REVISTA EXCECIONAL
Sumário


I. Não há necessidade de uma intervenção clarificadora deste Tribunal quanto à questão da junção parcial do procedimento disciplinar e suas consequências à luz do disposto no artigo 98.º-J, n.º 3, alíneas a) e b) do Código do Processo de Trabalho.
II. Não há contradição entre o acórdão recorrido, segundo o qual a junção do procedimento disciplinar, dentro do prazo legal, é obrigatória, sendo a sua falta sancionada com a declaração de ilicitude do despedimento, e o acórdão-fundamento, que julgou que, não juntando o empregador algumas peças integrantes do procedimento disciplinar, não deve aplicar-se o regime sancionatório do artigo 98.º-J, n.º 3, alíneas a) e b), do Código do Processo de Trabalho, quando a junção das peças em falta redundar num ato perfeitamente inútil e a junção parcial do procedimento disciplinar satisfizer os motivos subjacentes à exigência legal da sua junção à ação.

Texto Integral


Processo n.º 12517/23.4T8LSB.L1.S2

Acordam na Formação prevista no artigo 672.º n.º 3 do Código do Processo Civil junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

AA intentou ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, prevista nos artigos 98.º-B e ss. do Código de Processo de Trabalho contra JMR – Prestação de Serviços Para a Distribuição, S.A..

Não tendo sido possível a conciliação, a Ré apresentou articulado a fundamentar o despedimento. Juntou parte do procedimento disciplinar.

O Autor contestou, invocando, além do mais, que a entidade empregadora não juntou a totalidade do procedimento disciplinar.

Deduziu pedido reconvencional, concluindo nos seguintes termos:

“Termos em que se requer a V. Exa., que admita a presente contestação e em consequência:

a) Declare a não junção de todo o procedimento disciplinar, declare a ilicitude do despedimento do Autor nos termos do artigo 98.º-J, n.º 3, do Código de Processo do Trabalho;

b) Declare inválido o procedimento disciplinar porquanto a decisão de despedimento não foi elaborada nos termos do n.º 4 do artigo 357.º do Código do Trabalho, ou seja, não foram ponderadas as circunstâncias do caso, nomeadamente as referidas no n.º 3 do artigo 351.º do Código do Trabalho e, em consequência, a ilicitude do despedimento;

c) Declare a ilicitude do despedimento porquanto o Réu não realizou todas as diligências probatórias requeridas na resposta à nota de culpa, nem alegou fundamentadamente por escrito se as recusava ou o motivo de as recusar;

d) Declare a caducidade do direito de aplicação da sanção disciplinar;

e) Declare a caducidade/prescrição do direito do Réu em instaurar o procedimento disciplinar;

f) Declare a inexistência de justa causa de despedimento do Autor;

g) A reintegrar o Autor no mesmo estabelecimento, no mesmo departamento e posto de trabalho com a categoria profissional de ... Controling, sem prejuízo da sua categoria e antiguidade;

H) A pagar ao Autor a quantia total de 618,00€ a título de subsídios de alimentação devidos entre o dia 13/12/2022 e o dia 10/05/2023;

I) A pagar ao Autor o montante global de 4.400,00€, por conta de perdas de retribuição em espécie entre 13/12/2022 a 10/05/2023, por retirada injustificada dos equipamentos confiados ao Autor que compunham a sua retribuição em espécie;

j) A pagar ao Autor uma indemnização em montante nunca inferior a 10.000€ a título de danos morais;

k) A pagar todas as retribuições intercalares, que o Autor deixou de auferir e tem direito a receber, desde o despedimento até ao trânsito em julgado da decisão do tribunal que declare a ilicitude do despedimento, incluindo o vencimento base no valor mensal, o subsídio de refeição, a retribuição de Isenção de Horário de Trabalho, o subsídio de férias, o subsídio de natal, tendo em conta os valores totais de vencimento de 1.520,00€ e de 900,00€, num total de 2.420,00€ (Dois Mil Quatrocentos e Vinte Euros);

l) Tudo acrescido de juros de mora vencidos e vincendos, desde a data de despedimento e até efetivo e integral pagamento”.

A Ré respondeu ao articulado do Autor, sustentando a licitude do despedimento e propugnando pela improcedência das exceções arguidas e pela sua absolvição do pedido reconvencional.

