível concluir, de acordo com um juízo de certeza e segurança com a mesma o arguido soubesse que ofendia a ofendida na sua honra e consideração. Não olvidamos que o contexto em que esta expressão era proferia, na presença até de terceiro e em ambiente de faculdade, era diferente daquele em que a mesma foi utilizada na troca de mensagens. Porém, se a conotação na troca de mensagens assumia um contexto de alguma normalidade e até de tratamento carinhoso, não é possível ao tribunal concluir, com segurança, qual a real intenção do arguido ao utilizá-la nesse outro contexto.
Quanto às demais expressões utilizadas, pese embora o arguido e alguma das testemunhas por ele arroladas tenham tentado fazer crer ao tribunal que as mesmas eram usadas de forma corrente, normal e sem sentido pejorativo pelos jovens brasileiros, mormente, os jovens oriundos do ..., tal quadro factual assim relatado pelo arguido e por tais testemunhas, por inverosímil e desgarrado das regras da experiência e do senso comum, não lograram convencer o tribunal da sua veracidade.
A sufragar este nosso entendimento, veja-se o depoimento da testemunha MM, pai do arguido, que após afirmar que tais expressões são usadas pelos jovens, em seu entender as mesmas não são corretas e foi esse o valor que transmitiu ao aqui arguido, seu filho, pelo que, tudo conjugado, é manifesto que o arguido sabia, porque não podia desconhecer, que com tais expressões ofendia a honra e consideração pessoais da ofendida.
Relativamente ao sucedido na manhã do dia … de 2019, falaram apenas o arguido e a ofendida CC, os quais apresentaram versões distintas entre si.
O arguido disse que ao acordarem, falaram sobre o facto de manterem relações sexuais, tendo ambos acordado em tal, pelo que mantiveram relações sexuais até ejacular.
Por sua vez, a ofendida CC afirmou que nessa manhã, o arguido foi para cima de si e iniciou a relação sexual, numa altura em que estava acordada e consciente. Nessa altura disse-lhe que não queria, pediu ao arguido para parar e começou a empurrá-lo, mas o arguido não parou até ejacular. Disse que não gritou porque estava em casa de um colega.
A ofendida precisou ainda que durante todo o ato disse ao arguido que não queria (manter relações sexuais com ele) e empurrou-o sempre. Porém, a ofendida disse igualmente que na altura achou que o arguido não tinha entendido que ela não queria, entendimento que voltou a reiterar dias mais tarde, quando o confrontou com o sucedido através de mensagens com este trocadas e constantes do apenso destes autos.
Confrontada pelo tribunal sobre o motivo pelo qual ficou com a convicção de que o arguido não tivesse apercebido que ela não queria manter relações sexuais com ele naquele momento quando, segundo a própria, esteve durante todo o ato a verbalizar que não e a afastar o arguido com o braço, a mesma não logrou esclarecer de forma cabal e convincente a estranheza e, diga-se, a dúvida legítima levantada pelo tribunal. De facto, a ofendida chegou até a mencionar que achou que o arguido pudesse ter achado que esse seu comportamento (de verbalização que não queria e empurra-lo com o braço) poderia fazer parte do próprio ato, fazendo alusão a homens com fetiche por estupro, sendo que, questionada nessa sede, referiu que o arguido nunca manifestou esse tipo de gostos nem nunca tal foi falado entre ambos.
Ora, em face destas incoerências e incongruências do depoimento da ofendida CC que, por um lado, refere ter verbalizado que não queria e ter tentado afastar o arguido com o seu braço durante todo o ato e, por outro, afirma achar que o arguido não se apercebeu que ela não queria manter relações sexuais consigo, o tribunal fica perante uma dúvida séria e intransponível sobre a forma como a ofendida CC demonstrou ao arguido que não queria manter relações sexuais naquela manhã do dia …de 2019 e qual foi a perceção do arguido desse comportamento da ofendida, dúvida essa que, em nome do principio in dubio pro reo, terá de ser resolvida a favor do arguido.
Assim, em face do depoimento da ofendida que, de forma assertiva e convincente, disse ter verbalizado ao arguido que não queria manter relações com ele naquele momento, o que, aliás, está também espelhado nas mensagens trocadas entre ambos juntas aos autos no apenso já referido, mormente, quando, ao abordarem o sucedido, a ofendida diz ao arguido que “não é não”, não temos dúvidas que a ofendida verbalizou que não queria e bem assim que a mesma não opôs outra resistência nem pediu socorro. Porém, conforme supra expresso, em nome do principio in dubio pro reo julgou-se igualmente provado que o arguido não se apercebeu da verdadeira vontade da ofendida e prosseguiu com o ato até ejacular (cf. pontos 5 a 8 dos factos provados), julgando por consequência, como não provados os factos insertos nas alíneas g), h), i) e n).
Quanto ao demais envolvimento sexual do casal, o arguido negou os factos que lhe são imputados e do depoimento da ofendida, nos termos acima expostos, não ficou cabalmente demonstrada a factualidade constante das alíneas e) e f) que, por isso, o tribunal julgou não provada. De facto, neste particular, disse a ofendida CC que o relacionamento sexual entre ambos acontecia naturalmente, sem perguntas se queria ou não. Concretizou que uma vez o arguido tentou iniciar relações sexuais, ela acordou e disse que não e o arguido parou. Acha que o arguido não se apercebeu que ela estivesse a dormir e ele parou quando lhe disse que não queria. Outra vez, quando acordou de manhã, o arguido disse-lhe que ela devia tomar a pílula do dia seguinte porque tinham “transado sem camisinha”, mas ela não acordou durante a noite, não sabendo o que se passou. Ora, este depoimento, por si só, não permite, e sem necessidade de outras considerações, demonstrar cabalmente tal factualidade. Realce-se que do depoimento da ofendida CC ressalta que ela e o arguido mantinham poucas relações sexuais e que esse era um dos temas falado entre o casal, uma vez que o arguido pretendia manter mais relações sexuais, sem que, contudo, este lhe exigisse que mantivessem relações sexuais como se fosse sua obrigação. Não olvidamos que a ofendida referiu que o arguido verbalizava que manter relações sexuais era uma obrigação do namoro, mas nunca a mesma referiu que o arguido lhe exigisse tal.
Relativamente aos outros aspetos do relacionamento do arguido com a ofendida CC, o tribunal julgou a factualidade vertida no libelo acusatório como não provada, face à ausência de prova cabal e segura que permitisse concluir pela sua verificação, em face dos elementos probatórios produzidos em audiência e acima expostos.
Na verdade, o que se extrai das declarações do arguido, dos depoimentos das testemunhas inquiridas em julgamento e das mensagens constantes do apenso a estes autos, é que ambos tinham personalidades distintas e gostos e/ou hábitos sociais diferentes, tendo o arguido uma vivência social mais reservada e a ofendida uma vivência social mais dinâmica, gostando esta de sair com os amigos e frequentar festas, onde consumia álcool, o que não era do agrado do arguido, que, uma vezes, telefonava para a ofendida para que regressasse mais cedo e, por outras, chamava a atenção da ofendida para a quantidade de álcool que a mesma estava a ingerir, questionando-a se não achava que já chegava. Também não gostava que esta fumasse e por vezes também ficava aborrecido com a ofendida quando esta assumia tais comportamentos.
Porém, dos relatos feitos em audiência, o que perpassa aos olhos do tribunal é que tal factualidade é própria e inerente à dinâmica da própria relação do casal, com dois elementos com personalidades e gostos distintos, não tendo ficado demonstrado que o arguido controlasse a ofendida, pelo que julgou não provada a factualidade vertida na alínea c) e, por total ausência de prova, visto que não foi referido por ninguém, também a factualidade inserta na alínea b).
Em face de tudo o que acima já deixou expresso, ficou também por demonstrar a factualidade constante das alíneas j), k), l), m), o) e p), que o tribunal julgou assim como não provada.
Quanto à factualidade referente à ofendida BB, temos que o arguido a negou. Porém, as declarações do arguido não mereceram credibilidade por parte do tribunal, face ao depoimento da ofendida BB e da credibilidade que perpassou do mesmo, nos termos que acima já deixamos expostos e que excursámos aqui de repetir.
Salientemos apenas o facto da credibilidade do depoimento da ofendida BB sair reforçado e até corroborado pelo teor do documento do Infarmed junto pelo arguido já em sede de julgamento, na sequência do depoimento da ofendida e referente ao medicamento por esta tomado. Conforme deixamos transcrito supra, o medicamento em causa tem como efeitos indesejáveis, “Doenças do sistema nervoso: diminuição da concentração, sonolência, reação lentificada, hipotonia muscular [que se traduz na diminuição do tónus muscular]” e que os efeitos da “Sobredosagem” (note-se que a ofendida assumiu que havia tomado uma quantidade superior à recomendada) se traduzem em “sonolência, ataxia [perda do controlo dos músculos que pode afetar as pernas, braços, mãos, dedos, a própria fala e até o movimento dos olhos], disartria [nome dado a uma alteração no organismo que faz com que ele deixe de ser capaz de articular palavras usando os músculos da face e da boca] e nistagmo [movimentos involuntários e repetitivos dos olhos]”. Ora, este foi, precisamente, o quadro relatado pela ofendida BB relativamente ao estado por si vivenciado em casa do arguido.
Estes efeitos e sintomas são, pois, consistentes com o relato dos momentos vividos pela ofendida, feitos de forma pormenorizada, o que permite reforçar a conclusão pela genuinidade do seu depoimento, não oferecendo qualquer dúvida quanto à verificação dos factos tal como a ofendida os descreveu.
Ora, tendo presente que o ato sexual ocorreu após o adormecimento da ofendida e que esta, ainda que tendo acordado no decurso do mesmo, não teve força para se mexer ou verbalizar algo, forçoso é concluir que a agressão sexual ocorreu num momento em que a ofendida BB não tinha, naquele momento, capacidade para manifestar a sua vontade de praticar atos sexuais com quem quer que fosse (precisamente porque se encontrava a dormir), encontrando-se também, por força da medicação que havia tomado, incapaz de se opor aos atos sexuais praticados pelo arguido.
Mais – e não obstante não tenha resultado provado que arguido tenha dito à ofendida que gostava de acordar pessoas a transar com elas nem que a ofendida lhe tenha dito que não queria que agisse assim consigo, porquanto nem o arguido nem a ofendida BB o afirmaram (cf. alínea q) dos factos não provados) – sabia o arguido, tanto que a ofendida já o havia informado através das mensagens trocadas entre ambos, que esta não pretendia envolver-se sexualmente estando a dormir, que queria que ele a acordasse, sendo certo que, momentos antes de adormecer, a mesma ofendida transmitiu ao arguido que estava muito cansada, queria muito dormir e só queria algum tipo de aconchego ali com alguém.
Nessa medida, nem sequer se admite nem se aceita a possibilidade de naquelas circunstâncias, com a ofendida BB a dormir profundamente, possa o arguido ter admitido uma qualquer autorização para introduzir o seu pénis no seu corpo (na sua vagina). Nem mesmo que o arguido tenha entendido tal autorização na mensagem que lhe foi dirigida pela ofendida na qual esta refere que está sempre pronta para transar, porquanto, tal não pode ser entendido como um consentimento geral e abstrato para o arguido satisfazer os seus desejos sexuais da forma e no momento que melhor lhe aprouver sem, antes, obter o consentimento da ofendida para o concreto ato sexual a concretizar.
