QUEIXA
CADUCIDADE
IN DUBIO PRO REO
CONHECIMENTO
Sumário

I. Nos crimes de natureza semipública (e também naqueles que assumem natureza particular) a queixa assume-se como um verdadeiro pressuposto processual.
II. Se é certo que o prazo de caducidade a que alude o art. 115º, n.º 1 do C.P. terá, necessariamente, por referência a data em que o ofendido teve conhecimento que uma concreta factualidade é susceptível de constituir a prática de um ilícito criminal, concomitantemente, não é de olvidar que, como vem sendo entendido pacificamente na jurisprudência, para o exercício do direito de queixa (manifestação de vontade de procedimento criminal) não é exigível, por um lado, que o queixoso proceda à identificação, total ou parcial, do/s suspeito/s e, por outro, que aquele tenha «um conhecimento integral e jurídico sustentado num grau de indícios suficientemente fortes e devidamente sustentados em elementos fácticos» bastando, ao invés, «o conhecimento de meros indícios da prática delituosa»
III. Atento o teor da queixa apresentada e à míngua de elementos em sentido divergente, é de concluir, como no despacho revidendo, que o assistente, pelo menos, aquando da alta hospitalar, ocorrida em 8 de Setembro de 2015, estava já perfeitamente ciente «dos factos trazidos ao conhecimento do Ministério Público, e bem assim dos seus (presumíveis) autores (…) Até porque, no momento da alta (08.09.2015) o Assistente teve acesso à Nota de Alta junta aos autos com a Queixa-Crime, da qual consta todo o historial clínico do Assistente, bem como a sua sujeição aos tratamentos regulares de hemodiálise».
IV. Na dúvida quanto ao exercício tempestivo da queixa, sempre seria de fazer operar, nesta sede, o princípio do in dubio pro reo.
V. Como resulta dos autos, o Sr. Juiz do Tribunal a quo, antes da prolação da decisão recorrida, deu pleno cumprimento ao contraditório, e o assistente, apesar de ter sido notificado para se pronunciar quanto à caducidade da queixa invocada pelos arguidos, remeteu-se (pura e simplesmente) ao silêncio.
VI. Ao invés do propugnado pelos recorrentes, afigura-se inolvidável que a falta de qualquer pressuposto processual «pode ser conhecida a todo o tempo, ainda que a lei, por uma razão de ordem, obrigue à verificação da sua presença ou da sua falta em determinados momentos processuais»
VII. Aliás, no que concerne à legitimidade do Ministério Público, para a prossecução do processo criminal, o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão n.º 2/95, de 16 de Maio de 1995 fixou jurisprudência no sentido de que «a decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento».
VIII. E assim sendo, não tendo o assistente, no momento processual em que a questão foi suscitada, apesar de instado a fazê-lo, invocado qualquer circunstância e/ou carreado para os autos algum elemento susceptível de infirmar a invocada caducidade do direito de queixa, o ora rogado diferimento do conhecimento da excepção para a audiência de julgamento, com vista à sua audição, é absolutamente infundado.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
1. Nos autos em referência, o Ministério Público deduziu, em 1 de Junho de 2022, acusação contra os arguidos AA, BB e CC, imputando-lhes a pratica, a cada um, como autores materiais e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo artigo 148.º, n.º 1 e 2, do Código Penal.
2. Remetidos os autos para a fase de julgamento, o Sr. Juiz do Tribunal a quo proferiu, em 29 de Março de 2023, despacho com o seguinte teor:
«Questão Prévia:
Da caducidade do Direito de Queixa:
Nos presentes autos encontram-se acusados AA, BB e CC da prática, cada um dos arguidos, em autoria material e na forma consumada de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p.p. pelo art. 148.º, n.º 1 e 2 do Código Penal.
Os arguidos vieram invocar a caducidade do direito de queixa.
O Ministério Público pronunciou-se no seguinte sentido: “No caso dos autos, e pese embora as condutas imputadas aos arguidos remontem aos dias 27.12.2014 e 31.12.2014, o prazo de caducidade do direito de queixa, obviamente não se pode contar a partir da data, porquanto só muito mais tarde, veio o arguido a ter conhecimento da situação.
O mesmo se diga relativamente à data referida como sendo a data da Alta: 08.09.2015.
A circunstância de ter sido concedida Alta em 08.09.2015 ao assistente, por si só não significa que nessa mesma data o mesmo tenha tido conhecimento de que a doença renal crónica estádio V que lhe foi diagnosticada, tenha sido potenciada pela violação por parte dos arguidos dos deveres de prudência, de cuidado e previdência que sobre os mesmo impendiam na qualidade de médicos, por ocasião da assistência médica prestada nos dias 27.12.2014 e 31.12.2014.
Salvo melhor entendimento, afigura-se que essa é uma questão que apenas poderá ser aquilatada e esclarecida, em sede de audiência de discussão e julgamento, mediante a prova que aí vier a ser produzida.”
Ora, importa apreciar e decidir.
Nos termos do art. 148.º, n.º 4 do Código Penal o procedimento criminal em relação ao crime em apreço depende de queixa.
Nos crimes semipúblicos torna-se necessária a apresentação de queixa para que o Ministério Público tenha legitimidade para promover o processo penal nos termos dos art.os 48.º e 49.º do Código de Processo Penal. Prevê o art. 115.º, n.º 1 do Código Penal que o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz.
Dos autos constata-se que a queixa foi apresentada no dia 28.03.2016 [fls. 2].
