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TRIBUNAL SINGULAR
ART.º 16º
N.º3 CPP
NULIDADE INSANÁVEL
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
Sumário
I. Encontra-se vedada ao tribunal a possibilidade de controlar a adequação do juízo de oportunidade do Ministério Público quando recorra ao mecanismo legal de determinação concreta da competência do tribunal singular previsto no art. 16º/3 do CPP, sob pena de, fazendo-o, o correspondente despacho judicial enfermar de nulidade insanável, em conformidade com a previsão do citado art. 119º/e) do Código de Processo Penal. II. A alteração da qualificação jurídica dos factos em sede de despacho de saneamento previsto no art. 311º do CPP, apenas em casos excepcionais poderá ocorrer, designadamente quando do texto da acusação, mais precisamente dos factos nela descritos, seja ostensivo ter ocorrido um lapso manifesto na indicação das normas jurídicas aplicáveis por parte do Ministério Público. III. A alteração da qualificação jurídica pelo juiz, fora desse quadro de erro ou lapso manifesto, não encontra sustentação nos normativos dos art. 303º e 358º do CPP, sendo de excluir no âmbito do despacho previsto no art. 311º do Código de Processo Penal.. IV. No caso, não revelando a acusação qualquer lapso ou erro de natureza ostensiva e manifesta quanto à indicação do crime imputado ao arguido e à norma legal incriminadora, encontrava-se vedada ao tribunal a quo alterar a qualificação jurídica nos termos que constam do despacho recorrido.
Texto Integral
Acordam em conferência as Juízas da 9ª secção criminal deste Tribunal da Relação
I. RELATÓRIO
Inconformado, o Ministério Público vem interpor recurso do despacho proferido em 16-04-2024 nos autos de processo comum com intervenção de tribunal singular com o n.º 871/22.0JAPDL, do Juízo Local Criminal de Angra do Heroísmo, no qual se decidiu o seguinte: a) Altero a qualificação jurídica constante da acusação, convolando-a para a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.s 21º, n.º 1, e 24º, al. h), do DL 15/93, de 22/01; b) Declaro o tribunal singular materialmente incompetente e competente o tribunal colectivo.
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As razões de discordância encontram-se expressas nas conclusões da extraídas da motivação do recurso, que em seguida se transcrevem: 1. Vem o presente recurso interposto do despacho que convolou o crime de tráfico de estupefacientes p.p. pelo disposto no artº 21º, nº 1, do DL 15/93 de 22.01, que vinha imputado ao arguido na acusação, para um crime de tráfico de estupefacientes agravado p.p. pelo disposto no artº 21º, nº 1 e 24º, al. h) do referido diploma legal e, rejeitou a competência do tribunal singular da acusação deduzida pelo Ministério Público ao abrigo do disposto no artº 16º, nº3 do C.P.P, remetendo os autos para julgamento perante tribunal coletivo. 2. Ao proceder à dita convolação jurídica, o Mm° Juiz a quo aplicou de forma automática a qualificativa constante da al. h) do artº 24º do DL 15/93 de 22.01, pelo simples facto de na acusação se referir que o arguido destinava o estupefaciente que lhe foi apreendido à venda no estabelecimento prisional onde se encontrava recluso, descurando a avaliação da imagem global dos factos. 3. Com efeito, o arguido foi surpreendido na posse de um total de 0,912 gramas (peso líquido) de canábis, considerada a droga com menor poder de toxicidade, destinando-a à cedência a terceiros no estabelecimento prisional onde se encontra a cumprir uma pena de prisão, não registando qualquer condenação prévia pela pratica do crime de tráfico de estupefacientes. 4. Parece-nos assim que, face à imagem global destes factos, a qualificativa da al. h) do artº 24º do DL 15/93 de 22.01 deve ser afastada, mantendo-se a qualificação jurídica constante da acusação e, a pena aplicar ao arguido não deverá ser superior a 5 anos de prisão, tendo o Ministério Público feito uma acertada qualificação jurídica dos factos. 5. Acresce que, o Ministério Público ao deduzir acusação, determinou claramente como competente o Tribunal singular para o julgamento do crime que descreveu, ao manifestar e exteriorizar o poder dever atribuído ao Ministério Publico contido no art.º 16º nº 3 do CPP. 6. Esta tomada de posição faz parte integrante da acusação e tendo o nosso processo penal estrutura acusatória, não é sindicável como vem sendo decidido pela nossa jurisprudência: "O juiz não pode exercer censura sobre os fundamentos com base nos quais o Ministério Público, ao abrigo do disposto no art.º 16º nº 3 do CPP, reduza o âmbito do litígio penal e limite o espaço de intervenção do tribunal de julgamento; "Sempre que o MºPº, ao acusar, invoque a prerrogativa processual do art. 16º, nº 3 do CPP, a competência fixa-se no tribunal singular"; " Recorrendo o Ministério Público ao mecanismo do art. 16.