Encontrando-se a ofendida a dormir e num estado entorpecimento tal que a impediu de se mexer e de verbalizar o que quer que fosse, em circunstância alguma poderia o arguido admitir uma qualquer declaração de vontade da ofendida nesse sentido, ou mesmo que esta estivesse capaz de manifestar a sua vontade quanto à participação em atos sexuais. Aliás, de dúvidas houvesse, veja.se que o arguido, após concretizar um primeiro ato sexual sem que a ofendida tenha esboçado uma qualquer movimento, reação ou interação, algum tempo mais tarde volta a introduzir o seu pénis na vagina da ofendida BB aí o friccionando.
Concluindo, analisada e apreciada a prova produzida em audiência, o tribunal não tem qualquer dúvida, que o arguido atuou da forma descrita, aproveitando-se da vulnerabilidade provocada pela medicação e adormecimento profundo da ofendida, praticando com esta atos sexuais, contra a sua vontade. Os factos referentes à voluntariedade e consciência da atuação do arguido, foram apreciados em conjunto com os demais factos já considerados, à luz da lógica e das regras da experiencia, sendo claro que o propósito do arguido, sabendo qualquer cidadão, que não pode atuar sobre o corpo de alguém que não tenha a capacidade de se determinar de acordo com a sua vontade.
As consequências que da atuação do arguido resultaram para a ofendida resultaram demonstrados através do depoimento da ofendida, mais precisamente, da forma como o mesmo foi prestado, revelador do sofrimento que a mesma ainda hoje sente.
No caso concreto dos autos, conforme já referimos, a prova produzida, permitiu ao Tribunal julgar os factos constantes dos pontos 10 a 26 dos factos provados, sem qualquer dúvida, nos exatos termos consignados.
Relativamente à situação pessoal e económica do arguido, nos termos plasmados nos pontos 27) a 30) dos factos provados, valorou o tribunal o relatório elaborado pela DGRSP a pedido do tribunal, cotejado com as declarações do arguido e com o depoimento do seu pai, bem como com a cópia do passaporte do arguido, do qual consta que o mesmo tem nacionalidade portuguesa.
Por fim, e no que tange à ausência de antecedentes criminais registados, atendeu o tribunal ao certificado de registo criminal do arguido junto aos autos.”
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III – FUNDAMENTAÇÃO
Tendo em conta a natureza das questões submetidas no recurso, importa respeitar as regras da precedência lógica a que estão submetidas as decisões judiciais (artigo 608º, nº 1 do Código de Processo Civil, “ex vi” do artigo 4º do Código de Processo Penal).
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Os poderes de cognição dos tribunais da relação abrangem a matéria de facto e a matéria de direito (art.º 428º do Cód. Processo Penal), podendo o recurso, sempre que a lei não restrinja a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida (art.º 410º, nº 1 do Cód. Processo Penal).
Como é sobejamente sabido, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: a) no âmbito, mais restrito, (a denominada revista alargada) os vícios previstos no art.º 410º, nº 2 do Cód. Processo Penal, que resultam do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiencia comum; ou b) através da impugnação ampla da matéria de facto, prevista no artigo 412º, nº 3 e 4 do Cód. Processo Penal, por via da qual se quer ver apreciada a prova produzida em 1ª instância, isto é, apela à prova documentada, por se reputar existir um erro de julgamento.
Assim, estabelece o art.º 410º, nº 2 do Cód. Processo Penal que “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) O erro notório na apreciação da prova”.
Neste dispositivo prevêem-se os vícios do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, que se evidenciam da matéria de facto da decisão, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 17. ª ed., pág. 948). Nas antípodas destes vícios, está a impugnação ampla da decisão da matéria de facto, onde o recorrente vai para além do texto da decisão produzida em 1ª instância, nos termos que à frente analisaremos.
Por isso, o artigo 410º, nº 2, do Cód. de Processo Penal, individualiza os vícios da própria decisão, como peça autónoma, e, uma vez demonstrada a existência desses vícios e a impossibilidade de se decidir a causa, o tribunal de recurso deve determinar o reenvio do processo para um novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio (art.º 426º, nº1 do Cód. de Processo Penal.).
Estes vícios, não podem ser confundidos com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova, inscrito no art.º 127º do Cód. Processo Penal. Pois o que releva “é a convicção que o tribunal forme perante as provas produzidas em audiência, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função do controlo ínsita na identificação dos vícios do art.º 410º, nº 2 do C.P.P, a convicção pessoalmente formada pelo recorrente e que ele próprio alcançou sobre os factos” (Cf. Acórdão do STJ proc. nº 3453/08-3 referido por Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 9.ª ed., 2020, pág. 76).
Pode acontecer inexistir qualquer dos vícios do nº 2, do artigo 410º, do Cód. Processo Penal e ainda assim a prova ter sido mal apreciada pelo Tribunal de 1ª instância, caso em que se configura, neste último caso, um verdadeiro erro de julgamento, cujos pressupostos de conhecimento são os previstos no artigo 412º, nº 3 e 4, do Cód. Processo Penal que com os primeiros vícios não se confundem por não se deixarem surpreender do texto da decisão recorrida.
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Da alegada insuficiência da matéria de facto provada artigo 410º, nº 2 a) do Cód. Processo Penal, indicada como violador do princípio da legalidade da prova e erro notório na apreciação da prova acima elencadas.
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada prevista na alínea a) do art.º 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, parte necessariamente do texto da decisão recorrida, sendo que é do seu texto que haverá de resultar ou decorrer a omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa e que sejam relevantes para a decisão.
Isto é, a insuficiência é a que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou como não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, nos termos do art.º 358º, nº 1, do Cód. Processo Penal, tenham sido alegados pela acusação e pela defesa ou resultado da discussão, se esse facto for relevante para a decisão da questão da culpabilidade, ou quando, podendo fazê-lo, não tiver apurado factos que permitam uma fundada determinação da sanção.
Se tal sucedeu, então o tribunal de julgamento terá deixado de considerar um facto essencial postulado pelo objeto do processo, isto é, deixou por esgotar o "thema probandum".
Explicitando, este vício configura-se como uma lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de mérito, isto é, quando se chega à conclusão, de que, com os factos dados como provados, não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato, nessa matéria que é preciso preencher (vd. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5.ª edição, Rei dos Livros, p. 62, obra citada no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14.07.2004, no processo 4007/2004, acessível em www.fdl.unl.pt). Ou convocando uma decisão mais recente, deste Tribunal da Relação de Lisboa, no processo 15/20.2GTALQ.L1-5, datado de 04.06.2024, in www.dgsi.pt, “Há insuficiência da matéria de facto para a decisão quando os factos dados como assentes, na decisão, são insuficientes para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição, ou seja, são insuficientes para a aplicação do direito ao caso concreto. No entanto, tal insuficiência só ocorre quando existe uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessária para a decisão de direito, porque não se apurou o que é evidente e que se podia ter apurado ou porque o Tribunal não investigou a totalidade da matéria de facto, com relevo para a decisão da causa, podendo fazê-lo. Esta insuficiência da matéria de facto tem de existir internamente, no âmbito da decisão e resultar do texto da mesma.”
Por sua vez o erro notório na apreciação da prova, constante do nº 2, al. c) do artigo 410º, do Cód. Processo Penal, que o recorrente assinalou.
Alegando o recorrente a existência de erro notório na apreciação da prova, deve especificar no texto da decisão recorrida, sem recurso a prova documentada, os factos que foram dados como provados ou não provados ( se foi o caso) em que se consubstancia tal erro.
O erro notório na apreciação da prova, é erro que se vê logo, o erro evidente, escancarado, de que qualquer homem médio se dá conta. Este erro, ainda abrange as hipóteses de, quando se retira de um facto provado, uma conclusão logicamente inaceitável; o vício de raciocínio, na apreciação das provas; quando se dá como assente algo patentemente errado; quando se retira de um facto provado uma conclusão arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras de experiência comum; ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida; ou, finalmente, quando se violam as regras da prova vinculada, as regras da experiência; as legis artis ou quando o tribunal se afasta, sem fundamento, dos juízos dos peritos, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
A notoriedade deste erro basta-se com que ele ressalte do texto da decisão recorrida, ainda que, para tanto tenha que ser devidamente escrutinada a matéria de facto, não passando assim desapercebido ao comum dos observadores e resulta do próprio texto da decisão sopesada à luz de regras de experiência, (entre muitos outros vide a este propósito Ac. do STJ de 14.03.2002, Processo nº 361/01-5ª, de 18.03.2004; Processo nº 03P3566, DE 19.07.2006, Processo nº 1932/06-3ª e mais recente o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, no acórdão de 29.03.2011, “O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do Acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ, ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir, em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido ,cf. Simas Santos e Leal Henriques, ob. cit., p. 74; Acórdão da R. do Porto de 12/11/2003, Processo 0342994, em http://www.dgsi.pt).
Acontece, que, não raras vezes, o recorrente mergulha na análise dos depoimentos e de outras provas, e argumenta com o erro notório na apreciação da prova, do art.º 410º, 2 c) do Cód. Processo Penal, quando verdadeiramente não é isso que pretende invocar, mas antes que a apreciação da prova foi feita de maneira errada, o que muitas vezes não se evidencia do texto da decisão recorrida, pois integra uma realidade diferente, que está prevista no art.º 412º, nº 1, 2 e 4, do Cód. Processo Penal, cujos pressupostos, deverão ser observados, para poderem ser sindicados.
Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal apreciou a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não conduz ao referido vício.
Quanto a este vício – erro notório na apreciação da prova – importa referir que o tribunal decide, salvo no caso de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção.
O art.º 127º do C.P.P dispõe que “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
Assim, do princípio da livre apreciação da prova, resulta por um lado, a ausência de critérios legais predeterminados de valor a atribuir à prova (salvo exceções legalmente previstas, como sucede com a prova pericial) e, por outro lado, que o tribunal aprecia toda a prova produzida e examinada com base exclusivamente na livre convicção da prova e na sua convicção pessoal, estando apenas vinculado às regras da experiência comum, e aos princípios estruturantes do processo penal- nomeadamente ao princípio da legalidade da prova e ao princípio da presunção da inocência e in dubio pro reo.
Esta regra concede aos julgadores uma margem de liberdade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
No entanto, tal não significa apreciação arbitrária ou valoração puramente subjetiva da prova, mas antes apreciação motivada de acordo com critérios lógicos e objetivos em função da razoabilidade e das regras da experiência comum.
Por conseguinte, os erros da decisão, para poderem ser apreciados ou mesmo conhecidos oficiosamente, devem detetar-se, sem esforço de análise, a partir do teor da própria sentença, sem recurso a elementos externos como seja o cotejo das provas disponíveis nos autos e/ou produzidas em audiência de julgamento.
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Revisitando o Acórdão recorrido no que respeita aos factos 13 a 29 e cotejado o recurso interposto na sua Motivação e conclusões A a I al f) atinente ao vício da insuficiência de matéria de facto provada somos a verificar que o recorrente não especifica os factos, que em seu entender eram necessários- para uma decisão justa que devia ser proferida- e que o tribunal “a quo” tivesse que ter indagado e conhecido e que não indagou e consequentemente não conheceu, podendo e devendo fazê-lo. Isto é, não identifica os factos em falta e que reputa necessários, por pertinentes, para a decisão a proferir e cuja indagação o Tribunal “a quo” não fez, quando podia e devia ter feito.