Em 2.11.2023, foi proferido saneador sentença, com o seguinte dispositivo:

Nos termos e fundamentos expostos e atentas as disposições legais citadas, decido:

1 – Julgar ilícito o despedimento do autor, promovido pela ré e, em consequência condeno a ré JMR – Prestação de Serviços Para a Distribuição, S.A. a:

a) Reintegrar o autor sem prejuízo da sua antiguidade e categoria e, sem prejuízo deste vir a optar pela indemnização no prazo de cinco dias;

b) Pagar ao autor as retribuições vencidas e vincendas desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado, descontadas as quantias por aquele auferidas a título de subsídio de desemprego a entregar pela ré ao Instituto da Segurança Social e/ou que tenha auferido em consequência da cessação do contrato.

2 – Absolver a ré JMR – Prestação de Serviços Para a Distribuição, S.A. do demais peticionado”.

A Ré interpôs recurso de apelação.

Por acórdão de 20.03.2024, os Juízes do Tribunal da Relação acordaram em negar provimento ao recurso e manter a sentença recorrida.

A Ré veio interpor recurso de revista.

O Autor apresentou contra-alegações.

Estando reunidos os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso de revista o Exmo. Relator enviou o recurso a esta Formação, única com competência para decidir da verificação, ou não, dos pressupostos específicos de admissibilidade desta revista excecional.

No seu recurso de revista a Ré identifica assim a questão que pretende seja apreciada por este Tribunal:

“[A] questão que se pretende agora discutir é: a junção inicialmente incompleta do procedimento disciplinar com a apresentação do Articulador Motivador do Despedimento, deverá relevar se a parte omitida não prejudica a defesa do trabalhador - uma vez que, como se viu, o Recorrido, não deduziu, até à data, qualquer pretensão de apreciação quanto aos documentos não juntos inicialmente - e os documentos já se encontravam em seu poder desde o procedimento disciplinar? Em consequência, aplicar o efeito cominatório previsto no art. 98.º- J, n.º 3 do CPT sem proceder a um juízo de necessidade da parte omitida é inconstitucional, desproporcional e abusivo, uma vez que o mesmo apenas se encontra legalmente previsto para a não junção total do processo disciplinar?” (n.º 11 das Alegações; negritos e sublinhados pelo Recorrente)

Invocou como fundamentos da presente revista excecional os motivos constantes das alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 672.º do Código de Processo Civil.

Ora quanto à alínea a) importa destacar que esta mesma questão não é nova e foi já decidida em Acórdão desta Formação proferido a 19-04-2023, no processo n.º 11324/21.3T8SNT.L1.S2 (Relator Conselheiro Mário Belo Morgado).

Neste Acórdão pode ler-se que “[o] acórdão recorrido julgou em linha com o Ac. de 10.07.2013 desta Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça, Proc. n.o 885/10.2TTBCL.P1.S1, segundo o qual a junção do procedimento disciplinar, dentro do prazo de 15 dias contados da notificação da empregadora, é obrigatória, sendo a sua falta sancionada com a declaração de ilicitude do despedimento, conforme a interpretação conjugada dos artigos 98.o-I, n.o 4, e 98.o-J, n.o 3, alínea a), do Código de Processo do Trabalho, cuja razão de ser reside no respeito pelas garantias de defesa do trabalhador e na intenção da lei de promover a celeridade do processo. É este o sentido da generalidade da jurisprudência existente sobre este tema (v.g. Acs. do TRC de 25.09.2020, Proc. n.o 6841/19.8T8CBR.C1, do TRP 03.06.2019, Proc. n.o 1558/18.3T8VLG-A.P1, e do TRL de 11.04.2018, Proc. n.o 2271/16.1T8FNC.L1-4)”, logo se acrescentando que “[p]or outro lado, como flui do antes exposto, esta matéria tem vindo a ser objeto de tratamento jurisprudencial uniforme, claro e coerente, pelo não se verifica qualquer necessidade de clarificação jurídica, sendo certo que o art. 672.º, n.º 1, a), pressupõe que a intervenção do STJ seja necessária para contribuir para a segurança e certeza do direito em casos futuros, sendo irrelevante neste âmbito, só por si, o eventual desacerto da decisão recorrida”.

