I. A deterioração do imóvel assenta na causa natural da acção do tempo sobre os materiais da construção e equipamentos - como ditam as regras elementares da experiência; porém, sendo a alienação a terceiro o objectivo da Autora na construção da moradia, a impossibilidade de tal desiderato precipitou-se em razão da conduta pertinaz e ilícita da Ré, ao impedir a passagem pela sua propriedade, a fim de aquela ultimar a obra.
II. Apesar de possível a reparação das fissuras e outras patologias no interior da moradia, apenas seria exigível à Autora, na lógica lucrativa da actividade comercial a que se dedica, executá-las quando fosse viável colocá-la no mercado e, por conseguinte, dependente da imprevisível duração da conduta ilícita e continuada da Ré que impedia a conclusão da obra.
III. A indemnização a título de lucros cessantes emerge da inviabilidade da comercialização do imóvel, atenta a falta de licença de habitabilidade, derivada do incumprimento pela Ré da obrigação legal imposta pelo artigo 1349º do CCivil - que impediu o terminus da obra de construção, condição de que dependia o licenciamento do imóvel pelos serviços municipais.
1. Da acção
Por via da presente acção declarativa pretende a Autora que a Ré seja condenada a facultar a passagem pelo seu imóvel a fim de completar a obra de construção confinante, bem como a título de indemnização em valor correspondente aos danos patrimoniais que alega ter sofrido em consequência daquela conduta ilícita.
Integrando o valor inicial do pedido indemnizatório a quantia de €32.293,87 pela depreciação física do imóvel fixada em 12%; a título de indemnização por lucros cessantes, a quantia de €155.938,00 (cento e cinquenta e cinco mil, novecentos e trinta e oito euros), correspondente aos juros civis calculados sobre o capital (valor do imóvel em 2011), à taxa de 4% ao ano; quantia de €62.500,00 correspondente à desvalorização do imóvel, desde 2011 até à data da propositura da acção, devendo ao valor apurado, ser deduzida a quantia de €27.500,00, correspondente à mais-valia ocorrida, desde 2011 até 2020, na sequência da subida generalizada do valor do mercado imobiliário.
A Ré contestou, apresentando defesa por excepção e por impugnação. Invocou a nulidade do processo com fundamento na ineptidão da petição inicial e a excepção de ilegitimidade passiva; deduziu pedido reconvencional, pedindo a condenação da autora no pagamento de uma indemnização por danos morais que quantifica no valor de €30.000.
Em audiência prévia, foi proferido saneador e fixado o objecto da lide que passou a e circunscrever-se ao pedido da Autora no pagamento pela Ré de indemnização pelos danos sofridos, no segmento da depreciação física do imóvel, e dos lucros cessantes, mercê da impossibilidade da comercialização do seu imóvel por falta de licença de habitabilidade que imputa à Ré; e ainda quanto à apreciação de parte do pedido reconvencional.
1. Após a audiência de discussão e julgamento, proferiu-se sentença, decidindo “Nestes termos e com os fundamentos expostos, julga-se totalmente improcedente a presente acção proposta pela autora “CONSTRUÇÕES MAR-À-VISTA, LDA.” e totalmente improcedente o pedido reconvencional deduzido pela ré AA e, em consequência, decide-se: a) absolver a ré AA, dos pedidos de indemnização formulados pela autora “Construções Mar-À-Vista, Lda”; b. Absolver a autora “Construções Mar-À-Vista, Lda” do pedido de indemnização reconvencional, formulado pela ré AA; c. Julgar improcedente o pedido de condenação como litigante de má fé, deduzido pela ré AA contra a autora “Construções Mar-À-Vista, Lda” e, em consequência, absolver esta do pedido de indemnização formulado pela primeira. . Custas da acção e da reconvenção, pela autora e pela ré, respectivamente (por referência ao pedido que prosseguiu para a fase de julgamento e sem prejuízo do já decidido, em matéria de custas, em audiência prévia) – artigo 527.º n.º 1 do CPC.”
2. A apelação
Inconformada, a Autora interpôs recurso de apelação que obteve provimento parcial de acordo com o dispositivo do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa “(..) e nestes termos …condenam a Ré numa indemnização de 32.00,00 pela depreciação física do imóvel. Bem como numa indemnização por lucros cessantes a liquidar em execução de sentença. No demais mantém-se a decisão impugnada”
3. A revista
Dissentindo, a Ré pede revista pugnando, em síntese, pela revogação do acórdão por erro de interpretação e aplicação dos artigos 563º e 564º do Código Civil, devendo subsistir a decisão do Tribunal de 1.ª Instância e, por consequência, a Ré absolvida do pedido.
Para o que concluiu nas suas alegações:
“1.O presente Recurso de Revista vem interposto do douto Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela CONSTRUÇÕES MAR- À-VISTA, LIMITADA(..). 2. O Recurso de Revista ora interposto tem por objeto parte do douto Acórdão recorrido, designadamente, a condenação da ora RECORRENTE no pagamento de duas indemnizações: (i.) uma indemnização de € 32.000,00 (trinta e dois mil euros) pela depreciação física do imóvel e uma (ii.) indemnização pelos lucros cessantes, a liquidar no respetivo incidente. 3.Com efeito, o presente Recurso de Revista tem por fundamento a violação de lei substantiva, por erro de interpretação ou de aplicação das normas jurídicas aos factos, nos termos do artigo 674.º, n.º 1, alínea a), do CPC, nomeadamente, devido à errada aplicação aos factos dos artigos 562.º e 563.º do CC. 4. Enquadrando os presentes autos, sucintamente, a ora RECORRIDA intentou ação declarativa de condenação, por a ora RECORRENTE não ter concedido autorização para retirada de vedação metálica, de modo a facultar a entrada e a permanência na área da sua propriedade, dos trabalhadores e respetivos andaimes da ora RECORRIDA, para que estes procedessem ao reboco e pintura de fachada do prédio da ora RECORRIDA — que confina com o prédio da ora RECORRENTE. 5.Tendo a ora RECORRIDA peticionado o seguinte: a) seja a presente ação julgada, procedente, por provada; e, em consequência; b) seja a R. condenada a abster-se de impedir o levantamento da vedação metálica instalada sobre o muro, bem assim como a entrada dos trabalhadores da A. , no seu prédio, tolerando o levantamento dos andaimes, a sua permanência, e a passagem dos materiais, de modo a concluir a execução da obra na moradia, procedendo ao reboco e à pintura da empena que é contígua ao prédio da R.;c) Seja decretada a aplicação à R., de uma sanção pecuniária compulsória, fixada na quantia de 250,00 € (duzentos e cinquenta euros), por cada dia de incumprimento da Sentença, que, a final, condene a R. a prática do facto negativo constante no pedido anterior; d) Seja a R. condenada a pagar à A.,a título de lucros cessantes a quantia no montante global final de 99.505,00€ (noventa e nove mil, quinhentos e cinco euros), que compreende: - a desvalorização do valor de mercado que era de 62.500,00€ (sessenta e dois mil e quinhentos euros) - o valor do juro no valor de 32.194,00€ (trinta e dois euros mil e cento e noventa e quatro euros); - a depreciação física do imóvel da A., no valor de 4.811,50€ (quatro mil e oitocentos e onze euros e cinquenta cêntimos);e) Seja a R. condenada no pagamento dos juros, calculados às taxas legais, desde a citação da R., até integral e pontual pagamento, que se vierem a vencer; f) Seja a R. condenada no pagamento das custas, procuradoria condigna e demais encargos legais com o processo — cf. Petição Inicial. 6. No que ora, releva -i.e., no que respeita ao pedido de indemnização pela depreciação física do imóvel e ao pedido de indemnização pelos lucros cessantes, será de analisar a sentença proferida pelo douto Tribunal de 1.ª Instância. 7. Em face da matéria de facto considerada provada e não provada, o Tribunal de 1.ª Instância analisou os pedidos formulados pela ora RECORRIDA.8. No que concerne ao pedido de indemnização pela depreciação física do imóvel, a Meritíssima Juiz julgou o mesmo improcedente, considerando que, incumbe ao lesado o ónus de prova da factualidade na qual sustenta a pretensão deduzida, e , no caso, a ora RECORRIDA não logrou demonstrar que o seu prédio apresente qualquer dano pelo facto da ora RECORRENTE não ter permitido o acesso ao seu prédio. 9.Ademais, a ora RECORRIDA não estava impedida de efetuar quaisquer obras de manutenção/conservação do seu prédio que se mostrassem necessárias, pelo que, não as tendo efetuado, não pode fazer recair sobre a ora RECORRENTE a obrigação de suportar eventuais danos decorrentes da falta de manutenção do prédio. 10.Por fim, no que ora releva, o Tribunal de 1.ª Instância julgou ainda improcedente o pedido de indemnização por lucros cessantes, tomando em consideração que, da matéria de facto provada não resulta que a ora RECORRIDA tivesse conseguido concretizar a venda do imóvel, em maio de 2011, e pelo preço de € 312.500,00 (trezentos e doze mil e quinhentos euros), caso tivesse tido a possibilidade de concluir os trabalhos de reboco e de pintura da parede da garagem do seu prédio.11. Inconformada com a sentença proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância, a ora RECORRIDA interpôs recurso para o douto Tribunal da Relação de Lisboa, com fundamento em erro de julgamento da matéria de facto e erro de interpretação e aplicação do direito. 