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ABANDONO DE ANIMAL
ASSISTENTE
LEGITIMIDADE
INSTRUÇÃO
REJEIÇÃO
INADMISSIBILIDADE
Sumário
I. A Sra. Juíza de Instrução, como resulta do despacho revidendo, fundou a asserção da ilegitimidade da recorrente no argumento de que o «tipo legal visa salvaguardar a vida, a integridade e o bem-estar dos animais de companhia» concluindo adrede que «a requerente não é ofendida nos termos do estatuído no citado art.68º, nº 1, al. a), pois que não é titular dos direitos que a lei quis proteger com a incriminação» II. Ante a acérrima controvérsia existente quanto ao discernimento do/s bem/bens jurídico/s tutelado/s no referido tipo legal e sabida a mais recente posição do Plenário do Tribunal Constitucional vertida no Acórdão n.º 70/2024, de 23 de Janeiro, impõe-se conclusão diversa. III. Sendo a recorrente a dona/tutora do animal que, alegadamente, foi vítima de conduta susceptível, em abstracto, de preencher o tipo legal do art. 388º do C.P., não resta senão concluir-se pela legitimidade da mesma para se constituir assistente, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 68º, n.º 1, al. a) do C.P.P. IV. À semelhança do que se verifica relativamente à (in)definição dos bens jurídicos tutelados no tipo legal p. e p. pelo art. 388º do C.P., também o recorte típico é, deveras, controvertido. V. Perante a diversidade de soluções plausíveis de direito, não só se mostra arredada a possibilidade de rejeitar o requerimento de abertura de instrução, nos termos em que o foi, como seria até inadmissível a prolação de um despacho de não pronúncia alavancado, exclusivamente, em controversa subsunção jurídico-penal, pois que, de per si, insusceptível de sedimentar um juízo de maior probabilidade de absolvição do que de condenação.
Texto Integral
I. RELATÓRIO
Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. Nos autos em referência, precedendo denúncia, apresentada por AA contra BB e o ..., findo o inquérito, foi proferido pelo Ministério Público despacho de arquivamento, ao abrigo do disposto no art. 277º, n.º 2 do C.P.P.
2. Inconformada com o arquivamento, AA veio requerer a sua constituição como assistente e, concomitantemente, a abertura da instrução, pedindo, a final, que seja proferido despacho de pronúncia, contra BB e o ..., pela prática de um crime de abandono de animais de companhia, p. e p. pelo art. 388º do C.P.
3. Sobre tais requerimentos, a Sra. Juíza de instrução, por despacho de 22 de Março de 2024, decidiu nos seguintes termos: «I. Da requerida constituição como assistente Veio AA requerer a sua constituição como assistente nos presentes autos. Concomitantemente requereu a abertura da instrução pugnando pela prolação de despacho de pronúncia pela prática de um crime de abandono de animal de companhia p. e p. pelo art.388º do Código Penal. O Ministério Público pronunciou-se pelo indeferimento da pretensão, alegando que a requerente carece de legitimidade. Cumpre apreciar e decidir. O art. 68º, nº 1, do Código de Processo Penal, sob a epígrafe “Assistente” regula quem tem legitimidade para assumir tal posição no processo penal. Não tendo o presente caso subsunção no vertido nas restantes alíneas do art.68º, como resulta evidente da mera leitura das mesmas, cumpre indagar da sua subsunção ao vertido no art.68º, nº 1, al. a), do Código de Processo Penal. Nos termos do disposto no art. 68º, nº 1, al. a), podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;” Ora, não se curando nesta sede de averiguar se o bem jurídico titulado pela incriminação tem assento constitucional, sempre se dirá que este tipo legal visa salvaguardar a vida, a integridade e o bem-estar dos animais de companhia. Assim sendo, a requerente não é ofendida nos termos do estatuído no citado art.68º, nº 1, al. a), pois que não é titular dos direitos que a lei quis proteger com a incriminação. Note-se que não existe qualquer legislação especial que preveja essa legitimidade como sucede v.g. com as associações zoófilas que podem constituir-se como assistente em processo penal que tenha, entre outros, por objeto o de abandono de animal doméstico na via pública, nos termos do estatuído na Lei 92/95, de 12 de Setembro. Pelo exposto, indefiro o pedido de constituição como assistente de AA, por falta de legitimidade da mesma para o efeito, uma vez que não é ofendida nos presentes autos, ou seja, não possui a titularidade dos interesses que a lei especialmente pretendeu proteger com a incriminação em causa - cfr. art. 68°, n.° 1, al. a), do Código de Processo Penal. Notifique. * II. Da requerida abertura de instrução AA requereu a abertura da instrução pugnando pela prolação de despacho de pronúncia pela prática de um crime de abandono de animal de companhia p. e p. pelo art.388º do Código Penal. Não sendo a requerente assistente nos presentes autos, carece de legitimidade para requerer a abertura da instrução conforme decorre a contrario sensu do artigo 287º, 1, al. b), do CPP, pelo que impõe a rejeição por inadmissibilidade legal da instrução, do requerimento para o efeito apresentado, nos termos do disposto no art. 287.º, n.º 3, do CPP. Por último, ainda que assim se não entendesse, sempre se dirá que os factos descritos no requerimento de abertura de instrução também não têm subsunção no citado normativo, uma vez que não se imputa o abandono do animal de companhia, que colocou em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, como estatui o art.388º, mas sim a alegada negligência médica veterinária que terá levado ao óbito do animal, o que, manifestamente não preenche o tipo legal em causa. Ademais, os factos descritos no requerimento de abertura de instrução não configuram a prática de qualquer outro crime. Em suma, por todo o exposto, por inadmissibilidade legal da instrução, rejeito o requerimento para o efeito apresentado, nos termos do disposto no art. 287.º, n.º 3, do CPP. Notifique. Custas pela assistente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia. Dê baixa. Oportunamente arquive»
4. AA interpôs recurso deste despacho. Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões: «1. Por decisão proferida pelo Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa foi indeferido o pedido de constituição de assistente formulado pela recorrente, por falta de legitimidade. 2. Pela mesma decisão foi também rejeitado o requerimento para abertura da instrução, formulado pela recorrente, por inadmissibilidade legal. 3. Qualquer uma das decisões proferidas pelo despacho recorrido peca por errada interpretação da lei penal e, também, errada interpretação da Constituição. 4. Diz a decisão instrutória que a assistente não tem legitimidade para se constituir como assistente por não ser ofendida nos presentes autos e, por via disso, não possuir a titularidade de interesses que a lei especialmente protegeu com a incriminação em causa, com fundamento no artigo 68º, nº 1, alínea a) do CPP. 5. Enquanto proprietária do animal de estimação cuja morte foi causada pelos negligentes cuidados médico-veterinários recebidos, a recorrente terá legitimidade para intervir no processo como ofendida. 6. Os artigos 203º e 210º do Código Penal atribuem legitimidade criminal aos proprietários de animais que tenham sido ofendidos pelo furto ou roubo dos seus animais. 7. Se o Código Penal atribui legitimidade para os donos dos animais que tenham sido furtados ou roubados poderem intervir no processo, atribuir essa legitimidade aos proprietários de animais de companhia, viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição. 8. Esse princípio da igualdade, consagrado nesse artigo 13º é um princípio estruturante do Estado de direito democrático e postula, como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. 9. Na verdade, o princípio da igualdade, entendido como limite objetivo da discricionariedade legislativa, não veda à lei a adoção de medidas que estabeleçam distinções. 10. Todavia, proíbe a criação de medidas que estabeleçam distinções discriminatórias, isto é, desigualdades de tratamento materialmente não fundadas ou sem qualquer fundamentação razoável, objetiva e racional. 11. O princípio da igualdade, enquanto princípio vinculativo da lei, traduz-se numa ideia geral de proibição do arbítrio (cfr. por todos acórdão n.º 232/2003, publicado no Diário da República, I Série-A, de 17 de Junho de 2003 e nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, 56.º Vol., págs. 7 e seguintes). 12.Em defesa desse princípio invoca-se vária jurisprudência constitucional, nomeadamente, os acórdãos com os nº 437/06, 546/11, 575/14 266/15, entre outros (disponíveis em em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/. 13.Ainda assim, a recorrente não requereu a sua constituição como assistente, ao abrigo dessa alínea a) do nº 1 desse artigo 68º. 14.A recorrente requereu que fosse constituída como assistente neste processo nos termos da alínea b) e dos nº 3 e nº 5, desse mesmo artigo do 68º CPP. 15. Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento, conforme expressamente previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 68º do CPP. 16.Foi a recorrente, e não outrem, que apresentou a queixa contra o ... e contra a Dra. BB. 17. Foi essa queixa apresentada pela recorrente que despoletou o presente procedimento criminal. 