Não se vê que desde a data do referido Acórdão a jurisprudência “uniforme” na matéria se tenha entretanto alterado de modo a tornar claramente necessária a intervenção deste Tribunal.

E relativamente à contradição invocada pelo Recorrente, ao abrigo da alínea c) do n.º 1 do artigo 672.º do CPC?

No Acórdão fundamento – o Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 20-04-2017, proferido no processo 2535/14.9T8GMR-B.G1, pode ler-se o seguinte:

“Por último, suscita ainda o trabalhador a questão de não ter sido junta cópia integral do processo disciplinar, nos termos do nº 3 do artº 98º J do C. P. Trabalho e que, em consequência, deverá ser declarado desde já ilícito o despedimento, com os efeitos previstos nas alíneas a) e c) deste artigo.

Fundamenta essa questão no seguinte:

- Na ausência, quando o processo foi consultado pela mandatária, do termo de abertura ou auto de ocorrência e do termo de juntada; - a não junção integral da resposta à nota de culpa que apresentou; e - a divergência entre o doc. 1, que foi junto pela R. na motivação e o notificado ao trabalhador.

Relativamente à primeira questão nunca poderia fundamentar a invocada falta, uma vez que, a verificar-se o alegado, nunca consubstanciaria uma falta, mas sim um adicionamento.

Por seu turno, relativamente à última ocorrência suscitada não vislumbramos (sendo certo que o trabalhador também não a identificou nem a concretizou, como lhe competia fazer) a existência de qualquer divergência.

No que concerne à não junção integral da resposta, assiste razão ao trabalhador. Na verdade, da análise da referida resposta verifica-se que a mesma não está completa - falta o verso das respetivas folhas (esta omissão terá certamente sido provocada por apenas terem sido tiradas cópias da frente).
Como decorre do disposto no n.º 3 do artigo 98.º J, do C.P.Trabalho a entidade empregadora além de apresentar a motivação do despedimento tem de juntar o processo disciplinar. Se não o fizer a consequência para essa omissão é a declaração da ilicitude do despedimento.
Sucede, porém, que a lei apenas prevê a citada cominação legal para a não junção (total) do processo disciplinar, nada prevendo para a junção parcial das peças que constituem esse processo disciplinar, como ocorre no caso concreto, em que o processo disciplinar junto não inclui, como já referimos, a resposta à nota de culpa (neste sentido Acórdão da Relação do Porto de 22-04-2013, in www.dgsi.pt). Acresce que o alegado elemento em falta não prejudica a defesa do trabalhador, uma vez que a resposta à nota de culpa, foi por si elaborada, conhecendo, por isso, o seu teor integral.

Concluímos, pois, que a consequência da citada omissão não é a declaração de ilicitude do despedimento prevista no referido artigo.
Sendo, no entanto, junção integral do processo disciplinar essencial para o cabal esclarecimento dos factos e boa decisão da causa, ao abrigo do disposto no artº 411º do C.P.Civil, ex vi” al. a) do nº 2 do artº 1 do C.P.Trabalho, determino que a parte em falta da resposta junta a fls. 260 a 264 fique nos autos”. (sublinhado nosso)

Como se vê, a única peça que faltava no processo disciplinar no caso decidido pelo Acórdão fundamneto era a resposta à nota de culpa pelo próprio trabalhador que, aliás, faltava parcialmente (apenas tinha sido copiado o verso e já não também o reverso das folhas). Ora, e como o Tribunal bem decidiu, tal circunstância em nada a prejudicava a defesa do trabalhador que conhecia evidentemente o teor completo da sua própria resposta à nota de culpa, já que era autor da mesma resposta. E importa acrescentar não teria qualquer dificuldade, em princípio, em transmitir ao seu mandatário judicial no eventual processo de impugnação da ilicitude e irregularidade do despedimento o mesmo teor.

