CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS
COMPETÊNCIA MATERIAL
PETIÇÃO INICIAL
CAUSA DE PEDIR
PEDIDO
TEMAS DA PROVA
CASO JULGADO FORMAL
FACTOS ADMITIDOS POR ACORDO
SENTENÇA
EMPRESÁRIO
DÍVIDA DE VALOR
PRESCRIÇÃO PRESUNTIVA
RECLAMAÇÃO
PRODUÇÃO ANTECIPADA DE PROVA
TUTELA JURISDICIONAL EFETIVA
Sumário


I. Nos termos do art. 607º, nºs 4 e 5, do CPC, deve o juiz, na sentença, ter em consideração os factos que se encontrem admitidos por acordo das partes, preceito que prevalece sobre a delimitação que, com a indicação dos temas da prova, haja sido efetuada, enunciação essa que não constitui decisão que faça caso julgado formal.
II. A competência em razão da matéria do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respetivos fundamentos (causa de pedir).

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça (2ª Secção)


I. Relatório

1. AA, intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra BB, pedindo a condenação deste no pagamento da quantia de €10.720,00 acrescido de juros vencidos desde a data de interpelação até à data de entrada da ação, no montante de €2.265,00, e de juros vincendos até integral e efetivo pagamento.

Para tanto, alegou, em síntese, que celebrou um contrato de prestação de serviços com o Réu através do qual se obrigou a prestar serviços de mão de obra inerentes à atividade de carpintaria para o Réu, mediante o pagamento por parte deste do montante de €5,00 por cada hora de serviço. No âmbito de tal contrato, o Réu não procedeu ao pagamento dos valores peticionados por conta dos serviços de carpintaria que o Autor lhe prestou.

2. O Réu apresentou contestação, na qual aceita alguns dos factos alegados pelo A. e impugna outros. Alega, em síntese, que: trabalhavam ambos por conta própria, encontrando-se ambos coletados nas finanças na atividade profissional de ... como empresários em nome individual e bem assim que, quando necessário, “entrejudavam-se” mutuamente; todos os serviços feitos pelo autor ao réu foram pagos por este; o réu é que é credor do autor, designadamente, pelo acordo feito entre ambos quanto à utilização da garagem, materiais, utilização das máquinas e ferramentas, concluindo que caso o tribunal entenda que o réu deve ao autor qualquer quantia, deverá, subsidiariamente, ser feita a compensação com o seu crédito, no valor que fixa em 13.420,00€. Mais invocou a prescrição “nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 298º e segs. do Código Civil, a presunção do cumprimento pelo decurso do prazo, nos termos dos artigos 312º e 317º, alínea c), ambos do Código Civil.”

3. Realizou-se, a 30.11.2021, audiência prévia, conforme documentado na respetiva ata, na qual, para além do mais [pela ordem que dela consta]:

i) relegou-se para final o conhecimento da prescrição;

ii) foi fixado à ação o valor de € 12.985,00;

iii) foi proferido despacho saneador tabelar no sentido, para além do mais, da competência do tribunal em razão da matéria;

iv) relegou-se para final o conhecimento do objeto da ação;

v) procedeu-se à identificação do objeto do litígio e dos temas da prova do seguinte modo:

Identificação do objeto do litígio

O objeto do litígio circunscreve-se às seguintes questões:

1 – Valores devidos pelo Réu ao Autor e créditos de que o Réu seja titular perante o Autor, reclamados subsidiariamente na contestação.


*


Temas da prova

Considerando o teor dos articulados das partes, apresentam-se como temas de prova os seguintes:

1- Trabalhos, e a que título, efetuados pelo Autor a pedido do Réu e respetivos valores em dívida.

2 – Interpelação do Autor ao Réu para pagamento dos valores que o 1º se arroga.

3 – Trabalhos prestados pelo Réu ao Autor e respetivo valor.

4 – Utilização pelo Autor da garagem do Réu, bem como da sua carrinha, matérias de construção e acessórios e ainda despesas com água e luz originadas pela utilização da referida garagem pelo Autor.”

vi) o réu apresentou “reclamação” dizendo ter alegado na contestação que nada deve ao autor pois tudo pagou, pelo que o “Tribunal estava já em condições de considerar verificada a prescrição, para o efeito do disposto nos atrs. 298º, 312º e 317º, al. c), todos Código do Processo Civil [sic]”, ao que o autor respondeu, discordando,

vii) Na sequência do que foi proferido despacho com o seguinte teor:

“O Tribunal entende que não está em condições de conhecer a excepção invocada, uma vez que, tratando-se de prescrição presuntiva, além da alegação inequívoca do pagamento, cumpre apurar a que título os trabalhos foram prestados, sendo certo que tal matéria encontra-se controvertida, pois o Autor invoca uma prestação de serviços, que o Réu na sua contestação nega alguma vez ter existido, esclarecendo que, na sequência do desemprego de ambos, começaram a trabalhar individualmente e que os trabalhos prestados pelo Réu eram feitos diretamente aos clientes, sendo que a relação entre ambos era de (entreajuda) com partilha de instalações.

Neste sentido reitera-se que carece de prova a relação estabelecida entre Autor e Réu para depois apurar se se verifica a prescrição presuntiva invocada que se destina aos créditos prestados no exercício de profissões liberais.”

viii) o réu apresentou reclamação quanto ao tema da prova indicado no nº 1, no segmento em que consta “a que título”, alegando que “o título a que os trabalhos prestados já se encontram assentes por acordo nos articulados, no artº 1º da sua contestação, onde o Réu aceita as confissões expressas na petição inicial a este respeito.”

ix) a pedido do autor, deferido pela Mmª Juíza, foi conferido prazo para pronúncia sobre tal reclamação.

x) foi designada data para a audiência de julgamento.

4. O Autor pronunciou-se (requerimento de 10.12.2021), para além do mais, sobre a reclamação mencionada em viii), no sentido da sua improcedência.

5. Na data designada para a audiência de julgamento (17.02.2022), a Mmª juíza, pelas razões que invocou, determinou o seguinte: “Assim, deverão as partes, no prazo de 10 dias, tomar posição acerca da possibilidade de se decidir de mérito, de imediato, a presente acção.

Sendo certo que a posição das partes nos articulados já permite tomar decisão de mérito, neste momento dispensa-se a produção de prova”, na sequência do que:

-o autor pronunciou-se (requerimento de 25.02.2022), informando não se opor à “imediata tomada de posição pelo Tribunal”, mais referindo que “3. Porém, por cautela de patrocínio, não pode deixar de referir que, na eventualidade de os presentes autos vierem posteriormente a prosseguir, não prescinde do requerimento de prova por si apresentado”.

6. Após vicissitudes várias, aos 22.09.2022 foi pela Mmª Juíza proferido o seguinte despacho: “(…) Todavia, melhor compulsados os autos estamos em crer que não existe possibilidade de, sem prévia produção de prova decidir quanto ao mérito da acção, pelo que, deverá ser designada data para a realização da audiência de julgamento”, data que designou.

7. Na sessão da audiência de julgamento, de 12.09.2023, foi, conforme ata respetiva, para além do mais, proferida a seguinte decisão sobre a reclamação mencionada no precedente ponto 3.viii) :

“No despacho saneador proferido na audiência prévia consta como tema da prova o seguinte:

1.º Trabalhos, e a que título, efetuados pelo Autor a pedido do Réu e respetivos valores em dívida.

Deste tema da prova no segmento “a que título”, o Réu apresentou reclamação entendendo que o título a que os trabalhos prestados já se encontram assentes por acordo nos articulados, no artº 1º da sua contestação, onde o Réu aceita as confissões expressas na petição inicial a este respeito.

O Autor requereu prazo para se pronunciar quanto a esta reclamação o que foi concedido.

Por requerimento datado de 10.12.2021 (ref. .....57), o Autor vem responder à reclamação nos seguintes termos:

(…)

Quanto à reclamação apresentada pelo Réu cumpre apreciar e decidir.

Ora, analisados os autos, no primeiro tema da prova a referência à expressão “a que titulo” constitui matéria controvertida uma vez que quanto aos trabalhos peticionados pelo Autor e tendo em consideração a posição do Réu no respectivo articulado é necessário apurar se os mesmos tiveram ou não subjacentes algum contrato ou acordo entre as partes.

Desta forma, indefere-se o requerido, mantendo-se os temas da prova nos precisos termos enunciados.”

8. Produzida a prova, em tal sessão (bem como na sessão de 13.09.2023), foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:

“Em face do exposto, decide-se julgar a acção procedente, por provada, e em conformidade condenar o Réu BB a pagar ao Autor AA a quantia de € 10.720,00 acrescida de juros vencidos e vincendos à taxa comercial em vigor desde 20 de Outubro de 2019 até efectivo e integral pagamento.

Custas a cargo do Réu”

9. Inconformado, o réu interpôs recurso de apelação, o qual foi julgado improcedente e mantida a sentença recorrida.

10. Novamente inconformado, veio o réu interpor recurso de revista “nos termos, designadamente, dos artigos 629º, nº 2, al. a), 638º, 671º, 674º, nºs 1 e nº3 “ a contrario”, 675º, 682º, nº 2, e segs,, todos do C.P.C., recurso ordinário, de revista normal, (…)”, tendo formulado as seguintes (e prolixas) conclusões:

“1º Por despacho proferido na audiência prévia, com a referencia: 36245476, na parte final de fls. 3 e inicio de fls. 4, na mesma audiência, em despacho saneador, a fls. 4, donde, além do mais, resultou, a saber: Temas de prova 1 - Trabalhos, e a que título, efetuados pelo Autor a pedido do Réu e respetivos valores em dívida.

2º No despacho da pág. 6 da audiência prévia, o tribunal da 1ª instância, fundamentou e decidiu, que aqui parcialmente se transcreve, a saber:

o Tribunal entende que não está em condições de conhecer a exceção invocada, uma vez que, (...), cumpre apurar a que título os trabalhos foram prestados, sendo certo que tal matéria encontra-se controvertida, pois o Autor invoca uma prestação de serviços, que o Réu na sua contestação nega alguma vez ter existido, esclarecendo que, na sequência do desemprego de ambos, começaram a trabalhar individualmente e que os trabalhos prestados pelo Réu eram feitos diretamente aos clientes, sendo que a relação entre ambos era de (entreajuda) com partilha de instalações.

Neste sentido reitera-se que carece de prova a relação estabelecida entre o Autor e Réu (...)

3º Deste despacho o réu/recorrente reclamou, dizendo que, o segmento “a que título”, já se encontraria assente por acordo pelo art.º 1 da contestação.

4º A que o Autor/recorrido, por requerimento com Ref: .....57, em resposta ao recorrente, na sua al. b), pág. 2, afirma, concordar com o despacho saneador proferido, dizendo, em suma, que: atento o alegado pelo réu na sua contestação e requerimentos subsequentes, visto que alega e suscita a dúvida ao Tribunal acerca do “título” em como os serviços prestados pelo Autor àquele, ocorreram.