Da queixa ressalta que o último facto apontado é a alta de 08.09.2015 [ponto 81 da queixa] dizendo-se no ponto antecedente e nesse que “O relatório contém ainda a indicação dos exames subsidiários efectuados durante o internamento, bem como os diagnósticos (principais e secundários) e, ainda, a terapêutica proposta, que escusamos aqui de transcrever, dada a simplicidade de forma como são transcritos. // de referir, finalmente que // 81. O doente teve alta a 08 de Setembro e desde então tem feito regularmente hemodiálise, conforme recomendação clínica”, mencionando-se ainda que “com a presente denúncia, pretende-se averiguar se as intervenções efectuadas no ora Denunciante pelos clínicos, pelos serviços e demais elementos do Hospital, bem como os do Centro de Saúde Familiar de ..., foram as que melhor se coadunavam com a situação do doente, com os sintomas a cada passo apresentados e as necessidades sentidas […] Finalmente e concluindo: Requer-se seja o assunto investigado e julgados criminalmente os responsáveis pelos actos que são atribuídos aos clínicos e serviços aqui mencionados (ou outros que se desconhecem), no que toca à responsabilidade culposa ou negligente de cada um dos intervenientes nos relatórios indicados”.
Dos relatórios juntos constam as identificações dos arguidos [fls. 14 e ss., fls. 27 e ss.].
De todo o teor da queixa, em momento algum o ofendido [através do seu advogado] menciona qualquer circunstância que leve a crer que o mesmo apenas tenha tido conhecimento de alguma circunstância após a alta hospitalar.
Analisada a acusação, igualmente nada é mencionado a tal respeito.
As condutas imputadas aos arguidos referem-se aos dias 27.12.2014 a 31.12.2014 depreendendo-se que as consequências apenas se tornaram evidentes aquando do posterior internamento a 18.08.2015.
Mais é indicado que o ofendido teria tido alta em 08.09.2015, necessitando de hemodiálise desde o dia 26.08.2015, inexistindo qualquer facto posterior a tal.
Tal circunstância não deverá ser apurada em sede de julgamento porquanto se trata de uma questão prévia à produção de prova, nem a mesma se encontra delimitada no objecto do processo [constante da acusação].
Ora cabia ao ofendido, ou ao Ministério Público para fundar a sua legitimidade em acusar e promover o processo, alegar [e demonstrar essa alegação] de que o ofendido apenas tinha tido conhecimento em momento posterior quer do facto quer do agente.
Todavia não é o que resulta nos autos.
A este propósito veja-se uma situação contrária àquela que consta dos autos, em que da acusação tal situação se denotava e que consta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.06.2017 em que foi relatora Adelina Barradas de Oliveira no âmbito do processo n.º 1106/11.6PLSNT.L1-3. Ora em tal processo, e contrariamente ao dos presentes autos, refere-se que “Foi após o insucesso de todos os tratamentos realizados até então pelo arguido, que o ofendido perdeu a confiança no mesmo e, em Março de 2011, decidiu consultar um outro Médico Dentista passando a ter conhecimento de que os procedimentos levados a cabo não eram os correctos e por isso os implantes caíam. Foi nessa altura, e em tempo, que o ofendido apresentou a queixa crime contra o aqui arguido - dia 24 de Junho de 2011.
Ora, o prazo de seis meses relevante para efeitos de extinção do direito de queixa, previsto no art. 115.º n.º 1 do Código Penal, é aquele que medeia entre a tomada de conhecimento do facto por parte do ofendido e a apresentação da queixa. Foi exactamente a partir do momento em que teve na verdade conhecimento de que estava a ser tratado de forma incorrecta que o ofendido acionou o seu direito de queixa e , tendo em conta que, de acordo com o disposto no artigo 115.º, n.º1 do Código Penal “O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz” a mesma está em tempo pelo que não se verifica o prazo de caducidade do exercício do direito de queixa. Existem elementos de prova nos autos que, embora possam apenas considerar-se indícios devem levar a entender que na verdade o ofendido exerceu o seu direito de queixa atempadamente e no momento certo. É quando o outro médico dentista observa o ofendido pela primeira vez em consulta no dia 21 de Março de 2011, que este fica a saber que as intervenções médicas anteriores foram mal feitas.”.
No caso em apreço nada disto sucede.
Aliás, é a partir do novo internamento e tratamentos necessários com a posterior alta que o ofendido toma conhecimento, o que não é posto em causa por si, nem tampouco na acusação, de todas as circunstâncias/consequências, tanto mais que é nessa sequência que apresenta queixa.
Por outro lado, não se olvida que o princípio do in dubio pro reo sempre teria igualmente aplicação em sede de pressupostos processuais no que respeita à dúvida quanto à data da prática dos factos e/ou seu conhecimento.
Destarte, verifica-se que, ainda que tendo em conta o dia da alta do ofendido - 08.09.2015 – enquanto data que este tomou conhecimento do facto e dos autores, aquando da apresentação da queixa no dia 28.03.2016 já haviam decorrido mais de 6 meses, pelo que já se tinha extinguido o direito de queixa, por caducidade.
A realização do julgamento para aferir tal situação revelava-se uma manifesta prática de actos inúteis, porquanto nenhum elemento há nos autos – e não seria objecto do processo nem questão a apurar em sede de julgamento pois o mesmo está delimitado pela acusação – de que a tomada de conhecimento por parte do ofendido teria ocorrido em momento posterior, motivo pelo qual sempre se iria verificar a caducidade de queixa.
A prática de actos inúteis está vedada ao Tribunal, enquanto princípio orientador do processo penal.
Ademais tal solução levaria à submissão a julgamento de arguidos quando a queixa foi manifestamente extemporânea, com todas as consequências que daí advêm, v.g. o tempo despendido por todos os sujeitos [incluindo o Tribunal, mandatários, arguidos, assistente, testemunhas], passando inclusive uma imagem da Justiça que não se anseia, porquanto desembocaria, inevitavelmente na verificação da excepção dilatória de ilegitimidade, pelo que não se compreenderia os motivos de submissão dos arguidos a julgamento, a prática de todos os actos a tal inerentes para culminar numa decisão em questão prévia, sem apreciação factual.
Note-se, ainda, que o recebimento da acusação se tratou de despacho tabelar, em que tal questão não tinha sido ainda suscitada e apreciada nos autos para que constitua caso julgado material.
A ilegitimidade do Ministério Público para acusar, trata-se de uma excepção dilatória de conhecimento oficioso.
Foi garantido o exercício do contraditório aos sujeitos processuais.