Anote-se que, nesta sede não está em causa apreciar se o Tribunal julgou bem ou mal os factos ao dá-los por assentes.
O Tribunal “a quo” conheceu e indagou de todos os factos, que foi suscitado a conhecer, desde logo da situação de incapacidade da ofendida, elemento integrador da tipicidade objetiva dos crimes que lhe estavam imputados.
O que se nos afigura é que, o recorrente confunde a insuficiência da matéria de facto provada – onde se critica o tribunal pela falta de indagação (e depois conhecido) de factos, do artigo 410º, nº 2 a) do Cód. Processo Penal, que deverá ser inequivocamente visível do texto da decisão e sem recurso a quaisquer provas documentadas- com a insuficiência da prova para os factos que erradamente, segundo argumenta, foram dados como provados. Isto é, em seu entender o Tribunal “a quo” deu como provados factos sem prova para tal, questão que poderá inscrever-se na impugnação ampla da matéria de facto, prevista no art.º 412º, nº 3, do Cód. Processo Penal e na reapreciação da prova.
Senão vejamos, o que o recorrente critica ao Tribunal “a quo” é, em seu entender, ter-se bastado com o depoimento da ofendida, conjugado um documento do Infarmed, para afirmar positivamente, a incapacidade daquela, quando em seu entender, a prova de tal factualidade, apenas poderia ser alcançada, pela via da determinação oficiosa, na procura da verdade material, da realização de uma perícia médico legal à ofendida e audição de um perito com conhecimentos científicos, para aferir de tal facto, e por isso convoca os artigos 151º, e 340º, ambos do Cód. Processo Penal.
Parece clara a confusão: verdadeiramente, o que o recorrente não aceita é a apreciação da prova levada a cabo pelo Tribunal “a quo”.
No que a esta parte do Acórdão respeita não se constatam, lacunas, deficiência ou omissão na investigação da matéria de facto, sujeita à sua apreciação, por parte do Tribunal “a quo” uma vez que o mesmo, em cumprimento do disposto no artigo 374,º n.º 2 do Cód. Processo Penal, se pronunciou sobre a totalidade do objeto dos presentes autos, delimitado pela acusação, contestação e pelos factos resultantes da prova produzida em audiência, em estrito cumprimento do disposto no artigo 339.º n.º 4 do mesmo Código.
No entanto, face à redação do facto 30, somos a constatar que o Tribunal “a quo” ali efetuou a reprodução integral do relatório social, realizado pelos Serviços da Direção Geral de reinserção Social e Serviços Prisionais cujo conteúdo foi todo transcrito.
“Do relatório social consta que (….) revela-se um procedimento desconforme com a natureza informativa do meio de prova ( cf. art.º 1º, al. g) do C.P.P.) e que, em tese, é adequado a poder gerar o vício consignado no nº2, do artigo 410º, do C.P.P que alude à insuficiência da matéria de facto.
Com efeito, «I. O relatório social constitui uma mera «informação» (artigo 1.º, al. g) CPP), que visa habilitar o juiz na sua tarefa de escolha e graduação da medida da pena. II. Trata-se de elemento probatório relevante do qual, através de juízo crítico, o julgador extrai factos relevantes para o julgamento da causa. III. Só ao juiz cabe selecionar os factos e as circunstâncias nele (eventualmente) referidos, se os considerar (e na medida em que os considerar relevantes), avaliando o que nele é referido e a fonte das informações prestadas, bem assim como a credibilidade das afirmações feitas e a razoabilidade das suas conclusões»
No caso, visto o Acórdão na sua globalidade, não se vislumbra que o erro de forma tenha, efetivamente, condicionado a apreciação crítica do meio de prova em causa (relatório social) e/ou que tenham sido valoradas, na escolha e determinação da pena, outras circunstâncias para além das condições pessoais do arguido/recorrente.
Conclui-se, pois, que se trata de mero erro cuja alteração/eliminação não importa modificação essencial e que, assim, reclama correção neste Tribunal, nos termos do art.º 380º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do C.P.P.
Termos em que:
a. Se elimina do ponto 30 dos factos provados “Do relatório social do arguido consta que: (…).
b. O ponto 30 dos factos provados passará a ter a seguinte redação:
- O arguido entre 2018 e … de 2020 frequentava faculdade de …, onde conclui a licenciatura em …em …/2022 com a média final de 15 valores.
- Enquanto estudante universitário, participou em palestras, eventos no ..., fez …, e um …em 2021.
- O arguido partilhou a residência com outros estudantes universitários, onde coabitou, temporariamente, com a ofendida CC, com quem namorou.
- O arguido cresceu numa família equilibrada económica e afetivamente, sendo o seu pai ... e a mãe..., tem, ainda, uma irmã, com quem mantem proximidade uma vez que aqueles o visitam.
- O arguido, não tem historial aditivo, desfruta de um bom estado de saúde geral, dedica os seus tempos livres à leitura, escrita, videojogos, jantares e integra um grupo de amigos com quem convive e sai.
- O arguido estagiou num escritório de … e ali ficou integrado como prestador de …, na área do …, onde aufere 2.205 euros.
- O arguido no presente reside sozinho, na morada dos autos, que é propriedade do seu pai em Portugal, apenas suportando despesas com o fornecimento de água, eletricidade e redes móveis da habitação. Por vezes subarrenda quartos do imóvel.
Em face do que, corrigido o Acórdão, nos sobreditos termos, no demais carece de fundamento a argumentação do recorrente, nos termos que deixamos assinalados.
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Por outro lado, cotejado o Acórdão, recorrido, a fim de verificar se o mesmo evidencia erro notório, na apreciação da prova, do nº 2, al. c) do artigo 410º, do C.P. P nos termos assinalados no recurso interposto na Motivação e Conclusões J a Z para onde nos remetemos e revisitando a fundamentação dos factos 10 a 26, somos a surpreender que:
“O arguido prestou declarações negando também a prática dos factos.
Disse que se encontraram na aplicação ... em … ou … de 2020.
Saíram juntos duas ou três vezes antes da BB ir a sua casa. Esta não lhe disse que estava com depressão nem que tomava medicação.
Negou que no dia em que a BB foi a sua casa, na ..., tivesse ido primeiro a casa desta e aí constatado que a mesma estava triste e abalada e que tivesse percecionado que a mesma estivesse emocionalmente abatida. Negou igualmente que nesse mesmo dia, à noite, tivesse telefonado à CC, querendo ir visitá-la e que esta tivesse recusado por estarem várias pessoas na sua casa, tendo-lhe sugerido que fosse ela a casa dele e bem assim que esta lhe tivesse respondido que não estava em condições de ir por causa da medicação que tomou que lhe causava sonolência.
Pelo contrário, disse o arguido que ele e a BB combinaram que esta iria a casa dele por mensagem. Que a BB disse que não queria ir a pé porque estava frio e ele ofereceu-se para pagar um Uber e chamou um que levou a BB até sua casa.
Na sua casa, mantiverem relações sexuais consensuais e durante a noite mantiveram relações sexuais, por três vezes, consentidas e com preservativo.
Acredita que não tenha acontecido a BB acordar durante o ato sexual, lhe pedido que parasse e ele tivesse parado.
Depois desse dia não voltaram a encontrar-se. Ele queria, mas ela não, tendo-lhe a BB dito, quatro ou cinco dias depois do encontro, o que tinha acontecido, relatando os acontecimentos tal como estão descritos na acusação.
A ofendida BB prestou um depoimento claro, seguro, circunstanciado e, de forma genuína, evidenciou o trauma sofrido pelo facto de ter sofrido um envolvimento sexual, que não consentiu e ocorrido num momento em que não tinha capacidade para exteriorizar a sua vontade quanto à execução do mesmo, bem como o sofrimento que tal lhe causou, o qual ainda hoje sente, evidenciado pela forma sofrida e a voz trémula e, por vezes até, embargada, com que relatou os factos.
Sempre com clareza e rigor, afirmou que no início do mês de …de 2020 começou a falar com o arguido através da aplicação .... O primeiro encontro físico entre ambos aconteceu no dia …de 2020 no ..., no ..., onde conversaram durante toda a tarde. Esclareceu que, nesse dia, foi buscar o arguido à Faculdade de …, que o mesmo frequentava.
Nesse mesmo dia disse ao arguido que no dia seguinte (18 de janeiro) completaria um ano de namoro com o ex-namorado e que essa ia ser uma data muito difícil para ela. Verbalizou isso com o arguido porque ela própria se estava a preparar para ter um dia péssimo. O arguido confortou-a e disse-lhe que estaria lá para ela.
Referiu que sofre de depressão e ansiedade, diagnosticada desde os 21 anos de idade.
Disse ainda que no dia … de 2020, passou o dia em casa e, porque se sentia péssima, tomou medicação em dose superior à que habitualmente tomava. Que a medicação acalma o sistema nervoso e, segundo a própria “não passa muita coisa na sua cabeça, deixa você sem sentimentos”. À noite parecia um “zombie”, conversava, mas o corpo estava muito pesado.
Durante esse dia … trocou mensagens com o arguido e este disse que a podia visitar antes de ir jantar com uns amigos e assim o fez. O arguido foi a sua casa e conversaram, nada mais se tendo passado.
Arguido voltou de madrugada, mandou-lhe mensagem e sugeriu que ela fosse a sua casa. Respondeu que não tinha condição para ir a casa dele, mas acabou por ir a casa do arguido, de Uber, pedido pelo arguido.
Na casa deste, manteve relações sexuais consentidas com o arguido, que não demoraram muito tempo porque disse ao arguido que “estava muito cansada, queria muito dormir e só queria algum tipo de aconchego ali com alguém”. Virou para o lado e dormiu. O arguido deitou-se a seu lado e dormiram.
Mais referiu que depois acordou, ainda de noite, quando o arguido já estava a penetrá-la, estando ela de costas ou de lado (afirmou que não estava de frente para o arguido porque não tinha a visão do rosto dele, vendo apenas a almofada e a cartela dos preservativos). Não tinha força para se mexer ou verbalizar alguma coisa, tentou fazer força para verbalizar alguma coisa e para se mexer, mas apenas conseguiu mexer os olhos, não tendo sido capaz de qualquer reação, e “rezou” para que aquilo parasse o mais rápido possível. O ato finalizou e agradeceu na sua cabeça de não ter durado muito tempo e desejou para amanhecesse rápido e pudesse ter forças para sair dali o mais rápido possível.
Voltou a adormecer e acordou uma segunda vez, numa altura em que já conseguia ver luz, com o arguido por trás de si a penetrá-la novamente. Nessa altura conseguiu verbalizar qualquer coisa de que não queria (não tendo concretizado quais), tendo o arguido parado, mas não sabe se o arguido ejaculou ou não. Após, o arguido deitou-se.
