I. A relevância jurídica prevista no art. 672.º, nº 1, a), do CPC, pressupõe uma questão que apresente manifesta complexidade ou novidade, evidenciada nomeadamente em debates na doutrina e na jurisprudência, e onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça possa assumir uma dimensão paradigmática para casos futuros.
II. Os interesses de particular relevância social respeitam a aspetos fulcrais da vivência comunitária, suscetíveis de, com maior ou menor repercussão e controvérsia, gerar sentimentos coletivos de inquietação, angústia, insegurança, intranquilidade, alarme, injustiça ou indignação.
MBM/JES/JG
Acordam na Formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, junto da Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça
2. A ação foi julgada parcialmente procedente na 1ª Instância, decidindo-se absolver a segunda R. dos pedidos contra ela deduzidos e condenar a R. Seguradora a pagar ao sinistrado as quantias ressarcitórias devidas pelo acidente de trabalho.
3. Interposto recurso de apelação, o Tribunal da Relação de Coimbra confirmou esta decisão.
4. A R. Seguradora veio interpor recurso de revista excecional, com fundamento no art. 672º, nº 1, a) e b), do CPC1.
5. O A. contra-alegou, invocando a inadmissibilidade do recurso.
6. No despacho liminar, considerou-se estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade do recurso.
7. Está em causa determinar se o recurso de revista excecional deve ser admitido no tocante à questão de saber se o acidente de trabalho deve considera-se descaracterizado por o Sinistrado ter agido com negligência grosseira.
E decidindo.
(…)
2. Em 18-07-2018, mediante contrato de trabalho sem termo, a Empregadora “COSMATEL, COMÉRCIO DE MATERIAIS DE CONSTRUÇÃO, L.da” contratou o Sinistrado para (…) exercer as funções de motorista de veículos pesados e articulados, mas também de soldador e mecânico.
(…)
6. A 29-10-2018, em ..., o Sinistrado sofreu um acidente que consistiu em compressão do membro superior esquerdo em máquina com tapete rolante (máquina/crivo), do qual resultaram para o Sinistrado as lesões descritas nos Relatórios Periciais Médico-Legais de Avaliação do Dano Corporal em Direito do Trabalho de fls.47 a 48v. e 120 a 121v. [cujos teores se dão aqui por integralmente reproduzidos], e como sequelas lesão do nervo radial esquerdo com mão disfuncional que o impede de executar com segurança as tarefas atribuídas na profissão de condutor de pesados, mesmo com a implementação de ajudas técnicas.
(…)
15. No dia 29-10-2018, nas instalações da Empregadora, ao início da tarde, o Sinistrado recebeu ordens expressas (…) para ir operar a máquina/crivo [equipamento de trabalho cuja função é crivar terra, separando a terra (que será utilizada em jardins) das pedras (que serão utilizadas em enchimento) e tem um funcionamento diferente de uma máquina de rastos].
16. A tarefa consistia em: ir continuamente colocando terra na gamela/silo da máquina/crivo com uma máquina giratória; ligar o motor a combustão da máquina/crivo através de chave e botão de ignição que alimenta uma bomba de pressão de óleo; acionar o funcionamento do sistema hidráulico dos rolos e dos tapetes rolantes através da mudança de posição das respetivas alavancas; e vigiar o funcionamento e a laboração da máquina/crivo.
17. O Sinistrado cumpriu as ordens e foi operar a máquina/crivo.
18. Não foram dadas ao Sinistrado ordens para proceder à reparação do motor de combustão ou dos rolos ou dos tapetes rolantes da máquina/crivo em caso de avaria dos respetivos mecanismos.
19. A zona dos rolos e do primeiro tapete rolante da máquina/crivo encontrava-se protegida por grades de proteção com portas de acesso fechadas com parafusos que impediam o acesso a essa zona [fotografias de fls.230v., 232v., 234v. a 235v., 236v. a 238v., 273 e 274 a 275v.].
20. Durante o processo de laboração, por força do peso da terra sobre o tapete rolante, este desalinhava-se e enruga-se em relação aos rolos sobre os quais rodava, levando à acumulação de terra e pedras entre os rolos e o tapete rolante, o que, cerca das 16h00m, provocou o encravamento do funcionamento do tapete rolante da máquina/crivo.
21. Para tentar desencravar o funcionamento do tapete rolante, o Sinistrado – sem antes colocar a alavanca do sistema hidráulico que acionava aqueles rolos e o tapete rolante na posição de parado e sem antes desligar o motor de combustão da máquina/crivo – retirou o parafuso da porta do gradeamento, abriu a porta de acesso e, com o auxílio de uma espátula/pá pertencente à máquina/crivo, retirou parte da terra e das pedras que impediam a rotação dos rolos e a circulação do tapete rolante e, depois, já com as mãos, tentou tirar a parte agarrada ao tapete rolante que não conseguia com a espátula/pá.
22. Nessa altura, pelo movimento de rotação do rolo e do tapete rolante, a mão esquerda do Sinistrado ficou entalada entre o rolo e o tapete rolante e, sucessivamente, também o braço e o ombro esquerdos […].
23. O Sinistrado não tinha manobrado a máquina/crivo mais de 4 vezes e nunca recebeu qualquer formação sobre o seu funcionamento, nomeadamente não teve formação em segurança, higiene e saúde no trabalho ao nível do funcionamento da máquina/crivo.