12.(…) 16. Em face, o Tribunal da Relação de Lisboa aditou os seguintes factos à matéria de facto considerada provada: «27-A Desde 18 de Maio de 2011, que a moradia da autora sofreu uma depreciação física.27-B Em 2014, a moradia já continha pequenas fissuras nas paredes interiores. Em 2020, as portas interiores e dos roupeiros encontravam-se inclusivamente, não se pode concluir que a venda, a ter ocorrido, seria por preço não inferior a € 312.500,00 (trezentos e doze mil e quinhentos euros), no entanto, o que é certo que o ora RECORRIDA não a poderia vender sem a respetiva licença administrativa de utilização, que estava dependente da atitude da ora RECORRENTE, pelo que, considerou devido o pagamento de indemnização, a liquidar me incidente de liquidação de sentença. 19.Em face da fundamentação supra elencada, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa decidiu julgar a apelação parcialmente procedente, condenando a ora RECORRENTE numa indemnização de € 32.000,00 (trinta e dois mil euros) e numa indemnização pelos lucros cessantes, a liquidar no respetivo incidente. 20.A RECORRENTE não se conforma com o entendimento do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, considerando, com o devido respeito, que é muito, que este incorre em violação de lei substantiva, por erro de interpretação ode aplicação das normas jurídicas aos factos, nos termos do artigo 674.º, n.º 1, alínea a), do CPC, nomeadamente, devido à errada aplicação aos factos dos artigos 562.º e 563.º do CC. 21.No que concerne à indemnização por depreciação física do imóvel, será de notar o seguinte: 22.O Tribunal de 1.ª Instância considerou como facto não provado que, «desde 18 de Maio de 2011, a moradia da autora tenha sofrido uma depreciação física em consequência da impossibilidade da autora aceder ao prédio da ré, para concluir os trabalhos de reboco e de pintura da parede da garagem que confina com o prédio desta». 23.Por sua vez, o Tribunal da Relação de Lisboa aditou aos factos provados que, «desde 18 de maio de 2011, a moradia da autora tenha sofrido uma depreciação física». 24.Ora, em face do supra exposto, resulta claro que o douto Acórdão Apenas considerou provado que a moradia da ora RECORRIDA havia sofrido uma depreciação física, não tendo considerado como provado que tal depreciação física ocorreu em consequência da impossibilidade da ora RECORRIDA aceder ao prédio da ora RECORRENTE, para concluir os trabalhos de reboco e de pintura da parede da garagem que confina com o prédio desta !25. Será ainda de notar que, os factos aditados pelo Venerando Tribunal, com base na prova testemunhal, apenas dão como provado que a moradia tinha algumas patologias. 26. Ademais, em sede de “motivações de facto”, a Meritíssima Juiz do Tribunal de 1.ª Instância concluiu expressamente que, a prova produzida é vaga quanto à localização das patologias e “bastante insuficiente e nula” quanto à causa de tais problemas — conforme mais bem explanado no ponto “I.5.1 DA INDEMNIZAÇÃO PELA DEPRECIAÇÃO FÍSICA DO IMÓVEL” do presente recurso de revista. 27.Nos termos do disposto no artigo 563.º do Código Civil, a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.28.No caso dos presentes autos, mesmo considerando a alteração da matéria de facto operada pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, não resulta provado a existência de um nexo de causalidade entre as patologias da moradia — i.e., a depreciação física — e a impossibilidade da ora RECORRIDA aceder ao prédio da ora RECORRENTE, para concluir os trabalhos de reboco e de pintura da parede. 29.Em face do supra exposto, não existindo nexo de causalidade, não se verifica a obrigação de indemnização nos termos do disposto no artigo 563.º e 566.º do Código Civil.30. Com devido respeito, que é muito, o Venerando Tribunal da Relação De Lisboa incorreu em erro de interpretação e aplicação dos artigos 563.º e 566.º do Código Civil, o que consubstancia violação de lei substantiva nos termos do disposto no artigo 674.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Civil. 31.Por sua vez, relativamente à indemnização por lucros cessantes, a ora RECORRENTE entende que: 32.O Tribunal de 1.ª Instância considerou como facto não provado que «a autora proporcionou a visita à sua moradia a quem nisso mostrasse interesse, tendo ocorrido, durante a vigência do contrato de mediação imobiliária, datado de 16/10/2010, celebrado entre si e a sociedade L..., Unipessoal, Lda, a manifestação de interesse na aquisição desse imóvel por parte de, pelo menos, um potencial comprador» e como facto provado que «tenham sido múltiplas as manifestações de interesse no imóvel da autora».33. Para fundamentar tal decisão, o Tribunal de 1.ª Instância tomou em consideração que, da prova produzida, não resulta que tivesse existido uma possibilidade real de venda do imóvel — conforme mais bem explanado no ponto “I.5.2DA INDEMNIZAÇÃO PORLUCROS CESSANTES” do presente recurso de revista. 34.O Tribunal da Relação de Lisboa referiu expressamente que «não se pode concluir que era certa a venda do imóvel, no ano de 2011 ou em data posterior, nem se pode concluir que a venda, a ter ocorrido, seria por preço inferior a € 312.500,00». 35.Ora, considerando o supra exposto — i.e., apenas foi indicado um potencial interessado, que, note-se, não significa que viesse a adquirir, efetivamente, a moradia —, dúvidas não podem restar de que não foi feita prova de que a ora RECORRIDA conseguiria, efetivamente, concretizar a venda do imóvel. 36.Não obstante a matéria de facto considerada como provada, o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa considerou que é devida à ora RECORRIDA uma indemnização a título de lucros cessantes, com fundamento na inviabilidade da comercialização do imóvel. 37.Novamente, é aplicável o disposto no artigo 563.º do Código Civil. 38. Com o devido respeito, que é muito, para que existisse obrigação de indemnização por lucros cessantes, seria necessário que se verificasse a existência um nexo de causalidade entre a possibilidade séria e concreta de venda do imóvel e a impossibilidade da ora RECORRIDA aceder ao prédio da ora RECORRENTE, para concluir os trabalhos de reboco e de pintura da parede. 39.Na medida em que, a possibilidade de concretização da venda do imóvel é aferida tendo em consideração a matéria de facto provada, da qual resulta evidente que não era certa a venda do imóvel —, sendo à ora RECORRIDA que cabia o ónus da prova. 40.A possibilidade de concretização da venda do imóvel é a “pedra de toque” para uma eventual indemnização por lucros cessantes, porquanto, na eventualidade de se ter demonstrado que existiam compradores que efetivamente tinham uma vontade séria e condições para adquirir o imóvel, estaria verificado o nexo de causalidade, na medida em que, nessas circunstâncias, a ora RECORRIDA havia, efetivamente, deixado de obter lucros com base nessas propostas. 41.Inclusivamente, será de referir que, como é de conhecimento geral, não é pelo facto de uma moradia ser introduzida no giro comercial que a mesma é vendida de imediato ou nos anos subsequentes. 42.Pelo que, não tendo sido demonstrada a existência de manifestações de interesse sérias e concretas para a aquisição do imóvel da ora RECORRIDA, resulta claro que não era certa a possibilidade de venda do imóvel e, com efeito, que a ora RECORRIDA não deixou de obter quaisquer lucros, porquanto, essa possibilidade numa existiu! 43.Em face do supra exposto, i.e., não existindo nexo de causalidade, não se verifica a obrigação de indemnização nos termos do disposto no artigo 563.º e 566.º do Código Civil. 44.Sem conceder o que antecede, por dever de patrocínio, sempre se dirá que, mesmo que se entendesse que era devida indemnização por lucros cessantes, com fundamento na inviabilidade da comercialização do imóvel, não poderá deixar de ser considerada a inflação e valorização do mercado imobiliário desde 2011. 45.Ora, em face da inflação e da valorização do mercado imobiliário, o imóvel da ora RECORRIDA beneficiou de uma valorização. 46.Pelo que, atribuir uma indemnização por lucros cessantes à ora RECORRIDA, não se coaduna com propósitos da responsabilidade civil, porquanto, o eventual facto gerador de responsabilidade civil, permitiu à ora RECORRIDA beneficiar da valorização do mercado imobiliário, obtendo assim, uma vantagem patrimonial. (…), e, por conseguinte, ser substituído por outro que mantenha a decisão do Tribunal de 1.ª Instância, assim se fazendo a costumada Justiça!”
Mostram-se preenchidos os pressupostos gerais de recorribilidade e de revista -artigos 629º, nº1, e 671º, nº1, e 674º, nº1, al) a do CPC.
