EXCEÇÃO DILATÓRIA
CRÉDITO SOBRE A INSOLVÊNCIA
Sumário


Uma trabalhadora, credora da insolvência, pode, uma vez encerrado o processo de insolvência, propor uma ação declarativa para obter a satisfação do mesmo.

Texto Integral


Processo n.º 3410/21.6T8PNF.P2.S1

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça,

1. Relatório

AA intentou ação declarativa com processo comum contra INOGI, Asset Management, S.A., formulando os seguintes pedidos:

Nos termos expostos e nos melhores de Direito, deve a presente ação ser julgada procedente por provada e, por via dela:

a) Deve ser reconhecido o direito à A. de auferir as diuturnidades e, consequentemente, de receber da R. e esta condenada a pagar à primeira o seu crédito nesta data já vencido referente a diuturnidades, melhor discriminado acima em 30.º a 62.º, que nunca lhe foi pago, o qual totaliza a importância de € 5.129,25;

b) Deve ser reconhecido o direito à A. de auferir de retribuição pela isenção do horário de trabalho e, consequentemente, receber da R. e esta condenada a pagar à primeira o seu crédito nesta data já vencido referente às diferenças salarias existentes entre o prémio de disponibilidade que lhe foi pago (€ 150,00) e a retribuição devida pela isenção de horário de trabalho (€ 446,60), melhor discriminado acima em 63.º a 103.º, que nunca lhe foi pago, o qual totaliza a importância de € 39.151,20;

c) Deve a compensação pelo despedimento coletivo no seu cálculo ter em consideração também o peticionado em a) e em b) supra, e assim:

d) Ser a R. condenada a pagar à A. uma remuneração relativa ao mês de Abril de 2019, no montante de € 3.161,82;

e) Ser a R. condenada a pagar à A. uma remuneração proporcional ao tempo de trabalho em 2019, a título de férias, respeitante ao ano da cessação, que se computa em € 840,26;

f) Ser a R. condenada a pagar à A. uma remuneração proporcional ao tempo de trabalho em 2019, a título de subsídio férias, respeitante ao ano da cessação, que se computa em € 820,11;

g) Ser a R. condenada a pagar à A. uma remuneração proporcional ao tempo de trabalho em 2019, a título de subsídio de Natal, respeitante ao ano da cessação, que se computa em € 840,26;

h) Ser a R. condenada a pagar à A. uma remuneração a título de férias vencidas em 1 de Janeiro de 2019 e o respetivo subsídio de férias, que se computam em € 3.161,80 + € 3.085,98, respetivamente, perfazendo um total de 6.247,78;

i) Ser a R. condenada a pagar à A. o crédito de horas de formação profissional devido e melhor discriminado acima em 130.º a 134.º, no montante de € 1.978,49;

j) Ser a R. condenada a pagar à A. uma compensação pelo despedimento coletivo, calculada conforme acima melhor discriminado em 104.º a 136.º, no montante de € 29.227,51, nos termos do previsto no Artigo 366.º, do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro e no Artigo 5.º, da Lei n.º 69/2013, de 30 de Agosto;

k) Ser a R. condenada a pagar à A. a quantia de € 5.000,00 a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, melhor discriminados acima em 137.º a 175.º, nos termos do previsto no artigo 389º, n.º 1, alínea a), do Código do Trabalho, aprovado pela Lei n.º 7/2009, de 12 de Fevereiro.

l) Ser a R. condenada a pagar as custas e condigna procuradoria, e finalmente,

m) Ser a R. condenada a pagar juros de mora à taxa legal em vigor desde a sua citação ocorrida em 11/04/2019 até efetivo e integral pagamento”.

Por sentença de 4.04.2021, o Tribunal da 1.ª Instância julgou procedente a exceção dilatória do caso julgado e absolveu a Ré do pedido.

A Autora interpôs recurso de apelação.

Por acórdão de 3.10.2022, os Juízes do Tribunal da Relação acordaram “em julgar o recurso procedente, revogando a decisão recorrida e determinando que o Tribunal a quo, a menos que outra razão a tal obste, determine o prosseguimento da acção”.

Citada, a Ré contestou, arguindo as exceções de prescrição e de inexigibilidade do crédito.