º, n.º 3, do CPP, por entender que não deve ser aplicada ao arguido pena superior a cinco anos de prisão, no despacho a que se refere o art. 311.º, do CPP, não podem juiz, assistente ou mesmo arguido exprimir entendimento diferente; " O citado preceito legal é peremtório no sentido que cabe ao tribunal singular julgar os processos aí referidos "quando o Ministério Público ... entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a cinco anos", o que retira ao juiz qualquer possibilidade para entendimento diverso". 7. O Ministério Publico ao deduzir acusação e ao optar pela faculdade que lhe é conferida pela lei nos termos previstos no artigo 16.º n.º 3 do CPP fundamentou legalmente a sua opção em termos inequívocos e claros, não se tratando, portanto, de uma decisão discricionária, mas sim de uma fundamentada aplicação do princípio da oportunidade em conformidade com a Constituição da República Portuguesa. 8. Pelo que, não ocorreu qualquer nulidade por violação das regras de competência material, nos presentes autos, mostrando-se devidamente fixada na acusação a competência do tribunal singular. 9. Quanto ao mérito dessa opção, que o legislador consagrou tendo em vista aliviar os tribunais coletivos daqueles casos em que - segundo um juízo de prognose, formulado com base em critérios legais de aplicação de penas - virão a ser aplicadas penas que se compreendem na competência punitiva normal do juiz singular- como, de resto, se entendeu ser o caso - não cumpre ao juiz apreciá-la. 10. Ao assim não entender, o despacho sob recurso violou os artigos 21º, nº 1 e 24º, al. h) do DL 15/93 de 22.01, bem como, o artº 14º, nº 2, al. b), artº 16º nº 3, ambos do C.P. Penal e o artº 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa. 11. O M.P. requereu nos termos do n.º 3 do Art. 16.º do C.P.P. a realização do julgamento perante Tribunal Singular, o que não aconteceu. 12. Tal omissão inquina irremediavelmente de nulidade insanável, todo o processado subsequente àquele despacho, ex vi Art. 119.º e) e 122.º, ambos do C.P.P, devendo consequentemente ser substituído por outro que o revogue e que determine o recebimento da acusação por tribunal singular. V. Ex.as, Venerandos Desembargadores, porém, decidirão conforme for de Direito e Justiça!
(fim de transcrição)
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O recurso foi admitido com subida imediata, em separado e com efeito meramente devolutivo (despacho de 13-05-2024, com a ref.ª citius 57233855).
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Não foi apresentada resposta ao recurso pelo arguido.
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Neste Tribunal da Relação, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta limitou-se a apor o seu Visto, não tendo sido, por isso, dado cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar a conferência.
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II. FUNDAMENTAÇÃO
1. DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSO
Dispõe o artigo 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que “a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
Daí o entendimento unânime de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sendo que apenas as questões aí resumidas deverão ser apreciadas pelo tribunal de recurso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, designadamente os vícios previstos no n.º 2 do art. 410º do mesmo Código.
Em conformidade, atentas as conclusões formuladas pelo Recorrente, a questão a decidir no presente recurso reconduz-se essencialmente ao seguinte:
- se se verifica nulidade insanável de todo o processado subsequente ao despacho recorrido, nos termos do art. 119.º e) e 122.º, ambos do Código de Processo Penal, por violação da competência do tribunal singular.
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II. DO DESPACHO RECORRIDO
2.1. É o seguinte o teor do despacho recorrido, com a ref.ª citius 57067615 (transcrição):
I. Saneamento.
A. Qualificação jurídica.
Deduziu o Ministério Público acusação contra o arguido AA pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.º 21º, n.º 1, do DL 15/93, de 22/01.
O apontado crime é punido com pena de 4 a 12 anos de prisão.
Contudo, resulta da acusação que o arguido, recluso no estabelecimento prisional de Angra do Heroísmo, detinha canábis com o objectivo de a vender a terceiros.
Diz o artigo 24º, al. h), do mesmo DL 15/93, que as penas do artigo 21º são aumentadas de um quarto nos seus limites mínimo e máximo se a infracção tiver sido cometida em estabelecimento prisional, o que é o caso.
Existe, assim, uma incorrecta qualificação jurídica dos factos que urge corrigir, no âmbito dos poderes que o tribunal dispõe quanto à apreciação e aplicação do direito.