Aguardou que o dia ficasse mais claro, com mais sol, levantou-se e disse ao arguido que tinha um compromisso e saiu. O arguido disse que ia levá-la a casa, mas ela recusou. Estava muito desorientada e no caminho de casa parou num café no ... (“...”) e ficou ali a tentar perceber o que havia acontecido consigo e nessa altura apercebeu-se que lhe faltava o cabo do carregador. Contactou o arguido que o foi levar à “...” onde se encontrava. O arguido tentou novamente levá-la a casa, mas ela não quis.
Dez dias depois, um amigo seu notou que o seu comportamento tinha mudado, que ela estava estranha e apática, dizendo-lhe que ela tinha algo que estava a esconder, altura em que acabou por lhe contar o sucedido.
Referiu ainda que apenas viu uma embalagem de preservativo rasgada, utilizada na primeira relação sexual e esclareceu como conheceu a ofendida CC, apresentando, nesta sede, uma versão coerente com a apresentada por esta ofendida.
O tribunal valorou ainda o teor das mensagens trocadas entre o arguido e a ofendida BB, juntas pelo arguido em sede de contestação e que se mostram juntas aos autos de fls. 299 verso a 3020.
Aliás, confrontada a ofendida com as mensagens trocadas com o arguido no dia em causa nestes autos, mais precisamente com a primeira mensagem de fls. 303, esclareceu de forma veemente o sentido da mesma, dizendo que essa era a sua intenção, ou seja, que não queria que o arguido a acordasse, que o mesmo só a acordasse se fosse para “foder”, o que não foi o caso, porque o arguido não a acordou antes de praticar o ato sexual consigo.
No mais, atendeu ainda o tribunal ao documento do Infarmed referente ao medicamento “Rivotril”, junto aos autos pela defesa e já no decurso da audiência de julgamento, no qual se pode ler, além do mais, na parte referente aos “Efeitos indesejáveis” o seguinte: “Doenças do sistema nervoso: diminuição da concentração, sonolência, reação lentificada, hipotonia muscular [que se traduz na diminuição do tónus muscular]” (sublinhado nosso).
No mesmo documento e, na parte relativa à “Sobredosagem” e seus “Sintomas” consta o seguinte: “Geralmente as benzodiazepinas causam sonolência, ataxia [perda do controlo dos músculos que pode afetar as pernas, braços, mãos, dedos, a própria fala e até o movimento dos olhos], disartria [nome dado a uma alteração no organismo que faz com que ele deixe de ser capaz de articular palavras usando os músculos da face e da boca] e nistagmo [movimentos involuntários e repetitivos dos olhos]” (sublinhado nosso).”
(…)
“Quanto à factualidade referente à ofendida BB, temos que o arguido a negou. Porém, as declarações do arguido não mereceram credibilidade por parte do tribunal, face ao depoimento da ofendida BB e da credibilidade que perpassou do mesmo, nos termos que acima já deixamos expostos e que excursámos aqui de repetir.
Salientemos apenas o facto da credibilidade do depoimento da ofendida BB sair reforçado e até corroborado pelo teor do documento do Infarmed junto pelo arguido já em sede de julgamento, na sequência do depoimento da ofendida e referente ao medicamento por esta tomado. Conforme deixamos transcrito supra, o medicamento em causa tem como efeitos indesejáveis, “Doenças do sistema nervoso: diminuição da concentração, sonolência, reação lentificada, hipotonia muscular [que se traduz na diminuição do tónus muscular]” e que os efeitos da “Sobredosagem” (note-se que a ofendida assumiu que havia tomado uma quantidade superior à recomendada) se traduzem em “sonolência, ataxia [perda do controlo dos músculos que pode afetar as pernas, braços, mãos, dedos, a própria fala e até o movimento dos olhos], disartria [nome dado a uma alteração no organismo que faz com que ele deixe de ser capaz de articular palavras usando os músculos da face e da boca] e nistagmo [movimentos involuntários e repetitivos dos olhos]”. Ora, este foi, precisamente, o quadro relatado pela ofendida BB relativamente ao estado por si vivenciado em casa do arguido.
Estes efeitos e sintomas são, pois, consistentes com o relato dos momentos vividos pela ofendida, feitos de forma pormenorizada, o que permite reforçar a conclusão pela genuinidade do seu depoimento, não oferecendo qualquer dúvida quanto à verificação dos factos tal como a ofendida os descreveu.
Ora, tendo presente que o ato sexual ocorreu após o adormecimento da ofendida e que esta, ainda que tendo acordado no decurso do mesmo, não teve força para se mexer ou verbalizar algo, forçoso é concluir que a agressão sexual ocorreu num momento em que a ofendida BB não tinha, naquele momento, capacidade para manifestar a sua vontade de praticar atos sexuais com quem quer que fosse (precisamente porque se encontrava a dormir), encontrando-se também, por força da medicação que havia tomado, incapaz de se opor aos atos sexuais praticados pelo arguido.
Mais – e não obstante não tenha resultado provado que arguido tenha dito à ofendida que gostava de acordar pessoas a transar com elas nem que a ofendida lhe tenha dito que não queria que agisse assim consigo, porquanto nem o arguido nem a ofendida BB o afirmaram (cf. alínea q) dos factos não provados) – sabia o arguido, tanto que a ofendida já o havia informado através das mensagens trocadas entre ambos, que esta não pretendia envolver-se sexualmente estando a dormir, que queria que ele a acordasse, sendo certo que, momentos antes de adormecer, a mesma ofendida transmitiu ao arguido que estava muito cansada, queria muito dormir e só queria algum tipo de aconchego ali com alguém.
Nessa medida, nem sequer se admite nem se aceita a possibilidade de naquelas circunstâncias, com a ofendida BB a dormir profundamente, possa o arguido ter admitido uma qualquer autorização para introduzir o seu pénis no seu corpo (na sua vagina). Nem mesmo que o arguido tenha entendido tal autorização na mensagem que lhe foi dirigida pela ofendida na qual esta refere que está sempre pronta para transar, porquanto, tal não pode ser entendido como um consentimento geral e abstrato para o arguido satisfazer os seus desejos sexuais da forma e no momento que melhor lhe aprouver sem, antes, obter o consentimento da ofendida para o concreto ato sexual a concretizar.
Encontrando-se a ofendida a dormir e num estado entorpecimento tal que a impediu de se mexer e de verbalizar o que quer que fosse, em circunstância alguma poderia o arguido admitir uma qualquer declaração de vontade da ofendida nesse sentido, ou mesmo que esta estivesse capaz de manifestar a sua vontade quanto à participação em atos sexuais. Aliás, de dúvidas houvesse, veja.se que o arguido, após concretizar um primeiro ato sexual sem que a ofendida tenha esboçado um qualquer movimento, reação ou interação, algum tempo mais tarde volta a introduzir o seu pénis na vagina da ofendida BB aí o friccionando.
Concluindo, analisada e apreciada a prova produzida em audiência, o tribunal não tem qualquer dúvida, que o arguido atuou da forma descrita, aproveitando-se da vulnerabilidade provocada pela medicação e adormecimento profundo da ofendida, praticando com esta atos sexuais, contra a sua vontade. Os factos referentes à voluntariedade e consciência da atuação do arguido, foram apreciados em conjunto com os demais factos já considerados, à luz da lógica e das regras da experiencia, sendo claro que o propósito do arguido, sabendo qualquer cidadão, que não pode atuar sobre o corpo de alguém que não tenha a capacidade de se determinar de acordo com a sua vontade.
As consequências que da atuação do arguido resultaram para a ofendida resultaram demonstrados através do depoimento da ofendida, mais precisamente, da forma como o mesmo foi prestado, revelador do sofrimento que a mesma ainda hoje sente.
No caso concreto dos autos, conforme já referimos, a prova produzida, permitiu ao Tribunal julgar os factos constantes dos pontos 10 a 26 dos factos provados, sem qualquer dúvida, nos exatos termos consignados.”
No Acórdão recorrido a fundamentação da prova foi feita pelo Tribunal “a quo” de forma completa, minuciosa, assertiva, rigorosa, lógica e perfeitamente percetível, não se tendo ficado pela enunciação dos meios de prova, antes, faz a apreciação dos mesmos. exteriorizando o seu raciocínio, lógico e dedutivo em obediência ao princípio da livre apreciação da prova, previsto no artigo 127º, do Cód. Processo Penal e nos limites da legalidade da prova.
De facto, cotejado o acórdão somos a verificar que inexiste qualquer erro ou vício notório na apreciação da prova, qualquer irrazoabilidade patente a qualquer observador comum – não se podendo afirmar que o raciocínio do julgador se opõe à normalidade dos comportamentos e às regras da experiência comum, como permite o artigo 127º, do Cód. Processo Penal, nem se evidencia que, por recurso a estas, a fixação da matéria de facto, bem como a motivação e decisão vertida no acórdão, deveria ter sido diversa da que foi.
O recorrente manifesta a sua discordância a respeito da valoração da prova realizada pelo Tribunal “a quo”.
Cotejados os factos assentes no acórdão recorrido, não surpreendemos estar perante uma vítima, portadora de uma qualquer psicopatologia ou debilidade, que careça de ser medicamente avaliada, a fim de se aferir o grau de capacidade ou de incapacidade, de que é portadora, para entender e querer ou para opor resistência, a um qualquer ato sexual de relevo, e que, por isso, se imponha o recurso a uma perícia médico legal, por tal aferição exigir conhecimentos científicos, técnicos ou artísticos ( artigo 151º, do Cód. Processo Penal) que o Tribunal não possui, a determinar nos termos do art.º 340º, nº 1, do Cód. Processo Penal e assim subtraída à livre apreciação do Tribunal, nos termos do artigo 127º, do Cód. Processo Penal, por se tratar de prova vinculada, como previsto no artigo 163,º do Cód. Processo Penal.
A situação vertida e fundamentada no acórdão recorrido, é referente à sujeição de uma mulher adormecida, numa situação de sono mais profundo do que noutra, a dois atos sexuais de relevo, mais concretamente cópula, pelo recorrente, contra a vontade da mesma por ele conhecida. A vítima ainda que tenha acordado, no decurso das cópulas, por via do maior estado de sonolência e entorpecimento, em que se encontrava também por efeito de medicação que fez, não teve capacidade para reagir e impedir as situações, opondo-se, àqueles atos sexuais de relevo, cópulas.
Ora, a necessidade humana de dormir é um facto notório, sendo o sono um estado fisiológico de consciência diferenciada e/ou reduzida. Durante o sono, as atividades sensoriais ficam com menor capacidade de reagir aos estímulos, ficam inibidas, e as atividades musculares e sensoriais de interação com o ambiente, ficam reduzidas, o que todos os humanos experienciam sem necessidade de recurso a especiais conhecimentos médicos científicos ou artísticos.
O sono é um conjunto de fases, que começam desde o momento em que a pessoa adormece e vão progredindo de fases leves até pesadas e regressando a leves, tendo em média um adulto quatro a cinco ciclos de sono, por noite. Assim, de um sono superficial ou leve a pessoa passa para um sono pesado, regressando novamente no final de cada ciclo ao sono leve. Existem pessoas com sonos leves e outras com sonos mais pesados, que não “acordam nem que a casa venha a baixo”, conhecimento este que resulta da experiência comum e do normal acontecer, que não carece de verificação pericial.