De modo, tratando-se de matéria controvertida, como se verifica que trata, deverá necessariamente a mesma constar dos temas de prova, pelo que, andou bem o Tribunal ao decidir como decidiu.” (sic)

5º O réu, ora/recorrente, depois de melhor ponderação, e reponderando o debate e discussão sobre as posições das partes a que se procedeu na audiência prévia, acabou por aceitar ou concordar com o despacho saneador, e não arguiu qualquer nulidade, nem interpôs qualquer recurso, pelo que, o mesmo transitou em julgado, e foi discutido o tema de prova 1 amplamente em audiência de julgamento como resulta da prova produzida que foi gravada.

6º E, assim na ótica do tribunal, traduzido nos despachos da audiência prévia, nomeadamente do despacho saneador, da aceitação, do art.º 1, da p.i., resulta apenas o que do mesmo consta, e não que o Autor tivesse trabalhado para o Réu nessa qualidade, ou a esse título, ou seja, que tivesse realizado uma prestação de serviços para o réu.

7º E da aceitação que resulta dos pontos 3 e 4 supra, verifica-se que essa matéria factual aceite, se coaduna mais com a existência de uma subordinação jurídica, pois os indícios normalmente apontados no sentido da existência de subordinação são o de o lugar do trabalho pertencer ao empregador e os materiais serem fornecidos pelo empregador.

8º Pelo que, com a concordância das partes, transitou em julgado, o despacho saneador (art. 591º CPC), que, não considerou como assentes por acordo o que o Réu aceitou do autor no art.º 1º da sua contestação (art.º 620º, nº 1 do CPC.).

9º O acórdão de que ora se recorre, na sua decisão, apenas se refere à contestação, omitindo os demais requerimentos subsequentes e sobretudo a audiência prévia onde houve esclarecimentos ao alegado nos articulados e amplo debate oral das posições assumidas pelas partes, nomeadamente, prévio ao despacho saneador, como do mesmo consta, a fls. 4.

10º O tribunal “ a quo” não atentou à audiência prévia nem ao despacho saneador (omitindo-os completamente da sua motivação e decisão), e por isso, incorre, nomeadamente, em erro de julgamento, ao não ter tido em conta que o que foi aceite no art. 1º da contestação, não foi pelo tribunal considerado como acordo entre as partes, pelas razões dele constantes,

11º e por assim não considerar, procedeu à enunciação dos temas de prova, designadamente o ponto 1 – a que título os trabalhos do A. foram prestados ao réu -, que, seria já desnecessário ficar como tema de prova e para discussão em audiência de julgamento (onde foi amplamente discutido) e assim um ato inútil, caso o tribunal na audiência prévia tivesse acolhido a posição que a sentença e o acórdão de que se recorre acolheu na sua motivação, a fls. 28, de 6º parágrafo até final, e tinham ficado logo naquela audiência como provados.

12º No despacho saneador, após debate, é referido pelo Mmº Juíz expressamente, que, o Autor invoca uma prestação de serviços, que o Réu na sua contestação nega alguma vez ter existido, e que carece de prova a relação estabelecida entre o Autor e Réu, e daí o tema de prova 1 ter esse teor:

“Trabalhos, e a que título, efetuados pelo Autor a pedido do Réu” (sic)

13º Pelo que, e salvo sempre melhor opinião, este despacho, ficou a ter, o efeito de caso julgado formal dentro do processo (art.º 620º, nº 1 do CPC.).

14º Portanto, esta questão ou matéria essencial, ficou para prova a ser produzida em sede de audiência de julgamento, e a fixação do ponto 2 da matéria provada com o sentido que o tribunal interpretou viola frontalmente o despacho saneador, viola o caso julgado formal.

15º Logo, esta matéria factual controvertida relevante, do ponto 1 dos temas de prova, deveria ter sido dada como provada ou não provada por força do que resultou da prova produzida em audiência de julgamento, conforme decorre do disposto nos arts. 607º, nº 3, 4 e 5 (para a 1ª Instância) e 662º, nº 1 (para a Relação).

16º O tribunal da 1ª instância na sentença e o da Relação no acórdão de que se recorre, implicitamente, não aceitaram o supra transcrito, e, violaram o principio do caso julgado formal, violaram o disposto no nº 1 do art.º 620º do CPC, uma vez que a decisão desse despacho saneador já tinha sido aceite e transitado em julgado, e tanto assim foi que foi produzida prova sobre ele em audiência de julgamento,

17º e o tribunal da 1ª instância, na sentença, no ponto 2 dos factos provados, admitiu-o por acordo das partes, conforme consta da sua motivação, contrariando assim esse seu anterior despacho saneador que não tinha aceite já esse acordo e a sentença anula assim o tema de prova 1 – A que título foram prestados os trabalhos do Autor a pedido do Réu - que ficou para ser discutido como o foi e amplamente em audiência de julgamento,

16º e que, na nossa modesta opinião, teria e tem de ser dado como provado ou não provado em função da prova produzida em audiência de julgamento como decidido em audiência prévia (ou seja, após os articulados e requerimentos supervenientes alguns a pedidos do tribunal por forma a que as partes esclarecessem como esclareceram a sua posição nos articulados e após ampla discussão e debate sobre a matéria convertida em audiência prévia, de que resultou, para o tribunal da 1ª instância, o entendimento, e que dele consta, de que: cumpre apurar a que título os trabalhos foram prestados, sendo certo que tal matéria encontra-se controvertida, pois o Autor invoca uma prestação de serviços, que o Réu na sua contestação nega alguma vez ter existido (...), o tribunal na audiência prévia, entendeu assim e decidiu que, cumpre, apurar o tipo de relação contratual que existiu entre Autor e Réu e, só após apurar o enquadramento jurídico que é devido ),

17º tendo posteriormente o tribunal da Relação, ao ter aceite o decidido pela 1ª instância em sentença, nomeadamente, no ponto 2 dos factos provados, na interpretação que aí lhe é dada, que contraria o anteriormente decidido pela mesma 1ª instância em audiência prévia que entendeu aí que era controvertido e a necessitar de prova em audiência de julgamento, tendo por isso, o tribunal “ a quo”, violado também o mesmo normativo (nº 1 do art.º 620º).

18º O tribunal não pode olvidar o efeito do caso julgado que porventura já se tenha formado a montante sobre qualquer decisão ou segmento decisório, e nos termos do disposto no nº 1 do art.º 625º do C.P.C., - Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar - .

19º O acórdão de que ora se recorre, com o devido respeito e salvo sempre melhor opinião, ao não ter atendido ao caso julgado formal, violou o disposto nos art.sº 620 e 625 do CPC.

20º Aplicando-se aqui, o disposto na parte final da alínea a) do nº 2 do art.º 629º do CPC (ou na ofensa de caso julgado.), o recurso de revista é sempre admissível,

21º Termos em que, ao abrigo do disposto na alínea a) do nº 2 (violação das regras em razão da matéria ou na ofensa de caso julgado.) do art.º 629º, e nº 1 do art.º 671º, do CPC, é admissível o presente recurso de revista, como revista normal, para este mais alto tribunal, o que se requer por V.ªs Ex.ªs a sua admissão e a sua procedência.

22º O ponto 2 da matéria de facto não poder ser dado como provado (que se impugnou), desde logo, pela ofensa do caso julgado, da ofensa dos despachos proferidos em audiência prévia, nomeadamente, no despacho saneador, como já supra por nós fundamentado, matéria que é do conhecimento oficioso, ou a sê-lo, existe diferença entre a matéria de facto desse ponto 2 e a do ponto 15 que os recorrentes pretendem o seu aditamento à matéria provada.

23º Além disso, a matéria factual dos mesmos, é diferente, a saber: no ponto 2, provado, o que resulta é que o Autor exercia funções como empresário em nome individual”, e no ponto 15, que se pretende ver aditado dado ter resultado da prova produzida em audiência em resposta ao ponto 1 dos temas de prova, conclui-se com segurança e certeza, que o Autor para o Réu exerceu sempre funções como subordinado, como trabalhador por conta de outrem.

24º E, salvo sempre melhor opinião, o que interessava e interessa e ficou para se apurar em sede de audiência de julgamento determinado na audiência prévia/despacho saneador no ponto 1 dos temas de prova, não é o que o Autor era ou de que apenas se chegou a coletar nas Finanças como por ele referido em audiência de julgamento (ponto 2 provado), mas a relação contratual que na realidade tinha ou estabeleceu com o réu (como determinado na audiência prévia/despacho saneador),

25º e da prova produzida em audiência de julgamento resultou o contrário do que ele alegou, e que responde ao 1 tema de prova, ou seja, era um trabalhador do réu, pelos factos que se pretendem ver apreciados pelo tribunal “a quo”, e não foram, nomeadamente, dos que constam do ponto 15 que se quer ver aditado.

26º Assim, e, com o devido respeito, contrariamente ao entendimento do tribunal “ a quo”, o uso, pela Relação, dos poderes de alteração da decisão da 1ª instância sobre a matéria de facto deve ser usado no presente caso e com a necessária segurança, se pode concluir pela existência de falta de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados, nomeadamente, o ponto 2 provado e o ponto 15 que se pede o seu aditamento à matéria de facto provada (cf. conclusões 2º, 3º, 4º e 5º do recorrente para a Relação).

27º E esta matéria factual (nomeadamente, o ponto 15 que se quer ver aditado) objeto de impugnação, mostra-se relevante para a decisão da causa, pois da mesma resulta, que, perante o tema de prova 1 - Trabalhos, e a que título, efetuados pelo Autor a pedido do Réu -, o Autor/recorrido não provou que com o réu/recorrente tivesse realizado prestação de serviços de carpintaria a título de contrato de prestação de serviços a que se refere o art. 1154º e segs do C.C.,

28º mas sim, o que provou através do seu depoimento e declarações juntamente com as suas testemunhas (as únicas a quem as instâncias deram credibilidade) em audiência de julgamento, foi o que consta, nomeadamente, do ponto 15 da matéria de facto que se pediu que fosse apreciada e aditada, de donde se concluí com facilidade, que a prestação dos serviços de carpintaria que efetuou para o réu (cf. pontos 4, 6 e 8 da matéria de facto provada) foram todos eles sem exceção numa relação de subordinação jurídica para com o réu/recorrente a que se refere o art.º 1152º do C.C. e art. 11º do Código de Trabalho.

29º E portanto, do que resulta da prova produzida em audiência de julgamento, o que o Autor alegou em sede de articulados e posteriormente por si melhor esclarecido e defendido em amplo debate que decorreu em sede de audiência prévia, prévio ao despacho saneador e seu requerimento com Ref: 2774157, na sua alínea b), pág., 2, de que prestou serviços de carpintaria ao autor que se subsumiam a um contrato de prestação de serviços do art.º 1154º do C.C., não é verdadeiro como foi confessado em audiência pelo próprio Autor ora recorrido.

30º E por isso, o tribunal “ a quo” tinha o dever de apreciar e decidir a impugnação da matéria de facto que o recorrente lhe levou para apreciação, o que não fez, e consequentemente deveria ter tomado uma decisão de alteração da matéria de facto impugnada, até tendo em vista as várias questões plausíveis de direito (que não considerou), tendo o acórdão da Relação de ser anulado por força, nomeadamente, do disposto no art.º 682º, nº2 (por força da confissão do autor em audiência de julgamento que nos remete para o nº 3 do art.º 674º CPC) e nº 3, do C.P.C.