A este propósito, ainda recentemente e com muito relevo para o que aqui se discute, decidiu o Tribunal da Relação do Porto, no seu Acórdão de 7 de Junho de 2023, Processo 1/21.5S1LSB-B.P1: “Se o tribunal, no primeiro exame do conteúdo da acusação ou da pronúncia, forma a ideia de que a qualificação jurídica dos factos imputados ali adotada não é correta, todos os outros sujeitos processuais sairão beneficiados com o imediato conhecimento da solução jurídica tida como devida. Esse conhecimento será especialmente útil para o arguido, cuja defesa só tem a ganhar se puder ser organizada desde início tendo em conta essa informação. Na verdade, do ponto de vista da estruturação da estratégia de defesa quanto mais cedo o arguido souber qual é a conceção jurídica do tribunal sobre os factos imputados, melhor. O seu direito ao contraditório não só não é prejudicado, como, pelo contrário, é reforçado: ocorrendo a alteração da qualificação jurídica no ato do saneamento do processo, o arguido poderá já tê-la em conta na sua contestação, no seu requerimento de prova, bem como na produção de prova e nas alegações que vierem a ter lugar na audiência de julgamento. Tudo o que, para o seu direito de defesa, é obviamente preferível do que só ter uma chance de contraditar essa nova solução jurídica já depois de concluída a produção de prova, num momento em que o encerramento da audiência se encontra próximo ou até já ocorreu, dentro do tempo considerado como estritamente necessário para o efeito. Tal como afirma Nuno Brandão em obra citada Temos, pois, que a comunicação pelo tribunal da sua perspetiva jurídica sobre os factos imputados ao arguido tem um papel informativo equivalente ao da consignação na acusação das normas legais que o Ministério Público considera que lhes são aplicáveis. Por essa razão, dada a sua relevância para a efetivação do direito de defesa, é recomendável que o tribunal a partilhe no processo logo que se convença de que se trata da solução jurídica cabida à causa. Integrando-se este dever de informação no domínio mais amplo do direito fundamental de audiência e contraditório, cremos mesmo que essa comunicação será devida em nome do princípio da lealdade. E este princípio é muito importante não sendo deveras aceitável, que o tribunal deva poder esconder para si uma informação importante para o exercício da defesa, só a libertando depois de produzida a prova, numa altura em que já foram dados praticamente todos os passos processuais que devem preceder a sentença e em que ao arguido não será concedido mais do que o tempo tido como estritamente necessário para a preparação da sua defesa. A par desta função informativa, a alteração da qualificação jurídica dos factos é indispensável para que o tribunal garanta a legalidade processual, integrando-se por isso, de pleno direito, no ato de saneamento do processo. Essa junção saneadora marcará a requalificação jurídica dos factos constantes da acusação ou da pronúncia quando ela seja imprescindível, fornecendo maiores garantias ao arguido do que as que teria caso se vedasse ao juiz do julgamento o poder de expressar a sua perspetiva jurídica dos factos constantes da acusação, por se considerar que apenas o poderia fazer no decurso da audiência e no condicionalismo estabelecido nos n.ºs 1 e 3 do artigo 358° do Código de Processo Penal, em que ao arguido é concedido, apenas, o "tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. E é também importante para assegurar que a causa é julgada pelo tribunal competente, para evitar o avanço de um procedimento que seja legalmente inadmissível (por prescrição do procedimento, caso julgado, ilegitimidade do Ministério Público, etc.) ou para aferir a legalidade de provas cuja admissibilidade esteja dependente da natureza do crime imputado ou da gravidade da pena aplicável. Neste tipo de situações, uma pronta requalificação jurídica dos factos poderá impedir que o processo avance para a realização de atos processuais que mais tarde serão inevitavelmente qualificados como inválidos, assim se prevenindo a prática de atos que terão tanto de ilegais como de inúteis. Com isso, será salvaguardado o princípio da economia processual e favorecer-se-á a celeridade processual. É importante relativamente à competência do tribunal já que a definição da competência material segue, em geral, um modelo de determinação abstrata, assente na natureza do crime imputado ao arguido ou na medida máxima da pena abstrata cominada para o delito de que ele é acusado. Também a competência territorial poderá estar na dependência da qualificação jurídico-penal que se dê aos factos de que o arguido é acusado ou pronunciado, dado que, em regra, corresponde ao lugar da consumação do crime (art. 19°, n° 1, do CPP). Ora, se não se reconhecesse ao tribunal de julgamento a possibilidade de, no saneamento do processo, formar um juízo próprio sobre o relevo penal dos factos objeto do processo correr-se-ia o risco de a causa ser julgada por um tribunal material e/ou territorialmente incompetente, em afronta do princípio do juiz natural. Uma ofensa que em certos casos poderia ser mesmo irreparável, designadamente, quando o tribunal fosse territorialmente incompetente, atento o disposto no art 32°, n°2, al. b), do CPP, que estabelece o início da audiência de julgamento como momento limite para a declaração de incompetência territorial. Caso em que, portanto, na prática, a definição da competência territorial poderia ficar exclusiva e insindicavelmente nas mãos do Ministério Público. Ora, uma proteção efetiva do princípio do juiz legal não se compadece com uma proibição de alteração da qualificação jurídica dos factos se dela puder decorrer a atribuição de competência material ou territorial a um tribunal distinto daquele que resultaria das normas que o Ministério Público, no despacho de acusação. Com uma abertura à requalificação jurídica dos factos no saneamento do processo haverá ainda, além disso, ganhos respeitantes a interesses pessoais de sujeitos e participantes processuais, nomeadamente riscos de vitimização secundária inerentes ao processo penal que pode obrigar a um segundo julgamento.”
