INTERPRETAÇÃO DA VONTADE
VONTADE REAL
MATÉRIA DE FACTO
BOA-FÉ
FACTO NOTÓRIO
COVID 19
Sumário

SUMÁRIO (da exclusiva responsabilidade da Relatora – art. 663.º, n.º 7, do CPC)

I – A determinação da vontade real do declarante ou da vontade comum dos contraentes constitui matéria de facto, não se confundindo com a questão (de direito) de verificar se, na interpretação da declaração negocial foram ou não observados os preceitos dos artigos 236.º e 238.º do CC, que estabelecem critérios para a fixação do sentido juridicamente relevante dessa declaração.
II – Tendo a Autora, na Petição Inicial, alegado factos concretos dos quais resulta, de forma inequívoca, a vontade real das partes de acordo com a qual deve valer a estipulação constante da Cláusula Primeira, n.º 3, do contrato de cessão de exploração turística celebrado com a Ré, designadamente no tocante à contagem do prazo de pagamento/vencimento dos rendimentos anuais descritos nos n.ºs 1 e 2 dessa cláusula que a Ré se obrigou a pagar, e não tendo esta, na sua Contestação, impugnado esses factos, estando, pois, plenamente provada tal matéria de facto, afirmando o Tribunal recorrido que isso não foi questionado pela Ré (que tão pouco invocou nulidade do saneador-sentença recorrido por omissão de pronúncia) não tem cabimento discutir no âmbito do presente recurso a “nova interpretação” da cláusula primeira n.º 3 avançada pela Ré, atinente à determinação da vontade real das partes, tratando-se de uma questão que não foi oportunamente suscitada nos autos.
III – Tendo a Ré na Contestação invocado, em sua defesa, não ser devido o pagamento da rentabilidade anual do investimento referente aos anos de 2020 a 2022, por efeito do disposto na Cláusula Décima n.º 3 (nos termos da qual “O pagamento da rentabilidade do investimento não será devido no caso de desastres naturais, cataclismos, agitação política grave/revolução, conflito armado iminente ou situações que impossibilitem o funcionamento do hotel em circunstâncias normais”) ou, se assim não se entendesse, por ser aplicável o instituto da alteração anormal das circunstâncias, o que foi rejeitado na sentença recorrida, insistindo no recurso a Ré-Apelante, no que parece configurar um facto impeditivo da constituição da obrigação de pagamento, ser aplicável ao caso a citada cláusula, por a pandemia de Covid-19 constituir um desastre natural, impõe-se interpretar tal cláusula, à luz da teoria da impressão do destinatário (cf. art. 236.º do CC).
IV – Atentando no conteúdo do contrato em apreço, em particular a própria expressão “rentabilidade do investimento” e a premência que perpassa nas Cláusulas primeira n.º 2 e segunda n.º 2, no sentido de assegurar uma efetiva rentabilidade à “Investidora” (além da remuneração acrescida decorrente da efetiva ocupação das frações), é de considerar não ser devido o pagamento da denominada “rentabilidade do investimento” perante “desastres naturais, cataclismos, agitação política grave/revolução, conflito armado iminente” que tivessem repercussão no funcionamento do hotel em termos tais que, à luz do princípio da boa fé (cf. art. 762.º, n.º 2, do CC), tornariam inexigível à Ré o cumprimento da obrigação em apreço.
V – Face aos factos provados e aos que podem ser considerados factos notórios a respeito da pandemia de Covid-19, não é de considerar a mesma como um desastre natural; além disso, no caso concreto, não resulta desses factos que a pandemia de Covid-19 impactou negativamente a exploração pela Ré do empreendimento turístico do qual fazem parte as duas frações de que a Autora é proprietária, pelo que a Ré está obrigada a pagar as quantias peticionadas.

Texto Integral

Acordam, na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa, os Juízes Desembargadores abaixo identificados

I - RELATÓRIO
A …, LDA., Ré na ação declarativa que, sob a forma de processo comum, foi intentada por B …, interpôs o presente recurso de apelação do Saneador-sentença que julgou a ação procedente.
Na Petição Inicial, apresentada em 01-09-2022, a Autora peticionou que a Ré fosse condenada:
1) no pagamento à Autora da quantia de 44.775,00 € (quarenta e quatro mil, setecentos e setenta e cinco euros), acrescido dos juros de mora vencidos contabilizados desde 01-04-2021, sobre o montante de 16.915,00 € - que à data de propositura da ação ascendiam a 960,22 € -, e desde 01-04-2022, sobre o montante de 27.860,00 € - que à mesma data ascendiam a 467,13 € -, para além de juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento;
2) Subsidiariamente, caso não se entenda assim, no pagamento à Autora da quantia de 44.775,00 € (quarenta e quatro mil, setecentos e setenta e cinco euros), acrescida dos juros de mora vencidos contabilizados desde 29-09-2020 sobre o montante de 16.915,00 € - que à referida data ascendiam a 1.301,30 € -, e desde 29-09-2021, sobre o montante de 27.860,00 € - que à data ascendiam a 1.028,91 € -, para além de juros de mora vincendos até efetivo e integral pagamento.
Alegou, para tanto e em síntese, que:
- No dia 07-02-2020, a Autora adquiriu duas frações autónomas, correspondentes aos apartamentos … e … do prédio urbano sito na Praia …, …, com licença de ocupação de hotel, tendo no ato da outorga da escritura pública tido intervenção a procuradora substabelecida da sociedade vendedora (C …, LDA.), a qual também assinou, na qualidade de procuradora da ora Ré, Entidade Gestora do Empreendimento Turístico, o contrato de exploração turística das duas referidas frações;
- Nos termos desse contrato, a Ré obrigou-se a proceder ao pagamento de quantias por conta desse investimento/exploração, no prazo de 90 dias, a contar do término do ano civil antecedente ao final do período a que correspondem os rendimentos;
- A Ré não pagou a quantia a que se obrigou, correspondente ao rendimento anual de 3% relativo ao período compreendido entre fevereiro de 2020 e 30 de junho de 2021, que corresponde ao valor de 16.915,00 €, nem a quantia correspondente ao rendimento anual de 7% relativo ao período de exploração anual iniciado em 1 de julho de 2021 no valor de 27.860,00 €;
- O ano civil antecedente ao final do primeiro período de rendimento é 2020, ano que termina em 31-12-2020, pelo que o prazo de 90 dias para vencimento da quantia de 16.915 € terminou em 31-03-2021; já o ano civil antecedente ao final do período de 01-07-2021 a 30-06-2022 é 2021, pelo que a quantia de 27.860,00 € é devida desde o dia 31-03-2022.
A Ré apresentou Contestação, em que se defendeu invocando a exceção dilatória da incompetência relativa, bem como por exceção perentória, reconhecendo não ter efetuado o pagamento das quantias reclamadas, mas não ser devido o pagamento das rentabilidades anuais previstas no Contrato de Gestão e Exploração Turística referentes aos anos de 2020 a 2022, por se aplicar o disposto na Cláusula Décima, n.º 3, face à situação de pandemia de Covid-19 provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, que constituiu um impedimento ao normal funcionamento da atividade hoteleira em Portugal, e uma vez que a pandemia de Covid-19 sempre constituiria uma alteração anormal das circunstâncias prevista no art. 437.º do Código Civil.
A Autora apresentou articulado de Resposta, em que pugnou pela improcedência da exceção invocada, argumentando, em síntese, que: a pandemia Covid-19 não se enquadra na cláusula Décima, n.º 3, do Contrato, nem tão pouco permite acionar o instituto da alteração anormal das circunstâncias, uma vez que as partes expressamente convencionaram o pagamento daqueles valores independentemente da exploração turística do hotel; os contratos de exploração turística foram assinados em fevereiro de 2020, altura em que a Ré não podia já ignorar a existência da pandemia de COVID-19 desde dezembro de 2019 e de que os seus efeitos se iriam naturalmente repercutir na Europa.