31º Até porque, se colocam ao tribunal várias questões de conhecimento oficioso, como o caso julgado, que o tribunal ad quem não está limitado pela iniciativa das partes (cf. artigo 635º, do C.P.C.)

32º Ainda do conhecimento oficioso, além do caso julgado, a incompetência do tribunal em razão da matéria, o abuso de direito, a litigância de má-fé, e a simulação ou fraude processual a que se refere o art. 612º do CPC, pois o autor não pode usar o expediente de, através da invocação no articulado petição inicial de um contrato de prestação de serviços do art. 1154º do C.C., conseguir por esse meio que o tribunal competente em razão da matéria fosse outro daquele que efetivamente era para o seu caso de contrato de subordinação jurídica a ser dirimido no Tribunal de Trabalho e no qual tinha o prazo de 1 ano para intentar a ação (cf. 337º, nº 1 do Código de Trabalho) como decorre do seu depoimento e suas testemunhas pela prova produzida em Julgamento.

33º É que o autor/recorrido, com o que diz em julgamento, de que era um subordinado do réu/recorrente, e dado que o tribunal lhe deu só a ele e suas testemunhas credibilidade, conseguiu, com base nisso, que o tribunal “ a quo”, não desse qualquer credibilidade ao depoimento do réu e suas testemunhas (razão de o recorrente já não se basear nelas no recurso que interpôs para a Relação), e conseguiu assim que o tribunal desse como não provada a matéria alegada pelo reú/reconvinte que se traduzia nos pontos 3 e 4 dos temas de prova, que assim resultaram não provados.

34º O autor, conseguiu, o que melhor resulta para ele da alegação de um contrato de prestação de serviços, incluindo os juros comerciais a que foi condenado o recorrente como se o autor fosse um comerciante que não é, e que são muito superiores aos legais, e o que melhor resulta para ele da prova produzida em audiência de julgamento de um contrato de subordinação jurídica ou de trabalho, que permitiu dar como não provada a matéria alegada pelo réu-recorrente (pontos 3 e 4 dos temas de prova).

35º E o conhecimento oficioso da competência material do tribunal, que foi atendido pelo tribunal na audiência prévia, deveu-se ao alegado pelo Autor/recorrido, mas, tendo em sede de audiência de julgamento se verificado que pela prova aí produzida se verifica outra realidade diferente, que resulta do próprio autor/recorrido através da sua confissão conjuntamente com a sua prova testemunhal (repete-se, únicos que o tribunal deu credibilidade de acordo com a sua convicção), e que assim, por ele foi feito, nomeadamente, um uso anormal do processo que é também do conhecimento oficioso, art.º 612º do CPC (factos constitutivos da simulação ou fraude processual), ou litigância de má-fé, art.º 542 e segs. CPC, na nossa modesta opinião, não só é legitimo como é um dever do tribunal, conhecer após a prova produzida em audiência e do que daí resultar, em sentença, o conhecimento oficioso da competência material do tribunal, sob pena de dar o visto ou anuência a essa fraude processual ou habilidade processual, que a lei repugna e não pode aceitar, sobe pena, de estar aberta a porta a muitos outros casos futuros que também se sentirão no direito de usar a mesma habilidade processual.

36º Por esta razão, e salvo sempre melhor opinião, não se concorda nem, se pode concordar com o referido no acórdão de que se recorre, nomeadamente, a págs. 34 e segs, de que “a competência dos tribunais em razão da matéria se afere em função da relação controvertida tal como é configurada pelo autor, em termos de pedido e de causa de pedir (...).

Competência essa que se fixa de acordo com tal configuração, no momento da propositura da causa, sendo como regra, irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente. “(sic)

37º Sendo a regra (cf. art.97º, nº 2 do CPC), cremos que estamos aqui agora perante uma exceção a essa regra, nos casos de simulação ou fraude processual, art. 612º, ou de litigância de má-fé, art.º 542º e segs, ambos do CPC., ambas de conhecimento oficioso, por estarem em causa sobretudo interesses de ordem pública, pode e deve, nestes casos, ser conhecida até ao trânsito em julgado da decisão, dado que se justifica plenamente, como nos parece ser a melhor e mais justa solução.

38º A interpretação literal do nº 2 do art.º 97º do CPC, como, com o devido respeito, o foi pelo tribunal “ a quo”, sem ter em devida conta o presente caso (aliás, nem poderia ter pois não conheceu da matéria de facto como por lei se impunha), sem contemplar a exceção aos casos como o dos autos, quando o autor faz um uso anormal do processo (612º CPC) ou usa de litigância de má-fé (542º CPC), ambas de conhecimento oficioso, que deve tal como o seu nº 1, ser atendida ou conhecida até ao trânsito em julgado da decisão, viola, nomeadamente, o direito a um processo equitativo, consagrado nos n.ºs 1 e 4 do artigo 20.º da Constituição, interpretado e integrado de harmonia com o artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (n.º 2 do artigo 16.º da Constituição).

39º A interpretação do tribunal “ a quo” permite que a norma transgride este direito fundamental, porquanto admite que o autor, tenha uma atuação desleal que, nomeadamente, contenderá com o direito a uma tutela jurisdicional efetiva.

40º Ora, o autor com o uso deste expediente ilegal (que só foi revelado por si em sede de audiência de julgamento, de que os trabalhos por si realizados para o réu se demonstrou serem o contrário - ou diferente - do que alegou), revela uma ofensa ao direito a um processo equitativo pela não viabilidade de, após o referido no nº 2 do art.º 97º do CPC, nestes casos, já não se se permita a arguição e declaração oficiosa da incompetência absoluta do tribunal.

41º A interpretação do nº 2 do art.º 97º do CPC, pelo tribunal “ a quo”, nos casos como os dos autos (nomeadamente, de subsunção aos artigos 612º e 542º do CPC), ofende o direito a uma tutela jurisdicional efetiva ou a um processo equitativo.

42º A interpretação do nº 2 do art.º 97º do CPC da sua admissibilidade até ao trânsito em julgado, nos casos excecionais dos artigos 665º e 542º do CPC, garante um processo equitativo que compreende o direito a ver a causa julgada por um tribunal competente, independente e imparcial, pois, trata-se de «um parâmetro fundamental para garantir o julgamento das causas pelo tribunal a que seja atribuída, constitucional e legalmente, competência absoluta», assim garantindo a realização da justiça e evitando as fraudes.

43º Da matéria de facto impugnada pelo recorrente que nos leva à conclusão da incompetência do tribunal em razão da matéria, o tribunal não apreciou, ou seja, ao não ter o Tribunal da Relação dado resposta como provado ou não provado ao tema de prova 1 que resultou da prova produzida, nomeadamente, dado como provado ou não provado o requerido aditamento 15 (supra transcrito) à matéria de facto provada, por força do que consta, nomeadamente, das conclusões 1º, 2º, 3º, 4º e 5º do recurso interposto pelo ora recorrente para o Tribunal da Relação, violou também o art. 662º,nº1, do CPC.

44º Matéria que é importantíssima, sendo o cerne da questão, pois, o autor/recorrido, não provou, como lhe competia, os factos constitutivos do seu direito, nomeadamente, não provou qualquer celebração com o réu de um contrato de prestação de serviços (art.º 342º, nº1 e 1154º e segs, do C.C.),

45º Bem pelo contrário, o que o autor/recorrido, provou, designadamente e mormente em sede de audiência de julgamento, através de si próprio e das suas testemunhas (em quem o tribunal da 1ª instância e o “ a quo” deram unicamente credibilidade) foi uma clara e inequívoca relação de subordinação jurídica com o réu, um verdadeiro contrato de trabalho,

46º Como se demonstra e verifica pelas passagens da gravação, nomeadamente, por confissão do autor, que provam estes factos deste ponto 15, ou seja, provam o ponto 1 dos temas de prova, designadamente, ouça-se no depoimento referente ao autor/recorrido, a passagem esclarecedora de (00:26:28) a (00:27:20), que supra aqui se transcreveu.

47º Resulta da prova produzida em audiência de julgamento, a Incompetência em razão da matéria do Tribunal, por efeito, da não prova em audiência de julgamento pelo autor da existência do contrato de prestação de serviços que alegou mas de subordinação jurídica que provou.

48º Resulta assim à evidencia, da prova produzida em audiência de julgamento perante o julgador, que o autor/recorrido usou de habilidade/ilegalidade, que não é admitida por lei nem pode ter o visto do tribunal,

49º ao alegar em sede de articulado uma relação contratual de prestação de serviços com o réu, só para poder intentar a ação judicial no Tribunal do ..., dado que, sabia, por força da sua relação laboral com o réu, já não lhe era possível intentar uma a ação no Tribunal de Trabalho de Vila Real face ao decurso do prazo legal de 1 ano para o poder fazer (cf. art. 337º, nº 1 do Código de Trabalho),

50º o que, só foi possível ao tribunal entender ou descobrir com a prova produzida em audiência de julgamento trazida aqui pelo próprio autor e suas testemunhas, e só na sentença oficiosamente podia o tribunal apreciar e não apreciou,

51º Assim, conclui-se, facilmente, que o autor/recorrido, deu duas versões antagónicas e contraditórias, alega o autor uma relação contratual com o réu/recorrente de prestação de serviços e depois prova ele mesmo com as suas testemunhas (e a quem o tribunal deu apenas credibilidade) em audiência de julgamento uma relação contratual de clara subordinação, de contrato de trabalho, e que o autor só apresentou nos seus articulados a primeira versão de uma relação com o réu de prestação de serviços omitindo a de subordinação que depois provou,

52º Ora, isto é, para além do mais, que V.ªs Ex.ªs mui superiormente melhor entenderão, nomeadamente, matéria de conhecimento oficioso, um uso anormal do processo por parte do autor/recorrido, dado tratar-se, salvo sempre melhor opinião, de uma simulação ou fraude processual, designadamente, por força do disposto no art.º 612º, que o tribunal “ a quo”, com o devido respeito, também violou, ao não ter atendido ou considerado tal realidade, até porque também é matéria de conhecimento oficioso, ou caso assim não seja entendido, de uso de litigância de má-fé, por força do disposto no art.º 542º e segs, matéria esta também do conhecimento oficioso.

53º Depois, e sem querer prescindir, a questão suscita outras questões, e que têm a ver, desde logo, com a norma do art. 5º, nº 2, CPC., como aí se dispõe, além dos factos articulados pelas partes – os factos essenciais a que alude o nº 1 –, o tribunal deve ainda considerar:

a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e que resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a oportunidade de se pronunciar;

c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções.

54º Assim, a concluir-se que ficaram provados os aludidos factos, a falta da sua alegação e de manifestação de vontade da ré de deles se aproveitar, não impedia que viessem a ser considerados na apreciação do mérito da causa.

55º Depois se aferirá se esses factos podem ter influência efectiva na decisão do mérito, como no presente caso têm, se a resposta for afirmativa, como cremos que é, deverá então proceder-se em conformidade com o disposto no art. 682º, nº 3, do CPC, anulando-se a decisão recorrida, o que se requer.