18.Pelo que, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 68º o pedido de constituição como assistente no processo deveria ter sido deferido. 19.Como deveria ter sido deferido o pedido efetuado ao abrigo da alínea a) desse nº 1 do artigo 68º, em defesa do princípio da igualdade. 20.Não tendo sido constituída assistente, bastaria o despacho recorrido ter invocado essa falta de constituição para indeferir o pedido de abertura da instrução, sem mais. 21.Não entendeu assim esse despacho que, para além dessa errada não aplicação da alínea b) do nº 1 do artigo 68º do CPP ao pedido de abertura da instrução sentiu a necessidade de justificar o indeferimento desse pedido. 22.Para tal, considerou o despacho recorrido que a negligência médica veterinária - invocada pela recorrente tanto na queixa como no requerimento de abertura da instrução - não preencher o tipo de legal do crime de abandono de animais de companhia previsto e punido pelo artigo 388º do Código Penal. 23.Essa interpretação desse artigo 388º carece de qualquer fundamento, na medida em que, a negligência médica veterinária também preenche o tipo legal do crime de abandono de animais de companhia, conforme se pode constatar através de uma leitura atenta e correta desse dispositivo criminal. 24.Na verdade, diz, expressamente, o nº 1 desse artigo 388º:“Quem, tendo o dever de guardar, vigiar ou assistir animal de companhia, o abandonar, pondo desse modo em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 60 dias. (sublinhados nossos).” 25.Para o nº 2 desse mesmo artigo 388º acrescentar: “Se dos factos previstos no número anterior resultar perigo para a vida do animal, o limite da pena aí referida é agravado em um terço.” 26.Ora, foi a prestação negligente de cuidados médico-veterinários que eram devidos ao animal de companhia da recorrente que motivou a queixa por si apresentada contra o ... e contra a Dra. BB, junto do Ministério Público e que este decidiu, infundadamente arquivar. 27.Aliás, o despacho recorrido acabou por fazer errada interpretação desse artigo 388º do Código Penal, nos termos previstos no artigo 9º do Código Civil. 28.Diz esse artigo 9º do Código Civil, aplicada ao processo penal, quanto à interpretação da lei: “1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.” 29.Por fim, tanto neste processo (decisão sumária proferida em 22 de fevereiro de 2024) como em acórdãos proferidos em 23 de janeiro de 2024 e 27 de fevereiro de 2024 (acórdão nº 70/2024 27 e acórdão nº 148/2024, respetivamente, disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/) o Tribunal Constitucional já se pronunciou pela não inconstitucionalidade da norma incriminatória contida no artigo 387º do Código Penal,na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto. 30.Na interpretação e na não aplicação dos cuidados médico-veterinários enquanto elemento tipo do crime do abandono de animais de companhia para obstar ao deferimento do pedido de abertura da instrução formulado pela recorrente enquanto assistente legitimidade, tanto pela alínea a) como pela alínea b) do nº 1 do artigo 68º do CPP, além de errada interpretação da lei, tanto civil, como criminal, o despacho recorrido também fez incorreta interpretação da Constituição, nomeadamente, do seu artigo 13º que consagra o princípio da igualdade, o artigo 20º que consagra o princípio do acesso ao direito e tutela jurídica efetiva e do artigo 32º, nº 7 que consagra o direito do ofendido intervir no processo. Termos em que se requer a decisão instrutória proferida pelo Tribunal Central de Instrução Criminal de Lisboa seja anulada por violação dos seguintes dispositivos legais e constitucionais: e) Artigo 9ºdo Código Civil; f) Artigo 68º, nº 1 b) do Código de Processo Penal; g) Artigos 203º, 210º e 388º do Código Penal; h) Artigos 13º, 20º e 32º, nº 7 da CRP. E, em sua substituição, seja proferida decisão que ordene a abertura da instrução, conforme legitima e legalmente requerido pela recorrente.
5. O recurso foi admitido, por despacho de 11 de Junho de 2024.
6. O Ministério Público em primeira instância respondeu ao recurso, propugnado pela confirmação do decidido, em síntese, nos seguintes termos (sem formulação de conclusões): «O regime de atribuição de legitimidade para constituição de assistente encontra-se estruturado à volta do conceito de ofendido, ao qual é reconhecida, em primeira linha, a referida legitimidade. As hipóteses previstas nas als. c) e d) do n° 1 do art. 68° do CPP reportam-se a situações em que, por razões de diversa natureza, o ofendido não tenha estado em condições de exercer normalmente os direitos que lhe assistem, na matéria em referência, pessoalmente ou através da pessoa que, em princípio, o representaria. O dispositivo da al. b) do mesmo normativo vigora para os processos relativos a crimes de natureza procedimental semi-pública e particular, cujo procedimento depende, respectivamente, de apresentação de queixa ou da dedução de acusação particular, respectivamente. O art. 113° do CP atribui o direito de queixa, em princípio, ao ofendido, definido em termos idênticos aos enunciados na al. a) do n° 1 do art. 68° do CPP, ou às pessoas que o devam substituir quando não se encontre em condições de o exercer ou não tenha podido fazê-lo (…) (…) não havendo lei especial que confira esse direito ao dono do animal, como sucede com as associações zoófilas que podem constituir-se como assistente em processo penal pelo crime de abandono de animais de companhia, nos termos descritos na Lei 92/95, de 12 de Setembro, não tem AA legitimidade para se constituir assistente nos termos do artigo 68° do Código de Processo Penal. Da falta de correspondência com o tipo legal Quanto ao denunciado Hospital Veterinário da Universidade Autónoma O requerimento de abertura de instrução, sobretudo quando precedido de um despacho de arquivamento do Ministério Público, como no caso dos autos, tem de comportar os requisitos essenciais de uma acusação, cuja função passará a desempenhar no processo, e só assim permitindo o desenvolvimento de ulteriores trâmites, o exercício de um efectivo direito de defesa ao arguido, e a compatibilidade com um sistema penal com
estrutura acusatória. Por tal, o artigo 287.°, n.° 3, do Código de Processo Penal, prevê que o requerimento de abertura de instrução só possa ser rejeitado por extemporaneidade; por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal. (…), inexistindo narração, ainda que sintética, dos factos ou imputação ao denunciado ..., de qualquer tipo de crime, mormente de factos capazes de preencher elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de abandono de animais de companhia, não há, quanto ao mesmo, objecto do processo, pelo que o presente requerimento de abertura de instrução comporta uma instrução legalmente inadmissível, impondo-se, ex vi artigo 287.°, n.° 3, do Código de Processo Penal, a sua rejeição parcial. Quanto à denunciada BB (…) a recorrente no seu requerimento de abertura de instrução não imputa o abandono do animal de companhia, que colocou em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, como estatui o art.388° do Código Penal, mas sim a alegada negligência médica veterinária que terá levado ao óbito do animal, o que, manifestamente não preenche o tipo legal em causa, conforme supra descrito, nem qualquer outro crime. É, pois, de rejeitar, por inadmissibilidade legal, o requerimento de abertura de instrução apresentado pela recorrente. Nesta conformidade, por não ter legitimidade para se constituir assistente e a instrução ser legalmente inadmissível, deverá ser negado provimento ao recurso interposto por AA e confirmado o douto despacho recorrido»
7. Neste tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se pela procedência do recurso nos seguintes termos: «I – O recurso incide sobre a decisão do Tribunal Central Instrução Criminal TCIC - Juiz 2, que, face ao disposto no 68°, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal, indeferiu o pedido de constituição como assistente de AA, por falta de legitimidade, porquanto considerou que a mesma não é ofendida nos autos, uma vez que não possui a titularidade dos interesses que a lei especialmente pretendeu proteger com a incriminação em causa e, consequentemente, rejeitou a abertura de instrução requerida pela mesma. A decisão fundamenta-se do seguinte modo: “não se curando nesta sede de averiguar se o bem jurídico titulado pela incriminação tem assento constitucional, sempre se dirá que este tipo legal visa salvaguardar a vida, a integridade e o bem-estar dos animais de companhia. Assim sendo, a requerente não é ofendida nos termos do estatuído no citado art.68º, nº 1, al. a), pois que não é titular dos direitos que a lei quis proteger com a incriminação. Note-se que não existe qualquer legislação especial que preveja essa legitimidade como sucede v.g. com as associações zoófilas que podem constituir-se como assistente em processo penal que tenha, entre outros, por objeto o de abandono de animal doméstico na via pública, nos termos do estatuído na Lei 92/95, de 12 de Setembro. Não sendo a requerente assistente nos presentes autos, carece de legitimidade para requerer a abertura da instrução conforme decorre a contrario sensu do artigo 287º, 1, al. b), do CPP, pelo que impõe a rejeição por inadmissibilidade legal da instrução, do requerimento para o efeito apresentado, nos termos do disposto no art. 287.