JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
INFRAÇÃO DISCIPLINAR
DEVER DE LEALDADE
DEVER DE NÃO CONCORRÊNCIA
DEVERES LABORAIS
RETRIBUIÇÃO
ISENÇÃO DE HORÁRIO DE TRABALHO
DIREITO A FÉRIAS
CRÉDITOS LABORAIS
FORMAÇÃO DO NEGÓCIO
Sumário


I. O dever de lealdade inclui um dever de honestidade, que implica uma obrigação de abstenção por parte do trabalhador de qualquer comportamento suscetível de colocar em crise a relação de confiança que deve pautar as suas relações com o empregador, enquanto corolário da boa-fé contratual.
II. Dada a natureza fortemente fiduciária do contrato de trabalho, em regra assume especial significado a violação do dever laboral de lealdade, em função direta do grau de responsabilidade e posição hierárquica que o trabalhador detenha na empresa.
III. Enquanto exercia funções como responsável de Recursos Humanos e Operações da R., a trabalhadora era a única sócia de uma sociedade que passou a prestar a um ex-cliente do empregador os mesmos serviços que até ao dia anterior este lhe prestara (recorrendo, para tanto, a seis consultores dispensados pelo empregador nesse mesmo dia), atos que infringem a proibição de não concorrência com o empregador e, assim, gravemente, o dever de lealdade a que se encontrava adstrita.
IV. Cabe à entidade empregadora o ónus de alegar e provar que cumpriu (e em que termos) o seu dever de proporcionar o gozo das férias ao trabalhador, bem como o pagamento das importâncias neste âmbito devidas.
V. Não se tendo provado que certas quantias pagas sob a rubrica “reembolso de kms” e “subsídio de transporte” correspondessem realmente ao reembolso de despesas, mas apenas que foram liquidadas e esse título e com essa designação, é de presumir que revestem natureza retributiva, nos termos do art. 258º, nº 3, do CT.
VI. Na ausência de uma declaração expressa de renúncia à retribuição pela isenção de horário, teria a mesma que resultar de factos que com toda a probabilidade a revelassem, o que não se verifica no caso dos autos.
VII. Em regra, as comunicações entres as partes anteriores à formalização, por escrito, do contrato integram a sua fase preliminar/negociatória, constituída pelos atos tendentes à celebração do contrato.

Texto Integral


Revista n.º 3523/23.0T8SNT.L1.S1

MBM/AP/JG

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.

1. AA propôs a presente ação especial de impugnação judicial da regularidade e licitude de despedimento contra a Openspring IT Ibéria, SL – Sucursal em Portugal.

2. Na 1.ª instância, a ação foi julgada parcialmente procedente (para além do mais, o despedimento da A. foi declarado ilícito).

3. Interposto recurso de apelação por ambas as partes, o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), concedendo-lhes parcial provimento, decidiu, na parte que ora releva:

a) Declarar lícito o despedimento da Autora;

b) Condenar a ré a pagar à autora a quantia de 415,38 euros, a título de retribuição por horas de formação não proporcionada.

c) Condenar a ré a pagar à autora a quantia de 32 100 euros, emergente de créditos salariais suplementares previstos no contrato de trabalho.

d) Absolver a ré da restante parte dos pedidos.

4. Novamente inconformadas, A. e R. interpuseram recurso de revista.

5. As duas partes contra-alegaram.

6. Neste Supremo Tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pronunciou-se no sentido da procedência do recurso da autora, com consequente repristinação nessa parte da sentença de 1.ª instância, e pela improcedência da revista da ré.

7. Apenas respondeu a Ré, em linha com as posições antes sustentadas nos autos.

8. Em face das conclusões das alegações dos recorrentes, e inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), as questões a decidir1 são as seguintes:

Revista da autora: (i) se o despedimento é ilícito; (ii) se é devido o valor de 5 dias de férias não gozadas; (iii) se o subsídio de transporte/reembolso por quilómetros integra a retribuição; (iv) se é devida retribuição por isenção de horário de trabalho.

Revista da ré: se é devida a quantia atribuída à A. pelo TRL a título de prémios de recrutamento.

Decidindo.


II.

9. A matéria de facto fixada pelo acórdão recorrido é a seguinte:2

1. A R. tem por objeto a comercialização e distribuição de elementos de informática ou relacionados com processos de informação e formação, serviço ou assessoria no âmbito das tecnologias de comunicação e informação - […].

(…)

3. A A. é casada com o senhor BB.

4. A R., então como A..., SL, (…) declarou em 14.11.2014 (…): «nomeia, como representante permanente da sucursal A..., SL, Sucursal em Portugal, o senhor BB (…), a quem é conferido o poder tão amplo quanto legalmente necessário para (…) dirigir a organização comercial da sucursal e as suas atividades (…)”.

5. Por escrito datado de 01.04.2016, designado por «contrato de trabalho por tempo indeterminado» (…) as Partes declararam (…): a) a R. admite a A. «ao seu serviço, com a categoria profissional responsável de Recursos Humanos e Operações para, sob as suas ordens, direção e fiscalização, desempenhar as funções inerentes à mesma (…); c) (…) é reconhecida» à A. «uma antiguidade reportada a 01.10.2012 (…); d) «a Trabalhadora goza de isenção de horário»; e) a R. pagará à A. «a retribuição mensal ilíquida de 557 €»; f) «a título de subsídio de alimentação», a A. receberá «o valor diário de 4,12 €»; g) «por cada trabalhador recrutado» a A. «receberá o prémio de 300 €»; h) «no âmbito das deslocações efetuadas ao serviço» da R., a A.: «a) utilizará viatura própria; b) ser-lhe-ão pagos 0,36 € por km; c) com um mínimo de 970 km, que correspondem a uma previsão média de deslocações mensais; d) devem os km percorridos ser devidamente justificados, no respetivo mapa de km»; i) a A., «no exercício da sua atividade, terá acesso a dados e informações confidenciais relacionados com as atividades desenvolvidas pela» R., «pelo que, através do presente contrato, obriga-se a manter sigilo e a não divulgar a terceiros, documentos, dados comerciais ou técnicos, bem como detalhes sobre a organização, negócios, projetos, pareceres, relatórios, estudos, listagens, produtos, contratos, registos informáticos, dados sobre colaboradores, clientes ou qualquer informação ou segredo relacionado com a» R., «que tenham sido obtidos ou por ele elaborados no exercício da sua atividade profissional»; j) «são consideradas sigilosas todas as informações que, não sendo do conhecimento público, tenham sido fornecidas, transmitidas e/ou divulgadas» à A. no âmbito da sua atividade profissional» - […].