Sem querer prescindir,

56º É ainda admissível o presente recurso de revista, como revista normal, pelo tribunal “ a quo” não decidir da impugnação da matéria de facto, por violação dos poderes da Relação, nomeadamente, o disposto no nº 1, do art.º 662º do CPC., e que por esta razão também deve por V.ªs Ex.ªs ser admitido e julgado procedente,

57º por ser indispensável à boa aplicação do direito e à justa composição do litigio, a ampliação da matéria de facto, e que a Relação o deveria ter feito, mesmo oficiosamente, como resulta, nomeadamente, do art.º 578º do CPC.

58º Salvo sempre melhor opinião, é um fundamento, que, se enquadra, nomeadamente, no disposto na alínea b) do nº 1, do art.º 674º do CPC: “ A violação ou errada aplicação da lei do processo.” (sic), e só por si, é fundamento de recurso de revista.

59º Não obstante o disposto no nº 4 do art.º 662 do CPC, esta restrição de não caber recurso para o STJ de que fala o normativo, não é aplicável na violação da lei do processo (al. b), nº 1, art.º 674º-Fundamentos da Revista-.

60º Ora, o acórdão de que ora se recorre, violou os poderes da Relação, nomeadamente, o disposto no nº 1, do art.º 662º do CPC., violou o disposto na alínea b) do nº 1, do art.º 674º do CPC,: “ A violação ou errada aplicação da lei do processo”, ao não fazer uso ou fazer um uso deficiente na reapreciação da matéria de facto,

61º conforme resulta, designadamente, da leitura do acórdão em que não apreciou a matéria de facto, não dando como provado ou não provado, nomeadamente, o que consta das conclusões 1º, 2º, 3, 4 e 5 do recurso dos recorrentes para a Relação,

62º constata-se assim o não uso, pela Relação, nomeadamente, do disposto no nº 1, do art.º 662º do CPC., o incumprimento do dever legal conferido ao tribunal da Relação, dado verificar-se a necessidade de ser corrigida e ampliada a matéria de facto provada, com base na prova produzida em audiência de julgamento, por forma a permitir a correta aplicação do direito,

63º pelo que, do acórdão de que ora se recorre, cabe recurso de revista, normal, para este Supremo Tribunal de Justiça, o que se requer a V.ªs Ex.ªs, por este outro fundamento legal, a sua admissão, bem como a sua procedência.

64º Sem querer prescindir, um outro fundamento do recurso de revista normal, é a aplicação, do disposto no art.º 682º, nº 3 do CPC, já referido,

65º É o que resulta, designadamente, do ponto 1 dos temas de prova e resulta das conclusões 1º, 2º, 3º, 4º e 5º do recurso dos recorrentes para a Relação.

66º A decisão do tribunal “a quo” está prejudicada pela omissão de factos relevantes e sem ter sido proferida sobre eles qualquer tipo de decisão, e que se mostra necessário para constituir base suficiente para a decisão de direito.

67º O elenco dos factos provados e a inexistência de factos novos que resultaram da prova produzida em audiência de julgamento em resposta, nomeadamente, ao ponto 1 dos temas de prova, que não foram dados como provados nem como não provados pelo tribunal “ a quo”, foi influenciada pela violação ou errada aplicação da lei de processo (art. 674º, nº 1, al.b, CPC).

68º Pelo que, é fundamento da presente revista normal, a violação ou errada aplicação da lei de processo, por parte do tribunal da Relação, nos termos do disposto no art. 674º, nº 1, alínea b), do CPC., por este outro normativo legal, o disposto no art.º 682º nº 3 do CPC, dada a necessidade de ser ampliada a matéria de facto (referida, nomeadamente, nas conclusões 1º a 6º, 11º a 19º do recurso para a Relação) que não foi objeto de decisão positiva ou negativa, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, pelo que, e sem querer prescindir dos anteriores, deve por este outro fundamento, o recurso ser por V.ªs Ex.ªs, admitido e julgado procedente.

69º Sem querer prescindir e para além do supra exposto, diremos ainda, e salvo sempre melhor entendimento, que as instâncias, violaram os poderes instrutórios e inquisitórios do tribunal, o que, salvo sempre melhor opinião, configura também a violação do disposto no art. 674º, nº 1, alínea b), do CPC.

70º O direito português concede ao tribunal certos poderes instrutórios (cf. arts. CPC, 436º, nº1, 490º, nº1, 501º, 526º, nº1) e inquisitórios: quanto a estes últimos, resulta do disposto nos artigos 5º, nº2 e 6º, que o tribunal pode investigar e considerar os factos instrumentais relevantes para a decisão da causa. “ (sic)

71º O uso destes poderes instrutórios e inquisitórios é orientado, pela necessidade de procurar proferir uma decisão de acordo com a realidade das coisas.

72º Ora, a decisão de que se recorre, que permite que o presente litigio termine sem apreciação da matéria de facto pela 2ª instância, para além do mais já supra referido, impede o uso pelo tribunal dos referidos poderes instrutórios e inquisitórios, e os de conhecimento oficioso, que o direito nacional lhe concede, impede por isso, a descoberta da verdade material, impede a justa composição do litigio,

73º e permite, como permitiu, desta forma, que seja proferida, sem mais, uma decisão de mérito, que não está de acordo com a realidade das coisas, que impede a apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento, nomeadamente, sobre a resposta a dar ao ponto 1 dos temas de prova- a que título os trabalhos do autor foram prestados ao réu -, que impede a apreciação da prova produzida em sede de audiência de julgamento para o apuramento pleno dos factos, de todos os factos, dos essenciais, dos complementares e dos instrumentais, impede pois o conhecimento da realidade,

74º e que também não teve em consideração, o alegado pelo Autor e a sua contradição sobre o que alegou e o que depois disse ele e as testemunhas (únicas que o tribunal deu credibilidade) e provou, que é diferente do que alegou, só para que conseguisse um julgamento por um tribunal incompetente em razão da matéria, que só se veio efetivamente a revelar através da prova produzida em julgamento, por força dessa habilidade do autor, uma vez que, já não lhe era possível fazer os seus direitos pelo tribunal de trabalho por ter deixado passar o prazo de 1 ano para o efeito (art. 337º, nº 1 do Código de Trabalho), usando assim uma estratégia processual que os tribunais não aceitam nem podem aceitar ou validar por ser manifestamente abusiva e ilegal.

75º o que, além do mais já supra referido, torna a decisão absolutamente injusta, e violadora das normas do direito, quer subjetivo quer substantivo.

76º As instâncias, também por aqui, fizeram aplicação errada da lei de processo, o que comprometeu e compromete a correta e justa aplicação do direito, nomeadamente, a incompetência do tribunal em razão da matéria, de conhecimento oficioso.

77º O Tribunal da Relação deveria ter salvaguardado os efeitos do julgado e deveria ter usado dos seus poderes e apreciado a matéria de facto que o recorrente levou à sua apreciação através do recurso, tendo, nomeadamente, em consideração, a audiência de julgamento para ampliação da matéria de facto por forma a permitir uma correta decisão de direito,

78º Pelo que, e sem prejuízo do disposto no nº 3 do art.º 5º do CPC (apreciação oficiosa do direito), é ainda fundamento da presente revista normal, a violação ou errada aplicação da lei de processo, por parte do tribunal da Relação, nos termos do disposto no art. 674º, nº 1, alínea b), bem como por força do disposto no art. 682º, nº 3, ambos do CPC, por aquele tribunal ter violado, nomeadamente, o disposto nos artigos 620º, nº1, 625º, 662º, nº 1, 578º, 5º, nº 2, 591º, nº1, al. c), d), f) e 595º, nº1, al. a), nº2 , nº3, 596º, nºs 1 a 3, todos do CPC.

79º Foi violado pelo tribunal “ a quo” toda a legislação e normativos referidos na motivação e conclusões do presente recurso.

Termos em que, deve o presente recurso ser por V.ªs Ex.ªs admitido como revista normal, com fundamento em violação ou errada aplicação da lei de processo por parte do tribunal “ a quo”, que levou a uma errada aplicação do direito, nomeadamente incompetência material do tribunal de ... e ofensa do caso julgado, deve este Supremo Tribunal determinar a remessa dos autos à Relação, para que aqui se cumpra, nomeadamente o determinado no nº 1 do art.º 662º do CPC, e aprecie a prova produzida em audiência de julgamento designadamente no que respeita ao ponto 1 dos temas de prova, e se apreciem os factos que, foram alegados pelos ora recorrentes na sua motivação e nas suas conclusões, impugnados pelo recorrente, e que não foram objeto de decisão positiva ou negativa por parte da Relação, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, com as devidas consequências legais, como ato de inteira e sã justiça,”

11. Não foram apresentadas contra alegações.

12. O Tribunal da Relação proferiu despacho de admissão do recurso de revista nos seguintes termos: “Considerando o fundamento aduzido pelo recorrente para a interposição do presente recurso de revista do acórdão proferido nos autos, sustentado na alegada ofensa do caso julgado formal e, independentemente do valor da acção (inferior à alçada da Relação) e da confirmação da decisão da 1ª instância, face à ampliação da recorribilidade prevista no artigo 629 n.2 al. a) in fine, do CPC, tendo o recorrente legitimidade e estando em tempo, admite-se o recurso de revista interposto.”

13. Colheram-se os vistos legais.


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II. Do objeto do recurso de revista

Salvas as matérias de conhecimento oficioso, o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas pelo recorrente, não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas (arts. 635, nº 4, e 639º, nº 1, ex vi do art. 679º, todos do CPC).

Assim, são as seguintes as questões suscitadas pelo Recorrente:

a. Da violação do caso julgado formal;

b. Da incompetência material do Tribunal (porque, segundo diz o Recorrente, a competência material terá resultado de abuso de direito, de litigância de má-fé, de simulação e de fraude processual decorrente da invocação, pelo A., de um contrato de prestação de serviços e não de um contrato de trabalho, mais invocando a violação do art. 97º, nº 2, do CPC e o direito a um processo equitativo, consagrado no art. 20º, nºs 1 e 4, da CRP e o art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem ição).alegando a violação do art. 97º, nº 2, do CPC;

c. Se o nº 2 dos factos provados não pode ser dado como provado por [para além de violar o caso julgado formal a que se reporta a questão mencionada em a)] estar em contradição com o nº 15 que a Recorrente pretende aditar à matéria de facto provada, e violação, quanto aos mesmos, do art. 662º, nº 1, do CPC;

d. Da violação, pela Relação, dos poderes conferidos no nº 1, do art.º 662º do CPC, violação do disposto na alínea b) do nº 1, do art.º 674º do CPC e se, nos termos do art. 682º, nº 3, do CPC, o acórdão recorrido deve ser anulado para aditamento da matéria de facto indicada nas conclusões 1 a 6 e 11 a 19 do recurso de apelação.

e. Da inexistência de um contrato de prestação de serviços, mas sim de um contrato de trabalho (o qual teria resultado da prova produzida em audiência de julgamento).


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III. Da admissibilidade do recurso de revista

1. Dispõe o art. 629º, nº 1, do CPC, que “1 - O recurso ordinário só é admissível quando a causa tenha valor superior à alçada do tribunal de que se recorre e a decisão impugnada seja desfavorável ao recorrente em valor superior a metade da alçada desse tribunal, atendendo-se, em caso de fundada dúvida acerca do valor da sucumbência, somente ao valor da causa”, pressupostos esses de verificação cumulativa e sendo de €30.000,00 o valor da alçada da Relação.