Consequentemente, por todo o exposto, julgo verificada a excepção dilatória de ilegitimidade do Ministério Público por caducidade do direito de queixa e, assim, determino a extinção do procedimento criminal contra os arguidos pelos crimes de que vinham acusados.
Face ao exposto fica prejudicada a eventual admissão do pedido de indemnização civil.
Sem custas.
Notifique e, oportunamente, arquive»
3. A Exma. Magistrada do Ministério Público interpôs recurso deste despacho. Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:
«1. Nos presentes autos, foram os arguidos AA, BB e CC acusados da prática, cada um, em autoria material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p.p. pelo artigo 148.º, n.º 1 e 2 do Código Penal.
2. Por despacho de 29.03.2023, em que se impunha a designação de data para a realização da audiência de discussão e julgamento, o Tribunal “a quo” julgou verificada a excepção dilatória de ilegitimidade do Ministério Público por caducidade do direito de queixa e determinou a extinção do procedimento criminal contra os arguidos pelos crimes de que vinham acusados.
3. Entende o Ministério Público que no caso, e nesta fase processual e sem mais, não é possível concluir pela procedência da excepção dilatória de ilegitimidade do Ministério Público por caducidade do direito de queixa, nos termos em que o Tribunal se pronunciou.
4. Salvo melhor entendimento, impunha-se a prolação de despacho que designasse data para realização de audiência de discussão e julgamento, em conformidade com o disposto no artigo 312º do C.P.P., e que aí tivesse lugar a produção da prova arrolada.
5. A queixa que deu origem aos presentes autos, foi formalizada por DD remetida através de correio electrónico dirigido aos serviços do Ministério Público de ... em 24.03.2016.
6. Em sede de inquérito, e pese embora as diligências levadas a cabo, não se revelou viável a inquirição do ofendido na qualidade de testemunha, em virtude de residir no estrangeiro.
7. Todavia, por se entender terem sido recolhidos em sede de inquérito indícios suficientes da prática de factos subsumíveis á materialidade do ilícito imputado a cada um dos arguidos, foi deduzido despacho de acusação.
8. O prazo de caducidade da queixa a que alude o artigo 115.º do Código Penal só pode começar a contar-se a partir do momento em que o ofendido tem conhecimento do facto e dos seus autores.
9. No caso dos autos, pese embora as condutas imputadas aos arguidos remontem aos dias 27.12.2014 e 31.12.2014, o prazo de caducidade do direito de queixa, obviamente não se pode contar a partir da data em que ocorreu a assistência médica prestada pelos arguidos no SU do ... nas supra indicadas datas, porquanto só muito mais tarde, veio o ofendido a ter conhecimento da sua situação de doença e bem assim de que na origem da mesma teria estado a assistência médica prestada pelos arguidos nos mencionados dias.
10. Entende-se igualmente que não é possível concluir, sem mais, que no dia em que DD teve alta do serviço de ... (dia 08.09.2015), o mesmo teve desde logo efectivo conhecimento nesse mesmo dia, de que havia sido vítima de tratamentos médicos incorrectos e inadequados de procedimentos médicos negligentes por parte dos arguidos e bem assim de que foram os mesmos que estiveram na origem da doença renal que lhe foi diagnosticada.
11. Tendo presente o tipo de matéria e de crime em causa (“a correcção e a adequação de assistência tratamentos médicos ministrados”) não é claro, nem evidente que o ofendido DD tivesse tido conhecimento em 18.08.2015 ou em 08.09.2015 de que a doença que lhe foi diagnosticada tenha tido origem/ou sido potenciada pela violação por parte dos arguidos dos deveres de prudência, de cuidado e previdência que sobre os mesmos impendiam na qualidade de médicos, por ocasião da assistência médica prestada nos dias 27.12.2014 e 31.12.2014.
12. Afirmar que o ofendido teve conhecimento do facto e dos seus autores em 18.08.2015 ou em 08.09.2015, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 115º, do C.P., é uma mera suposição sem qualquer suporte factual.
13. Face à factualidade em causa, nunca poderia o Mmº. Juiz “a quo” no despacho a que aludem os artigos 311.º e 312º. do C.P.P., concluir, sem mais e sem produzir prova, de que a queixa que deu origem aos presentes autos é extemporânea.
14. O momento próprio para aferir da tempestividade da queixa apresentada pelo ofendido, é em sede de sentença, após a produção de prova a realizar em sede de julgamento, no qual apreciará do mérito do caso em concreto e bem assim da data em que o ofendido teve efectivo conhecimento “do facto e dos seus autores”, para aí se concluir pela tempestividade ou não da manifestação do desejo de procedimento criminal.
Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e ser o despacho recorrido revogado e substituído por outro que designe data para audiência de discussão e julgamento dos arguidos AA, BB e CC pelos factos pelos quais os mesmos foram acusados»
4. O assistente DD interpôs, também, recurso. Aparta da motivação as seguintes conclusões:
«1ª. O Queixoso nunca foi ouvido em Tribunal, como é seu direito, tendo em atenção esta matéria em análise, seja em que qualidade seja!
2ª Não é legítimo exigir ao Queixoso, que seja ele a recolher quaisquer elementos (clínicos ou outros) de cuja concatenação leve à pretendida assunção das responsabilidades de cada interveniente, face à sua própria limitação, pessoal e funcional. Tal função é do Tribunal e, máxime, do Ministério Público.
3ª. O cruzamento de todas as informações é relevante para determinar a intervenção, bem como grau de influência que cada um dos intervenientes humanos teve na degradação da vida do ora Queixoso, ao não o observarem como devia ser, ao não analisarem corretamente os resultados dos exames de diagnóstico feitos, ao não o alertarem para a necessidade de uma vigilância mais apertada,
4ª Não obstante todas as observações feitas, podemos afirmar, com alguma segurança, que foram os procedimentos médicos de 25.01.2016 que levaram o ora Queixoso a tomar consciência da gravidade da sua situação e a questionar as razões que o terão levado a esta situação.
5ª Porém, é na fase do julgamento, que se fará a prova e onde, ambas as partes (acusadores e defensores) poderão descortinar mais elementos que se venham a mostrar relevantes, para as pretensões de todos, confirmando ou não a acusação.