6. Enquanto ... de Recursos Humanos e de Operações, incumbia à A., entre outras, as seguintes tarefas: i) acompanhamento dos serviços prestados pelos consultores aos clientes; ii) apoio ao Diretor Comercial na definição do perfil profissional para as oportunidades de negócio detetadas pelo Departamento Comercial iii) condução do processo de recrutamento e seleção de candidatos; (…).

(…)

8. A A. recebeu ainda da R, sob as seguintes rúbricas, conforme recibos juntos e que aqui se dão por reproduzidos:

- Ano de 2017:

- Janeiro: «reembolso de km» - 147,96 €;

- Março: «reembolso de km» - 351,72 €;

- Abril: «reembolso de km» - 351,72 € + 450,72 €;

- Maio: «reembolso de km» - 351,72 €;

- Junho: «reembolso de km» - 351,72 €;

- Julho: «reembolso de km» - 502,92 €;

- Agosto: «reembolso de km» - 351,72 €;

- Outubro: «reembolso de km» - 351,72 €;

- Novembro: «reembolso de km» - 351,72 €;

- Dezembro: «reembolso de km» - 351,72 €;

- Ano de 2018:

- Janeiro: «reembolso de km» - 351,72 €;

- Fevereiro: «reembolso de km» - 651,96 €;

- Março: «reembolso de km» - 951,84 €;

- Maio: «reembolso de km» - 651,96 €;

- Agosto: «reembolso de km» - 801,36 €;

- Setembro: «reembolso de km» - 651,96 €;

- Outubro: «reembolso de km» - 651,96 €;

- Novembro: «reembolso de km» - 651,96 €;

- Dezembro: «reembolso de km» - 952,20 €;

- Ano de 2019:

- Janeiro: «reembolso de km» - 748,65 €;

- Fevereiro: «reembolso de km» - 748,65 €;

- Março: «reembolso de km» - 748,65 €;

- Abril: «reembolso de km» - 748,65 €;

- Julho: «reembolso de km» - 748,65 €;

- Agosto: «reembolso de km» - 748,65 €;

- Ano de 2020:

- Janeiro: «reembolso de km» - 748,65 €;

- Março: «reembolso de km» - 748,65 €;

- Abril: «reembolso de km» - 748,65 €;

- Maio: «reembolso de km» - 1.825,20 €;

- Junho: «reembolso de km» - 1.826,64 €;

- Junho: «subsídio de férias» - 900 €;

- Julho: «reembolso de km» - 752,76 €;

- Agosto: «reembolso de km» - 777,96 €;

- Setembro: «reembolso de km» - 754,20 €;

- Outubro: «reembolso de km» - 754,20 €;

- Novembro: «reembolso de km» - 754,20 €;

- Dezembro: «reembolso de km» - 754,20 €;

- Ano de 2021:

- Janeiro: «reembolso de km» - 754,20 €;

- Março: «reembolso de km» - 754,20 €;

- Abril: «reembolso de km» - 754,20 €;

- Maio: «reembolso de km» - 754,20 €;

- Junho: «reembolso de km» - 754,20 €;

- Junho: «subsídio de férias» - 900 €;

- Julho: «reembolso de km» - 754,20 €;

- Agosto: «reembolso de km» - 754,20 €;

- Setembro: «reembolso de km» - 754,20 €;

- Outubro: «reembolso de km» - 754,20 €;

- Novembro: «reembolso de km» - 754,20 €;

- Dezembro: «reembolso de km» - 754,20 €;

- Ano de 2022

- Janeiro: «reembolso de km» - 671,40 €; «subsídio de transporte» - 80 €;

- Fevereiro: «reembolso de km» - 671,40 €; «subsídio de transporte» - 80 €;

- Março: «reembolso de km» - 671,40 €; «subsídio de transporte» - 80 €;

- Abril: «reembolso de km» - 671,40 €; «subsídio de transporte» - 80 €;

- Maio: «reembolso de km» - 671,40 €; «subsídio de transporte» - 80 €;

- Junho: «reembolso de km» - 671,40 €; «subsídio de transporte» - 80 €;

- Junho: «subsídio de férias» - 900 €;

- Julho: «reembolso de km» - 671,40 €; «subsídio de transporte» - 80 €;

- Agosto: «reembolso de km» - 671,40 €; «subsídio de transporte» - 80 €;

- Setembro: «reembolso de km» - 671,40 €; «subsídio de transporte» - 80 €;

- Outubro: «reembolso de km» - 671,40 €; «subsídio de transporte» - 80 €;

- Novembro: «subsídio de transporte» - 80 €;

- Dezembro: «subsídio de transporte» - 80 €.

- Ano de 2023:

- Janeiro: ordenado base (900 €); subsídio de transporte (80 €).

9. Antes da formalização do contrato de trabalho, as condições remuneratórias da A. foram negociadas e constam de um e-mail enviado a esta, datado de 17.03.2016, pelo senhor BB com conhecimento ao senhor CC, sob o assunto «formalización de contracto de trabajo – AA», dizendo: «Hola AA, como hablamos vamos formalizar lo contracto de trabajo a partir de uno de Abril. Las condiciones son las siguientes: nómina mensual - 505 €; dietas – 4,12 €/día de trabajo. Por cada incorporación nueva (desde que lo trabajador fique en la compañía pelo menos 4 meses) – premio de 300 €. En copia esta CC (Responsable de RH A... España, Portugal y UK) de que pasas dependiendo jerárquicamente».

10. A R. nunca pagou à A. qualquer quantia a título de isenção de horário.

11. A A. procedeu aos seguintes recrutamentos:

(…)

12. A A. em 02.11.2022 reclamou da R. o pagamento pelos recrutamentos que fez, pela quantia global de 53.700 €.

13. Em 16.06.2022, o senhor BB declarou à R. que «conforme solicitado telefonicamente por CC, pelo presente formalizo a minha comunicação de rescisão contratual do meu contrato iniciado a 09.01.2012. Informo que o meu último dia de funções será 31.01.2023, cumprindo um pré-aviso de 180 dias».

14. Em setembro de 2022, o senhor DD, que se ocupava da gestão operacional de alguns clientes da R., apresentou-lhe formalmente a sua decisão de rescindir o seu contrato de trabalho.