A Autora respondeu à matéria da exceção.

Em 7.03.2023, o Tribunal da 1.ª Instância proferiu saneador sentença, no qual julgou procedente exceção dilatória inominada e absolveu a Ré da instância.

A Autora interpôs recurso de apelação.

Por acórdão de 27.11.2023, os Juízes do Tribunal da Relação acordaram “em julgar o recurso procedente e, consequentemente, revoga-se a decisão recorrida e ordena-se que o Tribunal “a quo” prossiga a instrução da presente acção até final”.

A Ré veio interpor recurso de revista. A Autora apresentou contra-alegações.

Por despacho de 5.04.2024, o Tribunal da Relação não admitiu o recurso por considerar que a decisão não é recorrível.

A Ré reclamou do despacho de não admissão nos termos do artigo 643.º do Código de Processo Civil.

Por decisão singular do Supremo Tribunal de Justiça de 3.05.2024, proferida em sede de reclamação (apenso n.º 3410/21.6T8PNF.P2-A.S1), o recurso foi admitido.

Em cumprimento do disposto no artigo 87.º n.º 3 do Código do Processo de Trabalho o Ministério Público emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso.

Fundamentação

De facto

Foram provados nas instâncias os seguintes factos:

1) Em 10 de Abril de 2019, a Autora AA intentou ação declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra a Ré Inogi, Asset Management, S.A., através da petição inicial cuja cópia consta de fls. 94 verso a 108, a qual veio a dar origem ao processo nº1181/19.5..., que correu termos no Juiz ..., do Juízo do Trabalho de ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este.

2) No processo referido em 1) a Ré apresentou a contestação cuja cópia consta de fls. 109 verso a 124.

3) No processo referido em 1) a Autora apresentou a resposta à contestação cuja cópia consta de fls. 137 a 142 verso.

4) No processo referido em 1) foi proferido o despacho cuja cópia consta de fls. 143 a 146, no âmbito do qual se conheceu do erro na forma do processo, se determinou a retificação da distribuição, passando os autos a seguir a forma de processo especial de impugnação de despedimento coletivo e se julgou improcedente a exceção da cumulação ilegal de pedidos.

5) A Ré Inogi, Asset Management, S.A. foi declarada insolvente por sentença cuja cópia consta de fls. 168 a 170, proferida em 17 de novembro de 2020, e transitada em julgado em 9 de dezembro de 2020, no âmbito do processo 7501/20.2..., do Juiz ..., do Juízo de Comércio de ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.

6) Em 21 de Abril de 2021, a Autora intentou ação de verificação ulterior de créditos, cuja cópia consta de fls. 128 verso a 133, por apenso ao processo de insolvência da Ré 7501/20.2..., do Juiz ..., do Juízo de Comércio de ... do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.

7) Por sentença datada de 11 de Maio de 2021, proferida no âmbito do processo de insolvência da Ré 7501/20.2..., do Juiz ..., do Juízo de Comércio de ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi homologado plano de insolvência cuja cópia consta de fls. 246 a 263, constando da referida sentença homologatória desse plano “contendo providências com incidência no passivo da devedora Inogi, Asset Management, S.A., com os efeitos a que alude o artigo 217.º

8) No âmbito do plano de insolvência referido em 7) está previsto, quanto aos créditos privilegiados emergentes do contrato de trabalho, o pagamento de 10% do crédito reclamado e reconhecido nesse processo em 24 prestações mensais, iguais e sucessivas, com início no último dia do mês seguinte ao do trânsito em julgado da sentença que homologou esse plano.

9) Por sentença datada de 11 de maio de 2021, proferida no âmbito do processo de insolvência da Ré 7501/20.2..., do Juiz ..., do Juízo de Comércio de..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, foi proferida sentença de verificação e graduação de créditos, cuja cópia consta de fls. 266 verso, datada de 27 de maio de 2021, transitada em julgado em 1 de junho de 2021.

10) Por decisão de 15 de junho de 2021, cuja cópia consta de fls. 268, foi o processo de insolvência da Ré 7501/20.2..., do Juiz ..., do Juízo de Comércio de ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, declarado encerrado pelo trânsito em julgado da decisão que homologou o plano de insolvência.