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B. Competência.
Ao crime de tráfico agravado, previsto e punido pelo art.º 21º, n° 1, e 24° al. g), do DL 15/93 corresponde pena de 5 anos a 15 anos de prisão.
O Ministério Púbico usou da faculdade prevista no artigo 16.º, nº 3 do Código de Processo Penal.
Dispõe esta norma: “Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos na alínea b) e no n° 2 do artigo 14°, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação ou, em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos.”
No caso concreto, é irrelevante que o Ministério Público tenha condicionado a pena máxima abstractamente aplicável e, por essa via, determinado a competência do Tribunal.
O Ministério Público pode restringir o tecto da pena a aplicar e, assim, a moldura aplicável; o que não pode fazer é pura e simplesmente eliminar a moldura aplicável e, por essa via, pré-determinar a pena aplicável, em verdadeira equiparação da forma de processo comum à forma especial sumaríssima, mas totalmente fora do correspondente rito processual.
Destarte, face à moldura penal abstracta aplicável ao caso conclui-se que este tribunal não é materialmente competente para proceder à realização da audiência de julgamento nos presentes autos, sendo antes competente a Instância Central de Angra do Heroísmo.
A incompetência do tribunal constitui nulidade insanável (artigo 119.º, a. e) do CPP) e é, nos termos do artigo 32º, n.º 1 do CPP, conhecida e declarada oficiosamente até ao trânsito em julgado da decisão final.
Esta posição foi já sufragada pelo Tribunal da Relação de Lisboa no seu acórdão de 9 de Fevereiro de 2021, Processo 294/17.2PBAGH-A.L1 (pesquisável em www.dgsi.pt).
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Pelo exposto:
a) Altero a qualificação jurídica constante da acusação, convolando-a para a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.s 21º, n.º 1, e 24º, al. h), do DL 15/93, de 22/01;
b) Declaro o tribunal singular materialmente incompetente e competente o tribunal colectivo.
Oportunamente remeta os autos à distribuição.
(fim de transcrição)
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2. Resulta ainda dos autos que em 19-02-2024 o Ministério Público deduziu acusação (ref.ª citius 56541450), com o seguinte teor (transcrição parcial):
O Ministério Público acusa para julgamento, sob a forma comum, perante a Instancia Local Criminal de Angra do Heroísmo, ao abrigo do disposto no artº 16º, nº3 do CPP:
AA (“…”), filho de BB e de CC, natural da freguesia de ..., concelho de ..., nascido a ........86, atualmente preso no estabelecimento prisional de ...
Porquanto:
1. No dia 05.09.22, pelas 16 horas, à saída do Bloco … do estabelecimento prisional de …, o arguido, ali recluso, detinha no bolso das calças 49 embalagens (vulgo panfletos) de canábis (resina), com o peso líquido de 0,546 gramas e o grau de pureza de 13% (THC).
2. Logo após esta apreensão, na sequência de uma busca aos pertences pessoais do arguido na cela nº …, situada no piso …, Bloco …, do referido estabelecimento prisional, foram encontrados:
a) Uma máquina de tatuar artesanal;
b) Agulhas e tintas;
c) Vários comprimidos;
d) Várias caixas de sumo pequenas;
e) Um recipiente de plástico preto contendo canábis (resina) com o peso liquido de 0,366 gramas e o grau de pureza de 21,2% (THC).
3. O arguido bem sabia que transportava consigo o produto estupefaciente em questão, querendo e conseguindo introduzir o mesmo no estabelecimento prisional, onde se encontrava a cumprir a sua pena.
4. O arguido destinava aquelas quantidades de estupefaciente à venda e/ou cedência a consumidores da substância, a troco de uma compensação pecuniária ou de algo que lhe pudesse interessar.
5. O arguido agiu voluntária, livre e conscientemente, conhecendo a natureza estupefaciente dos produtos que detinha, bem sabendo que não os podia deter, adquirir, vender ou fornecer, a qualquer título, a outrem e que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
Incorreu, pelo exposto, o arguido, na pratica de um crime de tráfico de estupefacientes, p.p. pelo disposto no artº 21º, nº1 do DL 15/93, de 22.01, com referencia à Tabela Anexa I-C do referido diploma.
PROVA:
(…)
Da justificação da aplicação do arte 16º, nº3 do CPP:
Atendendo à moldura penal máxima abstratamente aplicável ao crime que vem imputado ao arguido, a competência para o seu julgamento pertenceria a um tribunal de estrutura coletiva. Contudo, atendendo à, ainda assim, escassa quantidade de estupefaciente apreendido ao arguido ( ainda que subdividida num número razoável de doses), entendemos que não lhe deverá ser aplicada pena de prisão superior a 5 anos de prisão. Daí que se requeira a aplicação do disposto no arte 16º, nº3 do CPP.
