CORRECÇÃO
DECISÃO
MINISTÉRIO PÚBLICO
Sumário

I. O art. 380º do Código de Processo Penal prevê um processo de correção de sentença extensível aos atos decisórios do art. 97º, neles se incluindo decisões do Ministério Público, quando o acto decisório contiver lapso, obscuridade ou ambiguidade, cuja modificação não importe modificação essencial.
II. O facto de o Ministério Público ter proferido uma peça processual a que denominou “acusação”, não significa que estamos perante uma nova acusação (que não seria admissível), mas apenas, perante um despacho retificativo que incorpora a acusação corrigida, circunstância que é admissível ao abrigo do artº 380º, do Código de Processo Penal.

Texto Integral

Acordam, em conferência, os Juízes na 9ª Secção Criminal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
No processo comum singular nº 555/20.3SLLSB, que corre termos no Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 1, foi, em 19.01.2024, proferido despacho, com o teor seguinte:
Questão prévia:
Compulsados os autos verifica-se que em 18-04-2023 foi proferida acusação, nos termos do disposto no art. 16° n°3 do C.P.Penal, contra o arguido AA imputando-lhe aprática, autoria material e em concurso efectivo de um crime de dano, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 212.°, 213.°, n.° 1, al. c) e art. 213.°, n.° 3, por referência ao art. 204.°, n.°4 e arts. 22.° e 23°, todos do Código Penal e de um crime de dano, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 212°, 213°, n.° 1, al. c) e art. 213°, n.° 3, por referência ao art. 204°, n.°4 todos do Código Penal.
Peça processual essa que foi notificada a todos os intervenientes processuais, tendo sido deduzido pedido de indemnização civil.
Posteriormente, em 27-06-2023 foi deduzida "nova" acusação (refa(....)4571), em que em relação ao mesmo arguido é imputada a prática, em autoria material e em concurso efectivo, de um crime de furto, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 203°, n.° 1 e 2 e 204°, n.° 1, al. e) e n.° 4 e arts. 22° e 23°, todos do Código Penal e de um crime de furto, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 203°, n.° 1 e 2 e 204°, n.° 1, al. e) e n.° 4 do Código Penal.
Em despacho prévio à dedução da mesma consignou-se o seguinte: Considerando que a acusação padece de lapso de escrita na parte atinente aos ilícitos imputados ao arguido, dou sem efeito a acusação de f/s. 129, substituindo-se integralmente o despacho proferido em 18/04/2023.
Notifique com a acusação ora proferida.
De forma a não causar confusão na percepção do presente inquérito, rasure o despacho de f/s. 129, com menção ao despacho ora proferido.
Vejamos.
Os actos decisórios do Ministério Público tomam a forma de despachos (art.97° n°3 do C.P.Penal).
Dispõe o n°1 do art.283° n°1 do C.P.Penal que se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele.
Deduzida que foi, nos presentes autos, em 18-04-2023, uma acusação, a mesma fixou o objecto do processo, tornando-se definitiva.
A mesma só podia ser objecto de rectificação nos estritos termos previsto no n°3 do art.380° do C.P.Penal, sendo que a rectificação não pode importar uma modificação essencial.
A dedução de uma "nova acusação" não se compreende na noção de rectificação a que se refere o citado normativo legal e não tem por base qualquer normativo ou princípio legal.
Como se decidiu no Ac. do TRL de 11-05-2016 proferido no proc. n°88/10.6JAPDL.L1-3 in www.dgsi.pt. o princípio da preclusão significa, entre o mais, que uma vez praticado determinado acto ele adquire foros de definitivo naquele processado (preclusão intraprocessual ou efeito intraprocessual da preclusão). Este princípio tem aplicação no âmbito do direito processual, seja ele civil ou penal -e aplica-se quer aos actos dos juízes, quer actos petitórios e contestatórios das partes/intervenientes processuais, quer aos actos decisórios dos magistrados do Ministério Público, os quais, nos termos dos arts. 380° n°3 e 97° n°3 do Código de Processo Penal, só podem ser corrigidos nos casos e termos previstos no n°1 daquele primeiro normativo. Tal significa que, uma vez proferida a acusação, (ou qualquer despacho do MP no âmbito do inquérito), seja qual for o tratamento que lhe tenha sido dado (isto é, tendo sido notificado, ou não) está precludida a possibilidade de o MP renovar a prática do acto. O acto praticado tornou-se definitivo e faz parte integrante do processado.