Por outro lado, pertencendo o CLONAZEPAN – de nome comercial Rivotril - ao grupo das benzodiazepinas, é maioritariamente prescrito e utilizado como ansiolítico e sedativo, resultando isso linearmente, não apenas do Resumo das Caraterísticas do Medicamento, (daqui em diante RCM) junto pelo arguido/recorrente, como ainda do folheto informativo que acompanha o medicamento, vulgo Bula do medicamento dirigido ao utilizador do medicamento.
Assim e de igual forma, não serão de exigir especiais conhecimentos médicos científicos ou artísticos, que determinem a convocação de perito, a Tribunal, para proceder à análise e leitura do documento – Resumo das Caraterísticas do Medicamento, (daqui em diante RCM) Rivotril, nome comercial do CLONAZEPAN, gotas, - do Infarmed, por aquele mais não ser do que a informação pública, resumida, a respeito do medicamento, o qual, junto com o folheto informativo, e rotulagem integram o Relatório Publico de Avaliação do medicamento, junto do Infarmed.
Como resulta da experiência comum, os medicamentos são acompanhados de um folheto informativo, vulgo bula e verificada esta e o RCM estes documentos têm informação essencialmente idêntica, sendo este último vocacionado para o utilizador do medicamento, daí constar o conselho para que seja lido com atenção, antes de passar a utilizar o medicamento por conter informação importante para que o vai utilizar, informação esta que é a constante do RCM.
Ora o que consta do RCE consta da Bula do Rivotril, e vice versa, desde logo: o que é o Rivotril e para o que é utilizado; o que precisa de saber antes de iniciar a sua toma, com o enunciado de situações em que não deve iniciar a toma daquele medicamento; a sua interação com outros medicamentos e com o álcool; na situação de gravidez, amamentação e fertilidade; condução automóvel e utilização de maquinas; Indicações de como tomar o Rivotril; se tomar mais do que deveria o que pode dar sintomas de sobredosagem; caso de esquecimento de efetuar a toma do Rivotril; caso pare de tomar o Rivotril; Efeitos indesejáveis do Rivotril, possíveis e sua comunicação; como conservar o medicamento; conteúdo das embalagens e outras informações, razões pelas quais, a apreciação e leitura do documento RCE na medida em que a informação dali constante é reproduzida na Bula do medicamento, e se destina à leitura e informação do utilizador do medicamento, não estava subtraído à livre apreciação do Tribunal, por a sua leitura e apreciação exigir especiais conhecimentos científicos, técnicos ou artístico, que demandassem a presença de um perito em farmácia, não existindo qualquer nulidade subsumível ao art.º 120º, nº 2 d) do Cód. Processo Penal, razão pela qual não é de dar como não provados os factos 13, 16, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 32 e 33.
Na realidade o Tribunal “a quo” fundamentou os factos com base no depoimento que reputou fidedigno, da ofendida BB, tendo o RCE, que em nada diverge da Bula, servido apenas para sufragar, de respaldo, de elemento de concordância na atribuição de credibilidade ao depoimento, não havendo que convocar qualquer perito para apreciar este depoimento pois para isso lá está o Tribunal Coletivo.
Por outro lado, a determinação de qualquer perícia à vítima revelar-se-ia à data da realização da audiência de discussão e julgamento ou a esta data um ato inútil, uma vez que a vítima não se deslocou na sequência dos atos sexuais de relevo, a que foi sujeita pelo recorrente, a um qualquer Serviço de Urgência onde poderia ser efetuado uma análise ao sangue, para determinar a quantidade de medicação tomada, para satisfação das dúvidas do recorrente e que o Tribunal “a quo” não teve.
Transparece que foi o estado de um sono mais profundo da vítima, as suas fragilidades emocionais ao tempo, que levaram a que se socorresse do Rivotril a causa da incapacidade de reação às investidas sexuais do recorrente, as quais para serem comprovadas não carece da realização de uma qualquer perícia médico legal ou de um parecer de um perito por tal factualidade estar subtraída à livre apreciação do julgador.
Também não se identificou qualquer testemunha cuja razão de ciência impusesse ao Tribunal a sua audição para remover alguma dúvida a respeito dos factos, o que não se confunde com a satisfação de uma qualquer curiosidade do recorrente.
Para o Tribunal “a quo” foi bastante a narrativa da ofendida, a respeito da dinâmica dos factos, para alicerçou a sua convicção, e assim dar os factos provados que se mostram respaldados pelo documento do Infarmed junto pelo arguido, não tendo sido utilizadas provas proibidas por lei (art.º 125º do Cód. de Processo Penal) à livre apreciação do Tribunal Coletivo, nos termos do artigo 127º, do Código de Processo Penal.
Já o recurso interposto pelo arguido recorrente, está firmado na sua convicção pessoal sobre a prova produzida, desde logo no que respeita ao depoimento da ofendida BB, a quem aponta incongruências, em discordância com a apreciação das mesmas feita pelo Tribunal “a quo” o qual como se evidencia, pelo que deixamos expresso, foi apreciado em respeito pelo principio da livre apreciação da prova, previsto no art.º 127º, do Cód. Processo Penal e nos limites da legalidade da prova.
Enquanto não se evidencia no Acórdão recorrido uma convicção inadmissível, contrária às regras da experiência e da lógica e do normal acontecer, qualquer erro manifesto, facilmente demonstrável, dada a sua evidencia do texto da decisão recorrida, e não se detetar do elenco dos factos considerados provados (e que coloca em crise) um único facto que impeça o preenchimento dos elementos objetivos e subjetivos dos crimes pelos quais o recorrente foi condenado.
Revela-se, assim, que a decisão recorrida é plausível, ainda que pudesse ter sido outra, e a valoração da prova foi realizada de acordo com a regra geral prevista no artigo 127º, do Cod. Processo Penal, segundo a qual o tribunal forma livremente a sua convicção, estando apenas vinculado às regras da experiência comum e aos princípios estruturantes do processo penal - nomeadamente ao princípio da legalidade da prova e ao princípio in dubio pro reo -.
Esta regra concede aos julgadores uma margem de liberdade na formação do seu juízo de valoração, mas que deverá ser capaz de fundamentar de modo lógico e racional.
Não é a mera circunstância de, no entender do recorrente, constarem da factualidade provada determinados factos, apurados com base em meios concretos de prova que deveriam ter tido outra valoração, que tal vício da decisão ocorre. Para o mesmo existir, o recorrente deveria ter identificado algum erro manifesto expresso na fundamentação da decisão da matéria de facto, que resultasse do próprio texto da decisão, em vez de uma valoração alternativa de meios concretos de prova como foi a opção do recorrente.
Na verdade, o arguido recorrente limita-se a concretizar uma análise divergente e parcial da prova produzida, independente do texto da decisão, a qual nem sequer poderia impor decisão diversa, se fosse valorada como impugnação da decisão da matéria de facto (ou seja, no quadro de um alegado erro de julgamento – em vez de um vício da decisão –).
Os factos provados foram apurados com base numa análise crítica da prova produzida com assertividade, como resulta de forma manifesta, perante a sua leitura.
Termos em que improcede, a arguição do alegado erro notório na apreciação da prova.
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Por fim, atendendo à forma de impugnação feita no recurso da matéria de facto à menção da existência de erro grosseiro no julgamento da matéria de facto, nas conclusões o que na motivação faz pela menção expressa ao Erro de julgamento da matéria de facto, e que é individualizado no erro na apreciação da prova e no erro da valoração da prova integrativo da impugnação ampla da matéria de facto a que alude o art.º 412º, nº 3 e 4 do Cód. Processo Penal.
Nesta sede o recorrente argumenta não poder ser valorado o depoimento da ofendida BB, por esta não ter sido sujeita a exames médicos que comprovassem o seu estado de incapacidade ou tivesse sido requerida a presença de um perito pelo Tribunal “a quo” tudo ao abrigo dos artigos 151º e 340º, ambos do Cód. de Processo Penal.
No caso, somos a verificar que o recorrente não cumpriu o ónus de indicação dos segmentos das suas declarações, do depoimento da ofendida ou de outros depoimentos prestados em audiência, ou de outras provas analisadas em audiência, de que possa ter resultado o erro de julgamento que imputa ao Tribunal, “a quo”.
Nos termos legais a matéria de facto considerada provada no acórdão recorrido pode ser modificada, além do mais, se a prova tivesse sido impugnada pelo recorrente (al. c) do art.º 431.º do C.P.P.), sendo que, para tal situação, aquele deveria ter especificado “os concretos pontos de factos que considera incorretamente julgados” e as “concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” (al. a) e b) do n.º 3 do art.º 412.º do C.P.P.). Prescreve o número 4 do mesmo artigo 412º que “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”. Em tais situações, “o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e boa decisão da causa” (n.º 6 do art.º 412.º do C.P.P.). Por isso, importa, assinalar, desde já, que a sindicância da matéria de facto na impugnação ampla, pressupõe o cumprimento do chamado “ónus de especificação”, traduzido na necessidade imperiosa de a reapreciação ser restrita aos concretos pontos de facto que o Recorrente entende incorretamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam.
Havendo gravação das provas, a especificação das provas deve ser feita com referência ao que consta da ata, com indicação concreta das passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.ºs 4 e 6 do art.º 412º, do C.P.P.).
Não basta, portanto, ao recorrente contrapor à convicção do jugador a sua discordância quanto ao julgamento da matéria de facto e apontar o sentido que deve ser dado à prova, para determinar uma modificação da decisão relativamente à fixação da matéria de facto, é necessário que o recorrente demonstre que, através da análise das provas por si especificadas, a convicção que o julgador formou (que emerge do Acórdão recorrido) quanto aos concretos factos impugnados, é irrazoável ou pura e simplesmente errada.
Tal sucederá, designadamente, se um facto for dado como provado com base em prova que o julgador estava legalmente impedido de considerar, ou desrespeitando o valor que legalmente é atribuído ao meio probatório em causa; se um facto for dado como provado e nenhuma prova tiver sido produzida sobre ele, ou for dado como não provado por ausência de prova, e afinal tiver sido produzida prova que o comprove; se o julgador der como provado (ou não provado) um facto com base no depoimento de uma testemunha que declarou exatamente o contrário do que lhe é atribuído, ou que não demonstre uma razão de ciência que sustente o conhecimento que diz ter desse mesmo facto (ou com base em qualquer outro meio probatório que não permita a ilação que dele foi retirada, ou imponha ilação diversa); e, em geral, em todas as situações em que do texto da decisão e da prova concretamente elencada na mesma e questionada especificadamente no recurso, for de concluir, fora do contexto legalmente deixado à livre convicção do julgador, que o tribunal errou, de forma flagrante, no seu juízo sobre a matéria de facto em função das provas produzidas (veja-se, a propósito, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, tirado no processo n.º 23/14.2PCOER.L1, disponível online na base de dados de jurisprudência deste Tribunal consultável no endereço www.dgsi.pt).
Ora, uma vez que o que está em causa é a convicção do Tribunal “a quo” – o de julgamento- e não o do arguido recorrente ou até do Tribunal de recurso, a sindicância de facto, na impugnação ampla, encontra-se também ainda limitada ou condicionada por outros fatores, desde logo pelo facto de o “contacto” com as provas ser realizado com base nas gravações, daí resultando a limitação decorrente da falta de oralidade e de imediação das provas produzidas em audiência e ainda ao facto de ao tribunal de segunda instância só ser possível alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do n.º 3 do citado artigo 412º).