6ª É, pois, extemporâneo, colocar agora a questão da CADUCIDADE do direito a que o Queixoso se arroga, tendo em conta não só todo o trabalho desenvolvido pelos Serviços do Ministério Público, ao longo da instrução, como por todos os contactos por este estabelecidos e, bem assim, pelos resultados obtidos, na reunião da documentação clínica relevante, que foi conseguida.
Nestes termos se requer seja dado sem efeito o despacho em análise e seja marcado Julgamento»
5. Os recursos foram admitidos, por despacho de 28 de Junho de 2023.
6. O arguido CC respondeu aos recursos. Extrai da respectiva minuta as seguintes conclusões:
«1. Vêm o Assistente e o Ministério Público, recorrer da douta decisão proferida nos autos, a qual, julgou verificada a exceção dilatória de ilegitimidade do Ministério Público por caducidade do direito de queixa e, consequentemente, determinou a extinção do procedimento criminal contra os arguidos melhor identificados nos autos.
2. No entanto, salvo o devido respeito, entende o Recorrido que os Recorrentes não trazem aos autos qualquer argumento que permita reverter a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
3. Desde logo porque, o Assistente ao formalizar a queixa-crime em 28.03.2016, junto dos serviços do Ministério Publico, descreveu e identificou pormenorizadamente os factos que alegadamente poderiam consubstanciar na prática de um crime, indicando o momento da sua ocorrência, designadamente, entre o período temporal de 27.12.2014 a 31.12.2014
4. O Assistente alegou, também, aquando da formalização da queixa-crime junto do Ministério Público que, se não em data anterior (designadamente com a consulta ocorrida em 18 de Agosto de 2015, ocasião em que lhe foi diagnosticada doença renal crónica estádio V, tendo ficado internado no serviço de Nefrologia – cf. pontos 28 e 29 do despacho de acusação), pelo menos em 08 de Setembro de 2015, teve conhecimento da existência da pretensa ilicitude da atuação dos aqui arguidos, e bem assim do direito de queixa, assim terminando a enunciação dos factos que pretendia ver averiguados pelo Ministério Público.
5. Até porque, no momento da alta (08.09.2015) o Assistente teve acesso à Nota de Alta junta aos autos com a Queixa-Crime, da qual consta todo o historial clínico do Assistente, bem como a sua sujeição aos tratamentos regulares de hemodiálise;
6. Constando, ainda, expressamente da Nota de Alta que o Assistente “Tem história de 3 vindas ao SU (serviço de urgência) do ..., em dezembro de 2014 por HTA (190/135 mmHg) associada a cefaleias, náuseas, vómitos, fotofobia. TC-CE não revelou alterações. Apresentava na altura Cr 4.8, ureia 130, K 5.3, não tendo sido referenciado a Nefrologia. Teve alta medicado com anti-HTA ” – factos que constituem, de forma absolutamente clara e inequívoca, o objecto da queixa-crime por si apresentada.
7. De modo que, considerando a factualidade descrita nos autos pelo Assistente, a qual se encontra no cerne da sua pretensão deduzida contra os aqui arguidos, não resultam dúvidas de que, se não em momento anterior, pelo menos (e inequivocamente) desde a referida data de alta (08.09.2015), tomou o Assistente plena consciência dos factos trazidos ao conhecimento do Ministério Público, e bem assim dos seus (presumíveis) autores.
8. No entanto, numa tentativa de ampliar e/ou estender o prazo que lhe é conferido pela lei, o Assistente vem agora suscitar a existência de factos posteriores à data de alta, que não foram por si enunciados aquando da formalização da Queixa-Crime, apesar de ter conhecimento dos mesmos nesse momento.
9. O que é certo é que, tais factos não apresentam qualquer relevância e/ou causa efeito com o objeto da sua denúncia – o qual, foi delimitado pelo próprio Assistente e atendido pelo Ministério Público no âmbito da Acusação.
10. Tanto assim é que a Acusação formulada pelo Ministério Público indicia os aqui arguidos pelos factos que vêm alegados pelo Assistente na Queixa-Crime, terminando ambas com o mesmo facto/momento temporal – a data da alta definitiva do Assistente em 08.09.2015 – data-limite em que o Assistente toma (absoluta) consciência da conduta alegadamente perpetrada pelos arguidos;
11. Sendo certo que, caso o Assistente não concordasse com os termos em que a Acusação veio formulada, sempre poderia, designadamente, requerer a abertura de instrução, o que não fez.
12. Assim, e conforme concluiu o Tribunal a quo, no momento em que é apresentada a Queixa-Crime junto dos Serviços do Ministério Público (em 28.03.2016), já se encontrava decorrido e ultrapassado o prazo de 6 (seis) meses previsto para o efeito, nos termos e para efeitos do disposto no artigo 115.º do Código Penal.
13. Tendo consequentemente, concluído o tribunal a quo não só que o direito de queixa já se tinha extinguido por caducidade, como também pela ilegitimidade do Ministério Público para acusar os aqui arguidos dos factos que vêm acusados (atendendo que estamos perante um crime que está dependente de queixa) – cf. artigo 148.º do CP.
14. Ora, a prosseguirem os autos para julgamento, como pretendem quer o Assistente, quer o Ministério Público, estaríamos perante um ato absolutamente inútil, atenta a delimitação do objeto da acusação, impulsionada pelo próprio Assistente, e como tal, absolutamente vedado ao Tribunal;
15. Sujeitando, dessa forma, os arguidos (indevida e injustificadamente) à realização de um julgamento quando, na verdade, encontrando-se verificada e demonstrada uma excepção (de caducidade) que impede o conhecimento do mérito da causa, sempre será o seu conhecimento prévio à produção de prova;
16. Sendo certo que, ainda que, hipoteticamente, se viesse a demonstrar, em sede de produção de prova, qualquer data e/ou momento posterior àquele que consta (inequivocamente) delimitado nos autos – designadamente no douto despacho de acusação – sempre a dúvida teria de ser decidida a favor dos arguidos por respeito ao princípio constitucionalmente previsto e garantido do in dubio pro reo – cf. artigo 32.º, n.º 2, primeira parte da CRP.