º, n.º 3, do CPP.” Ademais, entendeu que “os factos descritos no requerimento de abertura de instrução não têm subsunção no citado normativo, uma vez que não se imputa o abandono do animal de companhia, que colocou em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, como estatui o art. 388.º, mas sim a alegada negligência médica veterinária que terá levado ao óbito do animal, o que, manifestamente não preenche o tipo legal em causa”. Concluiu ainda que “os factos descritos no requerimento de abertura de instrução não configuram a prática de qualquer outro crime”. Assim sendo, rejeitou “o requerimento para o efeito apresentado, nos termos do disposto no art. 287.º, n.º 3, do CPP, por inadmissibilidade legal da instrução”. II – A recorrente, enquanto proprietária do animal de estimação cuja morte, no seu entender, foi causada pela médica veterinária a quem o confiou em internamento hospitalar, não concorda com tal decisão, defendendo que tem legitimidade para intervir no processo como ofendida. Considera que a interpretação que o tribunal recorrido fez do artigo 388.º do Código Penal carece de fundamento e invoca a violação de princípios constitucionais, concretamente os da igualdade, do acesso ao direito e tutela jurídica efetiva, considerando que foram violados os artigos 9.º do Código Civil, 68.º, n.º 1 b) do Código de Processo Penal, 203.º, 210.º, 388.º do Código Penal, 13.º, 20.º e 32.º, n.º 7 da Constituição da República Portuguesa. Pugna pela revogação substituição da decisão por outra que a admita como assistente e ordene a abertura da instrução. III – Na resposta ao recurso, o Ministério Público defendeu a decisão recorrida quanto à falta de legitimidade da ora recorrente para ser constituída como assistente e à inadmissibilidade da instrução. IV – Compulsados os autos, entendemos que assiste razão à recorrente quanto à sua legitimidade para ser assistente nos autos, ficando, consequentemente, a carecer de fundamento legal a rejeição do pedido de abertura de instrução, face à necessidade de realizar diligencias para aferir dos indícios da prática de crime, de acordo com a factualidade descrita pela requerente. Com efeito, atentas as conclusões da motivação de recurso, impõe-se decidir se: • o proprietário de animal de companhia pode constituir-se como assistente em processo que visa a investigação da morte do seu animal, por alegada falta de cuidados devidos durante o respetivo internamento em clínica veterinária; • a conduta do médico veterinário que assistiu o animal é suscetível de enquadramento jurídico-penal, designadamente no art. 388.º do Código Panal. De acordo com o artigo 68.º do CPP, sob a epigrafe Assistente: “1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos; b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento; c) No caso de o ofendido morrer sem ter renunciado à queixa, o cônjuge sobrevivo não separado judicialmente de pessoas e bens ou a pessoa, de outro ou do mesmo sexo, que com o ofendido vivesse em condições análogas às dos cônjuges, os descendentes e adoptados, ascendentes e adoptantes, ou, na falta deles, irmãos e seus descendentes, salvo se alguma destas pessoas houver comparticipado no crime; d) No caso de o ofendido ser menor de 16 anos ou por outro motivo incapaz, o representante legal e, na sua falta, as pessoas indicadas na alínea anterior, segundo a ordem aí referida, ou, na ausência dos demais, a entidade ou instituição com responsabilidades de protecção, tutelares ou educativas, quando o mesmo tenha sido judicialmente confiado à sua responsabilidade ou guarda, salvo se alguma delas houver auxiliado ou comparticipado no crime; e) Qualquer pessoa nos crimes contra a paz e a humanidade, bem como nos crimes de tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, recebimento ou oferta indevidos de vantagem, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção”. Ora, atento o teor da denúncia que originou os presentes autos, do despacho de arquivamento e do requerimento de abertura de instrução, não restam dúvidas que se encontra suficientemente indiciada a situação de morte do gato pertencente à requerente no decurso de um internamento e a dúvida sobre se lhe foram prestados os devidos cuidados enquanto esteve confiado à unidade de saúde ou se foi abandonado à sua sorte, estando doente. A factualidade participada poderá integrar, nomeadamente, a previsão do artigo 388.º do Código Penal, como reivindica a recorrente, caso resultem indícios suficientes relativamente àquela segunda hipótese. De resto, não parece que seja inadmissível a intervenção como assistente de proprietária de animal de companhia num processo criminal em que se suspeita das causas da sua morte, num tempo em que a consciência coletiva se apercebeu de forma mais evidente da necessidade de proteger os animais, muitas vezes vítimas dos mais inaceitáveis desmandos, e em que tanto associações zoófilas como os próprios proprietários desempenham um importante papel de proteção, pelo que entendemos que a decisão recorrida deve ser revogada, admitindo-se a recorrente a intervir nos autos como assistente, designadamente à luz do disposto no artigo 68.º n.º 1 , alínea d) do CPP. De facto, importa ter presente que o dono é a pessoa a quem compete representar o seu animal de estimação/de companhia, na defesa dos direitos que a lei lhe confere, face à incapacidade natural do titular para agir por si próprio. Isto é válido quando está em causa a prestação de cuidados de saúde. O dono que confia numa clínica veterinária, deixando o seu animal aí internado para ser tratado, o qual vem a falecer, tendo suspeita de não ter sido efetuado o diagnóstico correto e de que a medicação que lhe foi dada seria prejudicial à sua situação de saúde, tem toda a legitimidade para se queixar às autoridades competentes para que se investigue o que realmente sucedeu e aferir se existem culpas a atribuir, a que título, podendo, ou não concluir-se pela responsabilidade criminal. Como refere PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, in Comentário do Código Processo Penal – 4ª Edição, página 212, anotação 3, «a constituição como assistente não pode ser excluída em função da natureza pública do bem jurídico protegido pela incriminação, antes ela se há-de admitir sempre que esse bem jurídico puder ser encabeçado num portador concreto ou, dito nas palavras do excelente acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 1/2003, “quando os interesses, imediatamente protegidos pela incriminação, sejam, simultaneamente, do Estado. e de particulares … a pessoa que tenha sofrido danos em consequência da sua prática tem legitimidade para se constituir como assistente” (também neste sentido, FIGUEIREDO DIAS e ANABELA RODRIGUES, 1989:105 e 123, sustentando que não são só os bens jurídicos individuais mas também os bens jurídicos plurais ou complexos e mesmo certos bens jurídicos supra-individuais são suscetíveis de possuir um portador e portanto um titular que não se confunda sem mais com a própria coletividade.” Assim, tem legitimidade para se constituir assistente a pessoa prejudicada pelo crime de abandono de animal de companhia, concretamente o dono do animal, no caso de o crime ter sido cometido em estabelecimento de cuidados de saúde onde o deixou internado, por profissional incumbido de o tratar. No caso, a requerente, denunciante do crime, após despacho de arquivamento do inquérito em que o Ministério público qualifica a situação denunciada como de eventual crime de dano, vem requerer a sua constituição como assistente e abertura de instrução, alegando, em síntese, que a médica veterinária do hospital onde deixou o seu gato internado para ser tratado, terá errado no diagnóstico e na medicação, o que prejudicou aquele seu animal, causando-lhe a morte, concluindo que não lhe foram prestados os cuidados devidos pelo que foi praticado o crime previsto e punido no artigo 388.º do Código Penal. Lê-se no despacho de arquivamento que foi feita denúncia por AA contra o ..., a dar nota de “negligência médica veterinária que levou ao óbito” (sic) do animal de raça felina (gato) propriedade da denunciante e a não realização de necropsia solicitada. Mais se lê que “Os factos denunciados são susceptíveis de configurar, em abstracto, a prática do crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212º, nº 1 do Código Penal.”