Por se ter considerado que os autos já reuniam todos os elementos necessários para se conhecer imediatamente do mérito da causa foi convocada audiência prévia com vista à conciliação das partes e alegações.
Em 08-11-2023, veio a Autora apresentar Requerimento de ampliação do pedido, peticionando que a Ré fosse condenada a pagar-lhe o rendimento anual de 7%, no valor de 27.860,00 €, respeitante ao período entre 01-07-2022 e 30-06-2023, em dívida desde o dia 31-03-2023, acrescida dos juros de mora, à taxa de 4%, desde essa data até efetivo e integral pagamento, alegando, em síntese, que o segundo rendimento anual de 7%, no valor de 27.860,00 €, referente ao período entre 01-07-2022 e 30-06-2023, se havia vencido em 31-03-2023.
Em 08-02-2024, foi realizada a audiência prévia, tendo a Ré exercido aí o contraditório relativamente à ampliação do pedido, pugnando pela improcedência dessa pretensão, por considerar que, respeitando a rentabilidade peticionada ao período de 1 de julho de 2022 a 30 de junho de 2023, o pagamento daquela só se vencia a 30 de março de 2024, não fazendo sentido que fosse paga antes do término do ano que remunera. Foi então proferido despacho que admitiu a ampliação do pedido.
Em 13-03-2024, foi proferido o Saneador-sentença (recorrido), cujo segmento decisório tem o seguinte teor:
“Nestes termos, julgo totalmente procedente a presente ação e, em consequência:
1. Condeno a Ré “A …, LDA” a pagar à Autora B …:
a. a quantia de €16.950,00 (dezasseis mil, novecentos e cinquenta euros), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos sobre tal quantia, desde 1 de abril de 2021 até efetivo e integral pagamento, com base na taxa de juros civis de 4%.
b. a quantia de €27.860,00 (vinte e sete mil oitocentos e sessenta euros), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos sobre tal quantia, desde 1 de abril de 2022 até efetivo e integral pagamento, com base na taxa de juros civis de 4%.
c. a quantia de €27.860,00 (vinte e sete mil oitocentos e sessenta euros), acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos sobre tal quantia, desde 1 de abril de 2023 até efetivo e integral pagamento, com base na taxa de juros civis de 4%
Custas a cargo da Ré.
Registe e notifique.”
É com esta decisão que a Ré não se conforma, tendo interposto o presente recurso de apelação, em cuja alegação formulou as seguintes conclusões (que, apesar de prolixas, reproduzimos, omitindo algumas passagens manifestamente desnecessárias para a compreensão do objeto do recurso):
A. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida a 13/03/2024 com a referência citius …, que julgou totalmente procedente a ação e condenou a Recorrente a pagar à Recorrida: (…)
B. Porém, a Recorrente não se conforma com a sentença proferida e daí o presente recurso, porquanto considera que a douta decisão ora recorrida, salvo sempre o devido respeito, configura uma decisão injusta por padecer de erro na determinação da vontade real das partes vertida no Contrato de Cessão da Posição Contratual.
(…) L. Com o que a Recorrente não se pode conformar.
M. Primeiramente, ao contrário do vertido na sentença, a Recorrente impugnou a interpretação apresentada pela Autora quanto ao disposto na cláusula primeira ponto 3;
N. O vertido na sentença mostra que o tribunal a quo desconsiderou a resposta apresentada pela Recorrente em sede de audiência prévia, à ampliação do pedido formulada pela Autora.
O. Em segundo, e conforme anteriormente alegado, tal interpretação revela-se inconsistente com as finalidades do contrato em lide, não refletindo uma interpretação de acordo com a vontade real das partes
Porquanto
P. As prestações em lide, conforme consta da epigrafe da cláusula supra mencionada, correspondem a um rendimento anual, pelo que pressupõe que o lapso temporal de um ano a que se reporta tenha corrido à data do pagamento;
Q. Ao contrário da rentabilidade de 3%, a qual foi fixada num montante mais reduzido por pressupor a não exploração do hotel no período a que se reporta;
R. As rentabilidades de 7% estão associadas a uma exploração do empreendimento;
S. Pelo que não faria sentido que fossem pagas antes do término do ano que remuneram;
T. Uma ver que é precisamente das receitas da exploração que a Recorrente procede ao pagamento dos rendimentos.
U. Com a expressão “terminus do ano civil antecedente” constante do número 3 da cláusula primeira pretendiam as partes reportar-se ao fim último ano civil a que se reporta o rendimento anual referido no números 1 e 2 da cláusula (antecedentes/anteriores ao n.º 3).
V. Assim, se o primeiro ano de exploração terminou em Junho de 2021 e o estipulado entre as Partes é que o pagamento será efetuado no prazo de 90 dias a contar do término do ano civil antecede, o ano civil antecedente é 2021 e o prazo de 90 dias inicia-se a partir de 1 de Janeiro de 2022. Pelo que o rendimento anual de 3% venceu a 30 de Março de 2022.
W. Por seu turno, o primeiro rendimento anual, no montante de 25.060,00€, referente ao período de 1 de Julho de 2021 a 30 de Junho de 2022, vencer-se-ia a 30 de março de 2023.
X. Assim, à data da apresentação da petição inicial (01/09/2022) apenas se encontrava vencido o rendimento de 3%.
Y. Por sua vez, o segundo rendimento de 7%, que se venceria apenas em 30 de Março de 2024, não se encontrava vencido à data em que foi peticionado (08/11/2023), nem à data em que foi proferida a sentença ora recorrida (13/03/2024).
Z. Assim, ainda que o primeiro rendimento de 3% se tivesse vencido anteriormente ao respetivo pedido de condenação no pagamento, o mesmo não sucedeu com os pedidos de condenação no pagamento dos rendimentos de 7% .
AA. Porém, ainda que se encontrasse vencido o prazo para o pagamento do rendimento de 3%, nem por isso esse, nem o primeiro rendimento de 7% eram exigíveis.
Com efeito,
BB. Haviam as partes estipulado na cláusula primeira ponto 2 e no ponto 2 da cláusula segunda que as rentabilidades de 7% seriam devidas independentemente de ter sido iniciada a exploração turística do imóvel, ou estarem concluídas as obras de que o empreendimento iria ser objeto
CC. Porém, acordaram também que “O pagamento da rentabilidade do investimento não será devido no caso de desastres naturais, cataclismos, agitação política grave/revolução, conflito armado iminente ou situações que impossibilitem o funcionamento do hotel em circunstâncias normais” - ponto 3 da cláusula décima do contrato
DD. É evidente que tais normas seriam aplicáveis em circunstâncias de normalidade, e não no período a que se reportam os rendimentos em lide, por se tratar de uma situação excecional
EE. Como explicita a doutrina “(..) Por calamidade pública entendem-se as catástrofes naturais (terramotos, vulcões, tempestades, inundações e epidemias), as “catástrofes tecnológicas” e os “acidentes graves” (acidentes ferroviários, náuticos, aéreos, incêndios, explosões, etc.). (..)” (Gomes Canotilho, Direito Constitucional..., pág. 1102.)
FF. A Lei dá-nos uma definição da situação de calamidade pública, assumindo, pois, tal definição a natureza de conceito normativo nos termos expressos do artº 9º, nº 3 Lei 27/2006, de 3 de Julho (Lei de Bases da Protecção Civil), sendo que o faz por remissão para os conceitos de “acidente grave” e “catástrofe” do artº 3º da citada Lei, a saber: Os conceitos de “acidente grave” e “catástrofe” definidos no artº 3º Lei 27/2006 são: “Acidente grave é o acontecimento inusitado com efeitos relativamente limitados no tempo e no espaço, susceptível de atingir as pessoas e outros seres vivos, os bens e o ambiente.” Por sua vez “Catástrofe é o acidente grave ou a série de acidentes graves susceptíveis de provocarem elevados prejuízos materiais e, eventualmente, vítimas, afectando intensamente as condições de vida e o tecido sócio-económico em áreas ou na totalidade do território nacional.”