Pelo exposto, uma vez que a peça processual de fls. 144 não tem fundamento legal, a mesma não será objecto de apreciação.
Notifique.
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Tendo em conta a decisão ora proferida, retire as folhas de papel que ocultam o despacho proferido a fls. 129 a 131v.
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O Tribunal é competente.
O Ministério Público tem legitimidade para o exercício da acção penal.
Inexistem nulidades, excepções, ou questões prévias, para além da já decidida, que cumpra conhecer e que obstem ao conhecimento do mérito da causa.
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Registe e autue como processo comum, com intervenção do Tribunal singular.
Recebo a acusação deduzida nos presentes autos pelo Ministério Público (refa(...)1613 contra AA - melhor identificado a fls.19 e 21 do apenso, pelos factos e qualificação dela constantes os quais se dão por reproduzidos.”
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Inconformado com o despacho, veio o magistrado do Ministério Público interpor o presente recurso, terminando a motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
1a O presente recurso vem interposto do despacho proferido a 19/01/24 (ref* 431789812) nestes autos que rejeitou a acusação deduzida pelo Ministério Público a 27/06/23 (ref® 427014571) considerando aquela sem fundamento legal, dizendo não poder estar em causa uma retificação de lapso material.
2a O despacho recorrido não se encontra em conformidade com as normas legais aplicáveis ao caso concreto, tendo procedido a uma incorreta interpretação e aplicação do direito, violando, desta forma, as normas constantes nos artigos 32.°, n.° 5 e 219.°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), 48.°, 53.°, n.° 2, alínea b), 380°, n.° 1, alínea b) e 311.° do Código de Processo Penal.
3a Nos presentes autos, pretende a Mma Juiz ‘a quo' que o Ministério Público, constatando ter proferido despacho de acusação contendo lapso de escrita quanto às disposições legais aplicáveis, não poderia ter dado aquele sem efeito, proferindo novo despacho de acusação contendo as disposições aplicáveis.
4a Nestes autos, a 18/04/23 foi proferido despacho de acusação no qual se imputava ao arguido a prática de dois crimes de dano.
5a Em 27/06/23 é proferido o seguinte despacho: “Considerando que a acusação padece de lapso de escrita na parte atinente aos ilícitos imputados ao arguido, dou sem efeito a acusação de fls. 129, substituindo-se integralmente o despacho proferido em 18/04/2023.
Notifique com a acusação ora proferida.
De forma a não causar confusão na percepção do presente inquérito, rasure o despacho de fls. 129, com menção ao despacho ora proferido". Em seguida, é deduzida acusação na qual se corrigem as normas referentes à incriminação do arguido.”
6a Chegados os autos a julgamento, a Mma Juiz, recebeu a acusação de 18/04/23, rasurada nos termos determinados, dizendo não estarem causa uma situação de retificação e afirmando que a acusação de 27/06/23 não tem fundamento legal.
7a Compulsados os autos, constata-se que, efetivamente, a descrição de factos constante do despacho de 18/04/23 e 27/06/23 é exatamente a mesma, apenas se denotando o lapso de escrita, obviamente decorrente da utilização de meios informáticos, quanto à menção das disposições legais aplicáveis. Com efeito, verifica-se que o despacho de arquivamento que foi proferido previamente à acusação, procede ao arquivamento de um crime de dano, pelo que, é evidente o lapso de escrita na indicação das disposições legais aplicáveis na acusação. Lapso esse que foi detetado e atempadamente corrigido pela titular da fase inquérito.
8a Ora, pretende a Mma Juiz que o despacho proferido a 27/06/23 “não tem fundamento legal", dizendo não se tratar de retificação prevista no artigo 380°, n.° 3 do Cód. de Processo Penal.
9a Desde logo, a circunstância de o MP ter reproduzido o despacho retificado por uma questão de facilidade na tramitação dos autos, não invalida que se tenha determinado a retificação do despacho anterior apenas na parte referente às normas incriminadoras (artigo 380.°, n.° 1 alínea b) e n.° 3 do Cód. de Processo Penal, JOSÉ MOURAZ LOPES, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Almedina, setembro de 2022, anotação ao artigo 380°, p. 803 e 804 e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 01-06-2006, proferido no processo n.° 3743/2006-9 - disponível em dgsi.pt).