. O despacho de arquivamento, quanto às diligências de investigação, refere que “Procedeu-se a inquérito, tendo sido realizadas todas as diligências que se afiguraram úteis e pertinentes à descoberta da verdade e ao esclarecimento dos factos, visando investigar a existência do crime denunciado, determinar os seus agentes e a responsabilidade de cada um deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação (artigo 262º, nº 1, do Código de Processo Penal), designadamente: - Procedeu-se à inquirição da denunciante; - Procedeu-se à inquirição da legal representante da denunciada; - Encontra-se junto aos autos o relatório de necropsia realizada ao felino”. Por sua vez, a denunciante, no requerimento de abertura de instrução, considera que o despacho de arquivamento fez errada avaliação do relatório de necrópsia elaborado no dia 24 de março de 2023 e do relatório elaborado pela Dra. CC, da .... Mais faz referência ao artigo 20º do Regulamento 730/2021 de 5 de agosto, publicado no Diário da República, 2ª série, relativo ao Código Deontológico Médico-Veterinário, segundo o qual compete ao médico veterinário, em todas as áreas de atividade, promover a saúde dos animais ao seu cuidado e zelar pelo seu bem-estar, de acordo com as boas práticas e a legislação vigente e adotar as medidas necessárias e adequadas a evitar, diminuir ou fazer cessar qualquer ação que ponha em perigo a vida, a saúde ou o bem-estar animal, o que considera não ter sido assegurado pelo médico veterinário que assistiu e acompanhou o seu gato enquanto esteve internado no .... Perante a denúncia efetuada, as diligências realizadas no decurso do inquérito e as imputações constantes do requerimento de abertura de instrução, afigura-se-nos que, sendo admissível a constituição como assistente da requerente, impunha-se a realização de diligências em sede de instrução, designadamente as sugeridas pela requerente e especialmente, a audição da médica veterinária denunciada, o que não se vislumbra ter ocorrido durante o inquérito, para aferir da correção do seu diagnóstico, do tratamento ministrado e dos cuidados prestados, bem como as condições em que tal ocorreu, de modo a poder concluir se foram ou não assegurados os cuidados e vigilância devidos ou se o animal foi abandonado à sua sorte, tendo ficado sem assistência devida durante o internamento, na afirmativa, quem foi o autor do comportamento em causa, para efeito de enquadramento jurídico-penal, no caso se se verificar o elemento volitivo exigido, ainda que a titulo eventual. Não o tendo feito, a decisão recorrida foi prematura ao concluir, sem mais, que “os factos descritos no requerimento de abertura de instrução não têm subsunção no citado normativo, uma vez que não se imputa o abandono do animal de companhia, que colocou em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, como estatui o art.388º, mas sim a alegada negligência médica veterinária que terá levado ao óbito do animal, o que, manifestamente não preenche o tipo legal em causa. Ademais, os factos descritos no requerimento de abertura de instrução não configuram a prática de qualquer outro crime”. V - Pelo exposto, emite-se parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente, admitindo-se a requerente a intervir como assistente, com a necessária consequência legal quanto ao pedido de abertura de instrução pela mesma formulado»
8. Cumprido o artigo 417.º, n.º 2 do C.P.P. não houve reacção.
9. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. O objecto do recurso, tal como demarcado pelo teor das conclusões da respectiva motivação, reporta ao exame das questões de saber se a Sra. Juíza incorreu em erro de jure ao não admitir o pedido de constituição com assistente, apresentado pela recorrente, e ao rejeitar o requerimento de abertura de instrução por inadmissibilidade legal da instrução, seja por falta de legitimidade da requerente, seja por ter considerado que os factos descritos no requerimento de abertura de instrução não são, manifestamente, subsumíveis ao tipo legal p. e p. pelo art. 388º do C.P.
2. Do recurso interposto
2.1. Do invocado erro de jure na não admissão como assistente da recorrente
Neste conspecto, invoca, em síntese, a recorrente que: «Enquanto proprietária do animal de estimação cuja morte foi causada pelos negligentes cuidados médico-veterinários recebidos, a recorrente terá legitimidade para intervir no processo como ofendida. Os artigos 203º e 210º do Código Penal atribuem legitimidade criminal aos proprietários de animais que tenham sido ofendidos pelo furto ou roubo dos seus animais. Se o Código Penal atribui legitimidade para os donos dos animais que tenham sido furtados ou roubados poderem intervir no processo, atribuir essa legitimidade aos proprietários de animais de companhia, viola o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição. Esse princípio da igualdade, consagrado nesse artigo 13º é um princípio estruturante do Estado de direito democrático e postula, como o Tribunal Constitucional tem repetidamente afirmado, que se dê tratamento igual ao que for essencialmente igual e que se trate diferentemente o que for essencialmente diferente. Ainda assim, a recorrente não requereu a sua constituição como assistente, ao abrigo dessa alínea a) do nº 1 desse artigo 68º. A recorrente requereu que fosse constituída como assistente neste processo nos termos da alínea b) e dos nº 3 e nº 5, desse mesmo artigo do 68º CPP. Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, as pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento, conforme expressamente previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 68º do CPP. Foi a recorrente, e não outrem, que apresentou a queixa contra o ... e contra a Dra. BB. Pelo que, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 68º o pedido de constituição como assistente no processo deveria ter sido deferido»
Atentemos, pois.
Como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13 de Março de 2019, processo n.º 8566/17.0T9LSB.C1, in www.dgsi.pt. «O assistente é o sujeito processual que intervém no processo penal como colaborador do Ministério Público na promoção da aplicação da lei ao caso concreto, por ter a qualidade de ofendido ou especiais relações com este ou pela natureza do próprio crime (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, 4ª Edição Revista e Actualizada, 2000, Editorial Verbo, pág. 333).
(…) Assim, de acordo com o artigo 68.º nº 1 al. a) do CPP, podem constituir-se assistentes em processo penal, além das pessoas a quem leis especiais conferirem esse direito, os ofendidos, considerando-se como tais os titulares do(s) interesse(s) que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos."
Com efeito, dispõe o art. 68º do C. Processo Penal, na parte em que agora releva:
1 - Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito:
a) Os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos;
b) As pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento;
(…) Constata-se pois que o legislador português adoptou um conceito estrito de ofendido, limitando-o ao titular do interesse directo, imediata e predominantemente protegido pela incriminação, desde que maior de 16 anos»
Significa, pois, que o princípio geral ínsito no art. 68º, n.º 1, al. a) do C.P.P. é o de que poderá constituir-se como assistente o ofendido, entendendo-se como tal o titular do interesse que a lei pretendeu especialmente proteger.1
A doutrina e a jurisprudência vêm, assim, de forma pacífica, sustentando que a nossa lei parte de um conceito estrito de ofendido na determinação do círculo de pessoas que têm legitimidade para se constituírem como assistentes no âmbito do processo penal.
O conceito de «interesse especialmente protegido» não corresponde, assim, a todo e qualquer ofendido, mas, somente, aquele que for titular do referido interesse, valendo idêntico critério para a aferição da legitimidade no que respeita ao exercício do direito de queixa.
A respeito e a título meramente exemplificativo, FIGUEIREDO DIAS, Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, I Volume, p. 509 e 510, propugna um conceito estrito de ofendido, que não abrangesse toda a pessoa que, de qualquer maneira e em qualquer grau, fosse afectada nos seus interesses jurídicos por uma infracção, considerando que a adopção de um conceito lato ou extensivo de ofendido, que abrangesse todas as pessoas civilmente lesadas pela infracção penal, tornaria o processo penal, sob todas as perspectivas, numa autêntica acção privada.
Aqueles que são, apenas, titulares de interesses indirectos ou mediatos não são ofendidos, pelo que não é suficiente, para a constituição como assistente, a ofensa indirecta ou mediata a um determinado interesse.
«Perante vários possíveis interesses legítimos que sejam postos em causa pela prática de uma infracção criminal, a lei reserva o conceito de «ofendido» para o titular dos interesses «especialmente» protegidos, com o sentido de interesses directa, imediata ou particularmente protegidos pelo tipo legal incriminador, ou seja, dos direitos ou interesses que constituem a razão directa e imediata, situada em primeira linha, que fundamenta a infracção criminal.
O interesse que permite assumir a qualidade de ofendido tem de ser um (ou um dos) interesses «especialmente» protegidos com a incriminação»2
Pese embora se venha verificando na jurisprudência o gradual consentimento no acesso ao estatuto processual de assistente em crimes de natureza pública, a verdade é que, mesmo nessas situações, se partiu de um conceito restrito de ofendido, discorrendo a argumentação fundadamente sobre o bem jurídico das incriminações em causa.3
No caso, a recorrente insurge-se quanto à decisão da Sra. Juíza de Instrução que não a admitiu a intervir nos autos na qualidade de assistente relativamente ao imputado, no requerimento de abertura de instrução, crime de abandono de animais de companhia, p. e p. pelo art. 388º do C.P.