De facto, o recurso não implica um novo julgamento, mas somente uma aferição da correção da decisão da matéria de facto vertida na decisão recorrida, que foi proferida por um tribunal que beneficiou da imediação com os meios concretos de prova – benefício que não tem este tribunal de segunda instância -, à luz da lógica da fundamentação da convicção do tribunal, assinalando-se a sua natureza de remédio jurídico para colmatar erros de julgamento.
Revisitando o caso que nos ocupa, o recorrente não indica que concretas provas impõem decisão diversa da recorrida, nem as provas que devem ser renovadas, ficando-se pela critica da decisão recorrida por não ter visto acolhida a sua versão dos factos, o que é manifestamente insuficiente para obrigar à alteração da factualidade dada por assente, sobretudo quando a decisão recorrida explica, de forma clara, lógica e cogente, o percurso que o julgador seguiu para formar a sua convicção, sendo certo que nenhum princípio ou norma legal vigente no nosso ordenamento jurídico-processual penal obsta a que isso ocorra com base nas declarações ou depoimento de uma única pessoa, em concreto, atenta a fidedignidade do seu relato.
A matéria de facto provada só poderia ser dada como não provada, se a partir das indicações exatas dos excertos das declarações do arguido, das declarações da vítima e de algum documento ou outro meio de prova que tivesse sido produzido, se pudesse concluir pela insustentabilidade lógica, ou pela arbitrariedade do modo como a convicção do Tribunal se formou a partir dessas provas e das conclusões que delas extraiu.
A falta de indicação concreta, nas motivações e nas conclusões, dos excertos ou segmentos dos depoimentos e das declarações nos termos previstos no nº 3 al. b) e no nº 4 do art.º 412º do C.P.P, que seriam aptos a demonstrar a incorreção do julgamento dos factos, determina, necessariamente à improcedência da impugnação ampla da matéria de facto, porque essa omissão ultrapassa a mera deficiência relativa, apenas, à formulação das conclusões, antes constituindo uma falta que afeta o próprio conteúdo daquelas, (não podendo o Tribunal substituir-se ao recorrente) o que inviabiliza, a possibilidade de aperfeiçoamento dessas conclusões (cf. Ac. do TC nºs 374/2000, 259/2002 e 140/2004, in www.tribunalconstitucional.pt; Ac. do STJ de fixação de jurisprudência nº 3/2012, de 8 de março de 2012, publicado no D.R 1ª série, nº77, de 18 de Abril de 2012, Ac. da Relação de Évora de 08.01.2013, proc. 10/13.6ZCLSB-B.E1, da Relação de Lisboa de 8.10.2015, proc. 220/15.3PBAMD.L1-9; da Relação de Guimarães de 15.04.2020, proc. 621/19.8T9VNF.G1, in http://www.dgsi.pt), e ainda a modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto, já que a inobservância do tríplice ónus de impugnação especificada imposto pelo art.º 412º afasta a aplicabilidade da norma contida no art.º 431,º al. b) do C.P.P.
Assinale-se, apenas, que não é controvertido que o recorrente teve três relações de copula, com BB, na madrugada seguinte ao dia ...20, e que na sequência de tais acontecimentos, a ofendida não mais quis contatos com o recorrente/arguido, e o motivo avançado foram os factos como assentes. Isto é, o comportamento da vítima foi consentâneo com o ocorrido.
Em face do que fica exposto, a impugnação ampla da matéria de facto tem de ser julgada improcedente e a apreciação deste Tribunal tem de ficar restringida à matéria de direito como previsto no 412º, nº 2 do C.P.P.
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O recorrente invoca ainda no seu recurso que o Tribunal “a quo” violou o princípio da presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo.
O princípio da presunção de inocência, vigente em processo penal, é formulado nos seguintes termos: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação”.
Este princípio está presente em instrumentos internacionais basilares do nosso sistema penal, desde logo na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), vindo a ser sucessivamente integrado na Declaração Universal dos Direitos do Homem (art.º 11.º), de 1948, depois a Convenção Europeia dos Direitos do Homem (art.º 6.º-2), de 1950, e por último o Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos (art.º 14.º-2), de 1976, e entre nós no artigo 32º, da Constituição da república Portuguesa.
Referem Gomes Canotilho e Vital Moreira (in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 4ª edição revista, pág. 519) que “o princípio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional princípio in dubio pro reo. Além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa”.
Com efeito, este princípio (in dubio pro reo) resume-se a uma regra de decisão: produzida a prova e efetuada a sua valoração, subsistindo no espírito do Julgador uma dúvida – razoável, insuperável, positiva, invencível – sobre a verificação ou não de determinado facto, deve o Julgador decidir sempre a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.
Assim, se, por um lado, o princípio da presunção de inocência, significa que o arguido não precisa de provar a sua inocência (ela é presumida à partida), além de não ter sequer que fazer prova em tal sentido, isto é, de se defender, muito menos pela sua palavra (o direito de defesa do arguido abrange o direito de se calar, de não responder a perguntas, de guardar silêncio sobre a matéria do facto). Por outro lado, significa ainda que, em caso de dúvida, o arguido deve ser absolvido, in dubio pro reo.
Por outras palavras, a dúvida sobre a matéria da acusação ou da suspeita não pode virar-se contra o arguido, não pode prejudicá-lo, antes favorece-o (in dubio pro reo,).
O Tribunal apenas poderá tomar uma decisão de condenação do arguido, quando da audiência de discussão e julgamento resultar a existência de prova, que racionalmente possa considerar-se suficientemente ponderosa para desvirtuar aquele princípio de onde se parte. Prova que deverá ser produzida na observância de garantias e na forma processualmente estipuladas (isto é não é qualquer prova) para se ter por infirmada a inocência do arguido, cabendo em exclusivo à acusação a atribuição ou ónus de produzir a prova dos pressupostos do crime imputado ao arguido.
Posto isto, perante versões contraditórias sobre os factos, considera-se legítima a dúvida sobre a verdade do ocorrido.
No caso vertente, o julgador justificou, racional e logicamente, a opção que fez quanto à valoração dos meios de prova e atribuiu-lhes relevo probatório de uma forma também racionalmente justificada, com apelo às regras da lógica e da experiência comum.
No percurso de raciocínio para a fundamentação da matéria de facto, não se deparou com qualquer dúvida insanável sobre a verificação da factualidade dada como provada, (atenta a motivação acima transcrita e as considerações expendidas sobre a consistência e plausibilidade dessa motivação) nem se evidencia, qualquer possibilidade de que a prova legitimamente conduzisse o julgador a uma dúvida razoável e insuperável quanto à sua verificação.
Pelo exposto, e considerando que não se verifica qualquer falha, erro ou lapso no referido sistema de livre apreciação dos meios de prova efetuada pelo julgador, não existe qualquer violação do princípio da presunção de inocência e do “in dubio pro reo”, na condenação do arguido por dois crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p. artigo 165º, nº 1 e 2 do Código Penal, pelo qual foi condenado, pelo que, também improcede este segmento o recurso.
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Ainda suscita o recorrente que os factos provados não preenchem o crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, p. e p. pelo artigo 165º, nº 1 e 2, do Código Penal.
Cumpre desde já adiantar não lhe assistir razão, pois que resulta que dispõe o artigo 165.º do Código Penal: “1 - Quem praticar ato sexual de relevo com pessoa inconsciente ou incapaz, por outro motivo, de opor resistência, aproveitando-se do seu estado ou incapacidade, é punido com pena de prisão de seis meses a oito anos. 2 - Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de dois a dez anos”
O bem jurídico protegido neste crime, é o direito à autodeterminação de pessoas inconscientes ou incapazes de formularem a sua vontade para a prática de atos com relevo sexual, por fatores físicos ou psíquicos. Está em causa a tutela de indivíduos que, por motivos ligados a circunstâncias relacionadas com o seu estado físico, circunstâncias intelectuais ou psíquicas estão incapazes de se autodeterminar no plano sexual, abrangendo a previsão, não apenas as incapacidades permanentes, as paralisias, o esgotamento total, as anomalias psíquicas, onde a vítima não possui capacidade para se determinar, consentindo, para os atos sexuais de relevo, mas igualmente as incapacidades transitórias, não provocadas pelo agente do crime, como a embriaguez severa ou completa, não confundível com a excitação alcoólica, o sono narcótico, o sono anestésico, o hipnotismo, o desmaio, sono com privação de sentidos, situações de vítimas encontradas após espancamentos, atropelamentos, vide RLJ, ANO 57º, 371. A ideia orientadora é da indispensabilidade do consentimento, que não será de presumir, pois de outro modo a vítima seria coisificada e transformada em livre objeto de satisfação de desejos e impulsos sexuais.
A ação é o ato sexual de relevo, para o tipo legal, que é toda a ação que seja suscetível de condicionar a liberdade e autonomia sexual de outra pessoa a partir de atos relativamente aos quais a pessoa visada não consentiu (pessoa inconsciente) ou não tinha capacidade para consentir (pessoa incapaz). A pessoa só será incapaz de se opor a atos sexuais de relevo que lhe forem pessoalmente dirigidos por outrem, quando apresentar uma quase total diminuição das suas capacidades para avaliar o sentido e alcance de tais atos.
Por ato sexual de relevo há-de ter-se o comportamento que objetivamente assume um conteúdo ou significado reportado ao domínio da sexualidade da vítima, sendo certo que poderá estar presente um intuito libidinoso do agente (e estará a maioria das vezes) mas a incriminação persiste independentemente disso.
A doutrina e jurisprudência têm considerado, em geral, que “ato sexual de relevo” será todo aquele comportamento que de um ponto de vista essencialmente objetivo pode ser reconhecido por um observador comum como possuindo carácter sexual e que, em face da sua espécie, intensidade ou duração, ofende em elevado grau a liberdade de determinação sexual da vítima. A este respeito, José Mouraz Lopes identifica o ato sexual de relevo como um conceito que, embora indeterminado, se pretendeu essencialmente liberto de conteúdos moralistas, embora entenda que não se poderá prescindir, para a correta interpretação do conceito, de referências a conceitos valorativos sociais, que dificilmente poderão deixar de levar em consideração pautas morais convencionais que ainda disciplinam o comportamento sexual das pessoas. O que deverá ser, sempre que possível, de evitar.
O ato sexual de relevo terá de configurar, em primeiro lugar, um ato sexual, sendo a respetiva gravidade que o leva para o ilícito criminal. Será considerado ato sexual de relevo todo o que tenha uma natureza objetiva estritamente relacionada com a atividade sexual, ou seja, que normalmente apenas seja praticado no domínio da sexualidade entre pessoas.