GG. Ambos traduzindo, na letra da lei, uma (i) situação de carácter danoso reflectido nos planos pessoal e patrimonial (ii) causada por evento não imputável ao homem, ou seja, em que a vontade humana é irrelevante., como se decidiu no Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 18/2/2021 (Cristina Santos), disponível em www.dgsi.pt.
HH. Conjugando os conceitos de “situação de calamidade”, “acidente grave” e de “catástrofe” temos que “(..) subjacente à ideia de calamidade pública se encontra uma situação de perigo, em relação ao qual a decretação do estado de excepção se apresenta como uma medida de defesa ... situação de perigo que justifica a licitude do acto praticado (..) Este perigo é sempre de natureza não humana e o mesmo só adquire relevo quando se pretende preservar os interesses pessoais ou patrimoniais. (..)” (Jorge Bacelar Gouveia, Estado de excepção no direito constitucional, Almedina/2020, págs. 143-145.)
II. Na situação de risco pandémico provocada pelo Covid-19, para o qual não existia meio de prevenção ou tratamento eficaz, o perigo de propagação deste vírus respiratório está fisicamente associado à actuação do ser humano, seu hospedeiro, o que significa que na ausência de hospedeiro a doença por Covid-19 perde, por um lado, a perigosidade de continuada massificação de danos e, por outro, o vírus a potencialidade de mutação em variantes cada vez mais contagiosas.
JJ. A conclusão que se retira é que no “(..) perigo de contágio pelo novo coronavírus, deparamos com riscos que são desconhecidos e insuscetíveis de controlo. O risco é desconhecido por desconhecidas serem ainda as próprias características deste vírus ... Também quanto à incontrolabilidade deste risco se pode dizer ... que o perigo de contágio, não podendo ser eliminado, pode ao menos ser contido de forma tão mais eficaz quanto mais intensas forem as medidas preventivas. As duas notas mais específicas do risco pandémico e que de um certo modo o diferenciam dos demais riscos emergentes, consistem na universalidade e na sua inevitabilidade. São riscos que oneram universalmente todos os participantes no tráfego, e são também riscos a que ninguém pode fugir: não há alternativa de um comportamento isento de perigo de contágio que não seja o confinamento total. (..)” (Nuno Trigo dos Reis, Responsabilidade civil por contágio pelo novo coronavírus? Algumas notas sobre responsabilidade aquiliana em tempos de pandemia, Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (RFDUL), LXI (2020) -1, pág. 537)
KK. Atento o teor da citada cláusula décima, ponto 3, aceitando aquela noção ampla de catástrofe natural, a epidemia do Covid-19 configura um desastre natural, que torna não exigível o pagamento da rentabilidade anual do investimento, pelo período decorrido entre 30/1/2020 (declaração de emergência internacional de saúde pública pela OMS) e 5/5/2023 (declaração de fim da pandemia, também pela) (factos notórios reconhecidos pelo tribunal).
LL. A verdade é que mais do que um impedimento ao normal funcionamento do hotel, conforme supra exposto, a pandemia consubstancia um desastre natural para efeitos da referida clausula;
MM. Pelo que se impõe revogação da sentença recorrida e substituição por outra que considere que a rentabilidade de 3% se teria vencido em 30/03/2022, e a primeira e segunda rentabilidade de 7% se terão vencido em 30/03/2023 e 30/03/2024;
NN. Indeferindo os pedidos formulados pela recorrida porquanto a rentabilidade de 3% e a primeira rentabilidade de 7%, referentes ao período de fevereiro de 2020 a junho de 2022, se reportam ao período da pandemia, não sendo exigíveis por força da cláusula décima do contrato em lide, e quanto à segunda rentabilidade de 7% porquanto esta não se encontrava vencida à data em que foi peticionada nem proferida a sentença.
Terminou a Ré requerendo que a decisão recorrida seja revogada e substituída por outra que determine:
A) que a rentabilidade de 3% se teria vencido em 30-03-2022, e a primeira e segunda rentabilidade de 7% se terão vencido em 30-03-2023 e 30-03-2024;
B) Indefira os pedidos formulados pela Recorrida porquanto a rentabilidade de 3% e a primeira rentabilidade de 7%, referentes ao período de fevereiro de 2020 a junho de 2022, se reportam ao período da pandemia, não sendo exigíveis por força da cláusula décima do contrato em lide, e quanto à segunda rentabilidade de 7% porquanto esta não se encontrava vencida à data em que foi peticionada nem proferida a sentença.
Foi apresentada alegação de resposta pela Autora, em que defendeu que seja negado provimento ao recurso, concluindo nos seguintes termos (omitem-se algumas passagens desnecessárias para a compreensão da posição assumida pela Apelada):
(…) G. Porém, entende a Recorrida que não assiste qualquer razão à Recorrente, pelo que deverá manter-se em vigor na ordem jurídica a decisão proferida pelo Tribunal a quo a 13 de março de 2024 e com a ref.ª CITIUS ….
H. Em primeiro lugar, não podemos acompanhar o entendimento operado pela Recorrente no que diz respeito à interpretação do número 3 da Cláusula Primeira do Contrato, portanto, relativa ao momento do vencimento das rentabilidades.
(…) J. A verdade é que a interpretação do estatuído não levanta problemas de maior, já que não poderá resultar outra interpretação senão aquela que - tomando de exemplo a rentabilidade de 3%, prevista no número 1 da Cláusula Primeira –, se o rendimento diz respeito ao período de 01.02.2020 até 30.06.2021, o ano civil antecedente ao final do período desse rendimento é 2020. Portanto, terminando o ano de 2020 em 31.12.2020, o cômputo do prazo de noventa dias, sempre teria início em 01.01.2021 e termo no dia 31.03.2021, pelo que a rentabilidade teria de ter sido paga até essa data.
K. Entendimento esse que o Tribunal a quo partilha.
L. Na verdade, é o presente entendimento (que a Recorrida logo indicou na Petição Inicial) bastante tangível, até mesmo para aqueles que se forçam a discordar dele, já que confrontada com o mesmo, não se dignou a Recorrente a rebatê-lo na Contestação apresentada nos presentes autos.
M. A este respeito, deverá ser relembrado o disposto nos números 1 e 2 do artigo 574.º do CPC, nos termos do qual: “1 - Ao contestar, deve o réu tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor. 2 - Consideram-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados (...)”.
N. Vem, contudo, a Recorrente afirmar que apresentou o seu contraditório à interpretação do terminus do prazo para o pagamento das rentabilidades, o que não se concede, já que, não se pronunciou na Contestação acerca dos factos constantes dos pontos 14 a 23 da Petição Inicial, relativos à contagem do prazo de 90 dias para o vencimento das rentabilidades e, a tê-lo feito, fê-lo extemporaneamente na audiência prévia, em sede de resposta à ampliação do pedido (cfr. ponto 37 das suas Alegações de Recurso), portanto, falhando com o ónus impugnatório que sobre si recaia.
O. Motivo pelo que os referidos factos se consideram admitidos por acordo.
P. Ainda assim, poderemos ir ainda mais longe, já que “à cautela”, conforme expressa a Recorrente, para o caso de não ser dado provimento aos artifícios argumentativos que elabora acerca da alteração anormal das circunstâncias que protesta, vem a Recorrente requerer que seja a sentença proferida pelo Tribunal a quo substituída por acórdão que “considere que a rentabilidade de 3% se teria vencido em 30.03.2022, e a primeira e segunda rentabilidade de 7% se terão vencido em 30/03/2023 e 30/03/2024”.