17. Assim, deverão improceder, in totum, todas as conclusões tecidas pelos Recorrentes, sendo negado provimento aos recursos interpostos e mantido integralmente o teor da decisão proferida pelo douto Tribunal a quo, só assim se fazendo JUSTIÇA!»
7. O arguido BB, também, respondeu aos recursos. Aparta da resposta, apenas, a seguinte conclusão:
«Ao contrário do que os recorrentes afirmam, percorrendo o douto despacho recorrido, exarado em 29/3/2023, resulta que o Tribunal “a quo” aplicou bem o Direito, nenhuma censura merecendo»
8. A Ex.ma Magistrada do Ministério Público respondeu, outrossim, ao recurso interposto pelo assistente. Extrai da resposta as seguintes conclusões:
«i. Veio o Assistente interpor recurso do despacho proferido nos presentes autos em 29.03.2023, nos termos do qual, em suma, foi julgada verificada a excepção dilatória de ilegitimidade do Ministério Público, por caducidade do direito de queixa e, nessa medida, determinada a extinção do procedimento criminal contra os Arguidos pela prática dos crimes de que vinham acusados
ii. Conforme já defendido em sede de promoção datada de 20.03.2023 e do recurso interposto pelo Ministério Público relativamente à presente questão, entende o Ministério Público conferir razão ao alegado pelo Assistente em sede de recurso.
iii. Revestindo o crime de ofensa à integridade física por negligência natureza semi-pública (artigos 148.º, n.ºs 1 e 4 do Código Penal), a promoção do presente procedimento criminal esteve dependente da apresentação de queixa por parte do Ofendido (artigos 113.º, n.º 1, 148.º, n.ºs 1 e 4 do Código Penal e artigos 48.º e 49.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
iv. Conforme estatui o artigo 115.º, n.º 1 do Código Penal e para o que ora nos interessa, o direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores.
v. Nos presentes autos, o Ofendido apresentou queixa em 28.03.2016, tendo legitimidade para o efeito e estando em tempo para o fazer.
vi. No caso em análise nos presentes autos, não obstante as condutas imputadas aos Arguidos remontem aos dias 27.12.2014 e 31.12.2014, a verdade é que o prazo de caducidade do direito de queixa do Ofendido não poderá contar-se a partir da data em que teve lugar a assistência médica prestada pelos Arguidos àquele.
vii. Só mais tarde veio o Ofendido a ter conhecimento, por um lado, da sua situação de doença e, por outro, de que na origem da mesma teria estado a assistência médica prestada por cada um dos Arguidos.
viii. Da análise dos elementos constantes dos autos não é possível concluir, sem mais, que no dia 08.09.2015, em que DD teve alta do serviço de ..., aquele teve conhecimento de que havia sido vítima de tratamentos médicos incorrectos e de procedimentos médicos negligentes, levados a cabo por parte dos Arguidos nas assistências realizadas no SU do ..., nas datas acima mencionadas e, bem assim, de que foram os mesmos que estiveram na origem da doença que lhe foi diagnosticada.
ix. Na data em que tomou conhecimento do respectivo diagnóstico, o Ofendido apenas passou a saber a doença de que padecia e o estádio de evolução em que a mesma se encontrava, não tendo aquele adivinhado, na referida data, as motivações e causas para tal estado de saúde.
x. Apenas mais tarde, tomou o Ofendido consciência de que a actuação dos Arguidos teria potenciado a evolução da doença de que padecia.
xi. Não constando dos presentes autos qualquer prova relativamente a tais factos, afigura-se, pois, que o momento próprio para aferir da tempestividade da queixa apresentada pelo Ofendido, terá de ser, forçosamente, o da prolação da sentença, após realizada a produção de prova em sede de audiência de julgamento.
xii. Assim, deverá ser dado provimento ao recurso interposto pelo Assistente e, nessa medida, ser o despacho ora recorrido substituído por um outro que designe data para realização da audiência de discussão e julgamento nos presentes autos.
xiii. Nestes termos, deve concluir-se que o Despacho recorrido violou o disposto no artigo 115.º do Código Penal e nos artigos 311.º e 312.º do Código de Processo Penal, razão pela qual deve ser concedido provimento ao recurso e substituído o Despacho recorrido por um outro que designe data para realização da audiência de discussão e julgamento nos presentes autos»
9. Neste tribunal, a Sra. Procuradora-Geral Adjunta, louvada na motivação apresentada na primeira instância, é de parecer que os recursos devem ser julgados procedentes. Pondera, ademais e em síntese, nos seguintes termos:
«II - As motivações dos recursos fundamentam a discordância com a apreciação feita pelo tribunal a quo, de forma correta e completa, pelo que com elas concordamos integralmente, mormente tendo em consideração o pouco tempo que mediou entre a data da alta, 08-09-2015 e a data da apresentação da queixa, 24-03-2016, sendo aceitável a versão do assistente quanto ao momento em que tomou conhecimento da sua real situação e da eventual responsabilidade de quem a provocou»
10. Cumprido o disposto no art. 417º, n.º 2 do C.P.P., nada mais sobreveio aos autos.
11. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos foram os autos à conferência, cumprindo, agora, decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. O objecto dos recursos, tal como demarcado pelo teor das conclusões das respectivas motivações, reporta ao exame da questão de saber se o Sr. Juiz do Tribunal a quo incorreu em erro de jure ao julgar verificada a excepção dilatória de ilegitimidade do Ministério Público, por caducidade do direito de queixa, e ao determinar, em consequência, a extinção do procedimento criminal.
3. Do alegado erro de jure quanto à caducidade do direito de queixa e, subsequente, extinção do procedimento criminal
Nos crimes de natureza semipública (e também naqueles que assumem natureza particular) a queixa assume-se como um verdadeiro pressuposto processual1.