15. Por escrito datado de 01.09.2022, epigrafado «contrato de prestação de serviços» e subscrito pela R. e a I..., Lda. (adiante designada apenas pelo nome comercial “D...”), (…) estas declararam: a) «os serviços referidos no nº 1 anterior comportam, designadamente: gestão operacional dos recursos afetos à operação da D...; acompanhamento constante dos recursos afetos à D...»; b) «Para efeitos de execução do contrato», a R. «disponibilizará os meios humanos em número e que apresentem o perfil técnico, com as qualificações e competências necessárias e adequadas, de modo a que os serviços a prestar sejam realizados com padrões de qualidade excelentes»; c) «Os serviços serão prestados…em ..., nas instalações da D...»; d) «O contrato terá a duração de 2 meses, com início a 07.09.2022 e termo em 07.11.2022, não se renovando automaticamente, salvo acordo escrito entre as Partes». e) o preço a pagar à R. pelos serviços prestados seria baseado num valor homem/hora (10,26 €, se nas instalações da Openspring; 9,93 €, se no cliente) - […].

16. O contrato foi angariado e negociado pelos senhores BB e DD.

17. O senhor DD foi nomeado ... Operacional para este Cliente.

18. A parceria com o Cliente começou com o recrutamento, pela R., de dois consultores e cresceu até terem sido recrutados oito colaboradores para prestarem as suas funções junto do Cliente - […].

19. A 10.10.2022, em almoço de trabalho, a R. e o Cliente encetaram contactos com vista ao prolongamento da relação, mas pretendendo ambos a modificação dos termos iniciais do negócio - […].

20. O Cliente propôs então que a sua renovação contemplasse a alteração do modelo de pagamento para que o preço fosse baseado apenas em inputs/tarefas, embora estivesse aberto a outras propostas da R. - […].

21. Abordou-se, também, a proposta do Cliente, a possibilidade de o local e os meios técnicos (equipamentos informáticos) necessários para a prestação dos serviços passarem a ser assegurados pela R. - […].

22. A R., na pessoa do senhor EE, comunicou no dia 17.10.2022 ao Cliente, na pessoa do senhor FF, respetivo ..., que não pretendia renovar tal contrato nas condições que estavam em vigor até 07.11.2022, por o mesmo não ser rentável - […].

23. Sobre o Cliente, o senhor EE enviou um e-mail no dia 18.10.2022 aos senhores BB, DD e à A., informando que: «Aunque se lo he adelantado a DD por teléfono, hemos decidido no renovar el contracto con la empresa. (…) He quedado con él en vernos prontos para comentarlo y ayudarnos mutuamente. Me ha preguntado si puede internalizar los consultores que tenemos ahora trabajando y le he dicho que por supuesto. AA (…) necesito saber cómo podemos facilitar a D... el traslado delos empleados cuando venza el contrato. (…)».

24. Por e-mail enviado ao senhor FF no dia 19.10.2022, pelas 15h46, o senhor EE comunicou-lhe: «Podrías reunirte con nosotros el miércoles o jueves de la semana que viene hacia las 10 horas? Iré acompañado por el nuevo responsable de la delegación portuguesa del grupo Openspring. Como continuación a nuestra conversación de lunes pasado, te indico lo que consideramos que es necesario para el nuevo contrato de prestación de servicios: tipo de contrato que nos asegure rentabilidad para que garantizar la viabilidad del proyecto; se trata de evitar riesgos que se escapan de nuestro control y podrían poner en peligro la viabilidad del proyecto; detallar el plazo de contratación de personal para daros el servicio con la máxima calidad» […], que complementou pelas 15h57 dizendo: «por ampliar más los slots, podríamos vernos durante toda la mañana de miércoles o jueves. También podríamos el miércoles por la tarde a la hora que puedas. Siento no poder continuar como te dije con el contrato en la situación actual y dejarlo el día 7.11».

25. A 20.10.2022, o senhor FF respondeu-lhe também por e-mail: «We are launching several projects simultaneously, and I was not at the office yesterday. This week I ‘am available today from 10 to 10.30, tomorrow from 10.30 to 12, and from 15 to 16.30. Can we meet in one oh the slots? For me, the most relevant topic to discuss is what will be the plan to transfer all operators we have to D.... This is in an option we have on the proposal you made, so we need to ensure a smooth transition, son nothing stops on the 7th. I also confirm that we don’t wish to extend the contract with Openspring, which was never our intention. For now, I think you guys should focus on establishing a credible leadership and management structure in Portugal before proceeding to new projects. (…) Please let me know if we can meet this week, that would be very positive no know the new people on your team» […].

26. Tal reunião nunca se veio a concretizar […].

27. A 20.10.2022 os senhores BB e DD foram colocados de férias pela R. até ao termo dos seus contratos e devolveram os instrumentos de trabalho e chaves.

28. A 20.10.2022 também a A. foi colocada de férias por acordo com a R., por 30 dias.

29. Nesse dia, a A. entregou à R. as chaves do escritório.

30. Ainda nesse dia, a A. foi confrontada com o cartão de acesso às instalações do seu local de trabalho cancelado.

31. No dia 21.10.2022 o Diretor Comercial entretanto nomeado pela R., o senhor GG, contactou todos os trabalhadores/consultores contratados e a prestar trabalho no Cliente, aos quais informou que o contrato deles iria terminar em 07.11.2022.

32. O que de facto veio a concretizar-se.

33. Nesse contexto, o senhor FF acabou por contactar com o senhor BB pedindo a sua ajuda de modo a não ficar [abruptamente3] sem recursos humanos para a prossecução dos serviços deixados de prestar pela R.

34. Para o efeito, 6 dos consultores dispensados pela R. foram recrutados pela sociedade D... Unipessoal, Lda. e por via desta contratação passaram a prestar o seu trabalho junto do Cliente logo a partir de 08.11.2022, sendo os contratos com este e com os consultores assinados em nome da primeira pela senhora HH.

35. Para tanto, tais consultores facultaram à D... Unipessoal, Lda., através de e-mail dirigido à referida senhora HH, toda a informação necessária para o efeito, designadamente tendo estes preenchido e entregue as respetivas fichas, a qual também era conhecida pelo Cliente por transmitida pelo senhor DD.