10a Na realidade, na situação dos autos, não se verifica qualquer modificação essencial da acusação por se fazer constar a corretas disposições legais aplicáveis aos factos descritos na acusação. De facto, como se referiu, em ambas as acusações deduzidas os factos são idênticos, nomeadamente até no que se refere ao elemento subjetivo (cfr. artigos 16 a 18 de ambos os despachos).
11a Deste ponto de vista, numa situação como a dos autos em que o Ministério Público constata um erro na acusação e procede retificação daquele, está em pleno exercício das suas competências legais, revelando-se em tal ato a própria estrutura acusatória do processo.
12a Sucede que, o facto de o Ministério Público ter verificado o lapso nas disposições legais, conhecendo desse erro, não é sindicável pela Mma Juiz em sede de julgamento. Muito menos poderia a Mma Juiz, ordenar que fossem retiradas folhas do inquérito e receber uma acusação que se encontrava rasurada.
13a De facto, resulta evidente que estava vedado à Mma Juiz a rejeição dessa acusação, assim como estava vedado o recebimento da acusação anteriormente deduzida e rasurada nos autos, porquanto não está em causa qualquer nulidade insanável.
14a Efetivamente, a acusação de 27/06/23, contendo a retificação do lapso, foi devidamente notificada a todos os sujeitos processuais e continha todos os elementos legais elencados no artigo 283° do Cód. de Processo Penal.
15a Uma eventual nulidade decorrente do facto de ter sido proferido aquele despacho não se enquadra nos poderes de cognição da Mma Juiz ao abrigo do disposto nos artigos 311°, n.° 2, alínea a) e n.° 3, alínea c) do Cód. de Processo Penal.
16a Com efeito, ao juiz de julgamento não é permitido, imiscuir-se oficiosamente em nulidades ou irregularidades detetadas, apenas o devendo fazer nos casos expressamente previstos no artigo 311°, n.° 3 do Cód. de Processo Penal, o que, não é manifestamente o caso dos autos.
17a Assim sendo, está vedado à Mma Juiz o conhecimento de uma eventual nulidade, assim como lhe é vedado o recebimento de uma acusação rasurada, ordenando que sejam retiradas folhas de papel do inquérito nos termos que haviam sido determinados pelo titular da fase de inquérito.
18a Em suma, uma vez que foi deduzida acusação por magistrado do Ministério Público contendo todas as menções legais exigíveis no artigo 283° do Cód. de Processo Penal, é ininteligível a referência do despacho da Mma Juiz à falta de fundamento legal da acusação deduzida, recebendo-se a acusação rasurada conforme despacho proferido em sede de inquérito.
19a Nestes termos, o despacho recorrido violou o disposto nas normas legais dos artigos 32.°, n.° 5 e 219.°, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa (CRP), 48.°, 53.°, n.° 2, alínea b), 380°, n.° 1, alínea b) e 311.° do Código de Processo Penal.
20a Por tudo o exposto, o despacho recorrido terá de ser substituído por outro que receba a acusação deduzida a 27/06/23, dado que a aquela acusação contém as menções legalmente previstas e não cabe à Mma Juiz de julgamento pronunciar-se sobre retificação de erros em sede de inquérito.
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Por despacho foi o recurso regularmente admitido a subir imediatamente, em separado, com efeito suspensivo.
Respondeu o arguido junto do tribunal a quo às motivações do recurso vindas de aludir, entendendo que este deve ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se integralmente o despacho recorrido.
No Tribunal da Relação o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer, pugnando pela procedência do recurso.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
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Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
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Cumpre decidir.
- Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
No caso em apreço, como se extrai das conclusões formuladas pelo recorrente, a única questão submetida à apreciação deste Tribunal consiste em saber se, depois de ter sido deduzida acusação e de esta ser notificada ao arguido, pode o Ministério Público deduzir uma nova acusação, procedendo deste modo, à correção dos crimes erradamente imputados na primeira acusação deduzida (dois crimes de dano) para dois crimes de furto.