Diz o Recorrente que o recurso de revista “normal” [supõe-se que se reporta ao recurso previsto nos arts. 629º, nº 1, e 671º, nº 1] sempre seria admissível com fundamento na violação, pelo Tribunal da Relação, do art. 662º, nº 1, do CPC por não conhecimento, pela Relação, da impugnação da decisão da matéria de facto que havia sido solicitada no recurso de apelação, mormente da sua ampliação, a qual se mostra necessária à boa aplicação do direito e enquadrando-se no disposto nos arts. 674º, nº 1, al. b), e 682º, nº 3, do CPC, preceitos que teriam sido violados

A presente ação tem o valor de €12.985,00, inferior, pois à alçada do Tribunal da Relação (e é, também, inferior a metade dessa alçada), pelo que, nos termos do art. 629º, nº 1, do CPC, o recurso de revista não é admissível (sem prejuízo do que se dirá no ponto seguinte) não assistindo razão ao Recorrente na argumentação que invoca.

Com efeito, os mencionados fundamentos não dispensam a verificação do pressuposto prévio de admissibilidade do recurso relativo ao valor da ação e que, no caso e como referido, não se verifica. Ou, dito de outro modo, não se tratam de fundamentos que dispensem a verificação de tal pressuposto, tal como ocorre nos casos previstos no nº 2 do art. 629º, nos quais tais fundamentos não se enquadram.

2. Mas a Recorrente invoca ainda, como fundamento da revista, a violação do caso julgado e a incompetência material do Tribunal, questões que se enquadram no nº 2, al. a), do citado art. 629º, nos termos do qual “2. Independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso: a) Com fundamento na violação (…) das regras de competência em razão da matéria ou na ofensa de caso julgado;

Assim, importa apreciar das invocadas existência de ofensa de caso julgado formal e da incompetência material do tribunal, sendo o recurso de revista restrito à apreciação dessas duas questões e não já das demais invocadas.


***


IV. Fundamentação de facto

É a seguinte a decisão da matéria de facto constante do acórdão recorrido (bem como da sentença)1:

“A. Dos Factos Provados

1. O Autor AA e o Réu BB trabalhavam ambos como ... na empresa C..., Lda, que alteração a sua designação para J...,Lda que foi declarada insolvente em 2007, tendo autor e réu ficados desempregados.

2. Entre Outubro de 2008 e até Abril de 2017, o Autor exercia funções inerentes à atividade profissional de ... como empresário em nome individual.

3. O Réu é empresário em nome individual no âmbito da atividade profissional de trabalhos de montagem de carpintaria e caixilharia em madeira, o que exerce num estabelecimento de carpintaria que possui na localidade de ..., concelho no ....

4. No último trimestre do ano de 2008, o Autor e o Réu acordaram que o Autor passaria a prestar diversos serviços de mão-de-obra inerentes à atividade de carpintaria, de transformação e montagem de artigos em madeira e construção de mobiliário de madeira para o Réu em obras por este indicadas, mediante o pagamento por parte deste último do montante de € 5,00 por cada hora de serviços prestados.

5. Ficou ainda acordado que Autor e Réu só fariam contas entre si após a cada umas obras estarem concluídas e os clientes realizar o pagamento.

6. No período referido em -2, o Autor realizou diversos serviços inerentes à referida atividade de carpintaria, de transformação e montagem de artigos em madeira e construção de mobiliário de madeira, para o Réu, nomeadamente montagem de móveis; levantamento e aplicação de soalhos; levantamento e aplicação de rodapés; fabrico e montagem de portas; fabrico e montagem de janelas; fabrico de molduras; fabrico de quadros; fabrico de tripés; fabrico e montagem de estantes; montagem de paredes; restauro de móveis; corte de chapas, almofadas e outros tipos de madeira; montagem e desmontagem de vigamento em madeira de tetos; lixagem e acabamento de mobiliário e outras peças em madeira.

7. Os materiais necessários para os serviços referidos em -4 eram fornecidos pelo Réu.

8. Os serviços referidos em -6 eram efectuados na oficina/carpintaria do Réu indicada em -3 e nas obras dos clientes do Réu.

9. Por conta do acordo referido em -4, o Autor prestou cerca de 3.690 horas nos seguintes serviços de mão de obra, num total de € 17.450,00 e que abaixo se identificam:

(…) 2

10. O autor procedia ao registo do número de horas de serviços prestados ao Réu em cadernos adquiridos para o efeito, a fim de posterior conferência aquando dos recebimentos dos pagamentos do Ré.

11. O Réu também possuía um caderno onde efetuava o registo do número de horas de serviços que o Autor lhe prestava, caderno esse que geralmente ficava na oficina/carpintaria e não raras vezes era o Autor quem ali e a pedido do Réu efetuava os competentes registos, para que o Réu pudesse ter conhecimento do número de horas de serviços prestadas.

12. Durante o período de tempo em que vigorou o acordo referido em -4, o Autor procedeu, em momentos não concretamente apurados, ao pagamento da quantia de €6.730,00 que o Réu imputou aos valores referidos em -9.

13. O Autor, a 3 de Outubro de 2019, interpelou o Réu para o pagamento do montante de €10.720,00 (€17.450,00 – €6.730,00) concedendo-lhe o prazo de 15 dias para proceder ao seu pagamento.

14. A carta referida em -13 foi recepcionada no dia 4 de Outubro de 2019.

B. Factos Não provados

a. Que o Réu procedeu ao pagamento do montante referido em -13;

b. Que o autor exigia o pagamento dos trabalhos realizados em dinheiro.

c. O Autor trabalhava para os seus próprios clientes na oficina de carpintaria do Réu, utilizando os materiais e a maquinaria deste último.

d. O Autor e o Réu acordaram que os materiais que o Autor necessitasse para os trabalhos dos seus próprios clientes eram encomendados e adquiridos pelo Réu, sendo que o Autor depois pagaria ao Réu esses materiais.

e. O Autor e o Réu acordaram que o Autor pagaria ao réu o uso da oficina, pela utilização das máquinas e ferramentas do réu que ali se encontram e pelos consumos de luz e água que fazia.

f. O Autor usava e guiava a carrinha do réu para transporte de material para si e seus clientes.

g. Nos trabalhos em que o autor ajudava o Réu, os clientes do réu pagavam directamente ao autor a ajuda ou trabalho que este ali fizesse.

h. o autor também utilizou os materiais do Réu para trabalhos seus pessoais na sua casa e da sua ex-mulher, quando esteve casado e quando esteve divorciado.

i. O Autor pediu a ajuda ou colaboração do réu, nomeadamente em trabalhos de envernizamento e pintura, e que o autor ainda não lhos pagou.

j. Que o Réu tenha prestado serviços de carpintaria para o Autor ou para clientes deste.

k. O autor para si e para obras dos seus clientes ficou a dever ao réu, os seguintes materiais que encomendou ao réu, e que este adquiria no fornecedor e pagava, num total de € 940,00:

1- 24 metros rodapé mogno contraplacado marítimo, no valor de = € 240,00;

2- 5 metros guarnição mogno 7 x 15, no valor de = € 40,00;

3- 2 chapas chopo contraplacado marítimo 2, 50 x 1,83 x 1,6 = € 170,00;

4 – 2 chapas faia laminado , 3,60 x 1,83 x 1,6 = € 150,00;

5 – 1 chapa chopo contraplacado marítimo, 2, 50 x 1,83 x 1,9 = € 95,00;

6 – 1 chapa castanho folhado, 250 x 1,83 x 1,9 = € 90,00;

7 – 1 chapa mogno contraplacado marítimo 2,50 x 1,85 x 8 = € 120,00;

8 – 1 orla faia folha natural = € 35,00

l. Pela ajuda do réu ao autor na execução desses trabalhos do autor, nomeadamente, envernizamento à pistola, no valor de € 5,00 hora x 45 horas = € 225,00,

m. Trabalhos com o verniz, tapa poros e velaturas, no valor de € 375,00,

n. O valor que o autor lhe ficou a dever pelos serviços de ajuda que o réu lhe prestou foi de € 600,00,

o. Ficou ainda o autor a dever ao réu, o material para uma obra em ... da sogra dele, bem como não pagou a utilização da carrinha do réu, que aquele usou para transportar esse material,

p. Bem como o material e trabalho para casa da ex-mulher do autor para o tio da ex-mulher que vive no ..., para a casa dos pais do autor depois de se divorciar,

q. Foi acordado entre autor e réu que pelo uso e utilização do que era do réu, para a atividade do autor, o pagamento pelo autor ao réu, o valor diário de € 5,00 x 22 dias = €110,00 x 12 meses = € 1.320 x 9 anos = € 11.880,00 que o autor não pagou.


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V. Fundamentação de Direito

1. Da violação do caso julgado formal

A sustentar a alegada violação do caso julgado formal (art. 620º do CPC), invoca o Recorrente o trânsito em julgado do nº 1 dos temas da prova (constante do despacho saneador) na parte em que considerou carecer de prova apurar “a que título” os trabalhos foram efetuados pelo Autor. E, assim, conclui que não poderia ter sido dado como provado o nº 2 dos factos provados com base no acordo das partes, devendo o facto ter sido dado como provado, ou não provado, de acordo com a prova produzida em audiência de julgamento.

1.1. Dispõe o art. 620º, nº 1, do CPC, que: “1. As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo” e o art. 625º do mesmo, que “1. Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar. 2. É aplicável o mesmo princípio à contradição existente entre duas decisões que, dentro do processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.”.

O caso julgado formal restringe-se às decisões que apreciam matéria de direito adjetivo, produzindo efeitos limitados ao próprio processo e o despacho que recai sobre a relação processual é todo aquele que, em qualquer momento do processo, aprecia e decide uma questão que não seja de mérito – cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, p. 802.

O caso julgado visa, essencialmente, obstar à contradição prática entre duas decisões – decisões contraditórias concretamente incompatíveis –, ou seja, visa evitar que o tribunal decida de modo diverso sobre o direito ou questão concreta já definida por decisão anterior, evitando colocar o tribunal na situação de se contradizer (ou de reafirmar o que já havia sido decidido).

Diz Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos sobre o Novo Processo Civil, Março/Julho de 1996, Lex, pp. 338, que “[o] caso julgado da decisão possui também um valor enunciativo; essa eficácia de caso julgado exclui implicitamente toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada. Excluída está, desde logo, a situação contraditória (…). Além disso está também excluído todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele que se encontra numa relação de exclusão com o que foi definido na decisão transitada. (…)”.

Como vem sendo entendido, deve recorrer-se à parte motivadora da sentença quando tal se mostre necessário para reconstruir e fixar o real conteúdo da decisão, isto é, para interpretar e determinar o verdadeiro sentido e o exato conteúdo da sentença em causa 3.