36. Um deles foi o senhor II - […].

37. A D... Unipessoal, Lda. ainda hoje é uma prestadora de serviços ao Cliente, embora os referidos consultores já não integrem os seus quadros de pessoal, por, entretanto, se terem desvinculado ou transitado para outro prestador do Cliente.

(…)

39. Com data de 30.11.2022, a A. recebeu da R. comunicação, por e-mail e por meio de carta registada com aviso de recepção, que a R. deu início ao procedimento de despedimento por extinção de posto de trabalho (…), onde declara: «decidiu proceder à reestruturação da organização produtiva da sucursal em Portugal, de acordo com a qual algumas das actividades de recursos humanos e operações passam a ser realizadas pela estrutura centralizada, pertencente à casa-mãe, em Espanha, e outras – residuais – passam a ser assumidas pelo Director Comercial…em Portugal (…).».

40. No referido e-mail, a R. deu-lhe a saber: «considerando o processo agora iniciado, estamos disponíveis para te dispensar de trabalhares, não sendo os dias de dispensa considerados como férias. Assim, e se for do teu interesse, desde já confirmamos que te encontras dispensada de comparecer nas instalações da empresa e de prestar atividade a partir do próximo dia 06.12.2022, sem que tal implique perda de remuneração, até indicação da nossa parte em contrário».

(…)

43. Em resposta, por email de 04.12.2022, a A. informou a R. que «é minha intenção retomar as minhas funções, no dia 06.12.2022, junto de colaboradores e clientes, uma vez que estive ausente durante 30 dias».

44. No dia 06.12.2022, a A. apresentou-se no seu local de trabalho.

45. Nesse dia, o atual ... Comercial da R., o senhor GG, entregou-lhe uma carta, em mãos, sob assunto «suspensão preventiva», onde se dizia que «chegaram ontem ao nosso conhecimento factos susceptíveis de consubstanciar a prática de infracções disciplinares graves, e que motivaram já o levantamento de um processo de inquérito prévio contra V.ª Ex.ª. Em face dessa situação, tomámos a decisão de suspendê-la preventivamente, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 354º, nº 2, do Código do Trabalho».

(…)

47. A empresa D... Unipessoal, Lda., foi constituída em 28.02.2020 (…), tendo então a A. como sócia única e gerente - […].

48. A cessação de funções foi levada ao registo [em] 27.12.2022 e ainda nesse dia (…) sucedeu o mesmo com a designação da nova gerente, a senhora HH, indicando a data da deliberação 10.10.2022

49. A D... Unipessoal, Lda. tem por objecto: lavar Roupa - Disponibilizar Máquinas de Lavar roupa e Secar Serf Service para os clientes lavarem e secarem roupa. Alojamento - No âmbito do alojamento local disponibilizar um quarto ou habitação para alojamento de curta duração a turistas.

(…)

54. O contrato de trabalho celebrado entre as partes cessou a 06.02.2023, por decisão disciplinar.

(…)

57. Com o fecho das contas finais, a R. com o recibo de Fevereiro de 2023 pagou à A. as seguintes quantias, e sem que lhe tivesse ministrado formação profissional nos dois últimos anos do contrato:

(…)


III.

a) – Infração do dever de lealdade – justa causa de despedimento.

10. A primeira questão a enfrentar consiste em determinar se ocorre justa causa de despedimento, questão que se desdobra nas subquestões correspondentes aos três requisitos – ou, dito de outra forma, elementos constitutivos (cfr. art. 342º, nº 1, do Código Civil) – deste conceito [cfr. arts. 128º, 330.º, n.º 1, e 351.º, do Código do Trabalho (CT)].

Elementos que são os seguintes: i) uma infração disciplinar, ou seja, um comportamento ilícito e culposo do trabalhador;4 ii) a impossibilidade prática e imediata de subsistência da relação de trabalho5 (e, conexamente, a proporcionalidade do despedimento); iii) a existência de um nexo de causalidade entre o dito comportamento e esta impossibilidade.

Como se sabe, o direito do empregador ao despedimento pressupõe a verificação cumulativa dos três requisitos, os quais, em termos de precedência lógico-jurídica, se estruturam pela ordem indicada.

11. Invocando a violação do dever de lealdade, na sua dimensão de proibição de não concorrência, a ré despediu a autora alegando que esta, “através de empresa de que é a única sócia e gerente, celebrou contrato com anterior cliente (…) para prestar os mesmos serviços, mediante a utilização dos mesmos recursos que haviam sido selecionados (…) e afetos à prestação desse serviço”.

Vejamos.

12. Entre outras obrigações, o trabalhador deve “guardar lealdade ao empregador, nomeadamente não negociando por conta própria ou alheia em concorrência com ele, nem divulgando informações referentes à sua organização, métodos de produção ou negócios” [art. 128º, nº 1, f) do CT].

Como v.g. julgou o Ac. desta Secção Social (como todos os que se citarem sem menção em contrário) de 05.06.2013, P. 192/10.0TTVNF.P1S1, “o dever de lealdade tem uma dimensão ampla, que abrange, para além do cumprimento do contrato, de acordo com a boa fé, um especto pessoal e um especto organizacional, cujo conteúdo se densifica quando os trabalhadores exercem cargos de responsabilidade na gestão financeira da empresa”.

Efetivamente, “o dever de lealdade (…) tem um alcance normativo que supera os limites do sigilo e da não concorrência, impondo ao trabalhador que aja, nas relações com o empregador, com franqueza, honestidade e probidade, em consonância, aliás, com a boa fé que deve presidir à execução do contrato, nomeadamente, vedando-lhe comportamentos que determinem situações de perigo para o empregador ou para a organização da empresa, por um lado, e, por outro, impondo-lhe que tome as atitudes necessárias quando constate uma ameaça de prejuízo”.6

Vale por dizer que aqui se inclui um dever de honestidade que implica uma obrigação de abstenção por parte do trabalhador de qualquer comportamento suscetível de colocar em crise a relação de confiança que deve pautar as suas relações com o empregador, enquanto corolário da boa-fé contratual.7

Na verdade, nos termos do art. 126º, do CT, epigrafado “deveres gerais das partes”, “o empregador e o trabalhador devem proceder de boa fé no exercício dos seus direitos e no cumprimento das respetivas obrigações”, sendo ainda certo que, “na execução do contrato de trabalho, as partes devem colaborar na obtenção da maior produtividade (…)”.