Do enquadramento dos factos relevantes para a decisão.
1.Nos autos por despacho proferido pelo Ministério Público datado de 18.04.2023 foi deduzida acusação contra o arguido AA:
Pelos seguintes factos:
1. No dia 15/12/2020, pelas 23:00 horas, o arguido AA dirigiu-se ao parquímetro ...-35, pertencente à ..., S.A., sito na ..., em ..., com o intuito de aí retirar e fazer suas as quantias monetárias que encontrasse no interior daquele parquímetro.
2. Para o efeito, previamente, o arguido muniu-se de vários pedaços de fio de arame e de algumas cartas de baralho, objectos que serviriam para introduzir na ranhura do parquímetro e, desse modo, retirar as moedas ali colocadas pelos utilizadores de tal parquímetro.
3. Nesse circunstancialismo, conforme referido, o arguido dirigiu-se àquele parquímetro e introduziu um pedaço de arame fino na ranhura do mesmo e retirou várias moedas que ali se encontravam.
4. Nessa ocasião, ao se aperceberem da conduta do arguido, os Agentes da PSP BB e CC abordaram o arguido, procedendo à sua detenção.
5. Ao visualizar os Agentes da PSP a virem na sua direcção, o arguido atirou para o chão vários pedaços de arame e de cartas de jogo.
6. Na sua posse foi ainda encontrado outro pedaço de arame, vários pedaços de carta de jogar, um baralho de cartas e a quantia de 43,60€ (quarenta e três euros e sessenta cêntimos).
7. A referida quantia monetária foi retirada pelo arguido dos parquímetros pertencentes à ..., em momento anterior à abordagem pelos Agentes da PSP, não tendo aquela entidade autorizado o arguido a retirar e fazer sua qualquer quantia monetária.
8. Noutra ocasião, em 12/01/2021, pelas 14:00 horas, o arguido AA dirigiu-se ao cruzamento entre a ... e a ..., em ..., local onde se encontra colocado o parquímetro ...-27, pertencente à ..., S.A., com o intuito de aí retirar e fazer suas as quantias monetárias que encontrasse no interior daquele parquímetro.
9. Para o efeito, previamente, o arguido muniu-se de vários pedaços de fio de arame, objectos que serviriam para introduzir na ranhura do parquímetro e, desse modo, retirar as moedas ali colocadas pelos utilizadores de tal parquímetro.
10. Nesse circunstancialismo, conforme referido, o arguido dirigiu-se àquele parquímetro e introduziu um pedaço de arame fino na ranhura do mesmo e retirou várias moedas que ali se encontravam, e, de seguida, guardou-as no bolso das calças.
11. De seguida, na posse das quantias monetárias que o arguido retirou daquele parquímetro, as quais guardou e fez suas, o arguido abandonou o local e dirigiu-se ao cruzamento entre a ... e a ....
12. Nessa ocasião, ao se aperceberem da conduta do arguido, os Agentes da PSP BB e DD abordaram o arguido, procedendo à sua detenção.
13. Ao visualizar os Agentes da PSP a virem na sua direcção, o arguido atirou para o chão um pedaço de arame.
14. Na sua posse foi ainda encontrada a quantia de 62,87€ (sessenta e dois euros e oitenta e sete cêntimos).
15. A referida quantia monetária foi retirada pelo arguido dos parquímetros pertencentes à ..., em momento anterior à abordagem pelos Agentes da PSP, não tendo aquela entidade autorizado o arguido a retirar e fazer sua qualquer quantia monetária.
16. Com a sua conduta, o arguido previu e quis retirar e fazer suas as quantias que se encontravam no interior dos parquímetros pertencentes à ..., apesar de saber que as mesmas não lhe pertenciam e que agia sem o consentimento e contra a vontade do seu legítimo proprietário, intentos que logrou alcançar.
17. Já no que respeita à conduta mencionada nos pontos 1 a 7, o arguido só não logrou concretizar os seus intentos, apenas por motivos alheios à sua vontade, uma vez que foi impedido de encetar fuga na posse da quantia monetária pertencente à ....