Relevam também os arts. 571º a 574º, 595º, 596º e 607º, nº 4, do CPC, dos quais resulta que:

- na contestação, cabe tanto a defesa por impugnação, como por exceção [art. 571º/1], devendo o réu nela expor as razões de facto e de direito por que se opõe à pretensão do autor e, bem assim, os factos essenciais em que se baseiam as exceções que invoque [art. 572º/1-b) e c)]; toda a defesa deve ser deduzida na contestação, só podendo ser, posteriormente, deduzidas exceções, incidentes e meios e defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente [art. 573º/1 e 2]; ao contestar, o réu deve tomar posição definida perante os factos que constituem a causa de pedir invocada pelo autor, considerando-se admitidos por acordo os factos que não forem impugnados, “salvo se estiverem em oposição com a defesa considerada no seu conjunto, se não for admissível confissão sobre eles ou se só puderem ser provados por documento escrito; a admissão de factos instrumentais pode ser afastada por prova posterior” [art. 574º/1 e 2].

- Terminados os articulados, é proferido despacho saneador com os fins previstos no art. 595º, nº 1, quais sejam: conhecer das exceções dilatórias e nulidades processuais que hajam sido suscitadas pelas partes, ou que, face aos elementos constantes dos autos, deva apreciar oficiosamente [al. a)] e conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial do pedido ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória [al.b]; o despacho, logo que transite em julgado, na situação prevista no nº 1, al. a), constitui caso julgado formal quanto às questões concretamente apreciadas e, na situação prevista na al. b), fica tendo o valor de sentença [nº 3]; não cabe recurso da decisão do juiz que, por falta de elementos, relegue para final a decisão da matéria que lhe cumpra conhecer [nº 4].

- Conforme art. 596º, proferido o despacho saneador, quando a ação haja que prosseguir, o juiz profere despacho destinado a identificar o objeto do litígio e a enunciar os temas da prova [nº 1], do qual as partes podem reclamar [nº 2]; o despacho proferido sobre as reclamações apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisão final [nº 3].

- Finalmente, dispõe o art. 607º, nºs 4 e 5, que: “4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência. 5 - O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes. [sublinhados nossos].

1.2. Revertendo ao caso em apreço:

Do nº 2 dos factos provados, ora em questão, consta o seguinte: “2. Entre Outubro de 2008 e até Abril de 2017, o Autor exercia funções inerentes à atividade profissional de ... como empresário em nome individual.”

O Autor, na p.i., pediu a condenação do Réu no pagamento da quantia indicada no pedido, invocando como causa de pedir a celebração entre as partes, em outubro de 2008, de um contrato de prestação de serviços, no âmbito do qual, desde essa data e até meados de 2017, aquele prestou serviços ao Réu que não lhe foram pagos, encontrando-se em dívida o montante peticionado.

Para o efeito, alegou na petição inicial, para além do mais, o seguinte: “1. O Autor é pessoa singular, que, à data dos factos exercia funções inerentes à atividade profissional de ... como empresário em nome individual. 2. Por sua vez, o Réu é igualmente pessoa singular e empresário em nome individual no âmbito da atividade profissional de trabalhos de montagem de carpintaria e caixilharia em madeira, o que exerce num estabelecimento de carpintaria que possui na localidade de ..., concelho no ... (Docs. n.º 1 e 2 que se juntam e se consideram por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos). Dito isto, 3. No último trimestre do ano de 2008, o A. e o R. celebraram um contrato através do qual o A. se obrigou a prestar diversos serviços de mão-de-obra inerentes à atividade de carpintaria, de transformação e montagem de artigos em madeira e construção de mobiliário de madeira para o R. e obras por este indicadas, e este por sua vez se obrigou no pagamento do preço que ambas as partes acordaram no valor de €5,00 (cinco euros), por cada hora de serviços prestados. 4. Nesse seguimento, no período compreendido entre Outubro de 2008 e até meados do ano de 2017, o A. prestou diversos serviços inerentes à referida atividade de carpintaria, de transformação e montagem de artigos em madeira e construção de mobiliário de madeira, para o R. sendo todos os materiais fornecidos por este.” [sublinhado nosso]

Na contestação o Réu:

- No art. 1º, referiu o seguinte:

“1º O réu aceita as confissões expressas na petição inicial dos seguintes factos nela contidos, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2 do art.º 465º do C.P.C., a saber:

Os factos constantes da petição inicial nos seus artigos,

1. O Autor à data dos factos exercia funções inerentes à atividade profissional de ... como empresário em nome individual”;

2. O Réu igualmente exercia funções inerentes à atividade profissional de ... como empresário em nome individual;

2. A atividade de carpintaria era exercida pelos autor e réu num estabelecimento de carpintaria pertença do réu que possui na localidade de ... (também no inicio do art.º 5 da p.i. e segunda parte do art.º 21. da p.i.);

4. Todos os materiais eram fornecidos pelo réu (parte final do artigo 4. da p.i., e inicio do artigo 21º da p.i.);

16. O Réu pagou ao Autor o montante de € 6.730,00, pelas horas de serviços prestados pelo autor para o réu[sublinhados nossos].

- No mais, impugnou a existência do alegado contrato de prestação de serviços, defendendo que a relação entre as partes era, apenas, de entreajuda mútua. Para tanto e relembrando o Réu, ora Recorrente, foi este próprio quem, na contestação, alegou designadamente o seguinte:

“(…) 6º Autor e réu foram ambos para o desemprego onde estiveram cerca de 1 ano; 7º O réu depois coletou-se como empresário em nome individual e começou a trabalhar para si na garagem da sua habitação em ... onde ainda hoje trabalha, 8º O autor também se coletou como empresário em nome individual e começou também a trabalhar para si, (…) 11º O Autor como não tinha local para trabalhar por conta própria, foi pedir ao réu para trabalhar na garagem dele, (…); 14º O Réu disse ao autor que não tinha qualquer possibilidade de ter pessoas a trabalhar com ele, pois estava no início de vida de trabalhador por sua conta e o trabalho era pouco e chegava bem só para ele, 15º O autor retorquiu dizendo que também ele se tinha coletado como trabalhador por sua conta, e se podia assim trabalhar na garagem dele, 16º Perante a insistência do autor e dado este também estar na mesma situação do réu, acabaram ambos por fazer um acordo, 17º trabalhavam ambos por conta própria como já era vontade deles, tendo ambos se coletado nas finanças na atividade profissional de ... como empresários em nome individual, para esse efeito, 18º E depois, ajudariam se mutuamente, nos trabalhos do réu o autor ajudava o réu se necessário fosse e nos trabalhos do autor o réu ajudava o autor se necessário fosse, 19º Ou seja, só quando houvesse trabalho que o justificasse é que pediam a ajuda um do outro, 20º e só quando ambos recebessem ou fossem pagos dos trabalhos que tivessem é que ambos receberiam pelo trabalho que fizessem na ajuda que prestassem ao outro, (…) 22º bem como não podiam, nem o réu ainda hoje pode, terem empregados e poderem pagar ordenados, dado ambos estarem a começar a sua atividade como empresários em nome individual, 23º e, nesses termos acordados, passaram ambos a trabalharem cada um por si para os seus clientes pessoais e ajudando o outro quando fosse necessário, 24º e passaram a trabalhar ambos como empresários em nome individual na garagem da habitação do réu sita em ..., no concelho de ..., 25º já que o autor não tinha um local seu, nem máquinas ou ferramentas suas, para trabalhar para os seus clientes como empresário que era em nome individual, à exceção das suas ferramentas pessoais de trabalho (…).26º e os materiais para os trabalhos de cada um na referida atividade de carpintaria eram adquiridos ou fornecidos pelo réu que os colocava depois na sua garagem da habitação (como já confessado pelo autor e supra aceite pelo réu), 27º e depois o autor teria de pagar ao réu os materiais que pediu a este para os seus trabalhos e dos seus clientes, 28º assim como ficou ainda, o autor, de pagar ao réu o uso da garagem da habitação do réu, pela utilização do seu espaço, pela utilização das máquinas e ferramentas do réu que ali se encontram e pelos consumos de luz e água que fazia e cujos contadores estavam e estão em nome do réu e são pagos a estas entidades pelo réu, 29º ou seja, pela utilização da garagem do réu na atividade de carpintaria que ali o autor exercia para si e seus clientes, como empresário em nome individual, 30º e no âmbito do acordado e para poder facilmente fazer os seus trabalhos, o autor tinha também as chaves da garagem da habitação do réu onde faziam os trabalhos de carpintaria, 31º o que permitia ao autor usar a garagem as vezes que queria e ficava por lá muitas vezes sozinho a fazer trabalhos para si e seus clientes, podia e ia para lá sempre quando bem queria e entendia e saia também quando assim o quisesse e entendesse, (…)32º E o autor para os seus trabalhos pessoais e dos seus clientes, também usava e dispunha as vezes que o entendesse dos bens propriedade do réu que se encontravam na garagem deste, como parafusos, espumas e outros acessórios. 33º assim como também usava e guiava o autor a carrinha do réu para transporte de material para si e seus clientes na sua atividade como empresário em nome individual, 34º O autor dos trabalhos dele para clientes dele recebia ele diretamente dos seus clientes, 35º e muitas das vezes, para trabalhos de ajuda ao réu, os clientes do réu pagavam diretamente ao autor a ajuda ou trabalho que este ali fizesse. (…) 39º e só depois de receberem do cliente, é que o autor e o réu faziam contas, como ficou desde inicio entre os dois acordado, como colegas de profissão, ambos empresários em nome individual no ramo da carpintaria, que eram. (…)” [sublinhados nossos].

Na audiência prévia, foi proferido despacho saneador, tendo a Mmª Juíza relegado para final o conhecimento da exceção da prescrição referindo o seguinte:

“O Tribunal, quanto à invocada excepção da prescrição, entende que a mesma carece de prova, pelo que, apenas será conhecida a final.

Com efeito, como se verá a propósito do objeto do litigio e temas da prova, cumpre, antes de mais, apurar o tipo de relação contratual que existiu entre Autor e Réu e, só após apurar o enquadramento jurídico que é devido, poderá conhecer-se a invocada excepção da prescrição”.

Foi também identificado o objeto do litígio, nele indicando-se “1 – Valores devidos pelo Réu ao Autor e créditos de que o Réu seja titular perante o Autor, reclamados subsidiariamente na contestação”, bem como os temas da prova, constando o seguinte:

Temas da prova

Considerando o teor dos articulados das partes, apresentam-se como temas de prova os seguintes:

1- Trabalhos, e a que título, efetuados pelo Autor a pedido do Réu e respetivos valores em dívida.

(…)”

O Réu “reclamou” alegando que o Tribunal “estava já em condições de considerar verificada a prescrição para o efeito do disposto nos arts. 298º , 312º e 317º, al. c) do todos do Código do Processo Civil”, na sequência do que a Mmª Juiz proferiu despacho do qual consta que:

“O Tribunal entende que não está em condições de conhecer a excepção invocada, uma vez que, tratando-se de prescrição presuntiva, além da alegação inequívoca do pagamento, cumpre apurar a que título os trabalhos foram prestados, sendo certo que tal matéria encontra-se controvertida, pois o Autor invoca uma prestação de serviços, que o Réu na sua contestação nega alguma vez ter existido, esclarecendo que, na sequência do desemprego de ambos, começaram a trabalhar individualmente e que os trabalhos prestados pelo Réu eram feitos diretamente aos clientes, sendo que a relação entre ambos era de (entreajuda) com partilha de instalações.