Precisando a delimitação deste dever na sua tríplice dimensão (obrigacional, pessoal e organizacional), refere JJ8

“Na dimensão restrita, o dever de lealdade (…) concretiza-se, essencialmente, no dever de não concorrência e no dever de sigilo.

(…)

Em sentido amplo, (…) é o dever orientador geral da conduta do trabalhador no cumprimento do contrato.

(…)

[A] primeira dimensão (…) corresponde a uma exigência geral em matéria de cumprimento dos contratos.

(…)

O elemento da pessoalidade explica que (…) seja, até certo ponto, uma lealdade pessoal, cuja quebra grave pode constituir motivo para a cessação do contrato. É este elemento (…) que justifica, por exemplo, o relevo de condutas extralaborais (…), bem como o relevo da perda de confiança pessoal (…).

(…)

[P]ara além da lealdade (…) ao empregador, enquanto contraparte (…), releva também a sua lealdade à empresa ou organização do empregador.

Nesta (…) dimensão (…), o grau de intensidade do dever de lealdade e as consequências do seu incumprimento dependem do tipo de funções do trabalhador e da natureza do seu vínculo de trabalho, em concreto.”

13. In casu, a primeira instância que o despedimento foi ilícito, ponderando, basicamente:

“Não resultou demonstrado que a A. tenha encetado um qualquer contacto com o Cliente. Pelo contrário, foi este que, preocupado com a prossecução do seu negócio, decidiu contactar o senhor BB que, pelas funções que desempenhava na R., era a sua referência na empresa. Conforme ressuma do provado, foi este que se decidiu a ajudar o Cliente, servindo-se para o efeito da D... Unipessoal, Lda.. Este senhor, pelas suas funções na R., tendo sido quem angariou o negócio, não precisava das informações da sua esposa. Afinal, era em Portugal o «representante permanente» da R., pelo que tinha acesso privilegiado a tudo o que se passava na sucursal. Ao menos a partir de 08.11.2022 quem surge a praticar atos em nome da D... Unipessoal, Lda. é um terceiro [HH], que depois veio a figurar no registo comercial como sendo a sua gerente desde 10.10.2022 (ainda que haja pelo meio um contrato assinado pela A.9). Deste modo, não se apurando qualquer intervenção, direta ou indireta, da A. no negócio, que a R. já não queria, respeitosamente não se acompanha a conclusão da R. de prática concorrencial. Se alguém o fez, por o respetivo contrato ainda se encontrar em vigor, foi o marido da A., o senhor BB.

Podia a A. ter comunicado à R. que a D... Unipessoal, Lda. lhe iria suceder no negócio? Talvez sim. No entanto, a R. havia-lhe comunicado a 18.10.2022 o desinteresse no negócio. A 20.10, foi colocada de férias, por acordo. Porém, teve de entregar a chave do gabinete e viu o seu acesso ali barrado, o que não augurava nada de bom para a continuidade da relação laboral. E, com a sua insistência em retomar o trabalho em 06.12.2022, recebeu uma carta da R. avisando-a do início do seu processo de despedimento, então por extinção do posto de trabalho.

Neste contexto, e em conclusão, entende-se que o apurado comportamento da A. não poderia determinar a imediata ruptura do vínculo por despedimento com justa causa.”

14. Em sentido contrário, a Relação alinhou as seguintes razões:

“(…)

Extrai-se dos factos provados (…) que: a ré celebrou com um cliente um contrato (…), no âmbito do qual a ré recrutou consultores que colocou ao serviço do cliente; a autora, na qualidade de diretora de recursos humanos e operações da ré, tinha por funções conduzir o processo de seleção dos candidatos e acompanhar os serviços prestados pelos consultores aos clientes da ré; antes do termo desse contrato, a ré e o cliente em causa estabeleceram contactos nos quais ponderaram vir a renovar o contrato em moldes diferentes, acabando por decidir não renová-lo; o cliente demonstrou à ré interesse em internalizar os recursos humanos até aí disponibilizados pela ré; a autora, através da sociedade unipessoal por quotas de que era única sócia (…), a partir do dia seguinte ao do termo do contrato celebrado entre a ré e o cliente, passou a prestar ao mesmo cliente os mesmos serviços (…) que tinha prestado a ré (…), através da sociedade unipessoal por quotas de que a autora é única sócia.

(…) [A]figura-se que a autora, através da sociedade unipessoal por quotas de que era única sócia e da qual tinha sido gerente – e não apenas o seu marido, como julgou o Tribunal recorrido – participou na execução dos factos acima descritos. Desses factos resulta a violação intencional, pela autora, do dever de lealdade, nomeadamente, de não concorrência, previsto no artigo 128.º n.º 1 - f) do CT (…).

(…)

Em 10.10.2022 a autora, única sócia e gerente da sociedade unipessoal por quotas e, portanto, a única que podia nomear a gerente dessa sociedade (…), declarou nomear gerente HH, decisão que foi tomada no mesmo dia do almoço de trabalho entre a ré e o seu cliente (…).

(…)

A partir de 8.11.2022, a D... Unipessoal, Lda. passou a prestar os mesmos serviços até então prestados pela ré ao cliente com o qual a ré não renovou o contrato.

Sendo a autora a única sócia [desta] sociedade unipessoal por quotas (…) através dessa sociedade passou a prestar os mesmos serviços, até então prestados pela ré, à empresa que tinha sido cliente da sua empregadora. Ora, se é certo que não foi a própria autora quem, individualmente, passou a exercer essa atividade concorrencial, também é certo que (…) a autora violou o dever de lealdade e a proibição de concorrência através da sociedade D... Unipessoal, Lda. de que era única sócia.

Ou seja (…) a autora usou a sociedade unipessoal de que é única sócia para contornar o dever de lealdade, nomeadamente a proibição de concorrência com a sua empregadora, previsto no artigo 128.º n.º 1 – f) do CT, a que individualmente estava obrigada por força do contrato de trabalho celebrado com a ré.

(…)

Com efeito, os factos acima enunciados (…) constituem um abuso da personalidade coletiva da sociedade comercial de que é única sócia autora. Em consequência, importa levantar o véu da personalidade coletiva da sociedade unipessoal por quotas controlada pela autora, na medida em que essa sociedade, controlada pela autora, passou a ser usada pela autora para infringir deveres que individualmente a vinculavam, ou seja, essa sociedade unipessoal passou a desempenhar a mesma atividade desempenhada pela ré, para um cliente da ré, cujo contrato anteriormente em vigor com a ré não foi renovado, aproveitando-se de informação negocial transmitida à autora pela ré, no âmbito do contrato de trabalho aqui em crise. Daqui resulta que deve ser responsabilizada a autora por esse comportamento violador dos deveres para ela resultantes do contrato de trabalho.