18. O arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Desta forma, cometeu o arguido AA, em autoria material e em concurso efectivo:
- Um crime de dano, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 212.º, 213.º, n.º 1, al. c) e art. 213.º, n.º 3, por referência ao art. 204.º, n.º 4 e arts. 22.º e 23.º, todos do Código Penal;
- Um crime de dano, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 212.º, 213.º, n.º 1, al. c) e art. 213.º, n.º 3, por referência ao art. 204.º, n.º 4 todos do Código Penal.
2.A acusação proferida foi notificada aos sujeitos processuais.
3.Em 27/06/2023, o Ministério Público preferiu o seguinte despacho:
Considerando que a acusação padece de lapso de escrita na parte atinente aos ilícitos imputados ao arguido, dou sem efeito a acusação de fls. 129, substituindo-se integralmente o despacho proferido em 18/04/2023.
Notifique com a acusação ora proferida.
De forma a não causar confusão na percepção do presente inquérito, rasure o despacho de fls. 129, com menção ao despacho ora proferido.
4. E elabora novo despacho integral reproduzindo os mesmos factos, mas agora, imputando ao arguido a prática de:
- Um crime de furto, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 203.º, n.º 1 e 2 e 204.º, n.º 1, al. e) e n.º 4 e arts. 22.º e 23.º, todos do Código Penal;
- Um crime de furto, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 203.º, n.º 1 e 2 e 204.º, n.º 1, al. e) e n.º 4 do Código Penal.
5.O novo despacho de acusação foi notificado aos sujeitos processuais.
6.Remetidos aos autos à distribuição, para julgamento, em 19.01.2024 o Mmº juiz profere o despacho recorrido (supra transcrito).
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Apreciando
A fase do inquérito encerra-se, designadamente com a prolação da acusação, conforme resulta do art. 276º, nº 1, do C.P.P, e com tal encerramento cessa a direção do Ministério Público nesta fase processual (art. 263º, nº 1, do C.P.P).
Contudo, dispõe o artigo 380º, do Código de Processo Penal:
1 - O tribunal procede, oficiosamente ou a requerimento, à correcção da sentença quando:
a) Fora dos casos previstos no artigo anterior, não tiver sido observado ou não tiver sido integralmente observado o disposto no artigo 374.º;
b) A sentença contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
2 - Se já tiver subido recurso da sentença, a correcção é feita, quando possível, pelo tribunal competente para conhecer do recurso.
3 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos restantes actos decisórios previstos no artigo 97.º.”
Efetivamente, o art. 380º do Código de Processo Penal prevê um processo de correção de sentença extensível aos atos decisórios do art. 97º, neles se incluindo decisões do Ministério Público, quando o acto decisório contiver lapso, obscuridade ou ambiguidade, cuja modificação não importe modificação essencial.
Este mecanismo de correção, devia ter sido usado pelo magistrado do Ministério Público quando detectou o “lapso de escrita na parte atinente aos ilícitos imputados na acusação” por si proferida em 18/04/2023.
Conforme foi salientado pelo Exmº Procurador-Geral Adjunto no parecer proferido nesta instância (transcrição) (1) ou se dava um novo despacho todo inteiro, reproduzindo tudo o que já lá estava e integrando agora corretamente, os factos no direito, OU (2) corrigia-se apenas, a parte que havia a corrigir (integração dos factos no direito devido ao lapso de escrita). Em ambos os casos o fundamento legal encontra-se no disposto nos artigos 380º, nº 1 al. b) e 97º do CPP.
Ao invés, o magistrado do Ministério Público optou por elaborar uma nova acusação em 27/06/2023 (dando sem efeito a acusação proferida em 18/04/2023), apenas corrigindo o erro da qualificação jurídica dos factos.
A correção de sentença e de despachos judiciais e do M.P. é sempre possível em nome dos princípios da economia e celeridade processual, desde que não estejamos perante novas decisões, designadamente sobre o mérito, mas perante simples aperfeiçoamento do decidido num quadro meramente retificativo, não podendo integrar nulidades insanáveis e desde que não importem alterações substanciais, pois proferida decisão está esgotado o poder jurisdicional.
Ora, analisado o conteúdo da primeira acusação e o da segunda, pode constar-se que a única alteração da primeira para a segunda é a imputação de dois crimes de furto.