11) No âmbito do apenso de verificação ulterior de créditos, referido em 6), foi proferida, em 25 de Outubro de 2021, a decisão que consta de fls. 186 a 187, no âmbito da qual foi declarada extinta a instância, nos termos do artigo 233º, do CIRE, em virtude de ter sido homologado e aprovado um plano de insolvência por decisão de 11 de Maio de 2021, em consequência do que o processo de insolvência foi encerrado em 15 de Junho de 2021, decisão essa que transitou em julgado em 15 de Novembro de 2021, não tendo a Autora requerido o prosseguimento dessa ação.

12) Na sequência da decisão referida em 11), a Autora requereu, em 14 de outubro de 2021, no âmbito do processo referido em 1), a renovação da instância, através do requerimento cuja cópia consta de fls. 82 verso.

13) O requerimento da Autora referido em 12) foi indeferido por decisão datada de 8 de novembro de 2021, cuja cópia consta de fls. 83, transitada em julgado em 26 de novembro de 2021.

14) Em 6 de dezembro de 2021, a Autora AA intentou a presente ação declarativa, com processo comum, emergente de contrato individual de trabalho, contra a Ré Inogi, Asset Management, S.A., através da petição inicial cuja cópia consta de fls. 2 e ss, a qual veio a dar origem a este processo nº3410/21.6T8PNF, do Juiz..., do Juízo do Trabalho de ... do Tribunal Judicial da Comarca do Porto.

15) Na ação de verificação ulterior de créditos que a aqui Autora instaurou, por apenso ao processo de insolvência, a Ré confessou, na contestação a essa ação, que devia à Autora a título de créditos salariais a quantia de € 37.716,10. (aditado pelo Tribunal da Relação)

16) Na ação referida em 15) foi proferida sentença na qual se afirma o seguinte:

“Está em causa uma verdadeira inutilidade superveniente da lide e compreende-se que assim seja: o processo de insolvência está findo, cumpriu o seu objetivo e nenhuma quantia irá ser distribuída pelos credores, nem pela aqui requerente. Daí que seja inútil e de nenhum proveito apreciar e decidir neste processo se a requerente tem ou não algum crédito sobre a devedora e qual o seu montante”.

De Direito

Não se encontra provado no processo que a Ré tenha incluído o crédito de que a Autora era titular sobre ela – ao menos a compensação por despedimento coletivo que tivera que devolver para impugnar a licitude do mesmo, crédito de € 37.716,10, expressamente confessado pela Ré na contestação à ação de verificação ulterior de créditos (facto 15) – na sua contabilidade ou em informação prestada ao administrador da insolvência. Consequentemente o artigo 128.º do CIRE não teve aplicação nem a trabalhadora foi avisada, como decorreria dos números 4 e 5 do referido artigo 128.º do CIRE. Acabou, em momento posterior, por ter que recorrer a uma ação de verificação de créditos, correndo por apenso ao processo de insolvência que findou com uma sentença que declarava a inutilidade superveniente da lide.

Antes de mais, sublinhe-se que normas como o artigo 217.º n.º 1, ainda que afirmem que com a sentença de homologação se produzem as alterações sobre os créditos sobre a insolvência introduzidas pelo plano de insolvência, “independentemente de tais créditos terem sido ou não reclamados ou verificados” parecem pressupor que os créditos poderiam ter sido tempestivamente reclamados pelo credor e não uma situação como a presente em que a trabalhadora foi, na prática, “afastada” do processo de insolvência e depois, quando teve conhecimento da insolvência do empregador esbarrou na afirmação pelo tribunal de que era inútil verificar o seu crédito porque nada havia a repartir entre os credores. O facto de neste momento não ter recorrido não acarreta qualquer renúncia da sua parte aos seus direitos.

E concorda-se, inteiramente, com o Ministério Público quando este afirma, no seu Parecer junto aos autos neste Tribunal em cumprimento do disposto no artigo 87.º n.º 3 do CPT, que “o art. 197.º, al. c), do CIRE, deverá ser entendido no sentido que o cumprimento do plano exonera o devedor e os responsáveis legais da totalidade das dívidas da insolvência remanescentes, mas apenas em relação às que aí foram incluídas”. A Autora, sendo embora um credor privilegiado, não foi em rigor abrangida pelo plano de insolvência.