(…)

Assim sendo, a colaboração do marido da autora existiu (cf. facto provado 33), mas dela não resulta ter sido afastada a colaboração da autora na execução dos factos, através da sociedade unipessoal de que era única sócia (…)”

15. Acompanhamos as conclusões neste âmbito alcançadas pelo Tribunal da Relação.

Com efeito – e sendo certo que o princípio da atribuição da personalidade jurídica às sociedades não pode ser encarado como um valor absoluto, nem pode ter a natureza de um manto ou véu de proteção de práticas ilícitas ou abusivas10 –, não pode deixar de considerar-se que a autora, enquanto sua única sócia, é responsável pelos atos praticados pela sociedade D... Unipessoal, Lda., empresa que em 08.11.2022 passou a prestar a um ex-cliente da R. os mesmos serviços que até então esta lhe prestara, recorrendo para tanto a seis consultores dispensados pela entidade empregadora no dia anterior (cfr. pontos 31, 32 e 34 da matéria de facto).

Estes atos infringem a proibição de não concorrência com o empregador e, assim, gravemente, o dever de lealdade a que se encontrava adstrita a trabalhadora [art. 128º, nº 1, f) do CT].

Especial relevo assume a circunstância de esta se encontrar investida em funções de gestão da empresa, enquanto responsável de Recursos Humanos e Operações.

Na verdade, dada a natureza fortemente fiduciária do contrato de trabalho, “nos cargos de direção ou de confiança, a obrigação de lealdade constitui uma parcela essencial, e não apenas acessória, da posição jurídica do trabalhador”11, como é pacífico na doutrina e na jurisprudência.

A quebra de confiança não se traduz sempre – direta, segura e automaticamente – na impossibilidade prática de subsistência da relação de trabalho.

Mas é inegável que a demonstração deste elemento fica consideravelmente facilitada nos casos em que a quebra de confiança se revela objetivamente fundada na infração do dever de lealdade, isto em função direta do grau de responsabilidade e posição hierárquica que o trabalhador tenha na empresa, ou por outras palavras, da extensão da “delegação de poderes no trabalhador” e da “atinência das funções exercidas à realização final do interesse do empregador”. 12

Daí que, segundo António Meneses Cordeiro,13 “estando em jogo a questão da confiança, a concretização da causa é mais estrita: a decisão fica menos dependente do apelo a outros fatores circundantes, uma vez que se torna, por via direta, segura a presença de uma impossibilidade de prosseguir na relação laboral considerada”.

Por outro lado, não pode subvalorizar-se que, com a sua conduta, a autora terá frustrado o eventual interesse da ré em manter a D... como sua potencial cliente no futuro, interesse que qualificadamente lhe cabia assegurar, tendo em conta a responsabilidade inerente às funções que exercia.

Tudo ponderado, tendo em conta a imagem global dos factos, incluindo todas as suas circunstância e consequências (art. 351.º, n.º 3, do CT), conclui-se – à luz de critérios de razoabilidade, exigibilidade e proporcionalidade – que com a sua conduta a autora tornou prática e imediatamente impossível a subsistência da relação laboral (arts. 330.º, n.º 1, e 351.º, n.º 1 e 2, do mesmo diploma).

Vale por dizer que, como acertadamente julgou o TRL, que se configura a justa causa de despedimento invocada pela entidade empregadora.

b) – Se é devido o valor de 5 dias de férias não gozadas.

16. Tendo a A. alegado que ficaram por gozar 63 dias de férias, a R. apenas logrou provar que lhe pagou a quantia de 2.373,72 €, correspondente a 58 dias (cfr. pontos 28 e 57 da matéria de facto).

O acórdão recorrido decidiu que “nas circunstâncias de facto apuradas, não basta provar que foi celebrado o contrato de trabalho (…), para presumir que a autora tem direito a 5 dias de férias pagas”, tendo, consequentemente, revogado a decisão da 1ª instância, na parte em que reconheceu à trabalhadora o direito ao quantitativo correspondente a 5 dias de férias não gozadas.

Não subscrevemos este entendimento, uma vez que, como julgou o Acórdão de 19.05.2021 desta Secção Social do STJ (Proc. nº 27885/17.9T8LSB.L1.S1), “o direito a férias remuneradas nasce com a celebração do contrato de trabalho e não com a sua violação, pelo que o trabalhador tem apenas de provar que é trabalhador subordinado para exigir a retribuição correspondente ao período de férias”, cabendo à entidade empregadora o ónus de alegar e provar que cumpriu (e em que termos) o seu dever de proporcionar o gozo das férias ao trabalhador, bem como o pagamento das importâncias neste âmbito devidas.

Procede, pois, esta questão.

c) – Se o subsídio de transporte/reembolso por quilómetros integra a retribuição.

17. A autora pediu a condenação da R. no pagamento da quantia de 10.519,60 €, alegando que a retribuição-base foi declarada parcialmente sob o item “km” e “subsídio de transporte”, no valor de 751,40 €, quantia que nunca foi englobada nos pagamentos dos subsídios de férias e de Natal ao longo dos 7 anos de execução do contrato.

Do ponto 8 da matéria de facto, constam 57 pagamentos denominados “reembolso de km” e 13 denominados “subsídio de transporte”, efetuados à A. pela R.

18. Na 1ª instância inseriu-se nos factos não provados: “ii. Os pagamentos em 8 corresponderam ao reembolso de despesas de deslocação que a A. realizava ao serviço da R., ou a parte da remuneração-base acordada de 1.651,40 €.”.

E, apesar da ausência de prova no tocante à causa concreta dos pagamentos efetuados, fazendo apelo à presunção do nº 3 do artigo 258º, concluiu o tribunal no sentido da sua natureza retributiva.

Consequentemente, considerando que o subsídio de férias compreende a retribuição-base e outras prestações retributivas que sejam contrapartida do modo específico da execução do trabalho (art. 264º, nº 2, do CT), decidiu-se considerar no cálculo deste subsídio a média daqueles pagamentos (nos termos do art. 261º, nº 3, do CT), embora já não quanto ao subsídio de Natal, pois este apenas compreende a retribuição-base e diuturnidades (arts. 262º e 263º, nº 1, do CT).