«A queixa é, pois, entendida como uma manifestação inequívoca de vontade do titular do direito de perseguir os eventuais responsáveis pelo facto naturalístico ilícito, sendo, neste sentido, uma verdadeira condição objectiva de procedibilidade de natureza processual «que põe em movimento a máquina judicial» na feliz expressão do STJ»2
«O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz, exceto no caso do direito de queixa previsto no n.º 1 do artigo 178.º, que se extingue no prazo de um ano» conforme determina o art. 115º, n.º 1 do C.P.
«O processo penal tem por função a averiguação da existência de ilícitos, na perspetiva da proteção de bens jurídico-penais, visando punir os comportamentos violadores desses mesmos bens.
Embora na generalidade das legislações a promoção processual dos crimes seja tarefa estadual, os legisladores reconhecem que certas infrações contendem com bens jurídicos fundamentais da comunidade de modo não tão intenso como outros e que quanto àqueles deve ser deixada alguma margem ao ofendido para fazer valer ou não a aplicação de sanções ao infrator. A coordenação do interesse do Estado e do indivíduo, na promoção processual, leva à existência de crimes públicos, de crimes semi-públicos e crimes particulares, consoante a iniciativa processual caiba ao Ministério Público, dependa de queixa do interessado para que o Ministério Público promova a abertura do processo, ou que o titular do direito violado se queixe e ainda se constitua assistente e deduza acusação particular.
Relativamente aos crimes semi-públicos, dispõe o nº 1 do artº 49º do C.P.P. que “quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo”.
Por sua vez, o art.50.º do C.P.P., sob o título “Legitimidade em procedimento dependente de acusação particular”, estabelece uma segunda restrição à promoção do processo penal por parte do Mº.Pº., ao consignar, designadamente, o seguinte: «1. - Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular».
A queixa, relativamente aos crimes semi-públicos e particulares traduz a vontade do ofendido de instauração do procedimento criminal pela prática de determinado facto, contra o(s) seu(s) autor(es).
No dizer do Prof. Figueiredo Dias «Queixa é o requerimento, feito segundo a forma e no prazo prescritos, através do qual o titular do respetivo direito (em regra, o ofendido) exprime a sua vontade de que se verifique procedimento penal por crime cometido contra ele ou contra pessoa com ele relacionada (art.111º e C.P.P, art.49)»
Como se refere no Ac. do STJ de 29.01.2007, citando ainda o Prof. Figueiredo Dias “a queixa, exterior à ação típica, funciona nos crimes de natureza semi-pública (ou particular) como condição objetiva de procedibilidade, do exercício da perseguição penal, de natureza processual, embora regulamentada no âmbito do direito penal substantivo, assim sendo concebida pela jurisprudência e pela doutrina mais autorizada”.
Na verdade, a punição efetiva de um facto depende não apenas do preenchimento de exigências substantivas, mas também da verificação de condições de procedimento. Salvo em casos excecionais, sem queixa o procedimento não pode iniciar-se e, caso se tenha iniciado, não pode prosseguir.
A qualquer momento, se podem e devem retirar as consequências do facto de a queixa não existir ou não ser juridicamente relevante. Quando esta situação ocorre, falta, portanto, um pressuposto do procedimento, logo da condenação»3
No que à natureza deste prazo respeita, tem sido entendido unanimemente na doutrina e na jurisprudência que se trata de um prazo de caducidade, de natureza substantiva4 (por contraposição aos prazos de natureza processual ou judicial) e, por conseguinte, sujeito às regras de contagem insertas no art. 279º do C.C.
Vejamos, então.
Volvendo ao caso, como decorre dos autos e os próprios recorrentes admitem:
i. As condutas imputadas aos arguidos remontam a 27 de Dezembro de 2014 e 31 de Dezembro de 2014;
ii. Após vicissitudes clínicas várias, o assistente DD sofreu internamento hospitalar em 18 de Agosto de 2015 e teve alta hospitalar em 8 de Setembro de 2015;
iii. A queixa (só) foi apresentada em 24 de Março de 2016.
Acresce que, tal qual assinala o Sr. Juiz do Tribunal a quo, é também inequívoco que «Da queixa ressalta que o último facto apontado é a alta de 08.09.2015 [ponto 81 da queixa] dizendo-se no ponto antecedente e nesse que “O relatório contém ainda a indicação dos exames subsidiários efectuados durante o internamento, bem como os diagnósticos (principais e secundários) e, ainda, a terapêutica proposta, que escusamos aqui de transcrever, dada a simplicidade de forma como são transcritos. (…) De todo o teor da queixa, em momento algum o ofendido [através do seu advogado] menciona qualquer circunstância que leve a crer que o mesmo apenas tenha tido conhecimento de alguma circunstância após a alta hospitalar»
Ora, se é certo que o prazo de caducidade a que alude o art. 115º, n.º 1 do C.P. terá, necessariamente, por referência a data em que o ofendido teve conhecimento que uma concreta factualidade é susceptível de constituir a prática de um ilícito criminal, concomitantemente, não é de olvidar que, como vem sendo entendido pacificamente na jurisprudência5, para o exercício do direito de queixa (manifestação de vontade de procedimento criminal) não é exigível, por um lado, que o queixoso proceda à identificação, total ou parcial, do/s suspeito/s e, por outro, que aquele tenha «um conhecimento integral e jurídico sustentado num grau de indícios suficientemente fortes e devidamente sustentados em elementos fácticos» bastando, ao invés, «o conhecimento de meros indícios da prática delituosa»6
E assim sendo, pese embora o esforço argumentativo dos recorrentes, estamos em crer que atento o teor da queixa apresentada e à míngua de elementos em sentido divergente7, é de concluir, como no despacho revidendo, que o assistente, pelo menos, aquando da alta hospitalar, ocorrida em 8 de Setembro de 2015, estava já perfeitamente ciente «dos factos trazidos ao conhecimento do Ministério Público, e bem assim dos seus (presumíveis) autores (…) Até porque, no momento da alta (08.09.2015) o Assistente teve acesso à Nota de Alta junta aos autos com a Queixa-Crime, da qual consta todo o historial clínico do Assistente, bem como a sua sujeição aos tratamentos regulares de hemodiálise;
Constando, ainda, expressamente da Nota de Alta que o Assistente “Tem história de 3 vindas ao SU (serviço de urgência) do ..., em dezembro de 2014 por HTA (190/135 mmHg) associada a cefaleias, náuseas, vómitos, fotofobia. TC-CE não revelou alterações. Apresentava na altura Cr 4.8, ureia 130, K 5.3, não tendo sido referenciado a Nefrologia. Teve alta medicado com anti-HTA ” – factos que constituem, de forma absolutamente clara e inequívoca, o objecto da queixa-crime por si apresentada» 8
Vale, pois, por dizer que, o dissenso dos recorrentes centrado única e exclusivamente na propalada impossibilidade de (seguramente) se concluir que o assistente «(…) tivesse tido conhecimento em 18.08.2015 ou em 08.09.2015 de que a doença que lhe foi diagnosticada tenha tido origem/ou sido potenciada pela violação por parte dos arguidos dos deveres de prudência, de cuidado e previdência que sobre os mesmos impendiam na qualidade de médicos, por ocasião da assistência médica prestada nos dias 27.12.2014 e 31.12.2014» não pode merecer acolhimento.