• Saber se a Ré deverá ressarcir a Autora, tendo impedido o acesso através do seu prédio para conclusão da obra da moradia, em concreto, se está verificado o respetivo nexo de causalidade entre a conduta e os danos ;
• Saber se do quadro factual provado, decorre que Autora venderia o imóvel que justifique a compensação por lucros cessantes.
II. Fundamentação
A. Os factos
Vem provado das instâncias
1. O prédio urbano, sito no ..., freguesia da ..., concelho de ..., composto de casa de habitação de cave, rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, descrito sob o n.º ..95, dessa freguesia, na Conservatória do Registo Predial de ..., integrava o património do casal BB e ora ré.
2. A Ré contraiu matrimónio, segundo o regime de comunhão de adquiridos, com BB. Em .../.../2013, foi decretada a separação de pessoas e bens, por mútuo consentimento, da ré e de BB. 2
3. Na mesma data, ... de ... de 2013, BB e a ré procederam à partilha do património conjugal, tendo sido adjudicado a esta, o prédio urbano, sito no ..., freguesia da ..., concelho de ..., composto de casa de habitação de cave, rés-do-chão, primeiro andar e logradouro, descrito sob o n.º ..95, dessa freguesia, na Conservatória do Registo Predial de ..., e inscrito na respectiva matriz predial sob o artigo ..19, sendo a ré, desde essa data, a única titular do direito de propriedade sobre esse prédio que confina com o prédio da autora.
4. A autora é uma sociedade comercial que tem por objecto a construção civil - reparação, manutenção, construção de edifícios e realização de obras privadas -, obras públicas, compra, venda e revenda de terrenos para construção civil, compra e revenda de imóveis, comercialização e transporte de materiais de construção civil.
5. A autora é proprietária do prédio urbano, sito na Rua do ... – ..., ..., inscrito na matriz predial urbana, da freguesia da ..., concelho de ..., sob o artigo 8521, e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..93.
6. O sobredito prédio da autora confina a sul e nascente com o prédio da ré identificado no ponto 1.
7. Em abril/maio de 2009, a autora iniciou a construção de uma moradia no prédio urbano, sito na Rua do ... – ..., ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..93, dispondo do respectivo Alvará de Licença de Obras de Construção com o n.º .41/09, cuja emissão foi deferida por Despacho do Exmo. Sr. Presidente da Câmara Municipal de ..., datado de 26/03/2009.
8. Por despacho de 13/11/2009, pelo Sr. Presidente da Câmara Municipal de ... foi deferido o pedido de alteração ao referido Alvará de Licença de Obras de Construção n.º .41/09.
9. Em 6 de Agosto de 2009, BB intentou a acção administrativa especial contra o Município de ... no processo de deferimento do pedido de licenciamento nº0P-.53/2008, e que esse pedido «deverá estender-se ao processo de alteração ao processo inicial em curso na Câmara, caso entretanto o mesmo venha a ser deferido no decurso da presente acção», sendo os fundamentos invocados os seguintes:- «em 07/05/2009, verificou que parte da construção erigida pela contra-interessada tocava a sua estrema, ou seja, encostava ao muro de demarcação da sua propriedade, numa extensão de cerca de sete metros (…), sendo que esta construção à estrema, que veio posteriormente saber corresponder à construção de uma garagem, pelo modo como foi implantada, não respeita o mínimo de distanciamentos relativamente ao limite do seu prédio, nem à construção nele implantada, privando a sua casa das condições mínimas de salubridade e luz natural e solar durante quase todo o ano, em virtude da altura da construção, e criando entre a sua propriedade e a confinante a Norte um corredor inestético e absurdo, emparedado entre a construção da contra-interessada e o seu edificado».
- Construções Mar-À-Vista «subiu a cota de soleira, na parte confinante com a estrada a Nascente, em 0.50cm, sendo que, a meio da construção, a cota natural eleva-se, devido à inclinação do terreno, em cerca de 1m e, a tardoz da construção, em 1.5m, o que faz com que, no tardoz da construção da contra-interessada, a altura desta atinja 4.30m, na parte confinante com o autor, criando a já referida barreira de cimento».
- «[F]oi levantado um processo de embargo de obra pela autarquia, em 27/05/2009, com fundamento na subida da cota de soleira da moradia em construção em cerca de 50cm, em violação do artigo 4.°, n.02, alínea c), do Decreto-lei nº 555/99 e consubstanciando uma contra-ordenação (…)» e que «o auto de embargo não refere é que a subida da cota de soleira, num terreno inclinado, implica a elevação de todo o edificado para uma altura dissonante com a envolvente, com todas as consequências que tal facto implica, e não faz a correspondência entre a elevação da cota de soleira e a cota natural do terreno.»
- «[O] licenciamento indevido da obra da sociedade contra-interessada, bem como o pedido de licenciamento apresentado por aquela (…) e, ainda, a execução da mesma obra causaram-lhe danos, quer de ordem moral, quer de ordem patrimonial, sendo que, com a construção da garagem à estrema, na parte confinante com o seu prédio, a sua casa deixa de beneficiar de luz natural e solar nas condições em que sempre usufruiu de ambas desde que a comprou, sobretudo na altura do Inverno».
- «A construção da sociedade contra-interessada (…) desvalorizou a sua casa, quanto ao seu valor de mercado e do ponto de vista estético e de inserção na malha urbana circundante, tendo-lhe causado grande desgaste, sucessivas crises de nervos e um estado quase permanente de ansiedade e angústia».
- «[O] despacho de deferimento padece de vício de forma, por falta de fundamentação, uma vez que a autarquia deveria ter enquadrado os factos num conceito de estética devidamente fundamentado com outros conceitos arquitectónicos e ponderado a orientação de construção do novo prédio e o seu efeito no local em causa e respectiva envolvente».
- «Com este acto de licenciamento, a Câmara de ... violou também os princípios da justiça e imparcialidade da actividade administrativa, quando aplicado ao procedimento administrativo, o que torna também inválido o acto final, por lesão potencial do interesse do particular ora impugnante, assim como violou os princípios da prossecução do interesse público e da protecção dos direitos e interesses dos cidadãos, da igualdade, da proporcionalidade e da boa-fé, no âmbito do acto praticado».
- «o licenciamento ora impugnado viola-o disposto nos artigos 59°, §§1, 3, 4; 60°, 61°,62°, 63°, 64°, 74°,121°, primeira parte, e 122º do RGEU, bem como o disposto nos artigos 13º, 36°, n.ºs 2 e 5, e 76° do Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação de ..., devendo, pois, ser anulado com fundamento em vício de violação de lei, mais violando o disposto nos artigos 4°, n.º2, alínea b),e 6.º, nº4, do Decreto-lei n.º555/99, de 16 de Dezembro, na sua redacção actual».
10. Por Decisão proferida em 28/2/2020, foi julgada improcedente a acção cujos termos correram no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa sob o nº 1693/09.9..., constando, entre os factos considerados provados, que: “p) O licenciamento do projecto inicial foi titulado pelo alvará n.º .41/2009, de 26/03/2009 (…). … s) A contra-interessada subiu a cota de soleira, na parte confinante com a estrada a Nascente, em 50 cm, passando, após a apresentação do projecto de alterações, para 49,95m. t) Após a subida da cota de soleira que a primeira contra-interessada realizou em obra, a altura da garagem manteve-se em cerca de 3,30 metros na frente e na parte posterior subiu cerca de 60 cm, passando para cerca de 4 metros (…). u) A meio da construção, a cota natural eleva-se, devido à inclinação do terreno, em cerca de 1 m e a tardoz da construção, em 1,5m. v) Em 27/05/2009, os Ficais do Serviço de Fiscalização Municipal da Câmara Municipal de ... verificaram pessoalmente que a primeira contra-interessada estava a realizar uma operação urbanística em desconformidade com a licença, consubstanciada na subida da cota de soleira da moradia, em cerca de 50 cm (…).w) Foi levantado um processo de embargo de obra pela autarquia, à obra propriedade da primeira contra-interessada, em 27/05/2009, com fundamento na subida da cota de soleira da moradia em construção em cerca de 50 centímetros (…), tendo sido determinado que a primeira contra-interessada fosse notificada para apresentar projecto de legalização (…).…y) Por mandato de 04/06/2009, a primeira contra-interessada foi notificada do embargo das obras ilegais e de que deveria apresentar projecto de legalização das mesmas, no prazo de 60 dias, para ser analisada a susceptibilidade do seu licenciamento (…).…hh) Em 23/9/2009, foi proferido parecer favorável ao licenciamento das alterações”.…KK) O pedido de alteração à licença foi deferido por despacho do Vereador responsável pelo Urbanismo, datado de 3/11/2009 e veio a ser titulado pelo Aditamento nº1 ao alvará nº.41/09”.…
pp) A construção referida em oo) priva a casa do autor de incidência solar directa durante as primeiras horas da manhã, durante os meses de Inverno”.…
xx) Nos primeiros 5 metros dos 7 metros da parede da garagem, no sentido nascente/poente, o muro de estrema e a parede da garagem não estão de fronte da moradia do autor.
yy) Nos restantes cerca de 2 metros, a distância da parede da garagem à fachada sul do autor é de cerca de 6.60 metros.…
jjj) A parede cega, encostada ao muro da estrema com o prédio pertencente ao autor, tem uma extensão de cerca de 7 metros.