(fim de transcrição)
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III. APRECIAÇÃO DO MÉRITO DO RECURSO
Alega o Ministério Público: A única questão que suscitamos é a de saber se o Tribunal recorrido podia ter convolado a qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, declarar-se materialmente incompetente, e determinar como competente o Tribunal coletivo.
Argumenta para o efeito o Recorrente, em síntese, que: - o Mmº Juiz a quo, pelo simples facto de na acusação se dizer que o arguido destinava o estupefaciente que lhe foi apreendido à venda no estabelecimento prisional onde era recluso, aplicou de forma automática a qualificativa constante da al. h) do artº 24º do DL 15/93 de 22.01, descurando o circunstancialismo do caso concreto; - o arguido foi surpreendido na posse de quantidades escassas de estupefaciente; - não regista qualquer condenação pela prática do crime de tráfico de estupefacientes; - a pena aplicar ao arguido não deverá ser superior a 5 anos de prisão; - o crime imputado ao arguido não se enquadra na al. b) do n.º 2 do art. 14.º do CPP - caso em que a competência para o seu julgamento caberia em exclusivo ao tribunal coletivo - pelo que nada impedia a atribuição de tal competência ao tribunal singular, mediante a utilização, pelo MP, da faculdade prevista no art. 16.º, n.º 3, do mesmo diploma; - o Mmo. Juiz ao declarar a incompetência do tribunal singular, indicando como a pena de 5 a 15 anos de prisão a aplicar ao arguido, violou o disposto no artº 16º, n° 3 do CPP e o disposto nos artº 21º e 24º, al. h) do DL 15/93 de 22.01.
Cumpre agora apreciar.
Afigura-se que não oferece dúvidas que a violação das regras da atribuição da competência ao tribunal colectivo e ao tribunal singular, consignadas respectivamente nos art.s 14º e 16º do Código de Processo Penal, é geradora de nulidade insanável, conforme expressamente prevê o art. 119º- e) do mesmo Código.
Assim, estatui o art. 14º daquele Código que: 1 - Compete ao tribunal colectivo, em matéria penal, julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal do júri, respeitarem a crimes previstos no título iii e no capítulo i do título v do livro ii do Código Penal e na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário. 2 - Compete ainda ao tribunal colectivo julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal singular, respeitarem a crimes: a) Dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa; ou b) Cuja pena máxima, abstratamente aplicável, seja superior a 5 anos de prisão mesmo quando, no caso de concurso de infrações, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime.
Preceitua, por seu turno, o art. 16º do Código de Processo Penal que: 1 - Compete ao tribunal singular, em matéria penal, julgar os processos que por lei não couberem na competência dos tribunais de outra espécie. 2 - Compete também ao tribunal singular, em matéria penal, julgar os processos que respeitarem a crimes: a) Previstos no capítulo ii do título v do livro ii do Código Penal; ou b) Cuja pena máxima, abstractamente aplicável, seja igual ou inferior a 5 anos de prisão. c) (Revogado.) 3 - Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos na alínea b) do n.º 2 do artigo 14.º, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, ou, em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos. 4 - No caso previsto no número anterior, o tribunal não pode aplicar pena de prisão superior a 5 anos.
Constitui entendimento sedimentado, quer a nível da doutrina, quer da jurisprudência, que a atribuição da competência concreta mediante o recurso ao disposto neste n.º 3 do art. 16º, com assento em requerimento para tanto fundamentado do Ministério Público, contemporâneo da acusação ou subsequente a ela quando o conhecimento do concurso seja superveniente, se impõe ao Juiz do julgamento, sendo por este insindicável ao nível do seu fundamento substantivo.
Com efeito, requerendo o Ministério Público o julgamento perante o tribunal singular, por crime a que seja em abstracto punível com pena superior a cinco anos de prisão, mas ao qual em concreto considera ser de aplicar pena não superior a cinco anos, encontra-se vedado ao Juiz de julgamento ajuizar da correcção ou adequação dessa pena.
Por isso, se entende que, nessas situações, ao Juiz se impõe aceitar a sua competência concreta assim atribuída, a qual apenas poderá recusar caso se constate que a aplicação do mecanismo previsto no citado art. 16º/3 do Código de Processo Penal ocorreu sem observância dos pressupostos legais de que depende.
Assim, Simas Santos e Leal Henriques (in CPP Anotado, 1º vol., 1996, pág. 142 e 143): a opção do M.º P.º, uma vez tomada, é vinculativa para o tribunal, não apenas no que toca à competência daí decorrente (o juiz não poder rejeitar o requerido), como ainda no que respeita ao tecto sancionatório a cumprir pelo Tribunal (em julgamento não poderá ser aplicada pena superior aos limites fixados na lei) (no mesmo sentido, pronuncia-se Maia Gonçalves, CPP Anotado, 17ª ed., pág. 102).