Revisitando o caso concreto dos autos, bem andou a decisão recorrida ao assinalar que “o estado de adormecimento da ofendida BB determinou a sua incapacidade de manifestar perante o arguido a sua vontade em manter relações de cópula no momento em que este atuou sobre o seu corpo. Na verdade, resultou provado que quando introduziu o seu pénis na vagina da BB, esta dormia profundamente. Ora, estando a dormir, esta não tinha evidentemente capacidade para manifestar a sua vontade. O arguido estava na presença de um “corpo deitado na sua cama” e não de uma pessoa, que com razão, pudesse manifestar perante si um qualquer interesse de envolvimento sexual, o que o arguido conhecia perfeitamente, não só por ser conhecedor do estado de adormecimento da ofendida, mas também que esta estava a dormir sob o efeito de medicamentos. Com o propósito de se “servir sexualmente” do corpo que tinha perante si, introduziu o seu pénis no interior daquele corpo, na vagina da ofendida BB, assim satisfazendo os seus instintos sexuais. Sucede que o corpo que dormia na sua cama pertencia a uma pessoa, à ofendida BB, que apesar de adormecida, mantinha a sua personalidade jurídica, sendo certamente merecedora de consideração e dignidade enquanto pessoa, enquanto mulher, e certamente titular do direito de poder decidir sobre a permissão de introdução de um pénis dentro de si. Ao atuar da forma como atuou sobre o seu corpo nas indicadas circunstâncias, o arguido impediu a ofendida BB da tomada de decisões relativamente ao seu corpo, a sua liberdade de decisão sobre se mantém e com quem mantém atos sexuais. Trata-se se um comportamento primário, egoísta e que manifestamente atenta contra a dignidade, liberdade e autodeterminação sexual da ofendida BB. Não poderá admitir-se que a mera aceitação por parte duma mulher em deslocarse à residência de um qualquer individuo e manter com este um relacionamento sexual, confira a esse sujeito o direito de se satisfazer sexualmente as vezes que quiser e da forma como quer, e quando tem perante si um corpo adormecido, sem qualquer capacidade de se expressar de forma contrária àquela que o arguido já conhecia.”
Evidencia-se a forma como o recorrente se aproveitou da situação que não foi por si criada.
O crime é doloso, e deve ser praticado pelo agente “aproveitador”, com dolo direto necessário ou eventual, o qual há-de abranger a natureza do ato bem como a incapacidade da vítima de opor resistência e o seu aproveitamento.
Revisitando o caso que nos ocupa, “o arguido agiu, nas circunstâncias descritas, com o propósito de manter com a ofendida BB relações sexuais vaginais, e assim, satisfazer os seus desejos sexuais, o que logrou. Bem sabia o arguido que a ofendida BB não desejava manter com ele relações sexuais ou outro ato/contato sexual nas circunstâncias de tempo, modo e lugar referidas. Não obstante, o arguido quis e agiu da forma descrita, querendo e aproveitando-se do facto de a ofendida BB estar a dormir e sob efeito de medicamentos, circunstâncias cuja conjugação bem sabia impedirem a vitima de conhecer as suas intenções e de opor resistência aos atos que com ela praticava e das quais se prevaleceu para melhor alcançar a sua pretensão, evitando que a mesma se opusesse à sua atuação uma vez que se encontrava incapaz de o fazer. Bem sabia o arguido que ao agir do modo descrito violava a liberdade e autodeterminação sexual da ofendida BB. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e punida criminalmente.”
Em sede de motivação da decisão de facto no Acórdão recorrida consignou-se “Mais sabia o arguido, tanto que a ofendida já o havia informado através das mensagens trocadas entre ambos, que esta não pretendia envolver-se sexualmente estando a dormir, que queria que ele a acordasse, sendo certo que, momentos antes de adormecer, a mesma ofendida transmitiu ao arguido que estava muito cansada, queria muito dormir e só queria algum tipo de aconchego ali com alguém. Nessa medida, nem sequer se admite nem se aceita a possibilidade de naquelas circunstâncias, com a ofendida BB a dormir profundamente, possa o arguido ter admitido uma qualquer autorização para introduzir o seu pénis no seu corpo (na sua vagina). Nem mesmo que o arguido tenha entendido tal autorização na mensagem que lhe foi dirigida pela ofendida na qual esta refere que está sempre pronta para transar, porquanto, tal não pode ser entendido como um consentimento geral e abstrato para o arguido satisfazer os seus desejos sexuais da forma e no momento que melhor lhe aprouver sem, antes, obter o consentimento da ofendida para o concreto ato sexual a concretizar. Encontrando-se a ofendida a dormir e num estado entorpecimento tal que a impediu de se mexer e de verbalizar o que quer que fosse, em circunstância alguma poderia o arguido admitir uma qualquer declaração de vontade da ofendida nesse sentido, ou mesmo que esta estivesse capaz de manifestar a sua vontade quanto à participação em atos sexuais. Aliás, de dúvidas houvesse, veja.se que o arguido, após concretizar um primeiro ato sexual sem que a ofendida tenha esboçado uma qualquer movimento, reação ou interação, algum tempo mais tarde volta a introduzir o seu pénis na vagina da ofendida BB aí o friccionando. Concluindo, analisada e apreciada a prova produzida em audiência, o tribunal não tem qualquer dúvida, que o arguido atuou da forma descrita, aproveitando-se da vulnerabilidade provocada pela medicação e adormecimento profundo da ofendida, praticando com esta atos sexuais, contra a sua vontade. Os factos referentes à voluntariedade e consciência da atuação do arguido, foram apreciados em conjunto com os demais factos já considerados, à luz da lógica e das regras da experiencia, sendo claro que o propósito do arguido, sabendo qualquer cidadão, que não pode atuar sobre o corpo de alguém que não tenha a capacidade de se determinar de acordo com a sua vontade.
Assim, não se verificando quaisquer causas de exclusão da ilicitude e/ou da culpa, nem faltando qualquer condição de punibilidade, necessariamente concluímos, que o arguido cometeu em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, dois crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência, previstos e punidos pelo artigo 165.º, n.º 1 e n.º 2 do Código Penal.
Em face do exposto não nos merece censura a subsunção dos factos ao crime, improcedendo o recurso também nesta parte.
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Impugnação do recorrente da pena concreta que lhe foi imposta que reputa excessiva e desproporcional aos factos, e ainda bem assim como o valor da indemnização fixada a favor da vítima.
Prescreve o artigo 40.º do CP, sobre as finalidades das penas, que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”, devendo a sua determinação ser feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, de acordo com o disposto no artigo 71.º, do mesmo diploma.
Como se tem reiteradamente afirmado, encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa (CRP), segundo o qual “a lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
A projeção destas normas no modelo de determinação da pena justifica-se pelas necessidades de proteção dos bens jurídicos tutelados pelas normas incriminadoras violadas (finalidade de prevenção geral) e de ressocialização (finalidade de prevenção especial), em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, avaliada, em concreto, por fatores ou circunstâncias relacionadas com este e com a personalidade do agente, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a favor do agente ou contra ele (artigos 40.º e 71.º, n.º 1, do CP).
Como se tem reafirmado, para a medida da gravidade da culpa há que, de acordo com o citado artigo 71.º, n.º 2, considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) –, os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto).
Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes por via da prevenção geral, traduzida na necessidade de proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança da comunidade na norma violada, e de prevenção especial, que permitam fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro e, assim, avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e)], com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente, a que se referem as circunstâncias das alíneas e) e f), adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista das exigências de prevenção especial (sobre estes pontos, para melhor aproximação metodológica na determinação do sentido e alcance da previsão do artigo 71.º do CP, cf. Anabela Miranda Rodrigues, A Determinação da Medida da Pena Privativa da Liberdade, Os Critérios da Culpa e da Prevenção, Coimbra Editora, 2014, em particular pp. 475, 481, 547, 563, 566 e 574, e Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 3.ª reimp., 2011, pp. 232-357).
Há que, como se acentuou, ponderar as exigências antinómicas de prevenção geral e de prevenção especial, em particular as necessidades de prevenção especial de socialização “que vão determinar, em último termo, a medida da pena”, seu “critério decisivo”, com referência à data da sua aplicação (assim, acentuando estes pontos, Figueiredo Dias, ob. cit., §309, p. 231, §334, p. 244, §344, p. 249), tendo em conta as circunstâncias a que se refere o artigo 71.º, do CP, nomeadamente, as condições pessoais do agente e a sua situação económica e a conduta anterior e posterior ao facto, especialmente quando esta tenha em vista a reparação das consequências do crime, que relevam por esta via.
A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências de prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização, de harmonia com o disposto com os artigos citados - 40.º e 71.º -, deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela do bem jurídico em causa e às exigências sociais decorrentes daquela lesão, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade humana do delinquente.
Revisitando o caso concreto aí ponderou o Tribunal “a quo” :
“» as elevadas necessidades de prevenção geral que o crime cometido revela, numa sociedade cada vez mais preocupada e atenta aos crimes sexuais que envolvem a autodeterminação sexual;
» o grau de ilicitude dos factos é elevado, tendo em conta o bem jurídico tutelado neste tipo de crime e os concretos atos praticados sobre o corpo da ofendida;
» o arguido agiu com dolo direto pelo que a intensidade do dolo é de alta intensidade, por ser a forma mais gravosa do dolo e a que representa maior desvalor;
» a culpa do arguido é elevada, assumindo a censurabilidade sobre a sua conduta um elevado patamar, considerando que o arguido estava na presença de pessoa que havia convidado para sua casa, que sabia encontrar-se num estado emocional abatido e fragilizada por via da mediação que havia tomado, que lhe causava sonolência;
» o arguido revelou insensibilidade e indiferença relativamente aos factos praticados, os quais não assumiu em julgamento nem deles revelou qualquer arrependimento, pelo que as necessidades de prevenção especial se revelam algo elevadas, na medida em que o arguido não revela juízo autocrítico nem arrependimento;
» a favor do arguido milita o facto de o mesmo se mostrar inserido social e profissionalmente e não ter averbada qualquer condenação no seu certificado.
Por conseguinte, em face das características do arguido, apenas um quantum significativo de pena poderá intimidar o arguido, dissuadindo-o da prática de novos ilícitos (vertente negativa da prevenção especial) e poderá ajudá-lo a ressocializar-se, ou seja, a adquirir competências que lhe permitam adquirir sensibilidade para os bens jurídicos e ultrapassar os obstáculos internos que o determinaram à prática dos ilícitos (vertente positiva da prevenção especial).
A atividade jurisdicional de fixação da medida da pena não é discricionária, mas juridicamente vinculada, comportando, porém, um momento não quantificável ou silogístico e, como tal, não totalmente explicitável.
Tudo ponderado, devendo a pena ser fixada em termos que constitua uma verdadeira sanção, visando a proteção dos bens jurídicos violados e a reintegração do agente na sociedade, entende o tribunal ser justa, adequada e proporcional a aplicação ao arguido da pena de 3 (três) anos de prisão pela prática de cada um dos crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência.
Da determinação da pena única Cumpre, agora, efetuar, por força do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, o cúmulo jurídico das penas parcelares de prisão impostas ao arguido pela prática dos referidos crimes, uma vez que aí se preceitua que, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado qualquer um deles é condenado numa pena única (...)”.
A pena única será encontrada dentro de um mínimo representado pela pena parcelar mais elevada e um máximo dado pela soma material de todas as penas, não podendo, porém, ultrapassar 25 anos, tratando-se de pena de prisão – cf. artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal.
No caso concreto, tendo em atenção as penas parcelares agora aplicadas ao arguido, a moldura penal a aplicar em cúmulo tem como limite mínimo 3 (três) anos de prisão e como limite máximo 6 (seis) anos de prisão.
A medida da pena a atribuir em sede de cúmulo jurídico tem uma especificidade própria.