11. Consta da Decisão proferida em 28/2/2020 que julgou improcedente a acção cujos termos correram no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa sob o nº 1693/09.9..., que:
“Com fundamento no parecer técnico da Divisão de Gestão Urbanística da Câmara Municipal de ... de 09/07/2008, o projecto de arquitectura foi aprovado em 15/07/2008 e o pedido de licenciamento foi deferido pelo despacho de 03/03/2009 (…).
Resultou provado nos autos que a sociedade contra-interessada subiu a cota de soleira, na parte confinante com a estrada a Nascente, em 0,50m, que passou, assim, para 49.95 (…), ou seja, aquando da realização da obra, a sociedade contra-interessada subiu a cota de soleira relativamente àquilo que se encontrava previsto no projecto inicialmente apresentado, o que deu origem a um processo de embargo e, posteriormente, à apresentação de um pedido de legalização da obra, sendo que nas peças desenhadas que instruíram o pedido está representado um muro de vedação no alçado norte, que constitui o prolongamento da parede da garagem para poente (…).
O pedido de alteração à licença veio a ser deferido por despacho (…) datado de 03/11/2009 e titulado pelo Aditamento nº1 ao alvará n. º.41/09 (…).
Importa, desde já, ter presente que o referido despacho de 03/11/2009 apenas deferiu o pedido de alteração à licença, ou seja, a subida da cota de soleira relativamente ao que se encontrava previsto no projecto inicialmente apresentado e a construção de um muro de vedação no alçado norte, sendo que aquele projeto já previa a construção da garagem da moradia junto à estrema norte do terreno da sociedade contra-interessada (…).
Quanto à subida da cota de soleira, cumpre referir que o facto de a sociedade contra-interessada ter subido a mesma aquando da execução da obra não contende com a validade do despacho de 03/03/2009 (…).O facto de a sociedade contra-interessada ter subido a cota de soleira prevista no projecto aprovado poderia determinar, como determinou, o embargo da obra, bem como a necessidade de apresentar um pedido de alteração à licença, que veio a ser deferido pelo despacho de 03/11/2009, mas nunca contenderia com a validade do acto que licenciou a construção (…).
Ora, nenhuma das normas legais e regulamentares que o autor alega terem sido violadas pelos despachos impugnados nos autos obstavam à subida da cota de soleira efectuada pela sociedade contra-interessada e, noutra perspectiva, impunham o indeferimento do pedido de alteração à licença, de tal modo que o despacho de 03/11/2009, que deferiu tal alteração, se deva ter por ilegal (…).
…
Assim, como adiantámos, na ausência de norma legal elou regulamentar que impedisse a subida da cota de soleira nos termos efectuados pela contra-interessada, o pedido de licenciamento desta alteração não poderia ser indeferido, não padecendo, assim, o despacho de 03/11/2009 de qualquer vício por ter permitido tal alteração ao licenciamento inicial.
…
Em suma, a licença de construção da obra permite a realização dos trabalhos de remodelação de terrenos necessários a tal construção, desde que previstos no projecto. Assim sendo, atendendo a que os trabalhos de remodelação dos terrenos efectuados pela sociedade contra-interessada foram realizados no quadro da execução das obras de construção licenciadas pelo despacho de 03/03/2009, sendo que, como já referimos, no projecto inicial foi prevista a realização de um aterro, cuja execução implica a realização de trabalhos de remodelação do terreno [alínea i) dos factos provados], impõe-se concluir que os referidos trabalhos não careciam de licença administrativa, distinta da licença de construção que foi deferida pelo mencionado despacho, titulada pelo alvará n.º.41/2009, de 26/0312009.
Nesta medida, impõe-se concluir que não foi violado o disposto no artigo 4. °, n. º2, alínea b), do RJUE.
Tendo concluído que a subida da cota de soleira, com a inerente movimentação de terras, não faz padecer o despacho de 03/11/2009 de qualquer vício, vejamos, então, se o facto de a garagem da sociedade contra-interessada ter sido construída à estrema viola as normas legais e regulamentares invocadas pelo autor.
[C]concluímos que o despacho de 03/03/2009 não viola o disposto nos artigos 121. ° e 122. ° do RGEU.
… [C]concluímos que o despacho de 03/03/2009 - reitere-se, foi este despacho que autorizou a construção da garagem à estrema do terreno - não viola o disposto nos artigos 59.º, §1, 3 e 4, 60º, 61º, 63º, 64.º, 74º, 121.º, primeira parte, e 122.º do RGEU, bem como o disposto no artigo 36º, n. º2, do Regulamento Municipal da Urbanização e Edificação de ....
… Pelo exposto, concluímos que os despachos impugnados nos autos não padecem dos vícios de violação de lei que lhe são imputados pelo autor.
… Assim, atendendo ao teor dos pareceres/informações com base nos quais foram proferidos os despachos impugnados, concluímos que os mesmos se encontram devidamente fundamentados, permitindo compreender as razões pelas quais o pedido de licenciamento, bem como o pedido de alteração à licença, foram deferidos.
Nesta medida, impõe-se concluir que os despachos impugnados não padecem do vício de falta de fundamentação…”.
12. Após o parecer favorável ao licenciamento das alterações, proferido em 23/9/2009, e o deferimento do pedido de alteração à licença, por despacho datado de 3/11/2009, titulado pelo Aditamento nº1 ao alvará nº.41/09, as obras de construção da moradia prosseguiram no seguimento do projecto apresentado na Câmara Municipal de .... “
13. A autora tomou conhecimento da propositura da acção cujos termos correram sob o número de processo 1693/09.9..., no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa.
14. A autora enviou a BB, em 20 de Abril de 2010, uma carta que foi por este recebida, com o conhecimento da ré, e de cujo teor consta que aquela comunicou ser “proprietário do prédio urbano, registado na Conservatória do Registo Predial de ... com o n.º ..93, da freguesia da ..., sito na Rua do ..., em ..., onde leva a efeito a construção de uma moradia com o processo de obras nº OP-.53/2008” e que “de acordo com o artigo 1349º do Código Civil, pede autorização para rebocar e posteriormente pintar a fachada confinante junto à estrema norte”. Nessa carta, a autora não indicou como iria executar tais obras, em quanto tempo, com quantas pessoas, quais, em que condições, mediante o pagamento de que contrapartidas e quaisquer outras circunstâncias de modo, tempo e lugar.
15. Na sequência desse pedido de autorização e até à data da transacção realizada nestes autos, em 15/6/2022, não foi concedida autorização, à autora, quer por BB, quer pela ré, para proceder ao levantamento da vedação metálica e à instalação de andaimes no prédio desta, necessários à execução do reboco e pintura da empena da moradia da primeira que confina com a propriedade daquela; nem permitida a entrada e a permanência, na área da propriedade da ré, dos trabalhadores da primeira, por forma a viabilizar a execução de tais trabalhos de reboco e de pintura da empena da moradia da autora que confina com a propriedade da ré.
16. Em 18 de Maio de 2011, mostravam-se concluídos os trabalhos do prédio da autora, com excepção do reboco e pintura da empena do seu prédio que confina com o prédio da ré.
17. Desde 18 de Maio de 2011 até à data da transacção realizada nestes autos, em 15/6/2022, faltava apenas proceder ao reboco e pintura da empena do prédio da autora que confina com o prédio da ré, do lado que dá para o logradouro deste.
18. Para a execução dos trabalhos de reboco e pintura da empena do prédio da autora mostrava-se necessário proceder ao levantamento da vedação metálica do prédio da ré, à instalação de andaimes na área do prédio desta e, ainda, proceder à passagem para esse prédio para aplicação dos materiais naquela empena do prédio da autora, dada a impossibilidade física de realização das referidas tarefas a partir do prédio desta.
19. A ré concorda com a propositura da acção administrativa especial, por BB e cujos termos correram no Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa sob o nº 1693/09.9..., bem como com a não permissão do acesso da autora ao seu prédio, até à data do trânsito em julgado da Decisão proferida nessa acção.
20.Como consequência directa do comportamento da ré, na data da transacção efectuada nestes autos, não se encontravam concluídas as obras da moradia da autora, na parte respeitante ao reboco e pintura da empena do prédio da autora que confina com o prédio daquela.
21. Com o fundamento de que “falta concluir uma das fachadas”, a Câmara Municipal de ... indeferiu, por despacho de 4/11/2011, o pedido de emissão da respectiva licença administrativa de utilização, facto comunicado, à autora, por ofício de 9/11/2011.
22.A ré manteve a recusa, até à data da transacção efectuada nestes autos, de autorização, à autora para esta retirar a vedação metálica existente no seu prédio; não permitiu a entrada e a permanência, na área da sua propriedade, dos trabalhadores da autora, nem a instalação de andaimes, de modo a viabilizar a execução do reboco e pintura da empena da moradia desta.