Pode constatar-se que os factos são exatamente os mesmos, não foram “bulidos”, nele estando presentes todos os elementos constitutivos do tipo legal de crime em questão (crimes de furto). De igual forma não se mexeu na competência do tribunal.
Resulta evidente analisado o pensamento exarado no texto da primeira acusação que as premissas não tiveram a conclusão adequada, a imputação de dois crimes de dano e que tal deveu-se a manifesto lapso do M.P. que dando conta solicitou a sua correção. E tal correção não implica modificação essencial da primeira acusação, na medida em que estão retratados todos os factos que poderão implicar eventual condenação do arguido pela prática de dois crimes de furto.
Ao contrário do acórdão da Relação de Lisboa de 11.05.2016, citado no despacho da 1ª instância, não ocorre nos presentes autos situação similar na medida em que ali a segunda acusação implicou invocação de novos factos que acresceram aos anteriores e ainda a modificação da competência do tribunal, o que não é manifestamente o caso dos autos.
Um dos princípios que enforma o nosso direito processual, civil e penal, é o da preclusão. Significa ele, entre o mais, que uma vez praticado determinado ato ele adquire foros de definitivo naquele processado (preclusão intraprocessual ou efeito intraprocessual da preclusão). Este princípio tem um campo de aplicação muito amplo, quer em processo civil quer em processo penal e aplica-se, nomeadamente, a todos os atos petitórios e contestatórios das partes (por exemplo, apresentação de queixa, dedução de acusação particular, dedução de instrução, pedido de indemnização civil, contestação crime e contestação cível). Mas aplica-se também aos atos do Magistrados. Tal resulta, diretamente, do disposto no artº 613º/CPC, aplicável em processo penal, por força do qual proferida sentença fica esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria em causa (efeito preclusivo do caso julgado, intra e extra processual). Tal norma é aplicável aos simples despachos decisórios intercalares - o que fundamenta a figura do caso julgado formal e material (artºs 619º a 621º, do CPC, aplicável ao CPP, ex vi artº 4º). Proferida a sentença ou proferido um despacho que decida sobre determinada questão, fica precludida a possibilidade do Tribunal voltar a pronunciar-se sobre essa mesma questão, sendo que a decisão proferida só permite a correção de lapsos materiais (artº 614º/CPC) e, no âmbito CPP, daqueles a que se refere o artº 380º/CPP.
Ora, o disposto no artº 380º/ 1 e 2 aplica-se, como determina o nº 3, aos atos decisórios previstos no artº 97º/CPP, o que quer dizer que se aplica aos atos decisórios do Juiz e do Ministério Público (artº 97º/3, do CPP). Tal significa que, no que ao caso releva, uma vez proferida a acusação (ou qualquer despacho do MP no âmbito do inquérito), seja qual for o tratamento que lhe tenha sido dado (isto é, tenham eles sido notificados, ou não) está precludida a possibilidade de o MP renovar a prática do ato. O ato praticado tornou-se definitivo e parte integrante do processado, salvo ocorrência de situação que justifique aplicação do art. 380º do CPP, não sendo, pois, um princípio absoluto.
Assim e em suma, face à opção inicial do acusador, é evidente que a única qualificação jurídica admissível passa pela imputação de dois crimes de furto (um crime de furto, na forma tentada, p. e p. pelos arts. 203°, n.° 1 e 2 e 204°, n.° 1, al. e) e n.° 4 e arts. 22° e 23°, todos do Código Penal e de um crime de furto, na forma consumada, p. e p. pelos arts. 203°, n.° 1 e 2 e 204°, n.° 1, al. e) e n.° 4 do Código Penal), já que os factos constantes da acusação permitem legitimamente a imputação dos dois ilícitos.
Em face do exposto, o juiz a quo devia ter admitido a correção da acusação nos termos efectuada pelo M.P.
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Decisão
Face ao exposto, acordam os Juízes desta 9ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente procedente o recurso interposto pelo M.P, revogando-se o despacho da 1ª instância, devendo aceitar-se a retificação efetuada pelo M.P. subjacente à “segunda” acusação, a qual conformará os ulteriores termos do processo.
Sem tributação.
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Lisboa, 24/10/2024
(Texto elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários)
Manuela Marques Trocado
Jorge Rosas de Castro
Ana Marisa Arnedo