Neste sentido reitera-se que carece de prova a relação estabelecida entre Autor e Réu para depois apurar se se verifica a prescrição presuntiva invocada que se destina aos créditos prestados no exercício de profissões liberais.” [sublinhado nosso]

Realizada a audiência de julgamento, com produção de prova, foi proferida sentença, na qual se deu como provado o facto constante do nº 2, já acima referido e ora em questão;: “2. Entre Outubro de 2008 e até Abril de 2017, o Autor exercia funções inerentes à atividade profissional de ... como empresário em nome individual.

E, na fundamentação da decisão da matéria de facto, a propósito de tal ponto, a Mmª Juíza referiu o seguinte: “Quanto aos factos provados 2 e 3, a sua prova resulta do acordo das partes, tendo em consideração a posição assumida nos respectivos articulados.

1.2.1. Carece o Recorrente de razão, não se verificando a invocada exceção do caso julgado formal.

Desde logo há que dizer que, sem margem para qualquer dúvida, o Réu, ora Recorrente, aceitou expressamente o que consta do nº 2 dos factos provados, como decorre do que alegou no art. 1º da contestação, para além de que, em sucessivos outros artigos da mesma peça processual, acima transcritos, ele próprio, Réu, o alegou e/ou o aceitou. O facto encontra-se, pois, plenamente provado por acordo das partes nos articulados.

Mas avançando.

A circunstância de se levar aos temas da prova determinado facto ou “questão”, por ter sido a mesma considerada controvertida, não é impeditiva de que o facto seja, posteriormente, tido como assente caso o mesmo esteja, nos termos do art. 607º, nºs 4 e 5, plenamente provado por acordo das partes nos articulados (ou por documento ou confissão). É, aliás, tal preceito que impõe a consideração, na sentença, dos factos que se encontrem plenamente provados, preceito que prevalece sobre a delimitação que, com a indicação dos temas da prova, haja sido efetuada.

E, por outro lado, a enunciação dos temas da prova não constitui decisão que faça caso julgado formal, dizendo, a este propósito António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luis Filipe Pires de Sousa, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, pp. 754/755, em anotação ao art. 596º, que:

«21. Com as devidas adaptações, permanece válida a jurisprudência que foi fixada pelo Assento nº 14/94: “No domínio da vigência do CPC de 1939 e 1961 (considerado este último antes e depois da reforma nele introduzida pelo DL nº 242/85, de 9.7), a especificação, tenha ou não havido reclamação, tenha ou não havido impugnação do despacho que as decidiu, pode sempre ser alterada, mesmo na ausência de causas supervenientes, até ao trânsito em julgado da decisão final do litígio”. Ou seja, a enunciação dos temas da prova não corresponde a nenhuma decisão definitiva no processo, que adquira força de caso julgado formal (STJ 20.1.22, 1084/12, STJ 12-12-21, 2952/15)”.

Pese embora a diferença entre a então (no CPC revogado) designada “especificação” e “questionário” e a atual identificação dos “temas da prova”, esta caraterizada por uma muito maior flexibilidade, não deixa de, por maioria de razão, se poder fazer a analogia com o entendimento sufragado no acima mencionado “Assento” no sentido de que a mera indicação dos temas da prova não faz caso julgado formal, não obstando a que os factos que tenham sido admitidos por acordo das partes nos articulados devam ser tidos em conta na sentença (art. 607º, nºs 4 e 5, do CPC).

Acresce que a referência, no nº 1 dos temas da prova, ao “título” a que eram prestados os trabalhos pelo Autor tem de ser conjugada com o alegado pelas partes nos articulados, sendo que o que decorre da causa de pedir e da defesa do Réu, é que o que era controvertido não era o art. 1º da p.i. (que corresponde ao nº 2 dos factos provados), mas sim saber se esses trabalhos eram prestados pelo A. no âmbito de um contrato de prestação de serviços, como por este alegado, ou se inseriam numa relação de apenas “entreajuda”, como defendido pelo Réu. E, a este contexto, e apenas a este (e não a qualquer outro), se reporta a referência, no nº 1 dos temas da prova, ao “título” a que foram os trabalhos realizados pelo A.

Improcede, pois, o invocado fundamento – violação do caso julgado – do recurso de revista, pelo que, com base nele, o recurso de revista não é admissível.

2. Da incompetência material do Tribunal

Invoca o Recorrente a incompetência material do Tribunal Cível entendendo que seria materialmente competente o Tribunal do Trabalho, o que, em síntese das suas prolixas conclusões, sustenta na seguinte argumentação: da prova produzida em audiência de julgamento, e apenas desta, resultou que a relação contratual existente entre as partes consubstancia um contrato de trabalho, e não um contrato de prestação de serviços, pelo que, em sede de recurso de apelação, impugnou o nº 2 dos factos provados e requereu o aditamento à matéria de facto provada de outros factos, entre os quais o constante do nº 15 4 do aditamento nela (apelação) requerido; o A., ao invocar um contrato de prestação de serviços, conseguiu, por isso, que fosse outro (que não o Tribunal do Trabalho) o materialmente competente, assim se eximindo ao prazo de prescrição de um ano previsto no art. 337º, nº 1, do Código do Trabalho (aprovado pela Lei 7/2009, de 12.02), pelo que atuou em abuso de direito, com litigância de má-fé, em simulação e fraude processual (art. 612º do CPC), o que, tudo, é de conhecimento oficioso; o acórdão recorrido, ao não julgar verificada a incompetência material, violou assim e também o direito a um processo equitativo consagrado no art. 20º, nºs 1 e 4, da CRP e no art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, bem como o art. 97º, nº 2, da CPC.

2.1. No acórdão recorrido, após se elencarem os factos cujo aditamento o Réu/Recorrente pretendia 5, referiu-se, para além do mais, o seguinte:

No que se refere ao aditamento de factos supra elencados com a numeração de 15. a 25., que o recorrente entende estarem omissos da decisão de facto e cujo objectivo é, como expressamente refere, a alteração da qualificação jurídica do contrato feita na sentença e gizada absolvição do réu da instância por, em seu entender, o tribunal não ser competente materialmente para a sua apreciação, verifica-se que a dita alegação de “factos” e sua pretendida qualificação como “contrato de trabalho” e não “prestação de serviços” é feita apenas agora, em sede de recurso, de forma inovadora e absolutamente contraditória com a versão dos factos e circunstâncias do acordo celebrado, expressamente alegados nos articulados da acção, mais concretamente, na contestação (veja-se arts. 14 a 20, 22 a 24, 38º a 41º e bem assim, a invocada “compensação” pelo valor alegadamente acordado com o autor pela utilização por este das instalações e equipamentos do réu, factos contrários à afirmação de uma relação laboral(!), estando por isso, também ela votada ao insucesso.

(…)

Nessa medida, o requerido aditamento de factos gizado no recurso para ver alterada a qualificação do contrato celebrado entre as partes, mostra-se inevitavelmente votado ao insucesso, pois para além de tal matéria (e sua qualificação) não ter sido oportunamente alegada e por isso sujeita a apreciação pelo tribunal recorrido, mostra-se também ela absolutamente contraditória com a versão que antes apresentou no processo, pelo que configurando uma “questão nova”6, está fora da alçada de conhecimento por este tribunal de recurso.

(…)

Em suma e por todas as razões expostas, o aditamento requerido está votado à sua improcedência.

Aqui chegados e como acima referido, a pretensão subjacente ao dito aditamento visava em diversa qualificação do contrato- como de trabalho-, assentar a arguição da incompetência material do tribunal recorrido. Tal arguição, contudo, ainda que se concluísse por diversa a qualificação do contrato alegado na petição inicial e acolhido na sentença, o que não sucede, não deixaria de estar, ainda assim, votada ao insucesso.

Na verdade, a competência dos tribunais em razão da matéria afere-se em função da relação jurídica controvertida tal como é configurada pelo autor, em termos do pedido e da causa de pedir e da própria natureza dos sujeitos processuais. Competência essa que se fixa, de acordo com tal configuração, no momento da propositura da causa, sendo, como regra, irrelevantes as modificações de facto e de direito que ocorram posteriormente7.

É isso que nos diz a lei ao referir no artº. 38º (sobre a epigrafe “fixação da competência”) da atual Lei da Organização do Sistema Judiciário – LOSJ- (Lei 62/2013, de 26/08), depois de no artigo 37º, nº. 1, dispor que na ordem jurídica interna a competência se reparte pelos tribunais judiciais, segundo a matéria, o valor, a hierarquia e o território, que a “competência fixa-se no momento em que ação se propõe, sendo irrelevantes as modificações de facto que ocorram posteriormente, não a ser nos casos especialmente previstos a lei” (nº. 1), sendo “igualmente irrelevantes as modificações de direito, exceto se for suprimido o orgão a que a causa estava afeta ou lhe for atribuída competência de que inicialmente para conhecer da causa” (nº. 2). (sublinhado nosso).

Como se escreveu no acórdão do Tribunal de Conflitos proferido em 1-10-2015 (conflito n.º 8/14), publicado em www.dgsi.pt, “A competência é questão que se resolve de acordo com os termos da pretensão do Autor, aí compreendidos os respectivos fundamentos e a identidade das partes, não importando averiguar quais deviam ser os termos dessa pretensão, considerando a realidade fáctica efectivamente existente ou o correcto entendimento do regime jurídico aplicável. O Tribunal dos Conflitos tem reafirmado constantemente que o que releva, para o efeito do estabelecimento da competência, é o modo como o Autor estrutura a causa e exprime a sua pretensão em juízo”8.

Posto isto, verificando-se que no caso em apreço o pedido que está em questão na acção é o de condenação do réu no pagamento da quantia de 10.720€ e, segundo os termos da petição, o direito de exigir o pagamento de tal quantia emerge de um contrato de prestação de serviços celebrado com o réu e não de uma relação de trabalho subordinado, resulta indiscutível que a causa de pedir é estruturada na existência de uma relação contratual de prestação de serviços, pelo que, considerando as regras da competência legalmente estabelecidas (n.º 1 do artigo 211.º da Constituição da República Portuguesa, do n.º 1 do artigo 40.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOSJ) e do artigo 64.º do CPC) resulta manifesto que, para a apreciação do litígio existente entre as partes e que constitui o objeto dos autos, sempre seria competente o tribunal recorrido e não o tribunal de trabalho. Em suma, a pretensão do recorrente nunca poderia proceder, estando por isso votada ao insucesso.”

2.2. Desde já se dirá que se concorda, no essencial, com o acórdão recorrido, não se verificando a invocada incompetência material do tribunal.

Com efeito:

Constitui entendimento jurisprudencial sedimentado o de que a competência em razão da matéria do tribunal se afere pela natureza da relação jurídica, tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido), independentemente do seu mérito, e os respetivos fundamentos (causa de pedir) 9. Parte esta jurisprudência dos ensinamentos do Prof. Manuel de Andrade no sentido de que a competência dos tribunais, ou a medida da sua jurisdição, se afere em função dos termos em que a ação é proposta, seja quanto aos seus elementos objetivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou ato donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjetivos 10.