23.A não concessão da licença administrativa de utilização/habitabilidade, pelo Município de ..., inviabilizou a introdução da moradia da autora, no giro comercial, de modo a ser transmitida a terceiros, constituindo este o único objectivo mercantil daquela, quando avançou para a construção dessa moradia.
24. Para a execução e conclusão das obras no prédio da autora mostrava-se necessário período não superior a duas semanas, não fosse a conduta de BB e da ré em impedir a conclusão das obras dessa moradia. Tais trabalhos foram concluídos, pela autora, em 2 de novembro de 2022, tendo sido iniciados em meados de outubro de 2022.
25.A autora proporcionou a visita à sua moradia a quem nisso mostrasse interesse, tendo ocorrido, durante a vigência do contrato de mediação imobiliária, datado de 16/10/2010, celebrado entre si e a sociedade L..., Unipessoal, Lda, a manifestação de interesse na aquisição desse imóvel por parte de, pelo menos, um potencial comprador.
26. O imóvel da autora, em 2011, valia €312.500,00 (trezentos e doze mil e quinhentos euros), no ano 2014, valia €250.000 (duzentos e cinquenta mil euros), e, no ano de €2020, valia €340.000,00 (trezentos e quarenta mil escudos), considerando a sua localização - cerca de 2km da Praia de ... -, a existência de infraestruturas no local e os valores de mercado de imóveis com características similares.
27. Desde 18 de Maio de 2011, a autora não efectuou qualquer manutenção da sua moradia.
27-A. Desde 18 de Maio de 2011. que a moradia da autora sofreu uma depreciação física.
27-B. Em 2014, a moradia já continha pequenas fissuras nas paredes interiores. Em 2020, as portas interiores e dos roupeiros encontravam-se manchadas por força da humidade: as torneiras das casas de banho apresentavam-se picadas e as paredes também. As paredes do interior necessitam de nova pintura, o mesmo sucedendo com as paredes exteriores; as portas encontram-se manchadas; há torneiras que se mostram “picadas” e que importa trocar; os motores eléctricos de alguns estores não funcionam; o portão da garagem encontra-se enferrujado; os gradeamentos mostram-se "queimados'" do sol; as paredes do exterior necessitam de nova pintura; na casa de banho, existem mosaicos cerâmicos rachados.
27-C. O custo com a reparação destes danos não será inferior a € 32.000,00 (trinta e dois mil euros).3
28. Além da carta datada de 20 de Abril de 2010 que se encontra junta a fls. 128, dirigida a BB, não existe qualquer interpelação efectuada, pela autora, directamente à ré, que visasse obter autorização para entrar no prédio desta, com vista à execução dos trabalhos de reboco e pintura da parede confinante com esse prédio, nomeadamente autorização para proceder ao levantamento da vedação metálica, integrada no muro do prédio da ré; autorização para a entrada dos seus trabalhadores no prédio da ré e permissão para proceder ao levantamento de andaimes neste prédio; autorização para a passagem de materiais para o prédio da ré e execução, a partir desse prédio, das actividades de reboco e pintura da parede da garagem da moradia da autora.
29. A construção da moradia da autora priva a casa da ré de incidência solar directa durante as primeiras horas da manhã, durante os meses de Inverno.
30. A construção da moradia da autora foi motivo de instabilidade emocional de BB e gerou conflito entre este e a ré.
31. Apresentada reclamação, por BB, quanto ao Alvará de Licença nº .41/09, pelo Munício de ... foi decidido, em 15/7/2009, entre o mais, que:
“Relativamente à garagem, não existem bases legais para que a sua implementação à estrema seja inviável. Quanto às cópias apresentadas de várias informações técnicas relativas a outros processos, informa-se que as situações são sempre analisadas caso a caso, tendo-se considerado, nestas circunstâncias, aquando da análise inicial, que a solução proposta não prejudicava nem terceiros, nem urbanisticamente, tanto pela sua implantação como volumetria…”.
B. Do mérito
1. Em sinopse, o desenvolvimento do litígio retratado no elenco dos factos provados.
A Autora que se dedica à construção e venda de imóveis, construiu no ano de 2009, a moradia identificada e confinante com a casa da actual propriedade da Ré e, ao tempo, propriedade do casal, entretanto dissolvido.
O então marido da Ré, após a impugnação indeferida do licenciamento da obra de construção da referida moradia, demandou a Autora, sem sucesso, no foro administrativo, vindo a respetiva acção a ser julgada improcedente em fevereiro de 2020.4
Desde pelo menos Maio de 2011, que a Autora solicitou à Ré o acesso através do seu prédio, a fim de poder terminar as obras de reboco na fachada poente da moradia; face ao impedimento da Ré, o Município de ... com o fundamento de a obra se encontrar inacabada, não emitiu a licença administrativa de utilização/habitabilidade, circunstância que não permitiu a venda do imóvel – cfr. m factos provados nos pontos 16 e 21.
A Ré viria a apena a permitir o acesso à Autora para completar a obra em junho de 2020 na sequência da transacção parcial nos autos.5
1.1. Prosseguindo a causa, a sentença concluiu que, a Autora não logrou provar que a moradia apresente dano decorrente da conduta da Ré, ao não permitir o acesso daquela para a reparação e pintura da empena, podendo realizar obras de manutenção/conservação necessárias, pelo que absolveu a Ré do pedido de indemnização neste segmento e, também no referente à indemnização reclamada a título de lucros cessantes, não se provando que a Autora tivesse conseguido concretizar então a venda do imóvel.
1.2.O Tribunal da Relação alterou a decisão de matéria de facto e concluiu em adverso pela verificação dos pressupostos da responsabilidade da Ré por facto ilícito, e em consequência condenou a pagar à Autora a indemnização, na quantia de 32.000,00 Euros quantos aos danos da deterioração do imóvel e, pelos lucros cessantes, em quantia a liquidar em execução de sentença. 6
2. A Ré pede revista, invocando erro de interpretação e aplicação dos artigos 563.º e 566ºdo Código Civil pelo tribunal a quo, devendo revogar-se o acórdão recorrido e substituir por outro que repristine o julgado absolutório da primeira instância.
Contrapõe, em suma, a recorrente, que apesar da alteração da decisão de facto, não ficou provado que a deterioração do imóvel decorra do facto de a Autora não poder passar pelo seu prédio para concluir as obras da empena, falhando, no seu entender, o nexo de causalidade entre a sua conduta e “as patologias do imóvel” que o imóvel ora apresenta.
Mais alega, que não era certa a possibilidade de venda da moradia, não deixando a Autora de obter quaisquer lucros, devendo ainda atender-se à inflação e à valorização do mercado imobiliário desde 2011, que lhe trouxe, outrossim uma vantagem patrimonial.
2.1. Para a apreciação do objecto do recurso releva a factualidade provada sob os pontos 17. 18, 20, 21,22,23,24,25,27, 27ª, 27B, 27C.
Em síntese:
- A Ré impediu a Autora de realizar as obras na empena da moradia, pelo menos desde maio de 2011, ao vedar a passagem necessária pela sua propriedade, que prolongou até junho de 2022;
-Dado o estado incompleto da obra, o Município indeferiu a emissão de licença de habitabilidade/ utilização do imóvel;
- O imóvel apresenta fissuras e outras patologias, cuja reparação tem o custo de Euros 32,000,00;
- A Autora dedica-se à construção e venda de imóveis e a moradia em causa destinava-se à venda.
3. Apreciando.
Subjacente à demanda, fundada em responsabilidade civil extracontratual, está o incumprimento pela Ré da obrigação legal imposta ao dono do prédio confinante e estabelecida no artigo 1349º do Código Civil.
O proprietário do prédio vizinho àquele em que se impõe a realização de obras, está obrigado a consentir que o seu prédio seja momentaneamente ocupado, com vista à realização de tais obras, se tal ocupação for indispensável a tal desiderato.
Vinculando, pois, o proprietário em tal situação, a uma obrigação de prestação de facto negativo, na modalidade de obrigação de tolerância ou de deixar fazer (obrigação de pati).7
E, no caso sub judice, resultou provado, e a Ré também não questionou, que a Autora não podia realizar a descrita obra na empena da sua moradia, sem que a Ré facultasse o acesso pela sua propriedade.
E, do mesmo modo, também o dano se verifica, sendo como já se referiu, que a obra assim inacabada constitui o motivo do despacho de indeferimento do pedido de emissão da respectiva licença administrativa de utilização/habitabilidade, condição de que dependia a transacção onerosa do imóvel e objectivo da Autora.
A Ré dissente do acórdão recorrido, ao sustentar que não se verifica o nexo de causalidade entre a sua conduta e os danos que o tribunal da Relação considerou dever indemnizar.