19.1. Quanto ao acórdão recorrido, há a destacar, em primeiro lugar, no plano da matéria de facto (isto, relativamente ao facto não provado ii., já referido em supra nº 18, a propósito do correspondente juízo da 1ª instância), a seguinte decisão:

“[Q]uanto à primeira parte do facto não provado ii. o que resulta de tais elementos de prova é que se apurou apenas o que já consta do facto provado 8. Pelo que a primeira parte do facto não provado ii. deve ser eliminada para evitar contradição com o facto provado 8, uma vez que na parte apurada tal matéria já se encontra no elenco dos factos provados; quanto à segunda parte do facto não provado ii., a mesma é conclusiva por não versar sobre a apreciação de factos (…), mas sobre a qualificação jurídica dos factos provados 5 e 8, que cabe ao Tribunal fazer na apreciação da questão de direito e não na fundamentação da convicção sobre os factos, como sucedeu.

Motivos pelos quais o Tribunal da Relação, no exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662.º n.º 1 do CPC, elimina o facto não provado ii. do elenco dos factos.”

19.2. Aresto que pondera seguidamente:

“[A] retribuição foi mencionada no contrato como se segue (cf. facto provado 5): “no âmbito das deslocações efectuadas ao serviço» da R., a A.: «a) utilizará viatura própria; b) ser-lhe-ão pagos 0,36 € por km; c) com um mínimo de 970 km, que correspondem a uma previsão média de deslocações mensais; d) devem os km percorridos ser devidamente justificados, no respetivo mapa de km»;”.

(…) o Tribunal a quo aplicou a presunção que resulta do artigo 258.º, n.º 3, do CT, para concluir, com base no pagamento periódico dessas quantias, que as mesmas integram o conceito de retribuição. Porém, o Tribunal da Relação não acompanha nessa parte a decisão recorrida.

Na verdade, resulta do artigo 260.º n.º 1 – a) do CT que as prestações mencionadas no facto provado 8, que se incluem na categoria de abonos de viagem e despesas de transporte, não se consideram retribuição a não ser que as deslocações sejam frequentes e na parte em que esse valor exceda os respetivos montantes normais, se isso tiver sido previsto no contrato ou resultar dos usos que se deva considerar elemento integrante da retribuição.

(…) nos presentes autos não foi feita prova de que as prestações mencionadas no facto provado 8, apesar de previstas no contrato de trabalho e pagas com regularidade, excederam os custos efetivos suportados pela autora em transportes e deslocações. Pelo que, embora o Tribunal a quo as qualifique como complementos remuneratórios, o certo é que, tendo em conta os limites do provado, as quantias pagas à autora a título de reembolso por quilómetros e subsídio de transporte não integram o conceito de retribuição, pois não são contrapartida do trabalho em sentido próprio.

(…)”

20. Quid juris?

Antes do mais, nota-se que a decisão da Relação aludida em supra nº 19.1. não tem quaisquer implicações jurídico-práticas, mantendo-se totalmente inalterada a matéria de facto, uma vez que, como se sabe, um facto não provado não é a prova do seu contrário, não sendo por isso configuráveis contradições entre factos provados e não provados (exceto quando se dê o mesmo facto simultaneamente como provado e não provado).

Posto isto, é patente que nas instâncias “não foi dado como provado que as quantias pagas sob essa rubrica correspondessem realmente ao reembolso de despesas, mas apenas que foram liquidadas e esse título, o que é, naturalmente, diferente”, como bem nota o Exmo. Procurador-geral Adjunto, no seu Parecer.

E, assim sendo, em face da presunção contida no nº 3 do artigo 258º, não pode deixar de concluiu-se no sentido da sua natureza retributiva, nos termos e como as consequências decretadas na 1ª instância.

d) – Se é devida retribuição por isenção de horário de trabalho.

18. A 1ª instância considerou ser devida à A. a retribuição pela isenção de horário prevista no art. 265º, nº 1, a), do CT.

Diferentemente, o TRL entendeu que aquela renunciara a esta retribuição, para tanto expendendo o seguinte raciocínio:

“(…)

[A]s partes estipularam a isenção de horário de trabalho da autora no âmbito das funções de direção (…), mas não fixaram qualquer quantia a título de retribuição pela isenção de horário de trabalho (cf. facto provado 5). Adicionalmente, as partes fixaram no contrato de trabalho o pagamento de certas vantagens, a saber prémios devidos por cada recrutamento feito pela autora. Desde a data da celebração do contrato, em 2016, até ter sido desencadeado o litígio entre as partes, a autora não reclamou o pagamento de qualquer quantia a título de retribuição por isenção de horário de trabalho. O marido da autora era o ... permanente da sucursal da ré/empregadora, em Portugal, responsável pelas contratações e condições remuneratórias, incluindo a contratação da autora, que subscreveu em representação da ré (…).

(…)

[A]figura-se que, por um lado, (…) não se apuraram circunstâncias das quais o Tribunal possa presumir, à luz das regras da experiência (…), que a falta de reclamação do pagamento da quantia devida por isenção de horário desde 2016 até ao litígio entre as partes, se deva à situação de dependência em que se encontrava a autora/trabalhadora em relação à ré/empregadora, uma vez que o representante máximo da empregadora na sucursal portuguesa onde trabalhava a autora e que representou a ré na celebração do contrato de trabalho com a autora, era o marido da autora, o qual, apenas em 16.6.2022 (…). Acresce que, o contrato de trabalho da autora era um contrato sem termo (…). Estas circunstâncias tornam improvável a existência de receio, por parte da autora, de sofrer consequências profissionais negativas caso pedisse o pagamento da retribuição por isenção de horário de trabalho no decurso da execução do contrato.

Por outro lado, (…) o facto de não ter sido prevista no contrato qualquer quantia a título de retribuição por isenção de horário, aliado ao cargo de direção exercido pela autora, ao prémio previsto no contrato por cada recrutamento feito pela autora, ao número de recrutamentos apurados, dos quais resulta que esse prémio representava, na prática, uma vantagem económica importante (…) e ao não pagamento de qualquer quantia por isenção de horário ao longo da execução do contrato (…), ou seja, ao longo de mais de 5 anos, são factos que revelam, com toda a probabilidade, que a autora renunciou tacitamente ao pagamento da retribuição devida por isenção de horário (cf. artigo 217.º do CC e 265.º n.º 2 do CT).”