Ora desde logo, há que realçar que, apesar de ter sido aquela a denunciar os factos ao Ministério Público, está em causa crime que tem natureza pública, pelo que, manifestamente, não será possível aferir da legitimidade da recorrente para se constituir assistente, com apelo ao disposto no art. 68º, n.º 1, al. b) do C.P.P., no qual está prevista exclusivamente a legitimidade para a constituição de assistente em crimes de natureza semi-pública e particular.
E assim sendo, resta-nos, pois, aquilatar do preenchimento (ou não) in casu dos pressupostos ínsitos no art. 68º, n.º 1, al a) do C.P.P.
A Sra. Juíza de Instrução, como resulta do despacho revidendo, fundou a asserção da ilegitimidade da recorrente no argumento de que o «tipo legal visa salvaguardar a vida, a integridade e o bem-estar dos animais de companhia» concluindo adrede que «a requerente não é ofendida nos termos do estatuído no citado art.68º, nº 1, al. a), pois que não é titular dos direitos que a lei quis proteger com a incriminação»
Todavia, dir-se-á desde já que, ante a acérrima controvérsia existente quanto ao discernimento do/s bem/bens jurídico/s tutelado/s no referido tipo legal4 e sabida a mais recente posição do Plenário do Tribunal Constitucional vertida no Acórdão n.º 70/2024, de 23 de Janeiro5, impõe-se, estamos convictas, conclusão diversa.
«A função, reconhecida ao direito criminal, de proteger subsidiariamente bens jurídicos é usualmente apontada, quer na jurisprudência, quer na literatura penal, como legitimadora do exercício do ius puniendi. A determinação do bem jurídico tutelado através da criminalização de determinadas condutas constitui um prius, um critério limitador da intervenção punitiva que se projecta na restrição de direitos fundamentais. Daí que se reconheça ao conceito de bem jurídico-penal, enquanto padrão da incriminação, uma função crítica, mas se assinale igualmente uma função dogmática, enquanto substrato material necessário à espessura da ofensa, de forma a graduá-la como de lesão ou de perigo, e ainda uma função interpretativa e sistemática, cumprida na ordenação das normas incriminadoras contidas na Parte Especial de uma codificação penal.
Todavia, avançando um passo mais, não é tarefa fácil definir bem jurídico-penal. São várias as tentativas realizadas pela doutrina para definir este conceito, seja acentuando uma perspectiva mais personalista, seja atribuindo-lhe uma natureza funcional. Os bens jurídicos penais são, para alguns autores “aqueles pressupostos valiosos e necessários para a existência humana”; para outros representam “aqueles objectos dos quais o homem precisa para a sua própria livre auto-realização”; ou ainda uma “relação real da pessoa com um valor concreto reconhecido pela comunidade jurídica (...) na qual o sujeito de direito se desenvolve pessoalmente com a aprovação do ordenamento”; há autores que identificam os bens jurídicos com “interesses da vida da comunidade a que o direito penal concede protecção”; os bens jurídico-penais também são definidos como “circunstâncias dadas ou finalidades que são úteis para o indivíduo e para o seu livre desenvolvimento no âmbito de um sistema social global estruturado ou para o funcionamento do próprio sistema”; já foram descritos como “unidades sociais de funções”, ou seja, entidades instrumentais necessárias para o funcionamento do próprio sistema social; uma outra concretização do bem jurídico-penal fá-lo coincidir com as “expectativas imprescindíveis ao funcionamento da vida social, na forma dada e exigida pelas normas”; o bem jurídico é ainda definido como “a expressão de um interesse, da pessoa ou da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo Estado, objecto ou bem em si mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso”; “pedaços da realidade que se afirmam como valores numa teia de relacionações axiológicas, e não só, que se refractam (...) nos crimes contra a vida, a integridade física, a honra, o património, a segurança interna e externa do Estado” , “condições essenciais de liberdade” ou ainda como “objecto de valor experimentado como fundamental pela comunidade de sujeitos na perspectiva da sua realização individual e social”.
Mais do que encontrar uma definição completa de bem jurídico, a exposição anterior teve por fim revelar, através do conjunto e da diversidade das noções apresentadas, a dificuldade em alcançar um conceito definitivo e esgotante do que é ou do que pode ser elevado à categoria de bem jurídico-penal»6
Com efeito, no citado Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 70/2024, de 23 de Janeiro, a respeito do/s bem/bens jurídicos tutelado/s, consignou-se que:
«2.4. Os termos em que se discute a questão da (in)existência de bem jurídico que sirva de base à incriminação prevista na norma sub judice revelam que a doutrina dos fundamentos da incriminação não se encontra encerrada – efetivamente, é possível encontrar aproximações ao problema mais “ortodoxas” (na linha do Acórdão n.º 867/2021) e outras mais “flexíveis” ou “abertas” (de que constituem exemplos, embora diferentes entre si, as declarações de voto apostas àquele acórdão e a declaração de voto aposta ao Acórdão n.º 843/2022).
(…) 2.4.2. Perante as posições em debate quanto à (in)existência de um bem jurídico que possa suportar a incriminação, a verdadeira cisão verifica-se entre os que entendem que ele inexiste em sede constitucional e os que entendem que existe. Entre os últimos, há quem o encontre no artigo 1.º da CRP (declaração de voto transcrita em 2.2.1., supra), quem o localize no artigo 66.º da CRP (declaração de voto referida em 2.2.4., supra) e quem o retire do “segmento final do artigo 1.º – sem correspondência, aliás, na Lei Fundamental de Bona –, no qual Constituição vincula a República – e, consequentemente, o próprio Estado. – a empenhar-se na «construção de uma sociedade […] solidária” (declaração de voto transcrita em 2.2.2., supra). Não obstante, todas estas posições reconhecem um bem jurídico com acolhimento constitucional – importa, pois, aferir se a concordância neste ponto tem implicações para a presente decisão.
2.4.3. Nem sempre o alargamento do direito penal por via legislativa encontrou fácil ou evidente justificação na dogmática penal, que, por sua vez, foi também ajustando os critérios que definem as margens da legitimação da incriminação numa tentativa de dar resposta à evolução dos valores relativamente a cuja proteção a comunidade foi estabelecendo consensos, ao longo do tempo. A tarefa apresenta-se especialmente complexa à medida que os interesses protegidos são menos individuais ou individualizáveis e que a sua matriz antropocêntrica se vai desvanecendo, obrigando a repensar a conexão com interesses humanos. Assim, há quem afirme que “[…] o processo de legitimação do Direito Penal no Estado de Direito democrático não exige um Código Penal com uma única espécie de tipos criminais, mas sim uma forma de justificar racionalmente os tipos criminais consagrados pelo legislador” (Maria Fernanda Palma, Direito Penal, 4.ª ed., Lisboa, 2021, p. 82) e, de seguida, questionar se essa legitimação se alcança através de modelos menos rígidos:
“[…]
[O] modelo argumentativo [que a referida Autora propõe] não se baseia exclusivamente na proteção de bens jurídicos, entendidos como interesses substanciais concretos, associados a condições existenciais individuais e coletivas, mas apela a uma relação com o Estado democrático, a uma lógica de preservação da subjetividade e do reconhecimento dos interesses essenciais dos outros. Esta referência à participação no Estado de Direito e ao reconhecimento da subjetividade alheia ultrapassa, em certos casos, a utilização rígida do conceito de bem jurídico, definido como uma necessidade ou interesse intersubjetivo, histórica e culturalmente concretizado (algo com a qualidade de bom, materializado num valor mantendo um referente concreto). Uma dimensão da pessoa, como, por exemplo, o valor da sua livre orientação sexual, do seu desenvolvimento enquanto criança ou adolescente, a responsabilidade pela natureza ou pelas gerações futuras (na perspetiva de uma cidadania participativa) podem ser interesses suficientemente relevantes para legitimar incriminações que, em última análise, têm uma vaga referência a bens jurídicos no sentido tradicional. A equivocidade do conceito de bem jurídico, inspirado no conceito de Rechtsgut – que tanto abrange dimensões pessoais como meramente comunitárias – a sua pouca densificação e a possibilidade de servir várias finalidades, torna cada vez mais pertinente utilizá-lo apenas como conceito exploratório de critérios limitadores das normas incriminadoras, que permitirá, em última análise, reconhecer algumas caraterísticas de que depende a legitimidade das mesmas. Assim, o bem jurídico apelaria à necessidade de as normas penais terem um referente relacional (inter-individual ou indivíduo-comunidade), um valor constitutivo da realidade social, que, na linha liberal de Stuart Mill, Feinberg veio a qualificar como o ‘harm to others’. E apelaria também, noutros casos, à necessidade de as normas penais terem como referente o binómio pessoa-sociedade, pessoa- Estado ou mesmo pessoa-mundo, como expressão de uma responsabilidade pelos outros ou compromisso para com uma comunidade (que não contradiga, antes potencie, o desenvolvimento da subjetividade, num plano de iguais oportunidades), na linha de uma ética da responsabilidade pelo ‘mundo’. Deste modo, a discussão sobre o bem jurídico é apenas uma porta aberta para um limite da intervenção penal relativamente ao que pode ser pedido pelo Estado a cada pessoa enquanto participante num projeto, em que os interesses na preservação do desenvolvimento de si e dos outros sejam considerados
[…]” (Direito Penal, cit., pp. 83/84).