Neste sentido, entre outros, se vem pronunciando de forma pacífica a nossa jurisprudência, como é exemplo a Decisão Singular do Tribunal da Relação do Porto de 09-11-2023, no Processo n.º 174/19.7T9VFR-A.P1 (Relator: RAÚL CORDEIRO): a oportunidade e o critério seguido pelo Ministério Público para recorrer ao disposto no mencionado preceito legal (n.º 3 do art. 16.º) não é judicialmente sindicável, mas cabe ao Tribunal singular, recebidos os autos, verificar se é competente para o seu julgamento, designadamente quando, na falta de recurso ao aludido preceito legal, a moldura abstracta aplicável ao crime não cabe dentro do limite estabelecido na alínea b) do n.º 2 do referido artigo 16.º(…).
Igualmente neste sentido, se pronunciou o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-12-2022, no Processo n.º 422/20.0SJPRT.P1 (Relatora: LÍGIA TROVÃO): a tal decisão do MºPº, não pode, o juiz do tribunal singular, no despacho a que se refere o art. 311º do CPP, exprimir entendimento diferente e, consequentemente, atribuir, ao tribunal coletivo, a competência para o julgamento. (no mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 22-11-2021, no Processo n.º 976/19.4T9BRG.G1 (Relator: ARMANDO AZEVEDO).
Nestes termos, encontra-se vedada ao tribunal a possibilidade de controlar a adequação do juízo de oportunidade do Ministério Público quando recorra a tal mecanismo legal de determinação concreta da competência do tribunal singular, sob pena de, fazendo-o, o correspondente despacho judicial enfermar de nulidade insanável, em conformidade com a previsão do citado art. 119º/e) do Código de Processo Penal (assim, P. Pinto de Albuquerque, Comentário ao CPP, 3ª ed., pág 90).
Como esclarece Pinto de Albuquerque (ob. e loc. citados), o Juiz apenas poderá controlar a legalidade processual da aplicação do citado art. 16º/3, mas não a sua legalidade substantiva, controlo esse que se reduz a alguma das situações seguintes:
- o uso não expresso da faculdade do art. 16º/3;
- o uso da faculdade do art. 16º nº 3, no caso de crimes dolosos ou agravados pelo resultado quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa;
- o uso da faculdade do art. 16º nº 3, no caso de crimes previstos na Lei nº 31/2004 de 22/07, ou de crimes contra a segurança do Estado;
- o uso da faculdade do art. 16º nº 3, no caso de conexão de crimes em que um dos crimes imputados ao arguido seja crime doloso ou agravado pelo resultado e seja elemento do crime a morte de uma pessoa;
- o uso da faculdade do art. 16º nº 3, no caso de conexão de crimes em que um dos crimes imputados ao arguido seja um crime previsto na Lei nº 31/2004 de 22/07, ou um crime contra a segurança do Estado.
Verificando-se alguma dessas situações específicas, deverá o tribunal declarar a sua incompetência para realização do julgamento e atribuir essa competência ao tribunal colectivo.
No caso concreto, é patente que nenhuma dessas situações se verifica.
Sucede que o tribunal a quo alterou a qualificação jurídica constante da acusação, convolando-a para a prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo art.s 21º, n.º 1, e 24º, al. h), do DL 15/93, de 22/01, punível em abstracto com pena de 5 anos a 15 anos de prisão.
Assim, a questão que agora se coloca é a de saber se ao tribunal a quo era permitido alterar a qualificação jurídica dos factos para crime mais grave e, em consequência disso, declinar a sua competência e atribuir competência ao tribunal colectivo para proceder ao julgamento.
Ora, com todo o respeito que opinião contrária nos merece, no caso concreto não era permitida a alteração da qualificação jurídica dos factos, nos termos decididos no despacho recorrido.
É sabido que a questão da possibilidade de no despacho previsto no art. 311º do Código de Processo Penal o juiz alterar a qualificação jurídica contida na acusação é controvertida na doutrina e na jurisprudência.
Contudo, se analisarmos as normas contidas no Código de Processo Penal que preveem a alteração da qualificação jurídica e os procedimentos a que a mesma deverá obedecer, logo se constata que as mesmas se restringem a dois momentos processuais distintos, um na fase de instrução e um outro, já no decurso da fase da audiência de julgamento.
Efectivamente, preceitua a esse respeito o art. 303.º do mesmo Código: Alteração dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução 1 - Se dos actos de instrução ou do debate instrutório resultar alteração não substancial dos factos descritos na acusação do Ministério Público ou do assistente, ou no requerimento para abertura da instrução, o juiz, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao defensor, interroga o arguido sobre ela sempre que possível e concede-lhe, a requerimento, um prazo para preparação da defesa não superior a oito dias, com o consequente adiamento do debate, se necessário. 2 - Não tem aplicação o disposto no número anterior se a alteração verificada determinar a incompetência do juiz de instrução. 3 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou no requerimento para abertura da instrução não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de pronúncia no processo em curso, nem implica a extinção da instância. 4 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo. 5 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o juiz alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou no requerimento para a abertura da instrução. (destacado nosso)
Já na fase do julgamento, rege o art. 358.º do mesmo Código nos termos seguintes: Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia 1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. 2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa. 3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. (destacado nosso)
A alteração da qualificação jurídica obedece a um formalismo estrito, no respeito escrupuloso dos princípios do contraditório e da ampla defesa do arguido, sendo fulminados com a nulidade o despacho de pronúncia e a sentença que não sejam precedidos da sua observância (art.s 309º/1 e 379º/1-b) do mesmo Código).