Q. Portanto, admitindo a qualidade de credora que assume na relação contratual com a Recorrida.
R. Apesar do exposto supra, prefere a Recorrente operar um discurso que, além de desprovido de lógica, vê-se descuidado e pouco rigoroso, já que refere uma rentabilidade no valor de 25.060,00€, que nem sequer consta do Contrato.
S. Em suma, deverá manter-se a decisão do Tribunal a quo que pugna pela condenação da Recorrida no pagamento das quantias nos termos já indicados no Considerando E destas Conclusões.
T. Encaminhando-nos à atendibilidade do argumento da Recorrente, relativamente ao impacto da Pandemia Covid-19 como fundamento para inexigibilidade da primeira rentabilidade de 3% e da primeira rentabilidade de 7%, adiantamos que o mesmo não poderá proceder.
U. O número 3 da Cláusula Décima do Contrato dispõe que “(…)”.
V. Ora, como bem se pode ver nos presentes autos a Recorrente sempre empenhou muito labor na dilucidação do vírus da Covid-19, assim como dos seus efeitos nefastos que, conforme bem indicou, constituem uma factualidade pública e notória e que não foi desmerecida pelo Tribunal a quo.
W. Em todo o caso, atentos esses pontos, importará exceder-nos à análise minuciosa da posição que a Recorrente assume nas suas Alegações, uma vez que aquela opera um raciocínio de onde parte do conceito de “calamidade pública”, salta para uma “noção ampla de catástrofe natural” e arremata com a inserção da pandemia provocada pelo vírus do Covid-19 dentro do conceito de “desastres naturais”, tal como previsto no número 3 da Cláusula Décima do Contrato.
X. Tudo com o objetivo de operar uma mera indução – veja-se, pouco fidedigna - que procura provar a inexigibilidade das quantias devidas referentes aos períodos entre 30.01.2020 e 30.06.2022, o que não se concede.
Y. Salvo o devido respeito, a posição pugnada pela Recorrente não passa de um sofisma que, ao tirar proveito de um facto público e notório, procura encobrir uma situação que, a este ponto vê-se bastante clara: o seu incumprimento contratual.
Z. Socorre-se, para o efeito, de um silogismo alicerçado em premissas que não se bastam para a aferição de uma conclusão suficientemente fundada e coerente – por outras palavras, opera um raciocínio conclusivo.
AA. Ponto é que não basta que a Recorrente traga à colação factos públicos e notórios relativos à pandemia provocada pelo vírus do Covid-19 e que os utilize como bordão para justificar a falta do pagamento das rentabilidades vencidas e devidas à Recorrida.
BB. Assim, uma vez que a Recorrente não se dignou a demonstrar e a fazer prova de que o contexto pandémico comprometeu as “circunstâncias de normalidade” – conforme refere – em que as partes fundaram a sua decisão de contratar (como até a nossa jurisprudência superior lhe exigia que fizesse, conforme alguns exemplos citados nas Contra-Alegações supra), desacredita-se a posição daquela.
CC. Ainda, se se analisar de uma forma minuciosa a ratio ínsita naquela norma contratual, compreendemos que a mesma procura acautelar as partes nas situações em que o equilíbrio em que as partes fundaram a decisão de contratar se vê defraudado.
DD. Em suma, a Recorrida não demonstrou fundamentos suficientes que nos permitam aferir que a situação pandémica prejudicou o referido equilíbrio.
EE. Vale, ainda, referir o entendimento do Tribunal a quo, com o qual concordamos e que entende que, em relação à primeira rentabilidade de 3%, “é manifesto que o pagamento desse valor não estava condicionado ao funcionamento do hotel, não tendo como pressuposto esse funcionamento” e, depois, em relação à primeira e segunda rentabilidades no valor de 7%, que é “inquestionável, face ao acervo fático dos autos, que inexiste qualquer elemento que permita concluir que as medidas de confinamento implementadas no contexto pandémico tenham efetivamente afetado o normal funcionamento do hotel”.
FF. Podemos, ainda, ir mais longe, já que na argumentação operada pela Recorrente nas suas Alegações de Recurso, a mesma invoca, no âmbito do número 3 da Cláusula Décima do Contrato, a pandemia provocada pelo vírus do Covid-19 como um desastre natural e não na categoria de “situações que impossibilitem o funcionamento do hotel em circunstâncias normais”.
GG. Por outras palavras, podemos operar um raciocínio a contrario que nos permite concluir que, na ausência de argumentação nesse sentido, a situação pandémica não comprometeu o funcionamento do hotel.
HH. Ademais, o Contrato é claro quando, na sua Cláusula Primeira, número 2, dispõe: “(…)”
II. Sendo também claro o Contrato, quando, na sua Cláusula Segunda, número 2, dispõe: “(…)”
JJ. Cai, assim, por terra qualquer argumento que a Recorrente possa operar acerca da inexigibilidade dos valores em dívida.
KK. Concluindo, ter-se-á a dizer que os argumentos invocados pela Recorrente não passam de um esforço meramente paliativo e procrastinador de um desfecho único e último: o pagamento das rentabilidades vencidas e devidas à Recorrida.
LL. Isto, porque - e sem conceder a interpretação operada pela Recorrente – a única questão que ainda poderá ser alvo de discussão (e que mesmo assim não levanta dúvidas quanto à única interpretação correcta, como já se viu) é a do momento do vencimento das rentabilidades e não se as mesmas são devidas.
MM. Ademais, a própria Recorrente demonstrou reconhecer que o pagamento das rentabilidades é devido, conforme Requerimento junto aos autos pela Recorrida em 29.06.2023 e com a ref.ª CITIUS …, onde se demonstrou, por prova documental, e-mails trocados entre as partes em que apenas discutem a interpretação da cláusula relativa ao momento do vencimento das rentabilidades.
NN. Motivo pelo que, a conduta da Recorrente se mostra abusiva e até mesmo contraditória e repleta de má-fé, uma vez que, operado aquele discurso, veio, em sede judicial, utilizar o bordão da pandemia (que nunca antes havia utilizado) para abster-se do pagamento das rentabilidades devidas.
OO. Em suma, a sentença sob recurso encontra-se bem redigida e bem fundamentada, quer no plano dos factos, quer no plano do Direito, não merecendo qualquer censura.
Termina a Apelada, defendendo que se mantenha a decisão sob recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II - FUNDAMENTAÇÃO
Como é consabido, as conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido (artigos 608.º, n.º 2, parte final, ex vi 663.º, n.º 2, 635.º, n.º 4, 636.º e 639.º, n.º 1, do CPC).
Identificamos as seguintes questões a decidir:
1.ª) Se do clausulado no n.º 3 da cláusula primeira resulta que os rendimentos de 3%, relativos ao período de fevereiro de 2020 a 30 de junho de 2021, apenas se venciam em 30-03-2022 (e não 30-03-2021), e que os rendimentos de 7%, relativos aos períodos de 1 de julho de 2021 a 30-06-2022 e 01-07-2022 a 30-06-2023, apenas se venciam no prazo de 90 dias a contar do termo de 2022 e 2023, isto é, 30-03-2023 e 30-03-2024 (e não 30-03-2022 e 30-03-2023), respetivamente;
2.ª) Se está verificada, ante a epidemia da Covid-19, a previsão do n.º 3 da cláusula décima do contrato, quando se refere a um desastre natural, tornando inexigível o pagamento dos rendimentos de 3% e de 7%, referentes ao período de fevereiro de 2020 a junho de 2022.
Factos provados
Na decisão recorrida foram considerados provados os seguintes factos (acrescentámos, por estar plenamente provado, o ponto 5-A):
1. A Ré é uma sociedade comercial por quotas, com número de identificação de pessoa coletiva …, e sede na Rua …, Altinho …, Lote …, Fração …, …-… Sesimbra, cujo objeto social corresponde a “Hotéis - Apartamentos com restaurante”.