Deve, pois, ter-se presente que os exatos termos em que o direito penal deve encontrar suporte ou referência na Constituição não são propriamente isentos de debate. Sirva de exemplo, para além do que se acaba de citar, a diferente aproximação ao problema que apresentam Jorge de Figueiredo Dias e José de Faria Costa. Para o primeiro (Direito penal: Parte geral, tomo I – Questões fundamentais da doutrina do crime, com colaboração de Maria João Antunes, Susana Aires de Sousa, Nuno Brandão e Sónia Fidalgo, 3.ª ed., Coimbra, 2019, pp. 136/138, § 25):
“[…]
[Um] bem jurídico político-criminalmente tutelável existe ali – e só ali – onde se encontre refletido num valor jurídico-constitucionalmente reconhecido em nome do sistema social total e que, deste modo, se pode afirmar que ‘preexiste’ ao ordenamento jurídico-penal. O que por sua vez implica a afirmação de um princípio jurídico-constitucional implícito do direito penal do bem jurídico e significa que entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal – jurídico-penal – dos bens jurídicos tem por força de verificar-se uma qualquer relação de mútua referência. Relação que não será de ‘identidade’, ou mesmo só de ‘recíproca cobertura’, mas de analogia material, fundada numa essencial correspondência de sentido e – do ponto de vista da sua tutela – de fins. Correspondência que deriva, ainda ela, de a ordem jurídico-constitucional constituir o quadro obrigatório de referência e, ao mesmo tempo, o critério regulativo da atividade punitiva do Estado. É nesta aceção que os bens jurídicos protegidos pelo direito penal devem considerar-se concretizações dos valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais e à ordenação social, política e económica. É por esta via – e só por ela, em definitivo – que os bens jurídicos se ‘transformam’ em bens jurídicos dignos de tutela penal ou com dignidade jurídico-penal, numa palavra, em bens jurídico-penais. A forma de relacionamento entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos dignos de tutela penal permite, de resto, alcançar e fundamentar uma distinção que a cada dia se revela mais importante para a política criminal e a dogmática jurídico penal: a distinção entre o chamado direito penal de justiça, direito penal "clássico" ou direito penal primário, de um lado, essencialmente correspondente àquele que se encontra contido nos códigos penais; e de outro lado o direito penal administrativo, direito penal secundário ou direito penal extravagante, por isso contido em leis avulsas não integradas nos códigos penais. A diferença entre estas duas categorias, à primeira vista de carácter formal e ocasional, acaba no fundo por radicar essencialmente, de um ponto de vista material, no diferente âmbito de relacionamento do bem jurídico com a ordenação axiológica constitucional. Pois enquanto os crimes do direito penal de justiça se relacionam em último termo, direta ou indiretamente, com a ordenação jurídico-constitucional relativa aos direitos, liberdades e garantias das pessoas, já os do direito penal secundário – e de que se encontram exemplos por excelência no direito penal económico (da empresa, do mercado de trabalho, da segurança social...), financeiro, fiscal, aduaneiro, etc. – se relacionam essencialmente com a ordenação jurídico-constitucional relativa aos direitos sociais e à organização económica. Diferença que radica, por sua vez, na existência de duas zonas relativamente autónomas na atividade tutelar do Estado: uma que visa proteger a esfera de atuação especificamente pessoal (embora não necessariamente ‘individual’) do homem: do homem ‘como este homem’; a outra que visa proteger a sua esfera de atuação social: do homem ‘como membro da comunidade’.
[…]”.
Já para José de Faria Costa [O perigo em direito penal, Coimbra, 2000 (reimpressão), p. 270]:
“[…]
[Se] a ordem constitucional protege o bem jurídico da vida e se a ordem penal também o faz, há aqui uma coincidência de normatividades e de sentidos que não é fruto, neste particular, de uma vinculação direta e imediata da ordem penal à ordem constitucional. É algo que corresponde à densificação que a essencialidade exige. O bem jurídico vida, postulando-se como um bem jurídico essencial, cuja proteção é exigida pela ordem jurídica global, vincula materialmente as ordens constitucional e penal que a protejam. Por isso se dá a coincidência de proteção entre ordem constitucional e ordem penal.
[…]”.
Sobre esta diferença, que radica na ideia de constituição material, João Carlos Loureiro ("A tentação de Midas: panconstitucionalismo(s), idolatria(s) e realização do direito", in Juízo ou decisão? O problema da realização jurisdicional do direito, Coimbra, 2016, pp. 101/103) tece as seguintes considerações:
“[…] Para nós, que nos temos insurgido contra uma conceção imperialista de direito constitucional, não é difícil defender quer a relevância das dogmáticas regionais, no reconhecimento da autonomia do direito, quer como a multiplicidade de portas de entrada de bens no ordenamento jurídico. Isto é, neste último caso, é admissível que o direito penal seja locus de reconhecimento de valores fundamentais e, assim sendo, materialmente constitucionais. Afigura-se-nos que a controvérsia passa pelo eixo constituição material (numa aceção normativa, que não sociológica, para a qual preferimos a fórmula constituição real, evitando outros equívocos) e constituição formal. A referência constitucional só pode ter pertinência em termos materiais, neste caso da dimensão valorativa, não já da constituição como Wertordnung, antes como consagradora dos Grundwerte (valores fundamentais). O que acontece é que reconhecida a sua essencialidade em termos de consciência jurídica, há uma constitucionalização, ainda que, até à revisão ou a uma nova lei fundamental, só material. Aliás, Castanheira Neves remete precisamente para as posições de Faria Costa, que se confrontou com Jorge de Figueiredo Dias, o qual, como vimos, toma como prius o referente constitucional em matéria de bens criminais. O exemplo que Faria Costa dá do bem ambiente ilustra bem a questão. Refere-se à situação na República Federal da Alemanha, onde, na construção do ‘Estado (constitucional) ecológico’, o legislador penal previu a proteção do referido bem antes de ele ter assento expresso na Lei Fundamental, o que só aconteceu, aliás, em 1994. Mas, a ausência de previsão específica na Grundgesetz não significa que não fosse reconhecido como um bem constitucional, podendo até discutir-se se o ‘princípio responsabilidade’ do Estado pelo ambiente não poderia, por via hermenêutico-normativa, ser reconduzido ao próprio texto constitucional, ou seja, também à constituição em sentido formal. Faria Costa precisa que, no caso alemão, contrariamente ao que se passa com a Constituição da República Portuguesa, não há ‘diretamente aquela proteção’. E que se trata de uma referência em matéria de constituição formal parece-nos resultar claramente da leitura da dissertação, quando se diz que ‘a ordem constitucional é tendencialmente menos variável – ao nível da sua formulação jurídico- positiva, pressupondo-se, pois, uma constituição escrita’. Já Figueiredo Dias apela, reiteradamente, para o princípio da constitucionalidade, dizendo que ‘os bens do sistema social se transformam em bens jurídicos dignos de tutela penal (em bens jurídico-penais) através da ordenação axiológica jurídico-constitucional)’. Mas tem o cuidado de referir que se trata de ‘valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais e à ordenação social, política e económica’. Ou seja, na prática, não se encontram diferenças ao nível dos resultados, mas há uma compreensão da juridicidade distinta, sendo que Faria Costa remete-nos para um referente transconstitucional no seu fundamento, mas que, em nossa opinião, tem expressão na constituição material, sem prejuízo de dimensões próprias da identidade de cada ramo, que transportam juízos valorativos relativamente autónomos em relação à juridicidade fundamental. Ou seja, há diferentes portas de entrada dos bens fundamentais, podendo falar-se de um olhar de antecipação de alguns ramos do direito. Esta solução toma a sério o diálogo constitutivo da juridicidade entre os diferentes direitos do direito, no quadro de um processo de ‘reciprocidade da influência’, compatível com a humildade que deve presidir ao direito constitucional.