Por outro lado, os poderes de saneamento do processo conferidos ao juiz no art. 311º do Código de Processo Penal reportam-se à apreciação de nulidades ou outras questões prévias que obstem à apreciação do mérito da causa (como sejam a incompetência do tribunal, ou causas de extinção do procedimento criminal).
Em tal normativo mostra-se ausente qualquer referência à possibilidade de alteração da qualificação jurídica dos factos, prevendo-se tão só a rejeição da acusação quando esta se mostre manifestamente infundada.
Assim, parece-nos que a alteração da qualificação jurídica dos factos em sede de despacho de saneamento previsto no mencionado art. 311º, apenas em casos excepcionais poderá ocorrer, designadamente quando do texto da acusação, mais precisamente dos factos nela descritos, seja ostensivo ter ocorrido um lapso manifesto na indicação das normas jurídicas aplicáveis por parte do Ministério Público.
Verificado um lapso dessa natureza, nada obstará à sua correcção, desde que cumprido o contraditório.
Porém, a alteração da qualificação jurídica pelo juiz, fora desse quadro de erro ou lapso manifesto, não encontra sustentação nos normativos citados, sendo de excluir no âmbito do despacho previsto no art. 311º do Código de Processo Penal.
A este propósito e neste sentido, pronuncia-se P. Pinto de Albuquerque (ob. cit, pág. 91 e 797): a solução da imodificabilidade da qualificação jurídica no momento do saneamento judicial dos autos é a única consentânea com a proibição da sindicância do uso pelo Ministério Público da faculdade do artigo 16º, n.º 3. O controlo da qualificação jurídica pelo tribunal permitiria a fraude ao artigo 16º, nº 3, por via da sindicância da imputação penal feita na acusação. (…) o legislador quis que a quilificação jurídica dos factos feita pela acusação (pública ou particular) ou, havendo instrução, pela pronúncia, fosse discutida na audiência de julgamento e só nesse momento.
No mesmo sentido, pronunciou-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-12-2023, no Processo n.º 217/22.7PVLSB.L1.S1 (Relator: VASQUES OSÓRIO): No âmbito do despacho previsto no art. 311.º, n.º 2 do CPP, não pode/deve o juiz do julgamento proceder à alteração da qualificação jurídica dos factos imputados ao arguido na acusação.
No mesmo sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 30-06-2015, no Processo n.º 1/12.6GCEVR-B.E1 (Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA): Os fundamentos constantes do acórdão de fixação de jurisprudência nº 11/2013 não se limitam à fase de julgamento, sendo aplicáveis por maioria de razão à fase de fase de saneamento, como claramente se intui da sua leitura (…). Não é, assim, lícito ao juiz de julgamento, ao dar cumprimento ao disposto no art. 311º do CPP, alterar a qualificação jurídica dos factos (no mesmo sentido ainda, entre outros, a Decisão de 29-01-2024 do Tribunal da Relação de Lisboa, no Processo n.º 136/21.4GALNH-A.L1-5 (Relator: LUÍS GOMINHO), o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14 Janeiro 2019, no Processo nº 6/17.0GAVLP.G1 (Relator: ANTÓNIO TEIXEIRA), este disponível em jurisprudencia.pt; Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06-10-2021, no Processo n.º 251/19.4PBCLD.C1 (Relator: LUÍS TEIXEIRA; Vinício Ribeiro, CPP Notas e Comentários, 3ª ed., pág.s 693 e 694).
Por outro lado, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 11/2013, de 19 de julho (publicado no Diário da República n.º 138/2013, Série I de 2013-07-19), fixou jurisprudência nos seguintes termos: A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no artigo 358.º n.ºs 1 e 3 do CPP.
Não obstante não se reporte à fase de saneamento do processo a que se refere o já citado art. 311º do Código de Processo Penal, como se ressalta no Relação de Évora de 30-06-2015 atrás citado, do mesmo constam vários argumentos relevantes para apreciação da questão em análise, e que apontam no sentido exposto.