Quanto ao nexo de causalidade de que depende a obrigação de indemnizar, o Supremo Tribunal intervém para sindicar a observação pelas instâncias dos critérios indicados no artigo 563º do Código Civil, conforme jurisprudência consolidada deste tribunal - «(…)a matéria respeitante ao nexo de causalidade adequada, como tal designada pela doutrina e tida como adotada no artigo 563.º do CC, envolve duas componentes: uma, de feição naturalística, respeitante ao nexo entre o facto-condição e o resultado por ele provocado; outra, de alcance estritamente normativo, tendente a saber se esse facto, em abstrato, é causa adequada daquele resultado (…) Assim, enquanto que a componente naturalística, abarcando a fixação dos factos e a sua valoração probatória, escapa à sindicância do tribunal de revista, nos termos dos artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 1 e 2, do CPC, já a vertente normativa é passível de apreciação por este tribunal.» 8
Em concreto acerca da matéria da causalidade.
Seguindo jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal – enuncia o Acórdão do STJ de 01-07-2004 - «(..)o juízo sobre a causalidade integra, por um lado, matéria de facto, certo de que se trata de saber se na sequência de determinada dinâmica factual um ou outro facto funcionou efectivamente como condição desencadeadora de determinado efeito. E, por outro, matéria de direito, designadamente a determinação, no plano geral e abstracto, se aquela condição foi ou não causa adequada do evento, ou seja, dada a sua natureza, era ou não indiferente para a sua verificação.”9
No mesmo sentido, se pronunciou, designadamente, o Acórdão do STJ de 15.09.2016 que enfatiza no sumário - «(..) II. Os poderes do STJ no domínio das presunções judiciais resumem-se ao controlo da observância dos respectivos pressupostos legais – designadamente, a logicidade da ilação de factos essenciais a partir de factos instrumentais dados como provados –, o que não abarca a substância dos juízos probatórios das instâncias. III - A formulação do juízo de causalidade envolve matéria de facto e matéria de direito, estando vedado ao STJ sindicar o juízo de facto feito pela Relação e cabendo-lhe apenas pronunciar-se acerca do respeito pelo critério normativo da causalidade, reconduzindo-se este à interpretação do art. 563.º do CC de acordo com a teoria da causalidade adequada(..)»10
3.1. Dispõe o artigo 562.º do Código Civil que quem provoca um dano está obrigado a repará-lo, reconstituindo a situação do lesado se não se tivesse verificado o evento.
Sabido também que na obrigação de indemnizar se incluem, não só os prejuízos causados nos bens ou direitos já existentes na titularidade do lesado, à data da lesão – os danos emergentes – mas, também as vantagens que deixou de obter com a lesão ou os lucros frustrados – os lucros cessantes.
Por seu turno, estabelece o artigo 563º do Código Civil que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão.
É comummente considerado pela doutrina e jurisprudência que o legislador consagrou no artigo 563º do Código Civil, a doutrina da causalidade adequada, embora de forma imperfeita.11
A doutrina da causalidade adequada, qualifica como causa de um dano o facto que, sendo em concreto uma condição necessária do resultado, é suscetível de produzir aquele prejuízo, segundo o curso normal, dos acontecimentos.
No juízo de prognose abstrata, são atendíveis as circunstâncias conhecidas ou cognoscíveis do lesante.
Seguindo a formulação positiva, mais restritiva o facto só será causa adequada do dano, quando este constitua uma consequência normal ou típica daquele, implicando assim, que sempre que verificado o facto, se possa prever o dano como uma consequência natural ou como efeito provável dessa verificação.
Sob a formulação negativa, o facto que actuou como condição do dano deixa de ser considerado como causa adequada, quando para a sua produção tiverem contribuído decisivamente circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas, que intercederam no caso concreto.
Com efeito, o nexo de causalidade, enquanto requisito da responsabilidade civil, transporta, não raro, atribulação e esforço de demonstração, que se prende com as conexões naturalísticas entre o facto e dano.
Apelando à orientação dominante, a causa de certo efeito é a condição que se mostra, em abstrato, adequada a produzi-lo.
De sublinhar que a doutrina da causalidade adequada não pressupõe a exclusividade da condição, nem uma relação direta ou imediata entre o facto e o dano.12
Como ensina Pessoa Jorge - «Essa adequação traduz-se em termos de probabilidade, fundada nos conhecimentos médios: se, segundo os ensinamentos da experiência comum, é lícito dizer que, posto o antecedente x se dá provavelmente o consequente y, haverá relação causal entre ele. Deste modo, o dano considerar-se-á efeito do facto lesivo se, à luz das regras práticas da experiência e a partir das circunstâncias do caso, era provável que o primeiro decorresse do segundo, de harmonia com a evolução normal (e, portanto, previsível) dos acontecimentos.»13
A doutrina e a jurisprudência concordam em que a tarefa do apuramento do nexo causal, entre o facto e o dano, desdobra-se por dois patamares sequenciais: o primeiro, traduz um juízo de causalidade física que cuida de averiguar se o acto do agente foi em concreto uma condição sine qua non da produção do dano, evidenciando uma questão de facto ; o segundo e posterior , não bastando uma ligação meramente natural entre os factos, é necessário adequar a causalidade enquanto formulação jurídica, evidenciando questão de direito.
Na demonstração do nexo causal naturalístico ter-se-ão em conta as regras probatórias e da sua valoração judicial, sendo que a prova do nexo causal compete, em regra, ao lesado, enquanto facto constitutivo do direito de indemnização de que se arroga, e as provas são apreciadas pelo tribunal e a sua prudente convicção, de acordo com as regras da ciência, do raciocínio, e das máximas da experiência.14
Sob essa perspectiva, no nosso sistema jurídico, o juízo de prova relativo ao preenchimento do nexo causal entre o facto e o dano, no âmbito pressuposto da responsabilidade civil, não está cerceado por um valor matemático de probabilidade da ocorrência, e aponta para uma noção probabilística, conforme ressalta do disposto no artigo 563º do Código Civil.
Converge grande parte da doutrina e da jurisprudência, que o nosso sistema rececionou a doutrina da causalidade adequada na sua formulação negativa – artigos 562º e 563º do Código Civil.15
Impõe-se primeiramente, verificar a existência de um facto naturalístico concreto condicionante do dano, e na afirmativa, aferir de seguida, se o facto é em abstrato, adequado e apropriado para provocar o dano sofrido pelo lesado.
Esta traduz a concepção metodológica perfilhada maioritariamente na jurisprudência com respaldo na doutrina civilista tradicional dominante.16
Ligação entre o dano e a ocorrência factual, na qual poderão confluir intervenções estranhas, exteriores e alheias ao facto e que desvirtuam os resultados por ele produzidos, ou quando tais resultados apenas ocorrem por circunstâncias totalmente anómalas e invulgares segundo as regras da experiência.
Noutra perspectiva da teoria da causalidade, para ocorrer obrigação de reparar o dano, é necessário que o acto seja condição dele, exigindo-se, ainda que o mesmo, provavelmente, não teria acontecido se não fosse a lesão, o que reconduz a questão a uma questão de probabilidade; sendo, então, causa adequada aquela que, agravando o risco de produção do prejuízo, o torna mais provável, e não aquela que, de acordo com a natureza geral e o curso normal das coisas, não era apta para o produzir, mas que só aconteceu devido a uma circunstância extraordinária.
Acresce que a utilização da probabilidade concreta do caso tem o seu fundamento na interpretação sistemática do artigo 563º do Código Civil, tal como sucede quando a ilicitude decorre da violação de norma destinada a proteger interesses alheios.
Conforme afirma Antunes Varela que preconiza uma concepção mais rigorosa da causalidade adequada, « (…)o facto que actuou como condição do dano só deixará de ser considerado como causa adequada se, dada a sua natureza geral, se mostrar de todo indiferente (gleichgültig) para a verificação do dano, tendo-o provocado só por virtude das circunstâncias excepcionais, anormais, extraordinárias ou anómalas que intercederam no caso concreto.», e mais adiante, afirma, « (..)Não são já relevantes todas as condições que originaram determinado dano, nem a análise se cinge a uma espécie de casuísmo, pois temos agora uma verdadeira norma geral que cinge os factos relevantes àqueles cuja não verificação implicaria a não verificação do dano.»17
Na jurisprudência ilustra, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20.10.2010: «(…) o facto só deixará de ser causa adequada do dano, desde que se mostre, por sua natureza, de todo inadequado e o haja produzido apenas em consequência de circunstâncias anómalas ou excepcionais.»18
Esta formulação promove, ademais, um conceito bastante amplo da causalidade adequada, em termos de consideração de âmbito material ou de efeito irradiante de nexo causal, enquanto pressuposto da responsabilidade civil, estendendo-se em consequência ao próprio espaço axiológico – normativo de influência.
4.Feito este breve enquadramento normativo e dogmático que a matéria da causalidade suscita, vejamos a situação factual em juízo.
4.1. Quanto à indemnização pela depreciação do imóvel.
O acórdão recorrido fundamentou a obrigação de indemnizar, conforme se reproduz:
«É um facto que a A sempre poderia ter entrado pela porta principal da moradia para qualquer reparação, mas essa é uma resposta simplista e redutora desta factualidade; não esqueçamos que a moradia da A não era para a sua habitação, mas para a colocação no seu giro comercial. Como tal, faltava a concessão da licença administrativa de utilização/habitabilidade, pelo Município de ..., ou seja, na prática, a A estava impossibilitada de concretizar a venda.