2. No dia 21 de janeiro de 2020, a Autora celebrou com a sociedade “C … LDA”, um contrato através do qual esta prometeu vender e aquela prometeu comprar, livres de quaisquer ónus ou encargos, as frações autónomas designadas pelas letras “…” e “…”, correspondentes aos apartamentos “…” e “…” do prédio urbano sito na …, freguesia de …, concelho de Lagos, descrito na Conservatória do
 de Lagos sob o número … da freguesia de … e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da referida freguesia, com a licença de ocupação de hotel, emitida pela Câmara Municipal de Lagos, sob o n.º … , a 31 de janeiro de 1967.
3. Por escritura pública celebrada no dia 7 de fevereiro de 2020, a Autora declarou comprar à sociedade “C …, LDA”, que declarou vender à Autora as duas frações autónomas acima identificadas.
4. No dia 6 de fevereiro de 2020, a Autora e a Ré celebraram um contrato que designaram como “Contrato de cessão de exploração turística”, com as condições descritas no documento n.º 6 junto com a petição inicial, cujo teor aqui se deixa integralmente reproduzido, pelo qual ficou determinado que a Ré realizaria, em parceria com um grupo de Gestão Turística Líder de Mercado, a gestão e exploração turística do Empreendimento “D …, SPA”, onde se inseriam as 2 frações acima mencionadas e que, à data, se encontrava em obras de reabilitação.
5. A Cláusula Primeira do contrato intitulado “Contrato de cessão de exploração turística” dispõe o seguinte em termos do rendimento anual devido pela Ré à Autora em função da exploração turística das duas frações:
“(Rendimento Anual)
1. A ENTIDADE GESTORA compromete-se a pagar à ENTIDADE INVESTIDORA um rendimento anual de 3% (três por cento), com início em Fevereiro de 2020 e até 30 de Junho de 2021, o qual corresponde a 16.915,00€.
2. A ENTIDADE GESTORA compromete-se a pagar à ENTIDADE INVESTIDORA um rendimento anual de 7% (sete por cento), durante 30 (trinta) anos, com início em 01 de Julho 2021, o qual corresponde a 27.860,00€, independentemente de ter sido iniciada a exploração turística do imóvel, ou estarem concluídas as obras conforme o disposto no número 2 da cláusula 2ª.
3. Os rendimentos anuais descritos nos pontos 1. e 2. da presente Cláusula serão pagos pela ENTIDADE GESTORA à ENTIDADE INVESTIDORA, no prazo de 90 (noventa) dias a contar do terminus no ano civil antecedente”.
[5-A. Da cláusula Segunda, atinente à “Taxa de Ocupação”, consta, além do mais que:
“1. Consoante a taxa de ocupação nos primeiros 30 (trinta) anos, podem ser pagos valores extra, consoante os seguintes níveis de taxa de ocupação: (…)
2. Caso exista um atraso na finalização das obras, a Entidade Gestora garante o cumprimento da Cláusula Primeira, ponto 2”]
6. Por sua vez, o número 3 da Cláusula Décima do referido contrato estipula o seguinte:
“(Incumprimentos)
3. O pagamento da rentabilidade do investimento não será devido no caso de desastres naturais, cataclismos, agitação política grave/revolução, conflito armado iminente ou situações que impossibilitem o funcionamento do hotel em circunstâncias normais”.
7. Na sequência disso, a Autora cedeu à Ré a gestão e exploração das suas frações.
8. Por missiva datada de 16 de agosto de 2021, a Autora peticionou à Ré o pagamento do rendimento de 16.915,00 €, relativo à exploração turística das duas frações entre fevereiro de 2020 e 30 de junho de 2021, tendo tal pedido sido renovado por carta de 14 de outubro do mesmo ano.
9. Não obstante, até ao momento a Ré não procedeu ao pagamento dessa quantia.
10. Tão-pouco foi pago o rendimento anual de 7% do período de exploração que teve início em 1 de julho de 2021 e terminou em 30 de junho de 2022, no valor de 27.860,00 €, e o rendimento anual de 7% do período de exploração que teve início em 1 de julho de 2022 e terminou em 30 de junho de 2023, também no valor de 27.860,00 €.
11. Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou a existência de uma pandemia de Covid-19, provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2.
12. Em 18 de março de 2020, foi decretado o estado de emergência em todo o território nacional, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública, com duração inicial às 00:00 do dia 19 de março de 2020 e cessação às 23h59m do dia 2 de abril de 2020.
13. Na sequência do decretamento do estado de emergência, ficaram parcialmente suspensos o direito de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional, assim como a circulação internacional.
14. O estado de emergência acima mencionado implicou:
- O confinamento obrigatório, em estabelecimento de saúde ou no respetivo domicílio, dos doentes e dos infetados pelo COVID-19 e dos cidadãos relativamente a quem a autoridade de saúde ou outros profissionais de saúde tenham determinado a vigilância ativa.
- A proibição geral de os cidadãos maiores de 70 anos e de os imunodeprimidos de risco e os portadores de doença crónica considerados de risco, designadamente os hipertensos, os diabéticos, os doentes cardiovasculares, os portadores de doença respiratória crónica e os doentes oncológicos, circularem na via pública ou em espaços e vias equiparadas.
- Um dever geral de recolhimento domiciliário para os restantes cidadãos e a proibição geral da sua circulação em espaços e vias públicas ou em espaços e vias privadas equiparadas a vias pública.
15. O estado de emergência foi sucessivamente renovado em todo o território nacional até às 23:59 do dia 2 de maio 2020, tendo sido estabelecida, entre as 00:00h do dia 9 de abril e as 24:00h do dia 13 de abril de 2020, a proibição de os cidadãos saírem do concelho de residência, salvo por motivos de saúde ou por outros motivos de urgência imperiosa.
16. De 3 de maio a 30 de maio de 2020, vigorou em Portugal Continental o estado de calamidade, tendo sido estabelecido um levantamento gradual das medidas de confinamento no âmbito do combate à pandemia, em três fases (4 de maio, 18 de maio e 1 de junho).
17. Na sequência da pandemia de Covid-19, foi também declarado o estado de emergência em todo o território nacional com fundamento em calamidade pública, entre as 00:00 do dia 9 de novembro de 2020 e as 23:59 do dia 23 de novembro de 2020, com a suspensão parcial do direito à liberdade e deslocação.
18. O estado de emergência acima mencionado implicou:
- A proibição geral de circulação dos cidadãos na via pública entre as 23 horas e as 5 horas, bem como aos sábados e aos domingos no período compreendido entre as 13 horas e as 5 horas.
19. O estado de emergência foi sucessivamente renovado em todo o território nacional até às 23h59 do dia 30 de abril de 2021.
20. Entre as 00h00m do dia 1 de maio de 2021 e as 23h59m do dia 13 de junho de 2021, vigorou em Portugal Continental o estado de calamidade, através do qual foi estabelecido um dever de confinamento obrigatório para os doentes com COVID-19, os infetados com SARS-CoV-2 e os cidadãos em vigilância ativa e o dever cívico de recolhimento domiciliário dos restantes cidadãos.
21. Entre as 00h00m do dia 14 de junho de 2021 e as 23h59m do dia 31 de agosto de 2021, vigorou o estado de calamidade em Portugal Continental, através do qual foi estabelecido um dever de confinamento obrigatório apenas para os doentes com COVID-19 e os infetados com SARS-CoV-2.
22. Entre as 00hm do dia 23 de agosto de 2021 e as 23h59m do dia 30 de setembro de 2021, vigorou o estado de contingência em Portugal Continental, através do qual foi estabelecido um dever de confinamento obrigatório apenas para os doentes com COVID-19 e os infetados com SARS-CoV-2.