Sublinhe-se, além do mais, que como refere MARIA DO ROSÁRIO EPIFÂNIO1, “a reclamação de créditos configura apenas um ónus e, nunca, um dever cuja inobservância extinga definitivamente a possibilidade o credor vir, mais tarde, cobrar o seu direito”. A Autora sublinha que não há qualquer suporte legal para defender que um credor cujo crédito não tenha sido reclamado nem verificado oficiosamente pelo administrador da insolvência ficaria desprovido de tutela jurisdicional efetiva. Acrescenta que “em nenhum dispositivo legal (no CIRE ou noutro diploma legal), é vedada aos credores da insolvência a possibilidade de acionarem judicialmente o devedor pelos créditos constituídos à data da declaração de insolvência”, mencionando, ainda, que há preceitos legais que pressupõem essa possibilidade. Invoca, ademais, um argumento de maioria de razão: “se os credores da insolvência podem propor ações executivas contra o devedor depois de encerrado o processo de insolvência deste, com vista a obter a satisfação da totalidade ou de parte do crédito que ficou por satisfazer, por maioria de razão os credores da insolvência poderão propor ação de reconhecimento de crédito contra o seu devedor se, por desconhecimento ou por opção, não participaram no processo de insolvência entretanto encerrado”2. Sublinha, igualmente, que “o princípio da exclusividade da instância insolvencial (…) importa uma restrição excecional e temporária do princípio da tutela jurisdicional efetiva, legitimada se, na medida em que, e enquanto for necessária à tutela dos interesses dos credores da insolvência”, mas uma vez “[e]ncerrado o processo de insolvência, dissolvido o concursus creditorum, e recuperando devedor e credor os seus poderes, essa restrição deixa de ser necessária”.

Há, pois, que considerar improcedente a invocação de uma exceção inominada, confirmando o Acórdão recorrido.

O Recorrente suscita, ainda, a questão da prescrição. O modo como a invoca implica que, no fundo, se trata, em seu entender, de uma nulidade do Acórdão recorrido por omissão de pronúncia. Com efeito, afirma que “tal questão não foi analisada pelo Tribunal “a quo” com o argumento de que a mesma não é de conhecimento oficioso”, mas “sempre com o devido e muito respeito, inexistiria “in casu” qualquer conhecimento oficioso dado que a questão da prescrição foi expressamente invocada pela Recorrente tanto na contestação como nas próprias contra-alegações do recurso de apelação, conforme resulta aliás da página 7 do Douto Acórdão ora recorrido”.

Não existe, contudo, qualquer nulidade ou tão-pouco erro de julgamento. A 1.ª instância tendo julgado procedente a exceção inominada considerou prejudicada a questão da prescrição. O Tribunal da Relação, tendo, ao invés, decidido que tal exceção não procede – decisão confirmada por este Supremo Tribunal – limitou-se a concluir que haverá que conhecer da exceção da prescrição no decurso do julgamento. Sublinhe-se, de resto, que não consta da matéria de facto dada como provada a data em que o despedimento coletivo que visou a Autora produziu efeitos3.

Há, pois, que concluir que o Acórdão recorrido decidiu certeiramente, havendo no julgamento em 1.ª instância que decidir se houve ou não prescrição, quer à luz das normas que preveem a interrupção da prescrição (por exemplo, os artigos 323.º e seguintes do Código Civil), quer das que tratam da sua suspensão (por exemplo, o artigo 100.º do CIRE).

Decisão: Negada a revista, confirmando-se o Acórdão recorrido.

Custas do recurso pelo Recorrente.

Lisboa, 16 de outubro de 2024

Júlio Gomes (Relator)

José Eduardo Sapateiro

Mário Belo Morgado

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1. Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de outubro de 2020, Revista de Direito da Insolvência, 2021, n.º 5, pp. 176 e ss., p. 190.↩︎

2. Aut. e ob. cit., p. 195.↩︎

3. Nas alegações de recurso afirma-se, é certo, que “a Recorrida confessa, nomeadamente no artigo 2.º da sua Douta PI, de que o seu contrato de trabalho cessou no dia 07.04.2019”, sem que a Recorrente manifeste qualquer divergência a este respeito.↩︎