Na situação presente o trabalhador invocou que não foram juntos ao processo disciplinar vários ficheiros e documentos – “não foram remetidos ao tribunal, os ficheiros de Geral e de Resumo, Não sortido das Lojas 407, 419, 425, 808, 812 e 824”. E sublinhe-se que o próprio empregador admitiu que não juntara vários documentos na resposta à contestação, tendo, então afirmado que que “durante a instrução do PD, foram disponibilizados, por email, designadamente em 25.01.2023 e 03.04.2023, (cfr. fls. 82 e 155 do PD) através do mandatário do Autor, outros documentos que se anexaram ao PD e que, por mero lapso, não se encontram juntos ao presente Articulado Motivador de Despedimento (AMD), conforme docs. n.º 1 e 2 que se juntam em formato CD, atento o formato e dimensão dos ficheiros”

No Acórdão recorrido, pode ler-se a este respeito e designadamente o seguinte:

“É certo que a apelante sustenta que se deve ponderar se a relevância da parte do procedimento disciplinar em falta para dar corpo à cominação legal e ainda que nenhum relevo poderia ter isso no caso sub iudicio uma vez que os documentos em crise já eram do conhecimento do apelado, mas está bem de ver que nenhuma razão lhe assiste; é que seguramente não lhe ocorreria defender semelhante tese caso a omissão fosse, verbi gratiæ, a nota de culpa, não obstante supostamente também dela ter tido o trabalhador prévio conhecimento.

Para melhor se compreender a ratio legis daquela norma importa ter em conta que aquilo que se pretende assegurar é que o trabalhador tenha efectivamente conhecimento da integralidade do procedimento disciplinar no momento decisivo e irremediável que é a acção judicial e isso só pode ser conseguido se todo o processo tiver sido para ele acarretado; o que só será alcançável, naturalmente, se o empregador juntar todo o processo disciplinar, pois que é ele o titular do mesmo. E isso para a resposta óbvia: para que se o trabalhador poder certificar-se de que foram integralmente respeitados os seus direitos de defesa (apurar se nele não foram cometidas irregularidades ou nulidades, supríveis ou não ou respeitados os prazos legais de procedimento, etc.). É que para despedir o trabalhador o empregador não precisa de se deixar convencer no procedimento disciplinar, dado que é nele parte e não árbitro ou juiz e quando formulou a nota de culpa necessariamente já estará convencido de que o trabalhador é culpado de infracção disciplinar que o justifica, como de resto o diz, apertis verbis, o n.º 1 do art.º 353.º do Código do Trabalho; o procedimento disciplinar visa, isso sim, num primeiro momento convencer o trabalhador das razões por que o empregador o despedirá e, eventual e posteriormente, se isso não ocorrer, a final convencer o Tribunal de que tal decisão se conformou com a lei.

Tudo isto ganha escala se tivermos presente, por um lado que não é obrigatório o patrocínio jurídico do trabalhador no procedimento disciplinar, mas já é obrigatório o patrocínio judiciário na acção judicial; por outro, que é na fase judicial que em regra pela primeira vez o trabalhador encontra o conforto do aconselhamento jurídico especializado e, portanto, acrescem as razões para que lhe sejam então facultadas todas as ferramentas para se poder defender. E nenhuma melhor existirá do que poder aceder ao procedimento disciplinar na sua completude e não apenas à matéria de que tenha sido acusado e depois considerado provado”.

Para decidir se há contradição entre o Acórdão recorrido e o Acórdão fundamento importa, desde logo, atender à diversidade das situações concretas. O Acórdão fundamento pronunciou-se sobre uma situação em que por lapso apenas fora copiada parte da resposta da nota de culpa – pode afirmar-se liminarmente que tal omissão em nada prejudicava a defesa do trabalhador. Mas o mesmo não se pode afirmar, de todo, perante a omissão de documentos que deveriam ter sido juntos ao procedimento. A sua relevância só poderia ser avaliada depois da avaliação do conteúdo dos mesmos e como o Acórdão recorrido destaca é de grande importância para o aconselhamento e defesa jurídica do trabalhador que o seu advogado disponha de todo o procedimento disciplinar e não apenas da parte que o empregador houve por bem facultar. Além disso importará apurar em que medida é que tais documentos foram tidos em conta no próprio procedimento disciplinar. Tal solução não é desproporcional nem violadora de qualquer norma constitucional – bem ao invés, é a que melhor respeita a proibição constitucional de despedimentos sem justa causa e a que garante transparência ao procedimento disciplinar.

Decisão: Não se admite a revista excecional.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 16 de outubro de 2024

Júlio Gomes (Relator)

José Eduardo Sapateiro

Mário Belo Morgado