24. Contudo, o Sinistrado conhecia o funcionamento de todos os mecanismos da máquina/crivo e sabia operar com os mesmos.
25. Ao Sinistrado foi dada informação básica sobre o funcionamento da máquina/crivo, sendo que o mesmo declarou que já tinha esses conhecimentos por ter trabalhado com esta mesma máquina/crivo para a (…) anterior proprietária da máquina/crivo.
(…)
28. O motor da máquina/crivo liga e desliga num único comando que é acionado com uma chave e dois botões, onde diz on/off e tem luzes verde e vermelha, sendo o único comando presente na máquina/crivo para ligar e desligar o motor de combustão [fotografias de fls.233v. e 234].
29. A máquina/crivo não dispunha de identificação dos comandos, nem de dispositivo de paragem de emergência e dispunha apenas da sinalização de segurança retratada nas fotografias de fls.230v., 232v. e 270v.
30. O tapete rolante era mais estreito que os rolos sobre os quais circulava.
31. A Empregadora não fez uma avaliação dos riscos associados às tarefas de limpeza e funcionamento da máquina/crivo, nem previu medidas preventivas destinadas a eliminar ou controlar esses riscos.
(…)
33. No momento do acidente, o Sinistrado usava calçado de biqueira de aço e luvas.
34. Junto à máquina/crivo encontravam-se duas espátulas/pás para efetuar limpeza dos rolos e dos tapetes rolantes da máquina/crivo.
(…)
Conexamente, segundo a mesma disposição legal, excluem-se desta noção os comportamentos ditados pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.
O conceito tem sido densificado por esta Secção Social do STJ, que, sem disparidades, tem vindo a entender, nomeadamente:
– Acórdão de 11.10.2023, Proc. nº 478/19.9T8FAR.E1.S1:
A “negligência grosseira”, que corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objetivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo, deve ser apreciada não em função de um padrão geral, abstrato, de conduta, mas em concreto, em face das condições da própria vítima – segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais. comportamento temerário, inútil, indesculpável e reprovado pelo mais elementar sentido de prudência, não só integra o conceito de negligência grosseira
– Acórdão de 11.02.2015, Proc. nº 1301/10.5T4AVR.C1.S1:
A “negligência grosseira”, que corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objetivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo, deve ser apreciada não em função de um padrão geral, abstrato, de conduta, mas em concreto, em face das condições da própria vítima – segundo os seus conhecimentos e capacidades pessoais.
– Acórdão de 24.02.2010, Proc. nº 747/04.2 TTCBR.C1.S1:
A negligência grosseira, correspondendo a uma culpa grave, pressupõe que a conduta do agente – porque gratuita e de todo infundada – se configure como altamente reprovável, à luz do mais elementar senso comum.
A culpa grave deve ser apreciada em concreto – conferindo as condições do próprio acidentado – e não com referência a um padrão abstrato de conduta.
– Acórdão de 26.01.2006, Proc. nº 05S3114:
A jurisprudência tem vindo a associar o comportamento temerário em alto e relevante grau a um comportamento inútil, indesculpável, reprovado pelo mais elementar sentido de prudência.
– Acórdão de 29.11.2005, Proc. nº 1924/05:
A figura da negligência grosseira corresponde a uma negligência particularmente grave, qualificada, atento, designadamente, o elevado grau de inobservância do dever objetivo de cuidado e de previsibilidade da verificação do dano ou do perigo.
10. Na interpretação/aplicação do sobredito art. 14.º, n.º 3, da LAT, é patente que o acórdão recorrido se encontra alinhado com a pertinente jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, sendo certo que o tratamento jurídico do caso dos autos não suscita dificuldades dignas de nota e não convoca nenhum dos aspetos que – no campo do conceito de negligência grosseira – se revelam doutrinaria e jurisprudencialmente mais controversos e de contornos menos precisos.
Vele dizer que o Tribunal da Relação procedeu à sua função subsuntiva/valorativa em termos que não evidenciam qualquer dimensão problemática.
11. Encontramo-nos, pois, fora da esfera do fundamento específico da revista excecional expresso na fórmula (especial/particular) relevância jurídica [alínea a) do art. 672.º, nº 1, do CPC], a qual pressupõe uma questão que apresente manifesta complexidade ou novidade, geralmente evidenciada em debates na doutrina e na jurisprudência e onde a resposta a dar pelo Supremo Tribunal de Justiça – assumindo uma dimensão paradigmática para casos futuros – se mostre necessária para contribuir para a segurança e certeza do direito.
12. Quanto aos invocados interesses de particular relevância social, que não se descortinam minimamente, não se vê que a situação em litígio apresente qualquer dimensão socialmente controvertida, polémica ou controversa, suscetível de contender com “aspetos fulcrais para a vida em sociedade” (Ac. do STJ de 13.04.2021, P. 1677/20.6T8PTM-A.E1.S2), ou que “exista um interesse comunitário significativo que transcenda a dimensão inter partes” (Ac. do STJ de 29.09.2021, P. n.º 686/18.0T8PTG-A.E1.S2), sendo certo que nesta matéria “não basta o mero interesse subjetivo do recorrente” (Ac. do STJ de 11.05.2021, P. 3690/19.7T8VNG.P1.S2).
Custas pela recorrente.
Lisboa, 16.10.2024
Mário Belo Morgado (Relator)
José Eduardo Sapateiro
Júlio Manuel Vieira Gomes
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1. Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.↩︎