Destarte, e como ficou também consignado no despacho recorrido, na dúvida quanto ao exercício tempestivo da queixa, sempre seria de fazer operar, nesta sede, o princípio do in dubio pro reo9.
Acresce que, como resulta dos autos, o Sr. Juiz do Tribunal a quo, antes da prolação da decisão recorrida, deu pleno cumprimento ao contraditório, e o assistente, apesar de ter sido notificado para se pronunciar quanto à caducidade da queixa invocada pelos arguidos, remeteu-se (pura e simplesmente) ao silêncio.
Na sequência do já anteriormente consignado, ao invés do propugnado pelos recorrentes10, afigura-se inolvidável que a falta de qualquer pressuposto processual «pode ser conhecida a todo o tempo, ainda que a lei, por uma razão de ordem, obrigue à verificação da sua presença ou da sua falta em determinados momentos processuais»11
Aliás, no que concerne à legitimidade do Ministério Público, para a prossecução do processo criminal, o Supremo Tribunal de Justiça no Acórdão n.º 2/95, de 16 de Maio de 199512 fixou jurisprudência no sentido de que «a decisão judicial genérica transitada e proferida ao abrigo do artigo 311.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, sobre a legitimidade do Ministério Público, não tem o valor de caso julgado formal, podendo até à decisão final ser dela tomado conhecimento».
E assim sendo, não tendo o assistente, no momento processual em que a questão foi suscitada, apesar de instado a fazê-lo, invocado qualquer circunstância e/ou carreado para os autos algum elemento susceptível de infirmar a invocada caducidade do direito de queixa, o ora rogado diferimento do conhecimento da excepção para a audiência de julgamento, com vista à sua audição, é, salvo o devido respeito, absolutamente infundado.
Termos em que, a partir das alinhadas e consentidas premissas, a conclusão extraída pelo Sr. Juiz do Tribunal a quo, quanto à intempestividade da queixa, não merece qualquer reparo ou suprimento.
E, assim, improcedem os recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo assistente.

III – DISPOSITIVO
Nestes termos e com tais fundamentos, decide-se:
a) Julgar improcedentes os recursos interpostos pelo Ministério Público e pelo assistente DD e, em consequência, manter, nos seus precisos termos, o despacho que julgou verificada a ilegitimidade do Ministério Público, por caducidade do direito de queixa, e que determinou a extinção do procedimento criminal;
b) Condenar o assistente DD no pagamento da taxa de justiça pelo mínimo legal (art. 515º, n.º 1, al. b) do C.P.P.).
Notifique.

Lisboa, 24 de Outubro de 2024
Ana Marisa Arnêdo
Jorge Rosas de Castro (vencido, conforme declaração de voto junta)
Paula Cristina Bizarro
*
Declaração de voto vencido
Pese embora reconheça a qualidade da fundamentação expressa no acórdão recorrido, não posso deixar de divergir da solução jurídico-material a que chega.
Explicarei sucintamente a minha posição.
O crime em apreço depende de queixa e com a apresentação desta fica salvaguardada a legitimidade do Ministério Público para o desenvolvimento da investigação e nomeadamente para deduzir acusação. Tal aconteceu nos autos: a queixa foi apresentada em 28 de março de 2016, o inquérito foi aberto, prosseguiu e veio a ser encerrado com despacho de acusação em 1 de junho de 2022.
A caducidade do direito de queixa, pelo decurso do prazo legal para a apresentar, constitui, porém, uma exceção dilatória de direito material, a todo o tempo invocável e suscetível de ser conhecida – todos o sabemos.
O que me parece é que para que este conhecimento possa verificar-se, os autos têm que se encontrar munidos de informação suficiente e segura, para lá de toda a dúvida razoável; se essa informação não for suficiente ou segura, e nomeadamente se for de sentido duvidoso, entendo que compete ao tribunal esgotar as diligências que razoavelmente se lhe impõem para esclarecer as dúvidas – e no limite, esgotadas essas diligências, mas só então, persistindo uma situação de dúvida, pode fazer-se atuar o in dubio pro reo.
Ora, no caso concreto, considero que a decisão tomada pela 1ª Instância e o presente acórdão, que a secunda, não se encontram apoiados numa base suficiente de dados seguros, na medida em que assumem que o ofendido, senão antes, na data da alta, teve conhecimento dos factos e dos seus autores. A partir do momento em que o ofendido tem alta e toda a documentação relevante para compreender o que se passou consigo, iniciou-se o prazo de apresentação da queixa – é no fundo esta a motivação adotada.
Com o devido respeito, estou em crer que este raciocínio desconsidera a natureza dos factos e a inerente dificuldade na compreensão dos mesmos.
Não estamos a falar de um eventual ilícito criminal que seja temporal e faticamente recortável com precisão, de compreensão intuitiva quanto à sua natureza, às suas causas, aos seus contornos exatos e possíveis autores.