Por um lado, está-se perante uma nova moldura penal mais abrangente. Por outro, tem lugar uma específica fundamentação, que acresce à decorrente do artigo 71.º do Código Penal.
Como refere Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, §§ 420 e 421, págs. 290/292, a pena conjunta do concurso será encontrada em função das exigências gerais de culpa e de prevenção, fornecendo a lei, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no artigo 71.º, n.º 1, um critério especial: o do artigo 77.º, n.º 1, 2.ª parte.
Explicita o autor que, na busca da pena do concurso, “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique.
Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”.
E acrescenta que “de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)”.
Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Teremos assim de considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente para determinar a pena única - cf. artigo 77.º, n.º 1, in fine, do Código Penal, que, de resto, corresponde quase integralmente ao disposto no § 54 do Código Penal alemão - cf. GÜNTHER JAKOBS, Derecho Penal – Parte General, trad. Espanhola, Madrid, 1997, pág. 1112.
Na formulação de Eduardo Correia, Direito Criminal II, col. de Figueiredo Dias, reimpressão, Coimbra, 1993, pág. 212, “a soma jurídica das penas dos diversos factos tem de funcionar sempre, apenas, como moldura dentro da qual esses factos e a personalidade do respetivo agente devem ser avaliados como um todo”.
A pena única tem de socorrer-se dos parâmetros da fixação das penas parcelares, podendo funcionar como “guias” na fixação da pena do concurso.
A sua fixação – tal como resulta da lei – não se determina com a soma dos crimes cometidos e das penas respetivas, mas da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do arguido, pois tem de ser considerado e ponderado um conjunto de factos e a sua personalidade “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado” – cf. Figueiredo Dias, ob. cit. Significa isto que os fatores gerais do artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal devem, também, ser tomados em linha de conta nesta determinação da medida da pena, mas apenas referidos ao conspecto global dos crimes e da personalidade do arguido e não em relação a cada um dos crimes individualmente considerados pelos quais o arguido já foi condenado, sob pena de se violar o princípio ne bis in idem (cf. artigo 71.º, n.º 3, do mesmo diploma legal).
Atento tudo o que se deixou dito, é óbvio que na pena única a aplicar, terá de relevar a medida de cada uma das penas concretas aplicadas por cada um dos crimes cometidos pelo arguido.
Neste contexto, valorando em conjunto a gravidade dos ilícitos perpetrados pelo arguido, o hiato temporal em que se perpetuou (numa única noite), o mesmo contexto vivencial em que foram praticados, a relacionação dos atos do arguido com a sua própria personalidade e a ausência de antecedentes criminais deste, entendemos justa, adequada e proporcional face às penas parcelares aplicadas e supra descritas, a pena única de 4 (quatro) anos de prisão.
Da suspensão da execução da pena de prisão.
Atendendo à medida da pena única a aplicar ao arguido, cumpre agora apreciar se tal pena de prisão deve ser executada ou, ao invés, suspensa.
O n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal permite a suspensão da execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste se concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, sendo o período de suspensão fixado entre um e cinco anos (cf. n.º 5 do citado artigo 50.º).
Este artigo é mais uma manifestação da luta contra as penas curtas de prisão, pois tem-se entendido que estas “nem possibilitam uma atuação eficaz sobre a pessoa do delinquente no sentido da sua socialização, nem exercem uma função de segurança relevante face à comunidade. Pelo contrário, elas transportam consigo o risco sério de dessocializar fortemente o condenado, ao pô-lo em contacto, durante um período curto com o ambiente deletério da prisão, curto, mas, em todo o caso, suficientemente longo para prejudicar seriamente a integração social do condenado, máxime, ao nível familiar e profissional” - cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pág. 551.
Pressuposto formal da suspensão de execução da prisão é que a medida concreta desta não seja superior a cinco anos.
Pressuposto material da aplicação deste instituto é que, atenta a personalidade do agente, à sua conduta anterior e posterior ao facto punível e às circunstâncias deste se conclua por um prognóstico favorável relativamente ao comportamento do delinquente: que a simples censura do facto e a ameaça da pena afastem o delinquente da criminalidade.
A pena de prisão só não deverá ser substituída se a execução da prisão for exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes, ou seja, se a execução da prisão se revelar imposta por razões exclusivas de prevenção, razões de prevenção especial, nomeadamente de socialização, estritamente ligadas à prevenção da reincidência, ou quando a execução é imposta por exigências de tutela do ordenamento jurídico. Para a realização desse juízo de prognose favorável deve-se partir do momento em que se procede a julgamento e não ao da prática dos factos, pois só assim é que se poderá antever se a suspensão poderá favorecer a integração do arguido na sociedade, sem pôr em causa as finalidades político-criminais de aplicação das penas.
Vejamos, então, se é possível formular o juízo de prognose favorável a que faz referência esta norma, isto é, se a censura do facto e a ameaça de aplicação de pena de prisão são suficientes para a proteção dos bens jurídicos e para a reintegração do arguido na sociedade.
No caso vertente encontra-se preenchido, desde logo, o pressuposto formal de aplicação da suspensão da prisão, atenta a pena única de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos.
Quanto ao pressuposto material de aplicação deste instituto, não obstante as elevadas necessidades de prevenção geral e a elevada ilicitude dos factos, certo é que não podemos descurar o facto do arguido não ter antecedentes criminais registados e estar social e profissionalmente integrado, o que nos leva a crer que ainda é possível formular um juízo de prognose favorável no sentido de a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Por outro lado, entendemos que a suspensão da pena de prisão é compatível com as considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, sendo a censura resultante da aplicação de uma pena de prisão, mesmo que suspensa na sua execução (havendo sempre a possibilidade, caso os arguidos voltem a cometer novos crimes, de revogar essa suspensão), suficiente para tutelar os bens jurídicos em causa. Aliás, como se escreveu concludentemente no Acórdão da Relação de Coimbra, de 07/02/2001, disponível no sítio www.dgsi.pt, “I – Só é admitido o recurso às penas privativas de liberdade quando, dadas as circunstâncias, se não mostrem adequadas as sanções não detentivas. II – Relativamente às penas de prisão de curta duração, os seus inconvenientes superam de muito as vantagens que lhe podem ser assinaladas”.
Atento o que acima de deixou dito, decide-se suspender a execução da pena única de 4 (quatro) anos de prisão aplicada ao arguido pelo período de 4 (quatro) anos, mediante acompanhamento, em regime de prova, por parte da DGRSP e sujeita à obrigação do arguido pagar à ofendida BB a quantia que lhe vier a ser arbitrada na presentes decisão a título de reparação dos danos por ele sofridos, no prazo de um ano a contar do transito em julgado da presente decisão (cf. artigos 50.º, 51.º e 53.º, todos do Código Penal).
O plano de reinserção social será delineado pela DGRSP, tendo em consideração o disposto no artigo 54.º do Código Penal e, essencialmente, a natureza do crime cometido e a situação social e pessoal do arguido.”
Ora, o recorrente a respeito da medida da pena apenas argumenta que a mesma é muito severa mais se questionando nesta sede se estamos perante dois crimes ou de um crime continuado, sem mais.
Ora cotejados os critérios ponderados pelo Tribunal da 1ª instância para determinação das penas concretas, pela prática, pelo recorrente de dois crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistir, bem assim como a pena única, subordinada a condições, somos a entender que aquelas não nos merecem qualquer reparo, uma vez que se situam próximas do limite mínimo das molduras das penas abstratas, revelando-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, justas, adequadas e proporcionais à gravidade dos factos sem olvidar a integração do arguido recorrente na sociedade, sendo assim de manter nos seus exatos termos.
Acresce que, não se configura na situação em apreço um crime continuado, o qual teria de se evidenciar dos factos provados (cf. artigo 30º, do Código Penal) pela exteriorização de uma qualquer solicitação exterior, que diminuísse consideravelmente a culpa, o que não foi o caso.
Em face do exposto, e sem necessidade de mais considerações, também nesta parte irá ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido.
*
No que ao arbitramento se refere o arguido argumenta não ter sido feita prova de danos no caso em concreto causados a BB, pelo que, deverá ser o recorrente absolvido do pedido cível por falta de pressupostos.
Olvida o recorrente a matéria de facto provada nos pontos 32 e 33 e ainda a subsunção de tais factos na decisão recorrida, de onde se fez constar
“Assim, ter-se-á que ter em consideração a natureza das agressões perpetradas pelo arguido, a sua repercussão na pessoa da ofendida (que sofreu alteração no seu comportamento, ficando apática, e o sofrimento causado que se mantém no presente, volvidos mais de quatro anos após a agressão sexual por ela sofrida); a culpa do arguido (que agiu com dolo direto) e a situação económica do arguido”.
Ora em face da evidencia dos danos e da adequação do valor equitativamente arbitrado à vítima, deverá soçobrar nesta parte também o recurso do arguido.
*
Custas
Sendo negado provimento ao recurso do arguido impõe-se a condenação deste recorrente no pagamento das custas, nos termos previstos nos artigos 513°, 1, do Código de Processo Penal e 8º, nº 9, do Regulamento das Custas Processuais.
A taxa de justiça é fixada em 5 (cinco) unidades de conta, nos termos da Tabela III anexa àquele Regulamento, tendo em conta o objeto e a extensão mediana do recurso.
IV- DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência os Juízes Desembargadores subscritores da 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em efetuar a correção, oficiosa, do Acórdão, nos termos do art.º 380º, n.º 1, al. b) e n.º 2 do C.P.P procedendo à alteração/eliminação do facto 30 nos seguintes termos:
a. Se elimina do ponto 30 dos factos provados “Do relatório social do arguido consta que: (…).
b. O ponto 30 dos factos provados passará a ter a seguinte redação:
- O arguido entre 2018 e … de 2020 frequentava faculdade de …, onde conclui a licenciatura em … em …/2022 com a média final de 15 valores.
- Enquanto estudante universitário, participou em palestras, eventos no ..., fez voluntariado, e um estágio de verão em 2021.
- O arguido partilhou a residência com outros estudantes universitários, onde coabitou, temporariamente, com a ofendida CC, com quem namorou.
- O arguido cresceu numa família equilibrada económica e afetivamente, sendo o seu pai ... e a mãe professora, tem, ainda, uma irmã, com quem mantem proximidade uma vez que aqueles o visitam.
- O arguido, de 27 anos, não tem historial aditivo, desfruta de um bom estado de saúde geral, dedica os seus tempos livres à leitura, escrita, videojogos, jantares e integra um grupo de amigos com quem convive e sai.
- O arguido estagiou num escritório de … e ali ficou integrado como prestador de serviços …, na área do …, onde aufere 2.205 euros.
- O arguido no presente reside sozinho, na morada dos autos, que é propriedade do seu pai em Portugal, apenas suportando despesas com o fornecimento de água, eletricidade e redes móveis da habitação. Por vezes subarrenda quartos do imóvel.
No demais decide Negar provimento ao recurso do arguido AA, mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (cinco unidades de conta).
(Nos termos do disposto no art.º 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art.º 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pela relatora).
Tribunal da Relação de Lisboa, 24-10-2024
Assinado digitalmente pelas Juízas Desembargadoras
Dr.ª Isabel M.T.Monteiro
Dr.ª Ana Marisa Arnedo
Dr.ª Marlene Fortuna