19. Não acompanhamos este entendimento do Tribunal Relação, uma vez que os factos provados não permitem concluir com a clara segurança nesse sentido.

Com efeito, e mais uma vez nas palavras do Exmo. Procurador-geral Adjunto:

“Não existindo uma declaração expressa de renúncia, teria a mesma que resultar de factos que com toda a probabilidade a revelam.

A situação de não constar do contrato o montante a pagar pela isenção do horário de trabalho nada revela, já que a própria lei prevê os seus limites mínimos, regime que sempre deverá ser aplicável.

A circunstância de existirem outros complementos remuneratórios também nada acrescenta, já que os mesmos não têm qualquer correspondência ou correlação com os tempos de trabalho.

Por último, o facto de não existir prova sobre se tal pagamento foi reclamado no decurso da relação laboral muito menos releva, uma vez que sempre a dependência subordinada decorrente da relação laboral – sublinhe-se, estabelecida entre a trabalhadora e a ré, e não entre aquela e o seu marido –, que justifica a possibilidade da sua reclamação no prazo de um ano a decorrer da cessação do contrato de trabalho, não permite a conclusão de, com toda a probabilidade, ter existido qualquer renúncia.

O que se constata é um mero silêncio, que apenas tem valor como declaração negocial, quando esse valor lhe seja atribuído por lei, uso ou convenção, o que não é, manifestamente, caso – cf. art. 218.º do CC.”

Também improcede, pois, esta questão.

e) – Recurso da ré: se é devida quantia atribuída a título de prémios de recrutamento.

20. Consta do documento que titula o contrato de trabalho, datado de 01.04.2016, que a R. pagaria à A. a quantia de 300 € por cada recrutamento que esta fizesse no âmbito das suas funções, isto sem qualquer exigência ou requisito adicional.

Porém, como se refere no ponto 9 da matéria de facto, “antes da formalização do contrato de trabalho, as condições remuneratórias da A. foram negociadas e constam de um e-mail (…), datado de 17.03.2016, do qual consta, designadamente: “Las condiciones son las siguientes: (…) Por cada incorporación nueva (desde que lo trabajador fique en la compañía pelo menos 4 meses) – premio de 300 €.”.

De acordo com a 1ª instância, “verifica-se que do referido e-mail constam condições que o contrato omitiu”, as quais, “[n]o entanto (…) foram, sem dúvida, negociadas entre as partes e, por isso, impõe-se que as cumpram, como emanação do princípio da boa-fé na execução de um contrato (…), não exigindo a lei (…) a sua passagem a escrito”. Consequentemente, ao contrário da Relação, decidiu-se que a A. só teria direito à aquela quantia nos casos em que os trabalhadores recrutados permanecessem ao serviço da R. durante pelo menos a meses.

Não se sufraga entendimento, uma vez que que tudo leva a crer que aquele e-mail apenas integra a fase preliminar/negociatória que antecede a formação do contrato e é constituída pelos atos tendentes à sua celebração, sendo certo que dos factos provados não decorre que aquela comunicação tenha sido objeto de qualquer resposta ou assentimento.

Aliás, sendo de presumir que as partes incluíram no documento que titula o contrato todo o seu conteúdo (cfr. art. 232º, nº 2, do C. Civil), nada na factualidade assente sugere, e muito menos permite compreender ou afirmar, que algum elemento relevante constante do sobredito e-mail não tenha sido contemplado aquando da formalização do contrato, ocorrida escassos dias depois.

Uma vez que sobre a R. impendia o ónus da prova da cláusula em discussão, improcede, pois, o recurso interposto pela mesma.


IV.

21. Nestes termos, concedendo parcialmente a revista interposta pela Autora e negando a da Ré, acorda-se em:

a. Manter o acórdão recorrido na parte em que declarou a licitude do despedimento da A., bem como quanto ao decidido no tocante à quantia devida aquela pela Ré, a título de prémios de recrutamento;

b. Revogar a decisão recorrida nos segmentos relativos às quantias devidas à Autora pela Ré a título de férias não gozadas, subsídio de transporte/reembolso por quilómetros e isenção de horário de trabalho, repristinando-se nesta parte a decisão da 1ª Instância.

Custas das revistas, bem como nas instâncias, na proporção do decaimento das partes.

Lisboa, 16.10.2024

Mário Belo Morgado (Relator)

Albertina Pereira

Júlio Gomes

_____________________________________________




1. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais não vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎

2. Transcrição expurgada dos factos destituídos de relevância para a decisão do recurso de revista↩︎

3. Palavra eliminada pelo TRL.↩︎

4. Segundo Claus-Wilhelm Canaris, a ilicitude (consistente na violação de um direito subjetivo de outrem ou da violação de uma norma jurídica destinada a proteger interesses jurídicos alheios) diz-nos o porquê e em que circunstâncias o lesado recebe a proteção do ordenamento jurídico, enquanto a culpa o porquê e em que circunstâncias ao agente é imposto o ónus de suportar o prejuízo sofrido por terceiro (citado por Felipe Teixeira Neto, in A ILICITUDE ENQUANTO PRESSUPOSTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL DELITUAL: UM EXAME EM PERSPECTIVA COMPARADA (LUSO-BRASILEIRA) – https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/ 2017/6/2017_06_1163_1190.pdf).↩︎

5. Quanto à densificação do requisito “impossibilidade de subsistência da relação de trabalho”, cfr. Bernardo da Gama Lobo Xavier, Direito do Trabalho, Verbo, 2011, pp. 738 – 739, e Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 4ª edição, p. 821.↩︎

6. Ac. de 22.04.2009, Proc. 09S0153.↩︎

7. Cfr. Ac. de 14.07.2022, Proc. 150/21.0T8AVR.P1.S1.↩︎

8. Ob. Cit., II, p. 379 e ss.↩︎

9. Não se atinge o alcance desta afirmação, uma vez a factualidade provada não referencia qualquer “contrato assinado pela A.”↩︎

10. Cfr. Ac. do STJ de 07.11.2017, Proc. nº 919/15.4T8PNF.P1.S1, 1ª Secção, citado pelo acórdão recorrido.↩︎

11. Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 16ª edição, p. 200.↩︎

12. Ibidem.↩︎

13. Direito do Trabalho, II, Almedina, 2019, p. 966.↩︎