23. Entre as 00hm do dia 1 de outubro de 2021 e as 23h59m do dia 30 de novembro de 2021, vigorou o estado de alerta em Portugal Continental, através do qual foi estabelecido um dever de confinamento obrigatório apenas para os doentes com COVID-19, os infetados com SARS-CoV-2 e os cidadãos em situação de vigilância ativa.
24. Entre as 00h00m do dia 1 de dezembro de 2021 e as 23h59m do dia 18 de fevereiro de 2022, vigorou em Portugal Continental o estado de contingência, através do qual foi estabelecido um dever de confinamento obrigatório apenas para os doentes com COVID-19, os infetados com SARS-CoV-2 e os cidadãos em vigilância ativa.
25. Entre as 00h00m do dia 19 de fevereiro de 2022 e as 23h59m do dia 30 de setembro de 2022, vigorou em Portugal Continental o estado de alerta, através do qual foi estabelecido um dever de confinamento obrigatório apenas para os doentes com COVID-19 e os infetados com SARS-CoV-2.
26. No dia 5 de maio de 2023, a OMS declarou o fim da emergência de saúde para a COVID-19 a nível global.
27. No primeiro período de confinamento (entre março e maio de 2020), os turistas nacionais e estrangeiros ficaram impedidos de viajar e os trabalhadores hoteleiros ficaram sujeitos, como os demais cidadãos, à obrigação de recolhimento domiciliário.
28. A data prevista para a conclusão das obras de reabilitação mencionadas no ponto 4, era julho de 2021.
Do vencimento da obrigação de pagamento de rendimentos
Na sentença, o Tribunal recorrido começou por fazer o enquadramento jurídico do caso, referindo que a Autora e a Ré, celebraram entre si, no dia 6 de fevereiro de 2020, um contrato de cessão da exploração turística, que se trata de um contrato sinalagmático e oneroso, uma vez que dele derivam obrigações para ambas as partes: a Autora obrigou-se a ceder à Ré a gestão e exploração turística das frações com as letras “…” e “…”, correspondentes aos apartamentos “…” e “…” do prédio urbano sito na … , freguesia de …, concelho de Lagos, e integradas no Empreendimento “D …, SPA”, tendo a Ré, por sua vez, ficado obrigada ao pagamento à Autora, de um rendimento anual de 3%, relativo ao período de exploração entre fevereiro de 2020 e 30 de junho de 2021, no valor de 16.915,00 €, no prazo de 90 dias a contar do término no ano civil antecedente, e de um rendimento anual de 7%, durante 30 anos, com início em 1 de Julho 2021, o qual corresponde a 27.860,00 € - Cláusula Primeira do referido contrato.
Afirmou o Tribunal recorrido que, tal como decorre do princípio da liberdade contratual previsto no n.º 1 do art. 405.º do CC, podem os outorgantes de um contrato fixar livremente o respetivo conteúdo e cláusulas concretas, desde que dentro dos limites da lei e, em particular, com obediência aos preceitos normativos previstos no Decreto-Lei n.º 167/97, de 4 de junho, lembrando ainda o n.º 1 do art. 406.º do CC, que consagra o princípio do cumprimento pontual dos contratos, e o n.º 1 do art. 762.º do CC, do qual resulta que o devedor apenas cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado.
Mais referiu o Tribunal a quo que, tanto a Autora como a Ré, estavam obrigadas a cumprir o contrato de cessão de exploração turística nos exatos termos em que o celebraram, vindo a concluir que a Ré estava obrigada a pagar à Autora (i) a quantia de 16.950,00 € (rendimento correspondente ao período compreendido entre fevereiro de 2020 e 30 de junho de 2021) até ao 31 de março de 2021, (ii) a quantia de 27.860,00 € (rendimento do período de exploração compreendido entre 1 de julho de 2021 e 30 de junho de 2022) até ao dia 31 de março de 2022, e (iii) a quantia de 27.860 € (correspondente ao rendimento do período de exploração compreendido entre 1 de julho de 2022 e 30 de junho de 2023) até ao dia 31 de março de 2023, encontrando-se a Ré em mora, nos termos e para os efeitos dos n.ºs 1 e 2 do art. 804.º e do n.º 1 do art. 805.º do CC, estando assim obrigada a proceder ao pagamento à Autora das quantias mencionadas, acrescidas dos juros de mora vencidos e vincendos, calculados à taxa legal de 4%, sobre a quantia de 16.950,00 €, desde o dia 1 de abril de 2021 até efetivo e integral pagamento, sobre a quantia de 27.860,00 € desde o dia 1 de abril de 2022 até efetivo e integral pagamento e sobre a quantia de 27.860 €, desde o dia 1 de abril de 2023 até efetivo e integral pagamento.
No tocante à questão do prazo acordado para o pagamento dos rendimentos anuais acima mencionados, apenas constam da fundamentação do Saneador-sentença as seguintes considerações:
“Analisado o teor da cláusula Primeira n.º 3, cremos que resulta claro da letra do acordo reduzido a escrito, que as partes acordaram que os rendimentos anuais referidos nos números 1 e 2 dessa Cláusula deveriam ser pagos no prazo de 90 dias a contar do dia 31 de dezembro do ano civil anterior ao ano do término do período de exploração a que cada um dos rendimentos diz respeito. Interpretação que nem sequer foi posta em causa pela Ré nesta ação.
Assim sendo, acordaram as partes que a Ré pagaria à Autora:
- até ao dia 31 de março de 2021, o rendimento anual referido no número 1 de tal cláusula, rendimento anual de 3%, relativo ao período entre fevereiro de 2020 e 30 de junho de 2021, que corresponde ao valor de €16.950,00;
- até ao dia 31 de março de 2022 o rendimento anual de 7%, referido no ponto 2 da mesma cláusula e relativo ao período de exploração entre 1 de julho de 2021 e 30 de junho de 2022, que corresponde ao valor de €27.860,00;
- até ao dia 31 de março de 2023, o rendimento anual de 7%, referido no ponto 2 da mesma cláusula e relativo ao período de exploração entre 1 de julho de 2022 e 30 de junho de 2023, que corresponde ao valor de €27.860,00.”
A Ré-Apelante discorda, invocando um erro na determinação da vontade real das partes expressa na Cláusula Primeira n.º 3 do contrato.
A Autora-Apelada pugna pelo acerto da decisão recorrida, referindo que a questão em apreço nem sequer foi oportunamente suscitada, na Contestação.
Vejamos.
Conforme resulta do disposto no art. 5.º, n.º 3, do CPC, “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”.
Porém, não nos parece que estejamos aqui apenas perante matéria de direito.
Efetivamente, estabelece o art. 236.º do CC, sob a epígrafe “Sentido normal da declaração”, que:
“1. A declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.
2. Sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida.”
É sabido que a determinação da vontade real do declarante ou da vontade comum dos contraentes constitui matéria de facto, da exclusiva competência cognitiva das instâncias, não se confundindo com o verificar se, na interpretação da declaração negocial foram ou não observados os preceitos dos artigos 236.º e 238.º do CC, que estabelecem critérios para a fixação do sentido juridicamente relevante dessa declaração.
Na presente ação, a Autora, conforme suprarreferido no relatório deste acórdão, alegou factos concretos dos quais resulta, de forma inequívoca, a vontade real das partes, de acordo com a qual deve valer a estipulação constante da Cláusula Primeira, n.º 3.
A Ré, na sua Contestação, não impugnou verdadeiramente esses factos, não tendo tomado uma posição definida a esse respeito (cf. art. 574.º do CPC), já que se defendeu por exceção perentória, limitando-se a alegar não ser devido o pagamento da rentabilidade anual do investimento referente aos anos de 2020 a 2022, por efeito do disposto na Cláusula Décima n.º 3 ou, se assim não se entendesse, por ser aplicável o regime da alteração anormal das circunstâncias.