Tal situação prolongou-se por 11 anos.
Ora, as regras da experiência conjugadas com todas as demais atinentes ã boa execução dos serviços de construção civil, não aconselhariam à A ir substituir torneiras, tapar fissuras, lacar, pintar, ano a ano, quando não se sabia o terminus desta situação (sublinhado nosso).
Se a A executasse esses trabalhos em 2014, em 2018, executá-los ia de novo e assim sucessivamente. O que acarretaria duplicação de custos, ou seja, não haveria uma boa gestão dos prejuízos.
Concluindo, sem saber quando é haveria a possibilidade, concreta, do imóvel ser colocado no circuito comercial, não se exigia à R que executasse obras de manutenção.
Termos em que à luz dos requisitos da responsabilidade extracontratual, a R será obrigada a indemnizar a A no montante de € 32.000, tal como foi apurado.”
A Ré declina a responsabilidade, alegando que não se provou que o prédio apresente dano pelo facto de não ter permitido o acesso pela sua propriedade, podendo a Autora proceder às reparações no interior da moradia.
Ora, na linha de raciocínio que resulta da aplicação dos enunciados critérios normativos e densificação da doutrina da causalidade, não se afigura, salvo o devido respeito, que assista razão à recorrente.
Desde logo, esbarra no juízo de causalidade entre os factos apurados e a impossibilidade de comercialização da moradia sem licença de utilização/habitabilidade ditada pela falta das obras de fachada, obra que a Ré impediu a Autora de realizar, vedando a acesso pelo seu prédio, ao arrepio da respetiva obrigação legal -conforme resulta em particular da factualidade provada e constante dos pontos 16, 17, 18, 19, 20, 21, 23 e 27, 27A., 27B e 27C.
A deterioração do imóvel assenta na causa natural da acção do tempo sobre as materiais da construção e equipamentos (cerca de 11 anos sobre a edificação fechada e sem uso) - como ditam as regras elementares da experiência.19
Porém, sendo a alienação a terceiro o objectivo da Autora na construção da moradia, a impossibilidade de tal desiderato precipitou-se em razão da conduta pertinaz e ilícita da Ré, ao impedir a passagem pela sua propriedade a fim de ser ultimada a obra, condição da qual dependia, como se provou, a obtenção de licença de habitabilidade do imóvel e por esse motivo negada pelos serviços administrativos municipais.
O que também significa, que apesar de passível de reparação das fissuras e outras patologias no interior da moradia, apenas seria exigível à Autora, numa lógica de actividade comercial a que se dedica, executá-las quando pudesse colocar no mercado a moradia, na dependência da obra final da fachada e, por conseguinte, da imprevisível duração da conduta ilícita e continuada da Ré que impedia a realização.
Acolhendo a fundamentação do acórdão recorrido «(..) as regras da experiência conjugadas com todas as demais atinentes à boa execução dos serviços de construção civil, não aconselhariam à A ir substituir torneiras, tapar fissuras, lacar, pintar, ano a ano, quando não se sabia o terminus desta situação. Se a A executasse esses trabalhos em 2017, em 2018, executá-los-ia de novo e assim sucessivamente. O que acarretaria duplicação de custos, ou seja, não haveria uma boa gestão dos prejuízos.»
Dito de outra forma, não se estabelecendo embora causa naturalística entre a conduta da Ré e as deteriorações verificadas, permanecendo o imóvel ao longo de 11 anos fechado e sem utilização, não se provando outro motivo, quer dizer que se estabeleceu um juízo de probabilidade e plausibilidade entre a ocorrência daquele dano e o seu comportamento.
O acórdão recorrido acolheu, por conseguinte, o critério legal normativo da causalidade quanto ao dano, fazendo correcta interpretação do artigo 563º do Código Civil.
4.2. Passando à indemnização por lucros cessantes.
O que está em causa no âmbito do pedido de indemnização por lucros cessantes é o facto a Autora ter ficado impedida de comercializar e, consequentemente, de receber, o preço da venda do imóvel, em resultado da descrita conduta ilícita da Autora.
Advoga a recorrente que, para tal obrigação de indemnizar seria necessário que se verificasse a existência de um nexo de causalidade traduzido na possibilidade séria e concreta de venda do imóvel, que não ficou provada.
O Tribunal da Relação considerou para julgar procedente o pedido o seguinte:
«Contudo, sabemos que a imóvel valia € 312.500 (2011), € 250.00(2014) e em 2020 €340.000.
Porém, o que é certo é que o A não a poderia vender sem a respectiva licença administrativa de utilização/habitabilidade, que estava dependente da atitude da R. Dai concordarmos que é devida à A indemnização a título de lucros cessantes com fundamento na inviabilidade da comercialização do imóvel; na verdade, em função da atitude da R, a A teve no seu património um imóvel longe da pretendida comercialização.
E, também concordamos que essa indemnização deverá ser calculada com base nos juros civis sobre o valor do imóvel à data do facto gerador da responsabilidade civil, no cálculo do quantum indemnizatório
É que os " juros a introduzir no montante indemnizatório dos danos concretos não deverão reputar-se como juros moratórios, juros de mora, mas antes como juros compensatórios ou indemnizatórios (hoc sensu), isto é, como fazendo parte ainda da indemnização devida, sua parte integrante; são assim, também capital"
Com efeito, estando em causa a responsabilidade por facto ilícito, os juros devidos visam contrabalançar a desvalorização monetária e manter intocável a indemnização que seja devida.
Por isso, estes juros não são verdadeiramente moratórios, mas compensatórios, integrando a indemnização pelo dano.»
Em nossa apreciação, a matéria factual aponta para a solução preconizada, salientando dos factos o ponto 23 - “A não concessão da licença administrativa de utilização/habitabilidade, pelo Município de ..., inviabilizou a introdução da moradia da autora no giro comercial, de modo a ser transmitida a terceiros, constituindo este o único objetivo mercantil daquela, quando avançou para a construção dessa moradia.”
Ou seja, o dever de indemnizar a título de lucros cessantes emerge da inviabilidade da comercialização do imóvel pela Autora, atenta a falta de licença de habitabilidade, derivada da conduta ilícita da Ré que impediu o terminus da obra de construção, condição de que dependia o licenciamento do imóvel pelos serviços municipais.
Sendo razoável entender que nessa circunstância, dedicando-se a Autora à actividade de construção e venda de imóveis, ficou privada da vantagem patrimonial da venda da moradia, que com toda a probabilidade, seguindo as regras da experiência, se consumaria, caso devidamente licenciada, a despeito da confluência das vicissitudes temporais do mercado do imobiliário.
De resto, de prova difícil seria o projecto de negócio de venda da moradia, que nas circunstâncias não ditaria por si a impossibilidade de contratar, mas com fraca ou nula probabilidade de ter lugar.
Note-se que resultando da lei a necessidade de instruir a escritura de compra e venda com a licença de habitualidade /utilização do imóvel, tal exigência estava comprometida pela obra inacabada, obstáculo que não dependia da Autora, já que a empena inacabada carecia da passagem de homens e materiais pela propriedade da Ré, conforme espelham os factos provados.20
Tal como se ponderou no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04.12.2012, «(..) entendida, como vem sendo, a teoria da causalidade adequada, acolhida no dito art. 563.º, na sua formulação negativa, o facto gerador do dano só pode deixar de ser considerado sua causa adequada se se mostrar inidóneo para o provocar ou se apenas o tiver provocado por intercessão de circunstâncias anormais, anómalas ou imprevisíveis. (..)».21
Dito de outro modo, um evento só deixará de ser causa adequada se, segundo o normal decurso das coisas e a experiência da vida, não potenciou mais a verificação do dano.
De outro passo, a doutrina do nexo de causalidade, denominada também de perda de chance, permite indemnizar o lesado nos casos em que não se consegue demonstrar que a perda de uma determinada vantagem (ou de evitar uma desvantagem) é consequência segura do facto do agente, mas em que se constata que as probabilidades de não ter sofrido o dano, são reais e não despiciendas, em patamar suficiente que suporta a convicção da sua ocorrência. 22
Para dizer que, no caso ajuizado, à luz destes parâmetros, também se figura evidenciado o dever da Ré de indemnizar a Autora pela perda do acréscimo patrimonial per relacionem da impossibilidade da venda da moradia, desde o ano de 2011, resultado útil que com probabilidade relevante teria alcançado.
Finalmente, não nos alheamos das posições actuais que se afastam daquela indagação probabilística, contrapondo a flexibilização, em geral, do nexo de causalidade entre o dano e a conduta lesiva.
Entre elas avulta a abordagem da situação factual com referência a esferas de risco, i.e, avaliando a esfera do lesante em cotejo com as esferas do lesado, de terceiro ou do risco geral da vida.23
Sob este prisma, orientados sob o critério do risco entre a conduta ilícita e a verificação do dano, parece, de igual modo, demonstrado na situação em juízo, se porventura, a Ré agisse em consonância com a obrigação prevista no artigo 1349º do Código Civil, a Autora terminaria a obra no ano de 2011, obtendo assim a licença de utilização que permitia colocar o imóvel no mercado, diminuiria consideravelmente o risco de não ser vendido, como sucedeu.