No caso, o que o Autor invocou como causa de pedir foi a celebração entre as partes de um contrato de prestação de serviços, cabendo pois a competência material ao Tribunal Cível e não ao Tribunal do Trabalho, sendo irrelevante que o réu configure o vínculo contratual como consubstanciando um contrato de trabalho. A competência material, como pressuposto processual, não se determina em face dos termos em que o réu configura a ação, nem depende do mérito da ação, sendo irrelevante que, porventura, pudesse ter existido entre as partes um contrato de trabalho. Ainda que, por mera hipótese de raciocínio, tal pudesse ser o caso, designadamente por ter decorrido da prova produzida, a consequência seria, não a incompetência material, que, face ao modo como o Autor configurou a ação, se manteria (os juízos cíveis são competentes para apreciar e decidir sobre a existência, ou não, de um contrato de prestação de serviços, esta a figura contratual invocada pelo Autor como causa de pedir), mas sim a improcedência do pedido pela não verificação da causa de pedir invocada.

E são também irrelevantes os invocados argumentos relativos ao abuso de direito, litigância de má-fé, simulação e fraude processual alegados enquanto fundamentos que, segundo o Recorrente, determinariam a incompetência material.

Com efeito, eles não excluem, nem são impeditivos, da competência material do Tribunal. A, porventura, verificarem-se (o que se admite como mera hipótese de raciocínio), constituiriam exceções perentórias, relativas ao mérito da ação, determinantes da improcedência da ação, mas não já a exceção dilatória da incompetência material (ou qualquer outra), determinante da absolvição da instância.

E, por outro lado, como fundamentos autónomos, de per se (desligados da incompetência material neles fundada pelo Recorrente) , determinariam a improcedência da ação e, ainda que fossem de conhecimento oficioso, não são atendíveis por este Supremo Tribunal de Justiça, uma vez que apenas o seriam se o recurso de revista fosse, nos termos do nº 1 do art. 629º do CPC, admissível, o que, como já dito, não é.

Não se pode, todavia, deixar de dizer que os invocados abuso de direito, litigância de má-fé, simulação e fraude processual, ainda que de conhecimento oficioso, não têm contudo o mínimo suporte na matéria de facto provada, sendo certo que o Réu faz assentar a sua construção argumentativa aduzida na apelação e na revista na existência de um contrato de trabalho, e respetiva factualidade, mas que apenas alegou no recurso de apelação e não já em sede de 1ª instância, muito menos na contestação, como o deveria ter feito atento o disposto no art. 573º do CPC.

Tivesse o Réu, ora Recorrente, invocado tempestivamente a existência de um contrato de trabalho e alegado a respetiva factualidade, teria tido a possibilidade de, por essa via, almejar a (eventual) improcedência da ação (não já a declaração da incompetência material do Tribunal). Porém, não o fez, vindo apenas no recurso de apelação a alterar, totalmente, a sua estratégia de defesa: tendo, na contestação, invocado apenas a inexistência de uma relação contratual entre as partes, mormente a inexistência do contrato de prestação de serviços invocado pelo Autor, por, segundo disse então o Réu, se tratar apenas de uma situação de “entreajuda” ou colaboração mútua (chegando até a alegar que não poderia ter trabalhadores ao seu serviço), apenas em sede recursiva (apelação e revista) é que veio invocar a existência de um contrato de trabalho.

E não colhe, nem pode colher, o argumento de que, só no decurso da prova produzida em julgamento, se teria verificado que a relação seria de trabalho subordinado (contrato de trabalho). Como é evidente, a relação existente foi mantida entre o autor e o réu, não podendo este, por se tratar de matéria que lhe era pessoal, desconhecê-la, nada impedindo que a tivesse, como deveria se essa fosse a situação, alegado oportunamente (isto é, na contestação), não se verificando qualquer superveniência justificativa da impossibilidade da sua atempada alegação. Aliás, nem no decurso da ação, em sede de 1ª instância, a invocou, mormente através da apresentação de articulado superveniente (cfr. art. 588º do CPC), mesmo admitindo-se, embora como mera hipótese de raciocínio, que tal ainda lhe seria processualmente admissível.

Acresce, o que também não se poderá deixar de dizer, que a factualidade em que o réu/recorrente sustenta a incompetência material e que pretendia, na apelação, que fosse aditada aos factos provados, não se consubstancia em factos instrumentais, complementares ou notórios que pudessem ser enquadrados no nº 2 do art. 5º do CPC, mas, antes, em factos essenciais, enquadráveis no nº 1 do preceito, nos termos do qual devem ser alegados pelas partes, no caso, pelo Réu, pois que constitutivos de uma outra figura contratual (contrato de trabalho) que nem tão pouco foi invocada em sede de 1ª instância.

Por fim e pelo exposto, a competência material do tribunal (juízos cíveis e não juízos do trabalho) não constitui também violação do direito a um processo equitativo consagrado no art. 20º, nºs 1 e 4, da CRP e 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Por um lado, a alegada existência de um contrato de trabalho não colidiria com tal competência (antes determinaria a improcedência da ação) e, por outro e como já dito, o Réu, ora Recorrente, teve oportunidade de, em sede de 1ª instância, mormente na contestação, invocar a factualidade, e respetivo enquadramento jurídico, que apenas em sede de recurso (de apelação) entendeu ser de alegar. Se o não fez no momento processual próprio, isso a ele mesmo se deve.

Ou seja, em conclusão e sem necessidade de considerações adicionais, improcede a invocada incompetência material do tribunal, assim improcedendo o recurso de revista com tal fundamento.

3. Quanto às demais questões suscitadas na revista, delas apenas se poderia conhecer se o recurso de revista fosse admissível, pelo que, não o sendo, como não é no caso em apreço, delas não se conhece.


***


VI. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em:

a. Não admitir o recurso de revista com fundamento na alegada violação do caso julgado formal.

b. Julgar improcedente o recurso de revista com fundamento na alegada incompetência material do Tribunal.

c. Não admitir o recurso de revista quanto às demais questões objeto do mesmo.

Custas pelo Recorrente.

Lisboa, 17.10.2024

Paula Leal de Carvalho (relatora)

Fernando Baptista

Ana Paula Lobo

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1. A cuja transcrição se procede, respeitando a ortografia do original.

2. Dada a sua extensão e por se mostrar desnecessária, porque irrelevante, não se procede à respetiva transcrição.

3. Cfr. José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 4ª Edição, pp. 754/755 e Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pp. 696/697 e Acórdãos do STJ de 12.03.2014, Processo 177/03.3TTFAR.E1.S1 e de 01.07.2021, Proc. 726/15.4T8PTM.E1.S1, in www.dgsi.pt .

4. Desse nº 15 consta o seguinte: “15. Todos os serviços de mão-de-obra inerentes à atividade de carpintaria, de transformação e montagem de artigos em madeira e construção de mobiliário de madeira, que o Autor realizou para o Réu foram como seu funcionário, em média 8 horas por dia de trabalho, 6 vezes por semana (de segunda-feira a sábado), ganhava € 5,00 à hora, numa média € 800,00 mensais, obedecia às ordens do réu e fazia os trabalhos que lhe dissesse para fazer e como o fazer”.

5. Quais sejam: “« 15. Todos os serviços de mão-de-obra inerentes à atividade de carpintaria, de transformação e montagem de artigos em madeira e construção de mobiliário de madeira, que o Autor realizou para o Réu foram como seu funcionário, em média 8 horas por dia de trabalho, 6 vezes por semana (de segunda-feira a sábado), ganhava € 5,00 à hora, numa média € 800,00 mensais, obedecia às ordens do réu e fazia os trabalhos que lhe dissesse para fazer e como o fazer; 16. Os clientes eram do réu, e o autor não tinha clientes;17. O réu recebia dos seus clientes em dinheiro e pagava ao autor em dinheiro e este não passava ao réu nenhuma fatura-recibo ou recibo pelo que recebia;18. O réu queixava-se por vezes que não recebia, e dos clientes que o réu reconheceu como seus que estão na lista/caderno do autor junto com a petição inicial, o autor e demais trabalhadores do réu, não sabem se eles realizaram os pagamentos ao réu pelos trabalhos que fizeram;19. A lista/caderno do autor junta com a petição inicial com nomes, designação de obras, moradas, as horas e os dias e valores como dívida, é do autor e era apontado apenas pelo autor sem qualquer conhecimento ou controle por parte do réu; 20. O autor deixou de trabalhar para o réu a partir de 07 de Maio de 2017, porque arranjou outro trabalho melhor e por essa razão já não mais trabalhou para o réu, sendo na altura o único funcionário que o réu tinha a trabalhar consigo;21. O último trabalho que o autor fez ao réu foi-lhe pago por este, e por isso é que não consta do caderno do autor junto com a p. i., como não tendo sido pago;22. O autor tinha a chave da garagem do réu, que era a carpintaria do réu, e parte integrante da habitação do réu e por onde se acede também à habitação do réu, e o autor acedia livremente à garagem e usava-a as vezes que queria, muitas vezes sozinho, designadamente, quando o réu e sua família estavam de férias, tendo sido o único trabalhador do réu que teve a chave da garagem. 23. O Autor, e demais trabalhadores do réu, sabiam de que obra especifica estavam a receber quando o réu lhes pagava e sabiam a obra especifica que não era paga; 24. No fim de cada obra, o autor e demais trabalhadores, recebiam do réu, com exceção de algumas que demoravam mais. 25. O autor nunca em momento algum se queixou aos seus colegas de trabalho de que o réu lhe devesse alguma vez dinheiro, quer mais atrasado quer mais recente.»

6. Que não mero dissêndio quanto à qualificação jurídica do contrato, sabido que a qualificação jurídica efectuada pelas partes não vincula o tribunal.

7. Vide, entre outros, Ac. R.G. 23.11.2023, processo 144/22.8T8VLN.G1; Ac. da RC de 28/06/2017, in proc. 259/16.1T8PBL.C2; R.C. 7.11.2017, processo 4055/16.8T8 VIS.C1; R.C. 28.05.2019, processo 860/18.9T8VIS.C1 ww.dgsi.pt ; Acs. STJ de 12/1/94, in “C.J., 1994, I, pág. 38;e de 09/ 05/1995, in “C.J., 1995, T2, págs. 68-70”

8. Citado no Ac. R.C. de 28.02.2023, processo 2489/22.8T8CBR.C1, in www.dgsi.pt

9. Vide, por todos, os Acórdãos do Tribunal dos Conflitos n.ºs 21/10, 25/10 e 29/10, proferidos, respetivamente, em 2010.11.25, 2011.03.29 e 2011.05.05, in www.dgsi.pt e os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 2010.11.16 (Proc. 981/07.3TTBRG.S1), de 2011.03.30 (Proc. 492/09.2TTPRT.P1.S1), 28.06.2016 (Proc. 93/15.6T8GRD.S1), de 14.12.2017 (Proc. 3653/16.4T8GMR.G1.S1) e de 20.02.2019 (Proc. 9086/18.0T8LSB-A.L1.S1), todos in www.dgsi.pt .

10. In “Noções Elementares de Processo Civil”, Coimbra, 1979, pp.88-89.