Só na audiência prévia, ao pronunciar-se sobre o requerimento de ampliação do pedido se lembrou de vir dizer que “a forma de contagem dos prazos apresentados pela Autora não tem qualquer cabimento, uma vez que, a rentabilidade está associada a uma exploração pelo que não faria sentido que a mesma fosse paga antes do término do ano que remunera”.
O Tribunal recorrido entendeu, pois, que a Ré não havia posto em causa na ação a interpretação da referida cláusula, não se pronunciando a respeito de uma questão que não havia sido suscitada [note-se que a Ré não invocou a nulidade do Saneador-Sentença por omissão de pronúncia a esse respeito, nulidade que não é de conhecimento oficioso – cf. art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC].
Efetivamente, a “nova interpretação” da cláusula primeira n.º 3 avançada pela Ré, atinente à determinação da vontade real das partes, sem que tenha suscitado essa questão na sua Contestação, de modo a pôr em causa o alegado pela Autora, é matéria que se deve considerar precludida, de harmonia com o disposto no art. 573.º do CPC. Naturalmente, se isso tivesse sido invocado na Contestação, as partes poderiam ter produzido prova com vista a ser conhecida a sua vontade real e o Tribunal recorrido teria apreciado a questão, interpretando a declaração negocial em causa. Nada disso aconteceu, sendo agora este Tribunal de recurso confrontado com uma questão que não foi oportunamente colocada nos autos.
Como é jurisprudência pacífica, as questões novas suscitadas pela parte apenas em sede de recurso, que não foram alegadas oportunamente, nem resolvidas pelo tribunal nos termos do art. 608.º, n.º 2, do CPC, não podem por ser levadas em conta, estando vedada a sua apreciação ao tribunal de recurso. Assim, quanto à inadmissibilidade da apreciação de questões novas nos recursos, veja-se, a título meramente exemplificativo, o acórdão do STJ de 23-03-2017, na Revista n.º 4517/06.5TVLSB.L1.S1 - 2.ª Secção, com sumário disponível em www.stj.pt: “Os recursos são meios de impugnação de decisões judiciais através dos quais se visa reapreciar e modificar decisões já proferidas que incidam sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, e não criá-las sobre matéria nova, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas, salvo aquelas que são de conhecimento oficioso (art. 627.º, n.º 1, do CPC).” Na doutrina, merece destaque a explicação de Abrantes Geraldes, in “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 5.ª edição, Almedina, pág. 119: “A natureza do recurso, como meio de impugnação de uma anterior decisão judicial, determina outra importante limitação ao seu objeto decorrente do facto, de em termos gerais, apenas poder incidir sobre questões que tenham sido anteriormente apreciadas, não podendo confrontar-se o tribunal ad quem com questões novas.
Na verdade, os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando, nos termos já referidos, estas sejam de conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha os elementos imprescindíveis. Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente temos seguido um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida, e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso”.
Portanto, estando plenamente provada a matéria de facto que foi alegada pela Autora quanto à vontade real das partes, afirmando o Tribunal recorrido que isso não foi questionado pela Ré (não tendo esta invocado a nulidade da decisão recorrida por omissão de pronúncia a esse respeito) não tem cabimento estar agora a discutir essa questão no âmbito do presente recurso.
Assim, não se pode considerar que o Saneador-sentença padece deerro na determinação da vontade real das partes” quanto à referida cláusula, a qual deve valer com o sentido que foi indicado na Petição Inicial e que não mereceu qualquer impugnação por parte da Ré na sua Contestação.
Da inexigibilidade de cumprimento da obrigação pela Ré
O Tribunal recorrido lembrou que, segundo a Autora, nos termos da Cláusula Segunda, n.º 2 do contrato, a Ré se comprometeu a pagar-lhe o rendimento anual «mesmo que não se tenha ainda iniciado a exploração turística do imóvel e/ou que exista um atraso na finalização das obras do empreendimento turístico onde se inserem as frações propriedade da Autora, sustentando que isso também resulta da própria Cláusula Primeira, n.º 2 do contrato, da qual consta que a Ré se obriga a pagar à Autora o rendimento anual de 7% (sete por cento), durante 30 (trinta) anos, com início em 01 de Julho 2021, o qual corresponde a 27.860,00€, independentemente de ter sido iniciada a exploração turística do imóvel, ou estarem concluídas as obras conforme o disposto no número 2 da cláusula segunda.
Por sua vez, a Ré, na sua defesa, argumenta que as quantias não são devidas, ao abrigo do n.º 3 da Cláusula Décima do contrato, uma vez que a pandemia de Covid-19 impossibilitou o funcionamento do hotel em circunstâncias normais.
Dispõe aquela cláusula que “O pagamento da rentabilidade do investimento não será devido no caso de (...) situações que impossibilitem o funcionamento do hotel em circunstâncias normais”.
Impõe-se, pois, proceder a um esforço de exegese interpretativa do conjunto das cláusulas do acordo reduzido a escrito pelas partes.
Posto isto cumpre, desde logo, salientar que do acordo firmado entre as partes, em particular da leitura conjugada do ponto 5 dos considerandos com a cláusula primeira e a cláusula segunda, extrai-se que à data da celebração do contrato entre as partes o hotel encontrava-se em obras e que a data prevista por ambas as partes para o início do funcionamento do hotel, era o dia 1 de julho de 2021, tendo sido com base nessa previsão que as partes acordaram fixar valores de rendimentos diferentes, como contrapartidas devidas pela exploração da unidade hoteleira: um valor definido no n.º 1 da cláusula primeira, mais baixo porquanto corresponde ao período em que o hotel ainda não se encontra a funcionar e outro valor superior, definido no n.º 2 da mesma cláusula, para o período subsequente à data de previsão para o início de funcionamento do hotel.
Vale isto por dizer que relativamente ao valor previsto no n.º 1, não assume qualquer relevância a circunstância pandémica alegada pela Ré, até porque a Ré invoca a pandemia apenas como circunstância que impediu o funcionamento do hotel, sendo certo, que relativamente ao período aqui em causa e a que respeita o valor previsto no n.º 1 da cláusula primeira, é manifesto que o pagamento desse valor não estava condicionado ao funcionamento do hotel, não tendo como pressuposto esse funcionamento. Consequentemente, não assiste à Ré o direito de acionar a exclusão da obrigação de pagamento, com fundamento na impossibilidade de funcionamento do hotel, ao abrigo do n.º 3 da cláusula décima.
Assim sendo, sem necessidade de maiores considerações, é imperioso concluir que se encontra a Ré obrigada a proceder ao pagamento à Autora da quantia de €16.915,00.
No que concerne ao valor de €27.860,00, respeitante ao rendimento anual de 7%, referido no ponto 2 da cláusula primeira, relativo ao período de exploração entre 1 de julho de 2021 e 30 de junho de 2022, que corresponde ao valor de €27.860,00 parece-nos inquestionável, face ao acervo fático dos autos, que inexiste qualquer elemento que permita concluir que as medidas de confinamento implementadas no contexto pandémico tenham efetivamente afetado o normal funcionamento do hotel. Na verdade, conforme se extrai dos factos assentes, o estado de emergência cessou às 23h59 do dia 30 de abril de 2021, sendo certo que após essa data não foi aplicada qualquer obrigação de confinamento ou imposta qualquer outra proibição de circulação aos cidadãos. proibição de circulação aos cidadãos a partir de 1 de julho de 2021,
Mais se dirá que o D …, Spa nunca esteve totalmente impedido de laborar e de funcionar enquanto unidade hoteleira, nem de gerar receita dessa forma, entre março de 2020 e 30 de junho de 2021, uma vez que os hotéis não viram o seu encerramento decretado no âmbito do estado de emergência (artigo 7.º e Anexo I dos Decretos n.º 2-A/2020, de 20 de março, n.º 2-B/2020, do Decreto n.º 2-C/2020, de 17 de abril, a contrario).»