Nada disso: do que aqui se trata é de um quadro problemático de saúde que em dado momento se desenvolve e cuja origem causal bem pode ser vista numa fase inicial como difusa, duvidosa, carecida de explicação; e mesmo se do historial clínico puder perceber-se que em certo momento houve um procedimento médico de discutível conformidade com as leges artis médicas ou até desconforme com elas, isso não significa que pudesse necessariamente concluir-se pela existência de indícios de nexo causal entre essa má prática e aquele quadro de saúde, nexo causal esse objetivamente indispensável para a existência do ilícito criminal em discussão.
A especificidade, a delicadeza e a dificuldade da matéria requereriam a prévia reunião de mais informação para uma tomada de decisão segura e conscienciosa sobre o ponto em litígio, para mais tendo uma tal decisão o peso drástico associado ao arquivamento de um processo por alegada negligência médica mais de oito anos depois do seu início.
E aqui chegamos a esta dimensão, que se prende com a proteção de uma tutela jurisdicional efetiva e do direito a um processo equitativo, previstos nos arts. 20º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e 6º, nº 1 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH), bem assim como com o cumprimento, pelo Estado, de obrigações positivas de natureza processual associadas à salvaguarda do direito à integridade física, previsto pelo art. 25º, nº 1 da CRP e também objeto de proteção por via do art. 8º, nº 1, da CEDH.
Referimo-nos em particular à circunstância de, salvo situações de contornos óbvios – o que não é manifestamente o caso –, uma decisão com este significado não pode ser tomada sem que o ofendido haja alguma vez sido ouvido nos autos, seja no inquérito, seja na fase de julgamento.
E a isto não se objete dizendo que o ofendido foi notificado das contestações apresentadas e para se pronunciar sobre a caducidade aí invocada e nada disse.
Teria sido decerto mais prudente da sua parte ter respondido; mas da sua ausência de resposta nada de decisivo pode retirar-se: em primeiro lugar porque nenhum efeito cominatório foi ou podia ser associado à sua eventual ausência de resposta; e em segundo lugar porque dessa ausência de resposta não resulta uma alteração da informação da ordem dos factos com base na qual a decisão do incidente viria a ser tomada.
Se a situação era duvidosa antes da notificação, não deixou de o ser depois.
Vale o exposto por dizer, em suma, que entendo que as contestações apresentadas introduziram no objeto da causa uma questão, e a decisão desta requereria o esgotamento das diligências de prova razoavelmente pertinentes em ordem a reunir as bases de facto para uma decisão segura e conscienciosa – e de entre essas diligências de prova figura a audição do ofendido, nunca antes efetuada nos autos.
Em síntese, revogaria o despacho recorrido e determinaria o prosseguimento dos autos, com abertura da audiência de julgamento, sem prejuízo de, nesta, poderem os trabalhos ser organizados de forma a decidir-se em fase inicial a questão prévia da caducidade, organização essa perfeitamente viável ao abrigo dos poderes gerais de direção do/a Sr/a. Juiz/Juíza Presidente, previstos pelos arts. 322º e 323º, alínea a) do Código de Processo Penal.
Jorge Rosas de Castro
_______________________________________________________

1. Figueiredo Dias, Consequências Jurídicas do Crime, 1993, pág. 663, refere a propósito que se trata de um pressuposto processual que «contende com o próprio direito substantivo, na medida em que a sua teleologia e as intenções político-criminais que lhe presidem têm ainda a ver com condições de efectivação da punição, que nesta mesma encontram o seu fundamento e razão de ser»
2. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2/10/2014, processo n.º 20/13.5SOLSB.L1-9, in www.dgsi.pt.
3. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 26/11/2014, processo n.º 201/10.3TAPVZ.P1, in www.dgsi.pt., com negrito nosso.
4. Entre outros, na doutrina, Figueiredo Dias, Consequências Jurídicas do Crime, pág. 674, Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, I. Volume, pág. 812, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 2008, anotação 10ª ao art. 115º, Vítor de Sá Pereira e Alexandre Lafayette, Código Penal Anotado e Comentado, pág. 307 e na jurisprudência os Ac. do S.T.J de 15/12/94, T.R.P. de 15/9/99, CJ, Ano XXIV, Tomo 4, pág. 239; T.R.E. de 8/11/2005.
5. Entre outros, os Acórdãos dos Tribunais da Relação de Lisboa de 18/2/2003, processo n.º 0084955, do Porto de 27/10/2010, processo n.º 989/05.3TASTS.P1, e de Coimbra de 18/1/2012, processo n.º 45/10.2GDCVL.C1 e de 6/3/2013, processo n.º 763/09.8T3AVR-A.C2, todos in www.dgsi.pt.
6. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/1/2023, processo n.º 6382/20.0T9LSB.L1-3, in www.dgsi.pt.
7. A alegação meramente genérica e inovatória por parte do assistente, em sede de recurso, de que foram os procedimentos médicos de 25 de Janeiro de 2016 que o levaram a tomar consciência da gravidade da sua situação e a questionar as razões que o terão levado a esta situação não constitui, no paradigma descrito, elemento consistente a ponderar.
8. Como refere o arguido CC na resposta aos recursos interpostos.
9. Neste sentido o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/11/2019, processo n.º 365/17.5GBOAZ.P1, in www.dgsi.pt e Claus Roxin, Derecho Processal Penal, 2000, páginas 111 e 113.
10. Tendo o recorrente Ministério Público sustentado expressamente que «O momento próprio para aferir da tempestividade da queixa apresentada pelo ofendido, é em sede de sentença, após a produção de prova a realizar em sede de julgamento, no qual apreciará do mérito do caso em concreto e bem assim da data em que o ofendido teve efectivo conhecimento “do facto e dos seus autores”, para aí se concluir pela tempestividade ou não da manifestação do desejo de procedimento criminal»
11. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, volume III, pág. 35 e, entre outros, o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29 de Novembro de 2010, processo n.º 479/07.0TABRR.L1-3, in www.dgsi.pt.
12. DR I-A de 12 de Junho de 1995.