Por último, conforme decidiu o tribunal a quo, a indemnização devida à Autora a título de lucros cessantes, corresponde à privação do acréscimo patrimonial em resultado da venda do imóvel- repete-se, que segunda as regras da experiência- teria elevada probabilidade de efetivar-se, não fora o prolongado incumprimento da Ré.
Argumenta ainda a recorrente no ponto 44 das conclusões – “(..)sempre se dirá que, mesmo que se entendesse que era devida indemnização por lucros cessantes, com fundamento na inviabilidade da comercialização do imóvel, não poderá deixar de ser considerada a inflação e valorização do mercado imobiliário desde 2011. 45.Ora, em face da inflação e da valorização do mercado imobiliário, o imóvel da ora RECORRIDA beneficiou de uma valorização. 46.Pelo que, atribuir uma indemnização por lucros cessantes à ora RECORRIDA, não se coaduna com propósitos da responsabilidade civil, porquanto, o eventual facto gerador de responsabilidade civil, permitiu à ora RECORRIDA beneficiar da valorização do mercado imobiliário, obtendo assim, uma vantagem patrimonial. (…)”
A indemnização a arbitrar à Autora abrange não só os danos emergentes causados pela lesão, como também os benefícios não obtidos em consequência dessa lesão, os chamados lucros cessantes – artigo 564º, nº1, (segunda parte) do Código Civil.24
A sua quantificação monetária, dada a ausência de elementos, foi relegada pelo tribunal a quo para liquidação em execução de sentença, que a recorrente não questiona.25
Estabelecida a obrigação de indemnização da Ré quanto aos lucros cessantes e o seu objecto identificado, no futuro apuramento do quantum monetário, o tribunal seguirá a propósito o que dispõem os artigos 564º e 566º do Código Civil.
Acresce que, dada natureza compensatória da prestação, a respetiva quantificação monetária assentará, tal como discorreu o acórdão recorrido - “(…) com base nos juros civis sobre o valor do imóvel à data do facto gerador da responsabilidade civil, no cálculo do quantum indemnizatório. (..) não pode deixar de ser ponderada a evolução da conjuntura económica, as potencialidades de venda do bem, o interesse manifestado pelo mercado, os valores de mercado da zona e a desvalorização/valorização dos imóveis, desde 2011 a 2022(…)”
IV. Decisão
Pelo exposto, nega-se provimento à revista, confirmando o acórdão recorrido.
Lisboa, 17.10.2024
Isabel Salgado (relatora)
Maria da Graça Trigo
Catarina Serra
____
1. Cfr. Conclusão 2ª do recurso- “2. O Recurso de Revista ora interposto tem por objeto parte do douto Acórdão recorrido, designadamente, a condenação da ora RECORRENTE no pagamento de duas indemnizações: (i.) uma indemnização de € 32.000,00 (trinta e dois mil euros) pela depreciação física do imóvel e uma (ii.) indemnização pelos lucros cessantes, a liquidar no respetivo incidente. “
2. Por lapso de escrita manifesta, constava a “Autora”
4. o Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, no processo nº 1693/09.9... reconheceu que “nenhuma das normas legais e regulamentares que o autor [BB] alega terem sido violadas pelos despachos impugnados nos autos.
5. Para completar aquela obra na fachada confinante, a Autora necessitava de proceder: ao levantamento da vedação metálica instalada sobre o muro, bem como a entrada dos trabalhadores, o levantamento dos andaimes, e a passagem dos materiais, de modo a concluir a execução da obra na moradia, em particular o reboco e a pintura da empena que é contígua ao prédio da ré.
6. Pontos aditados aos factos provados: 27-A. “Desde 18 de Maio de 2011. que a moradia da autora sofreu uma depreciação física”;27-B. “Em 2014, a moradia já continha pequenas fissuras nas paredes interiores. Em 2020, as portas interiores e dos roupeiros encontravam-se manchadas por força da humidade: as torneiras das casas de banho apresentavam-se picadas e as paredes também. As paredes do interior necessitam de nova pintura, o mesmo sucedendo com as paredes exteriores; as portas encontram-se manchadas; há torneiras que se mostram “picadas” e que importa trocar; os motores eléctricos de alguns estores não funcionam; o portão da garagem encontra-se enferrujado; os gradeamentos mostram-se "queimados'" do sol; as paredes do exterior necessitam de nova pintura; na casa de banho, existem mosaicos cerâmicos rachados”;27-C. “O custo com a reparação destes danos não será inferior a € 32.000,00 (trinta e dois mil euros)”.
7. No direito das obrigações – arts. 398º, 828º e 829º, do C. Civil – a prestação de factos pode ser positiva ou negativa. a prestação de facto negativa pode ser representada por um puro não fazer ou abstenção (obrigação de non facere), ou por um não fazer associado a um consentir ou tolerar actos do credor ou titular do direito (obrigação de pati) – a propósito v. Antunes Varela, in, Das Obrigações, págs. 53/4 e Anselmo de Castro, in, A Acção Executiva Singular, Comum e Especial, 3ª ed., pág. 383.
8. Cfr. Acórdão de 24-11-2016, Revista n.º 96/14.8TBSPS.C1. S1, in www.dgsi.pt; estando assente o nexo naturalístico entre os danos e a conduta ilícita, apreciou-se da respectiva valoração probatória nos termos do disposto no art.º 674.º, n.º 3 e 682.º n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, como é o caso em juízo.
9. Processo n.º 04B1536, disponível in www.dgsi.pt.
10. No 207/09.5TBVLP.G1. S1, relatado por Maria da Graça Trigo, membro deste colectivo; também, desta 2ªsecção, o Acórdão do STJ de 27-04-2023, no proc. n.º 1431/20.5T8FAR.E1. S1, disponíveis em www.dgsi.pt.
11. Cfr. Galvão Telles, in Das Obrigações,1997, pág. 408/10/; Antunes Varela, Dás Obrigações, 2000, pág898/900, e Almeida Costa, 2009: 766/67. Em diferente sentido, Menezes Cordeiro -dissocia o artigo 563ª do CC da formatação pela teoria da causalidade adequada, em benefício da consideração do escopo da norma violada, Da Responsabilidade, pág. 534 e Varela542/50.
12. Cfr. neste ponto o Acórdão do STJ de 27.04.2017.
13. In Ensaio sobe os pressupostos da responsabilidade civil, 1995, pág. 392/3.
14. V. artigos 342º, nº1, do CC e 607º, nº5, do CPC; e cfr. Miguel Teixeira de Sousa in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil “, pág. 347.
15. Cfr. Antunes Varela in Das Obrigações, I, pág.878; em contrário, Menezes Cordeiro in Direito das Obrigações, I, pág.362
16. Cfr. Pessoa Jorge in obra citada, pág.410; e Galvão Telles in Direito das Obrigações, pág.409.
17. In obra citada l, vol. I, 10.ª edição, 2003, págs., 890/94 e 899/900.
18. No proc. 670/04.0TCGMR.S1, in www.dgsi.pt;
19. O STJ está vinculado ao que decidiram as instâncias sobre a componente naturalística dos factos e respectiva valoração probatória, atento o disposto nos artigos 674.º, n.º 3 e 682.º n.º 1 e 2 do CPC.
20. Continua em vigor o artº 44 da lei 46/85 de 20/9/85, apesar da sua revogação pelo Decreto-Lei n.º 321-B/90, de 15 outubro; estabelece aquele que "não podem ser celebradas escrituras públicas que envolvam a transmissão da propriedade de prédios urbanos sem que se faça perante o notário prova suficiente da existência da correspondente licença de construção ou de utilização, quando exigível, da qual se fará sempre menção na escritura."
21. No proc. n.º 289/10.7TVLSB.L1. S, disponível in www.dgsi.pt.
22. Entre outros, cfr. Carneiro da Frada in Direito Civil, Responsabilidade Civil, 2006, pág.250/255.
23. Neste sentido, Mafalda Miranda Barbosa, ex. in Direito da Responsabilidade, pág 188/90.
24. Apenas em casos excepcionais, em que o devedor agiu sem culpa, é que da indemnização se excluem lucros cessantes, v.g. os artigos 899º e 909º do Código Civil.
25. Conforme explicita o Acórdão do STJ, 28.10.2010 (processo nº 272/06.7TBMTR.P1.S1), disponível in ww.dgsi.pt- diferente do que concerne aos danos não patrimoniais, o recurso à equidade- artigo 566º, nº 3, do Código Civil- para obter uma exata e precisa quantificação de danos patrimoniais, desempenha uma função meramente complementar e acessória da aplicação da teoria da diferença, consagrada no nº 2 do citado artigo 566º, pelo que, sendo a matéria de facto dada como provada em sede de liquidação suficiente para alcançar a quantificação dos danos, não há que recorrer ao critério da equidade; Cfr. Artigo 609.º,nº2, do CPC.