O Tribunal recorrido veio a concluir (afastando também a possibilidade de aplicação do disposto no art. 437.º do CC – o que a Apelante ora não questiona) que inexistia qualquer fundamento para a Ré recusar o pagamento das quantias que se obrigou a pagar à Autora, não se verificando qualquer situação suscetível de integrar a exclusão da obrigação nos termos previstos no n.º 3 da Cláusula Décima do contrato, sendo os valores peticionados a esse título devidos na íntegra.
A Ré-Apelada defende agora, na sua alegação de recurso, que a pandemia de Covid-19 se reconduz à previsão desta cláusula, por se tratar de um desastre natural.
A Autora discorda, pelas razões alinhadas na sua alegação, acima reproduzidas.
Vejamos.
Diremos, em primeiro lugar, que da aplicação ao caso da cláusula Décima n.º 3 não resultará a inexigibilidade da obrigação em apreço com o sentido técnico do termo, já que a obrigação se diz exigível quando já se encontra vencida ou quando o seu vencimento depende de simples interpretação do devedor, portanto, quando já pode ser exigida.
A defesa da Ré ora em apreço nada tem a ver com essa questão, mais parecendo configurar um facto impeditivo da constituição da obrigação de pagamento, uma vez que, na dita cláusula, se prevê, pura e simplesmente, que “O pagamento da rentabilidade do investimento não será devido no caso de desastres naturais, cataclismos, agitação política grave/revolução, conflito armado iminente ou situações que impossibilitem o funcionamento do hotel em circunstâncias normais”.
Na sua Contestação, a Ré invocou esta cláusula, assinalando a negrito a expressão “ou situações que impossibilitem o funcionamento do hotel em circunstâncias normais”. Daí que tenha sido apreciado pelo Tribunal recorrido se, perante as alegações de facto feitas na Contestação e considerando ainda a legislação produzida por causa da pandemia de Covid-19 e até os factos notórios a esse respeito, estava ou não verificada a previsão dessa cláusula do contrato, desenvolvendo considerações sobre se teria ocorrido uma situação de impossibilidade do funcionamento do hotel em circunstâncias normais.
Curiosamente, a Ré agora defende que se deve considerar, ante a matéria de facto considerada provada e os factos notórios reconhecidos pelo tribunal, que se está perante um desastre natural, numa interpretação puramente literal da referida cláusula que, desde já se adianta, não podemos acompanhar.
Lembramos que a interpretação a fazer dessa cláusula deve observar a teoria da impressão do destinatário consagrada no art. 236.º, n.º 1, do CC, segundo a qual a declaração vale com o sentido que um declaratário normal - medianamente instruído, sagaz e diligente -, colocado na posição do declaratário real, a entenderia, considerando, pois, as circunstâncias em que este se encontra, em particular os termos do negócio, os interesses em jogo e a finalidade prosseguida pelo declarante (neste sentido, a título de exemplo, veja-se o acórdão do STJ de 23-02-2010 proferido na Revista n.º 1872/03.2TMAI.P1.S2, sumário disponível em www.stj.pt).
Ora, atentando no conteúdo do contrato em apreço, em particular a própria expressão “rentabilidade do investimento” e a premência que perpassa nas Cláusulas primeira n.º 2 e segunda n.º 2, no sentido de assegurar uma efetiva rentabilidade à “Investidora” (além da remuneração acrescida decorrente da efetiva ocupação das frações), parece-nos claro que se deverá entender que apenas não seria devido o pagamento da denominada “rentabilidade do investimento” perante “desastres naturais, cataclismos, agitação política grave/revolução, conflito armado iminente” que tivessem repercussão no funcionamento do hotel em termos tais que, à luz do princípio da boa fé (cf. art. 762.º, n.º 2, do CC), tornariam inexigível à Ré o cumprimento da obrigação em apreço.
É sabido que a pandemia de Covid-19 foi considerada como calamidade pública, sendo referido logo no preâmbulo do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, que declarou “o estado de emergência, com fundamento na verificação de uma situação de calamidade pública”, precisamente que:
“A Organização Mundial de Saúde qualificou, no passado dia 11 de março de 2020, a emergência de saúde pública ocasionada pela doença COVID -19 como uma pandemia internacional, constituindo uma calamidade pública.
A situação tem evoluído muito rapidamente em todo o mundo em geral, e, em particular, na União Europeia. Em face do que antecede, têm sido adotadas medidas de forte restrição de direitos e liberdades, em especial no que respeita aos direitos de circulação e às liberdades económicas, procurando assim prevenir a transmissão do vírus.
Portugal não se encontra imune a esta realidade. Bem pelo contrário, são crescentes os novos casos de infetados no nosso País. O conhecimento hoje adquirido e a experiência de outros países aconselham a que idênticas medidas sejam adotadas em Portugal, como forma de conter a expansão da doença, sempre em estreita articulação com as autoridades europeias.
Em Portugal, foram já adotadas diversas medidas importantes de contenção, as quais foram, de imediato, promulgadas pelo Presidente da República, e declarado o estado de alerta, ao abrigo do disposto na Lei de Bases da Proteção Civil.
Contudo, à semelhança do que está a ocorrer noutros países europeus, torna-se necessário reforçar a cobertura constitucional a medidas mais abrangentes, que se revele necessário adotar para combater esta calamidade pública, razão pela qual o Presidente da República entende ser indispensável a declaração do estado de emergência.
Nos termos constitucionais e legais, a declaração limita-se ao estritamente necessário para a adoção das referidas medidas e os seus efeitos terminarão logo que a normalidade seja retomada. Entretanto, confere às medidas que se traduzam em limitações de direitos, liberdades e garantias o respaldo Constitucional que só o estado de emergência pode dar, reforçando a segurança e certeza jurídicas e a solidariedade institucional”.
A jurisprudência tem vindo a reconhecer como factos notórios a existência da pandemia Covid-19, bem como a circunstância de ter causado períodos de confinamento e de encerramento de serviços e estabelecimentos abertos ao público, mas já não tem reconhecido como tais a medida, dimensão ou importância como a pandemia, bem como os confinamentos e encerramentos, as alterações do comportamento das pessoas na frequência dos espaços públicos, influenciaram negativamente a exploração dos diferentes sectores da atividade económica no nosso país (neste sentido, a título exemplificativo, veja-se o acórdão da Relação do Porto de 09-11-2023, proferido no processo n.º 16989/22.6T8PRT-A.P1, disponível em www.dgsi.pt).
Atentando nos factos descritos na decisão recorrida a respeito da pandemia de Covid-19, não nos parece que devam ser considerados um “desastre natural” subsumível na previsão da citada cláusula.
Ainda que assim não se entendesse, o certo é que inexistem factos notórios e/ou factos alegados (na Contestação, naturalmente) dos quais pudesse resultar que, no caso concreto, a pandemia de Covid-19 impactou negativamente a exploração pela Ré do empreendimento turístico do qual fazem parte as duas frações de que a Autora é proprietária, pelo que nenhuma censura merece a decisão recorrida quando concluiu que a Ré se encontrava obrigada a pagar as quantias peticionadas.
Assim, impõe-se concluir pela improcedência das conclusões da alegação de recurso, ao qual não pode deixar de ser negado provimento.
Vencida a Ré-Apelante, é responsável pelo pagamento das custas processuais (artigos 527.º e 529.º, ambos do CPC).
***
III - DECISÃO
Pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso, mantendo-se, em consequência, a decisão recorrida.
Mais se decide condenar a Ré-Apelante no pagamento das custas do recurso.
D.N.

Lisboa, 24-10-2024
Laurinda Gemas
João Paulo Raposo
Pedro Martins