[…]” (sublinhado acrescentado).
Vale o exposto por dizer que a solução para o problema em análise passa, essencialmente, por um eixo agregador que se forma em torno da ideia de Constituição material, decorrente de uma “interpretação alternativa da soberania popular […] de ordem material” (Gonçalo de Almeida Ribeiro, “What Is Constitutional Interpretation?”, International Journal of Constitutional Law, vol. 20, n.º 3, 2022, p. 1148):
“[…] Diz‑nos [essa interpretação] que a constituição é legítima em virtude dos valores de que participa: a vontade popular não é identificada com o legislador constituinte, mas com um a priori constitucional ou uma condição axiológica transcendental. Para a democracia constitucional, o povo é uma pluralidade de indivíduos livres e iguais que formam uma unidade política. É essa a conceção de soberania popular subjacente, quer a toda a tradição contratualista, quer ao constitucionalismo moderno. Dela se retira um padrão normativo para aferir se um determinado texto constitucional expressa genuinamente a vontade do -povo ou apenas a vontade contingente de uma fação política ou maioria conjuntural que se reclama seu legítimo representante constituinte. Tal padrão é a vontade geral dos cidadãos, concebidos para estes efeitos como os indivíduos num estado de natureza, os figurantes de uma posição original, os membros de uma comunidade comunicativa ideal, ou as personagens de uma outra «situaçãopuramente hipotética caracterizada de forma a conduzir a um a certa conceção de justiça». Não são as decisões do legislador constituinte que determinam primariamente a substância constitucional, mas exatamente o contrário: valores e ideias identificados aprioristicamente com a vontade popular atribuem dignidade constitucional a certos eventos, palavras e decisões. A soberania popular transforma‑se, por esta via, num conceito normativo.
[…]” (últ. A. e loc. cit., tradução do autor em estudo em curso de publicação).
Entendida nestes termos a relação entre a vontade popular e a substância da Constituição material, “[…] não é a vontade que justifica a matéria, mas a matéria que revela a vontade; não é a forma que confere dignidade à substância, mas a substância que reclama a solenidade da forma” [Gonçalo de Almeida Ribeiro, “O que é Hoje Matéria Constitucional?”, in A. M. Hespanha et. al. (org.), A Prova do Tempo. 40 Anos de Constituição, 2016, p. 60]. Como parte integrante do conjunto dos valores que deste modo se agregam na Constituição da República Portuguesa, encontra-se, pois, para lá (ou, de outra perspetiva, antes) da Constituição formal, o valor da proteção da vida (enquanto existência física) e da integridade física dos animais de companhia, individualmente considerados, exprimindo a ideia de que “[…] nas nossas sociedades de Estado de Direito, a proibição da crueldade sobre os animais tem a dignidade de proteção constitucional que lhe advém do facto, de reconhecimento incontestável, sobretudo nas últimas décadas, de constituir uma justa exigência moral e de bem-estar numa sociedade democrática” [Jorge Reis Novais, “Restrições a direitos fundamentais, maus-tratos a animais e Constituição”, in João Carlos Loureiro (org.), Constituição, política de direitos fundamentais – Estudos em homenagem ao Doutor Vieira de Andrade, vol. I, Coimbra, 2023, p. 332].
2.4.4. Assim perspetivada a questão, o dissenso em torno da localização do fundamento da norma incriminatória na Constituição formal constitui um manto, também ele formal, que cobre um consenso quanto à efetiva existência desse apoio na Constituição material. Dito de outro modo, a maioria da formação que integra o Plenário na presente decisão integra-se em alguma das posições descritas no item 2.4.2., supra – com o sentido expresso nas declarações em que as mesmas se manifestaram –, reconhecendo que a Constituição acolhe os interesses protegidos pela norma contida no artigo 387.º do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto.
É, pois, a substância desse consenso – que apela à materialidade do valor constitucional, presente na essência da Lei Fundamental, transcendendo (na justa medida em que tal se mostra possível) a forma (ou fórmula) encontrada para a sua positivação literal – que prevalece e dá forma ao sentido da presente decisão7.
Assim sendo, não se prefiguram razões que obstem à admissibilidade da norma penal ora em causa (o artigo 387.º do CP, na redação introduzida pela Lei n.º 69/2014, de 29 de agosto) por falta de previsão constitucional dos interesses ou valores tutelados pela incriminação»
Na verdade, no espectro daquilo que se prefigura/m como o/s bem/bens jurídico/s tutelado/s pelos tipos legais previstos nos art. 387º e 388º do C.P., o consenso estreita-se na evidência da variedade e complexidade dos interesses e valores protegidos8.
Como logo em 2015 anuíram Pedro Soares de Albergaria e Pedro Mendes Lima, Sete Vidas: A difícil determinação do bem jurídico protegido nos crimes de maus-tratos e abandono de animais, Julgar n.º 28, 2016, p. 45, «A parte em que mais nos detivemos respeitou à busca do bem jurídico protegido, no que nos pareceu ser como as "sete vidas" de um gato: perdida uma logo se encontra outra ou outras. (…) na certeza de que a aferição de um bem jurídico é condição de uma interpretação minimamente consistente dos tipos incriminadores, tomamos como pressuposto que tutelado foi o sentimento colectivo de compaixão ou solidariedade para com aqueles animais, e foi sobre ele que procurámos contribuir para a hermenêutica da lei»
Numa outra perspectiva, Teresa Quintela de Brito, Crimes Contra Animais: os novos Projectos-Lei de Alteração do Código Penal, Anatomia do Crime, nº 4, Jul-Dez 2016, p. 104) concluiu que se trata de um «(…) bem colectivo e complexo que tem na sua base o reconhecimento pelo homem de interesses morais directos aos animais individualmente considerados e, consequentemente, a afirmação do interesse de todos e cada uma das pessoas na preservação da integridade física, do bem estar e da vida dos animais, tendo em conta uma inequívoca responsabilidade do agente do crime pela preservação desses interesses dos animais por força de uma certa relação actual (passada e/ou potencial) que com eles mantém.
Em causa está uma responsabilidade do humano, como indivíduo em relação com um concreto animal, e também como Homem, i.e., enquanto membro de uma espécie, cujas superiores capacidades cognitivas e de adaptação estratégica o investem numa especial responsabilidade para com os seres vivos que podem ser (e são) afectados pelas suas decisões e acções».
Para outros, o bem jurídico complexo protegido «recai num imperativo civilizacional, decorrente da percepção de que os direitos humanos se afirmam através da aceitação de deveres para com os demais titulares de direitos, ou seja, para com a sociedade em geral»9
Vale tudo por dizer que, neste contexto, sendo a recorrente a dona/tutora do animal, que alegadamente, foi vítima de conduta10 susceptível, em abstracto, de preencher o tipo legal do art. 388º do C.P., não resta senão concluir-se pela legitimidade da mesma para se constituir assistente, nos termos e ao abrigo do disposto no art. 68º, n.º 1, al. a) do C.P.P.
Termos em que se impõe a procedência do recurso neste segmento.
2.2. Da inadmissibilidade legal da instrução
A este respeito, como resulta do despacho recorrido, a Sra. Juíza fundou a inadmissibilidade legal da instrução, primeiramente, na circunstância de a ora recorrente não ser assistente e, subsidiariamente, na circunstância de «os factos descritos no requerimento de abertura de instrução» não terem «subsunção no citado normativo, uma vez que não se imputa o abandono do animal de companhia, que colocou em perigo a sua alimentação e a prestação de cuidados que lhe são devidos, como estatui o art.388º, mas sim a alegada negligência médica veterinária que terá levado ao óbito do animal, o que, manifestamente não preenche o tipo legal em causa»
Vejamos, então.