Consignou-se em tal AUJ o seguinte: A qualificação jurídica dos factos em sede de acusação não se circunscreve à indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes que aqueles preenchem. Com efeito, a lei - alínea f) do n.º 3 do artigo 283.º - impõe a indicação das disposições legais aplicáveis, ou seja, de todas as disposições legais aplicáveis. Deste modo, para além da indicação da norma que prevê o tipo de crime ou crimes, terão de ser indicadas as normas que estabelecem a respectiva punição, ou seja, a espécie e a medida das sanções aplicáveis. Pretende a lei que ao arguido seja dado conhecimento do exacto conteúdo jurídico-criminal da acusação, ou seja, da incriminação e da precisa dimensão das consequentes respostas punitivas, dando-se assim expressão aos princípios da comunicação da acusação e da protecção global e completa dos direitos defesa, este último estabelecido no n.º 1 do artigo 32.º da Constituição Política, princípios a que já fizemos referência. Só assim o arguido poderá preparar e organizar a sua defesa de forma adequada. (…) qualquer alteração que se verifique da qualificação jurídica dos factos feita na acusação ou na pronúncia (com excepção dos casos atrás referidos), nomeadamente qualquer alteração que importe um agravamento, terá necessariamente de ser dada a conhecer ao arguido para que este dela se possa defender, sob pena de se trair o favor defensionis.
Subscrevendo o Parecer do MP, diz-se ainda no mesmo AUJ: sendo indiscutível que o Tribunal é totalmente livre de qualificar os factos pelos quais condena o arguido, certo é que o momento próprio para o fazer ocorre após haver produção de prova, isto é, quando está a julgar o mérito do caso concreto.
Em sentido contrário, pronunciou-se, entre outros, o Acórdão da Relação de Guimarães de 14-09-2020, proferido no processo n.º 715/19.0PCBRG.G1 (Relator António Teixeira), bem como, na doutrina, Nuno Brandão (em A alteração da qualificação jurídica dos factos no saneamento em processo Penal, in Católica Law Review, vol. V, nº 3, Novembro 2021).
Porém, pelos fundamentos atrás explanados, entende-se que, no caso, não revelando a acusação qualquer lapso ou erro de natureza ostensiva e manifesta quanto à indicação do crime imputado ao arguido e à norma legal incriminadora, encontrava-se vedada ao tribunal a quo alterar a qualificação jurídica nos termos que constam do despacho recorrido atrás transcrito, tanto mais que, como é jurisprudência dominante, a agravação prevista no art. 24º do DL 15/93 não funciona de forma automática, como bem salienta o Recorrente na sua motivação de recurso.
Assim, como se clarifica no Acórdão do STJ de 15-01-2020, proferido no processo n.º 23/17.0PEBJA.S1: É uniforme neste Supremo Tribunal o entendimento de que a circunstância de a infracção ter sido cometida em estabelecimento prisional não produz efeito qualificativo automático, antes exigindo a sua interpretação teleológica, por forma a verificar se a concreta modalidade da acção, a concreta infracção justifica o especial agravamento da punição querida pelo legislador.
É que como se elucida no Ac. do STJ de 7-12-2023, proferido no processo n.º 217/22.7PVLSB.L1.S1, quanto à agravação prevista no art. 24º, alínea h): A circunstância agravante prevista na al. h) do art. 24.º do DL n.º 15/93, de 22-01, radica na necessidade de assegurar as finalidades de reabilitação e ressocialização de quem se encontra recluído em estabelecimentos prisionais e sujeito às respectivas regras e regulamentos disciplinadores, constituindo o perigo de introdução de estupefacientes nesses espaços, e a sua disseminação por eles, factor tumultuador de tais regras, pondo em causa aquelas finalidades, não lhe sendo, também, alheio o propósito de fortalecer a saúde, física e psíquica, da população prisional na medida em que, não obstante o seu estatuto, está exposta ao contacto com estupefacientes em particulares condições, conhecida que é a sua debilitada capacidade de autodeterminação no que ao consumo de tais substâncias respeita.
Ou seja, não funcionando aquela qualificativa de forma automática, afastada fica a possibilidade, também por esse motivo, de ocorrência de um qualquer erro manifesto na indicação do crime imputado ao arguido e da norma incriminadora.
Nos termos e com os fundamentos expostos, conclui-se que o despacho recorrido, ao alterar a qualificação jurídica dos factos e, por essa via, sindicar a aplicação do disposto no art. 16º/3 do Código de Processo Penal pelo Ministério Público e declarando a incompetência do tribunal singular, enferma de nulidade insanável nos termos do artigo 119º/e) do Código de Processo Penal, por violação das regras de competência do tribunal.
Nestes termos, cumpre julgar procedente o recurso interposto, declarando tal nulidade da decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que, inexistindo quaisquer outros fundamentos que a tal obstem, receba a acusação pública, para subsequente julgamento perante tribunal singular.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acordam as Juízas da 9ª secção criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso interposto, declarando nulo o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que, não havendo outros motivos para a sua rejeição, receba a acusação pública, para subsequente julgamento perante tribunal singular.
Sem custas.
Notifique.
Lisboa, 24 de Outubro de 2024
(anterior ortografia, salvo as transcrições ou citações, em que é respeitado o original)
Elaborado e integralmente revisto pela relatora (art.º 94.º n.º2 do C. P. Penal)
Paula Cristina Bizarro
Marlene Fortuna
Isabel Maria Trocado Monteiro