Conforme elencado no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005, as situações em que da lei resulta a inadmissibilidade da instrução são, somente, as seguintes:
i) quando requerida no âmbito de processo especial – sumário ou abreviado [artigo 286.º, n.º 3, do C.P.P.];
ii) quando requerida por quem não tem legitimidade para o efeito – pessoas diversas do arguido ou o assistente,
iii) quando requerida pelo arguido ou pelo assistente, mas fora dos casos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 287.º do C.P.P.;
iv) quando o requerimento do assistente não configure uma verdadeira acusação;
v) quando, requerida pelo arguido, se reporte a factos que não alterem substancialmente a acusação do Ministério Público, isto é, nos casos em que o assistente deduz acusação (artigo 284.º do C.P.P.) e,
vi) quando, requerida pelo assistente, em caso de acusação pelo Ministério Público, se reporte a factos circunstanciais que não impliquem alteração substancial da acusação pública (artigo 284.º do C.P.P.).
Volvendo ao caso, na procedência do anterior segmento recursivo, é desde logo evidente que a principal causa invocada pela Sra. Juíza do Tribunal a quo para a inadmissibilidade da instrução não pode subsistir. Com efeito, ao invés do decidido, urge admitir a intervir nos autos na qualidade de assistente a ora recorrente.
Resta-nos, pois, indagar da validade do argumentário aduzido, subsidiariamente, no despacho revidendo11 - qual seja, o de a rejeição da instrução se mostrar alavancada na circunstância de os factos narrados no requerimento de abertura de instrução, manifestamente, não integrarem o imputado crime de abandono de animais, p. e p. pelo art. 388º do C.P.
Não obstante o atrás consignado relativamente às causas legais de inadmissibilidade da instrução, vem sendo também, pontualmente, admitida na jurisprudência a rejeição da instrução naquelas derradeiras situações em que a instrução se revelaria sempre inútil, por aplicação do princípio geral da proibição da prática de actos inúteis12.
Todavia, no caso, estamos em crer que, nos termos equacionados no despacho recorrido, não é possível concluir pela manifesta impossibilidade de subsunção dos factos ao tipo legal imputado13 e, assim, pela inarredável inutilidade da instrução.
É que, desde logo, e à semelhança do que se verifica relativamente à (in)definição dos bens jurídicos tutelados no tipo legal p. e p. pelo art. 388º do C.P., também o recorte típico é, deveras, controvertido.
A título meramente exemplificativo, em sentido contrário ao sustentado no despacho recorrido, Jéssica Bruna da Silva Mendes, Dissertação para obtenção do grau de Mestre em Direito, Faculdade de Direito da Universidade Católica, Escola do Porto, 2020, refere a respeito que:
«O art.º 388.º do CP consagra um crime específico próprio, na medida em que diferentemente do crime de maus tratos, só pode ser cometido por quem tenha em relação ao animal um dever de garante, o qual incluirá, pelo menos, o dever de lhe providenciar alimentação e bebida, bem como de zelar pela sua integridade física, saúde e vida. Pode cometer o crime de abandono de animal de companhia, para além do seu tutor ou guardião habitual, qualquer outra pessoa que se encontre temporariamente responsável por lhe assegurar os devidos cuidados, mas não já as restantes pessoas que, não tendo relativamente ao animal qualquer responsabilidade, o encontram faminto na via pública e não o alimentam, nem o conduzem ao veterinário para receber cuidados médicos. Isto porque inexiste no CP uma norma semelhante à prevista no a art.º 200.º (omissão de auxílio) para os animais.
(…) Abrangendo o tipo objetivo de ilícito a omissão da alimentação e a prestação de cuidados que são devidos ao animal, quando o agente tenha um dever de garante, criando desse modo perigos para a vida do animal e consubstanciando-se a conduta típica num non facere, isto é, numa ação que sendo devida foi omitida, estamos ainda perante um crime de omissão própria»
Em suma, perante a diversidade de soluções plausíveis de direito, não só se mostra arredada a possibilidade de rejeitar o requerimento de abertura de instrução, nos termos em que o foi, como, estamos em crer, seria até inadmissível a prolação de um despacho de não pronúncia alavancado, exclusivamente, em controversa subsunção jurídico-penal, pois que, de per si, insusceptível de sedimentar um juízo de maior probabilidade de absolvição do que de condenação.14
Termos em que se conclui que, também neste segmento, o recurso interposto reclama e merece provimento.
III – DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
Julgar procedente o recurso interposto por AA e, em consequência, determinar que a Sra. Juíza de Instrução profira despacho a admitir a intervenção da recorrente como assistente e a declarar aberta a instrução (salvo se outras circunstâncias legais, que não as ora escrutinadas, a tal obstarem).
Notifique.
Lisboa, 24 de Outubro de 2024
Ana Marisa Arnêdo
Isabel Maria Trocado Monteiro
Paula Cristina Bizarro
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1. Sem prejuízo do estabelecido no corpo do citado art. 68º, n.º 1 e na al. e) que prevê a legitimidade para a constituição como assistentes às pessoas e entidades a quem normas especiais atribuam essa faculdade e a qualquer pessoa quando o procedimento criminal tenha por objecto crimes contra a paz e a humanidade, tráfico de influência, favorecimento pessoal praticado por funcionário, denegação de justiça, prevaricação, corrupção, peculato, participação económica em negócio, abuso de poder e de fraude na obtenção ou desvio de subsídio ou subvenção.
2. Acórdão do S.T.J. de 27/4/2011, processo n.º 456/08.3GAMMV, in www.dgsi.pt.
3. Acórdãos de Fixação de Jurisprudência nº 1/2003 de 16-01-2003 (DR - I Série-A, n.º 49, de 27-02-2003); nº 8/2006, de 12-10-2006, (DR - I Série-A, n.º 229, de 28-11-2006) e nº 10/2010, de 17 de Novembro de 2010 (DR, I Série-A, nº 242, de 16 de Dezembro de 2010).
4. Controvérsia que engloba, como é sabido, também o tipo legal inserto no art. 387º do C.P.
5. Em sentido oposto àquela que vinha sendo assumida, designadamente, nos Acórdãos 867/2021, n.º 781/2022, nº 843/2022 e 217/2023
6. Susana Aires de Sousa, ARGOS E O DIREITO PENAL (UMA LEITURA “DOS CRIMES CONTRA ANIMAIS DE COMPANHIA” À LUZ DOS PRINCÍPIOS DA DIGNIDADE E DA NECESSIDADE), Julgar n.º 22, 2017, p. 4/5.
7. Negrito nosso.
8. Disso mesmo dá nota expressa o citado acórdão do Tribunal Constitucional, na esteira, aliás, dos anteriormente proferidos a propósito.
9. Conforme se decidiu no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 26/10/2022, processo n.º 190/20.6T9SEI.C1, in www.dgsi.pt.
10. Pelo menos em tese, de acordo com o requerimento de abertura de instrução apresentado.
11. Os motivos de rejeição da instrução, por inadmissibilidade legal da instrução, inovatoriamente invocados na resposta apresentada pelo Ministério Público (na primeira instância) não podem por definição e natureza, integrar o objecto do presente recurso, o qual está indelevelmente circunscrito ao despacho recorrido e sua motivação. Mutatis Mutandis está-nos vedada a possibilidade de aquilatar da existência de quaisquer outras causas de rejeição da instrução, mormente a de o requerimento de abertura de instrução apresentado, putativamente, não consubstanciar uma acusação alternativa, nos termos legalmente exigidos e conforme jurisprudência pacífica e uniforme.
12. Artigo 130º do C.P.C., aplicável ex vi art. 4º do C.P.P. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 2/5/2024, processo n.º 1629/19.9T9LSB-A.L1-9 (no qual a ora relatora foi adjunta) e de 27/6/2024, processo n.º 901/23.8PELSB.L1-9, ambos in www.dgsi.pt.
13. A que acresce a possibilidade conferida à Sra. Juíza de Instrução de proceder à alteração da qualificação jurídica, nos termos prevenidos no art. 303º, n.º 1 e 5 do C.P.P., caso perfilhe o entendimento do Ministério Público, em sede de inquérito, de que a facticidade imputada é subsumível a um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, n.º 1 do C.P.
14. À semelhança do que se verifica a respeito da inadmissibilidade legal de rejeição da acusação quando a qualificação jurídica dos factos naquela insertos é controversa e ainda defensável, segundo as várias soluções plausíveis de direito. A respeito, os Acórdãos dos Tribunais da Relação do Porto de 11/7/2012, proc. n.º 1087/11.6PCMTS.P1 e de Lisboa de 18/10/2017, proc. n.º 1212/15.8PBAMD.L1-3, in www.dgsi.pt e Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, pág. 644).