HERANÇA INDIVISA
PERSONALIDADE JUDICIÁRIA
PATRIMÓNIO AUTÓNOMO
CABEÇA DE CASAL
LEGITIMIDADE
HERDEIRO
EXECUÇÃO DE SENTENÇA
RESTITUIÇÃO DE BENS
Sumário


I. A herança indivisa é um património de afectação especial / património autónomo que tem personalidade judiciária e é representado em juízo pelo(s) seu(s) administrador(es) (cfr. artigo 26.º do CPC).
II. O administrador da herança indivisa é, em regra, o cabeça-de-casal (cfr. artigo 2079.º do CC).
III. Tendo um dos herdeiros intervindo, do lado activo, em acção em que se condenou o outro único herdeiro a restituir bens à herança e não estando este último em condições de desempenhar as funções de cabeça-de-casal, por força da prática de actos do tipo dos previstos no artigo 2086.º, n.º 1, do CC, resta reconhecer ao primeiro o poder de executar aquela sentença, em nome da herança.

Texto Integral



ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorrido: BB

1. Nos presentes autos de embargos de executado em que é embargante AA foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

Por todo o exposto, julgo improcedentes os embargos de executado deduzidos por AA contra BB, determinando o prosseguimento da execução”.

2. O embargante interpôs recurso de apelação, tendo o Tribunal Da Relação proferido Acórdão em que se decidiu, a final:

Pelos motivos expostos, e nos termos das normas invocadas, acordam os juízes destes autos no Tribunal da Relação do Porto, por maioria, em julgar improcedente o recurso de apelação interposto pelo embargante e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida, sendo os fundamentos essencialmente os mesmos, nos termos sobreditos, devendo os autos de execução prosseguirem os seus ulteriores termos”.

3. O embargante vem agora interpor recurso de revista “nos termos do disposto nos artºs 671ºe 675ºdo CPCivil”.

Termina as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. Até à partilha os herdeiros de um património comum, adquirido por sucessão mortis causa, são titulares apenas de um direito sobre a herança, mas não sobre bens que compõem aquela, pelo que a qualidade de herdeiro do co-autor BB na ação declarativa não lhe atribui a qualidade de dono ou possuidor ou comproprietário dos bens da herança indivisa.

II. A herança ilíquida e indivisa – como é o caso dos autos – não tem personalidade judiciária, pelo que são os herdeiros quem deve assumir a posição no âmbito de uma ação judicial em que estejam em causa interesses do acervo hereditário, já que ”os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros “ – nº 1 do artº 2091º do CCivil.

III. O Exequente BB não tem legitimidade para – sozinho, desacompanhado do co-herdeiro, assente que está que ambos são os únicos herdeiros -executar a sentença após o falecimento do Pai de ambos.

IV.A presente execução deveria ter sido deduzida por todos os herdeiros, nessa qualidade. Não o tendo sido, verifica-se ilegitimidade do Exequente para intentar a presente execução.

V. O facto de ter sido autor e ser herdeiro do falecido não afasta o que acabamos de dizer, considerando o determinado na sentença – que os bens a restituir são da herança e a indemnização a pagar é à herança”.

6. O recorrido apresentou respostas às alegações, em que sustenta a improcedência da revista.

7. Foi proferido no Tribunal da Relação do Porto despacho com o seguinte teor:

Requerimento de interposição de recurso de 05/09/2024 (e contra-alegações de 30/09/2024):

Por o recorrente ter legitimidade e estar em tempo, admitimos o recurso interposto por ele (artigos 627.º, 629º, n.º 1, 631.º, 637.º e 638.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil).

Não foi arguida nulidade do acórdão.

O recurso é de revista (normal), com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, para o Supremo Tribunal de Justiça (artigos 671º, n.º 1, 674º, 675º, n.º 1, 676º, n.º 1 a contrario, todos do Código de Processo Civil)

Notifique e, observando-se as formalidades legais, subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça”.


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Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a única questão a decidir, in casu, é a de saber se o recorrido BB tem o poder de executar a sentença que condena o recorrente AA e outros a restituir os bens ou a pagar a indemnização.

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II. FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

Depois da alteração da decisão sobre a matéria de facto, os factos considerados provados pelo Tribunal da Relação são os seguintes:

A) Foi dado à execução uma decisão judicial condenatória, no âmbito do processo 3068/17.7... do Juízo Central Cível de ... – Juiz 1, em que eram autores CC e BB, e eram réus AA, DD, EE e FF.

B) A decisão mencionada em A), determinou:

«a) serem pertença do casal CC e GG todos os bens discriminados em 8 dos Factos Provados;

b) com exceção dos elencados no nº 9 dos FP que ali foram deixados e dos doados aos netos EE e FF e que são os constantes da verba nº 21 de fls. 21 e da fotografia de fls. 194 e da verba nº 33 de fls. 30 e da fotografia de fls. 199, condeno os RR. a restituir à herança de GG, da qual é cabeça-de-casal o marido (o A. CC), todos os bens referidos em 8 dos FP;

c) caso alguns dos mesmos bens não sejam encontrados ou não sejam restituídos se conhecidos pelos RR., condeno os RR. a indemnizarem a herança pelo valor dos mesmos a encontrar em incidente de liquidação, nos termos do art. 358.º do CPC».

C) CC faleceu em ...-05-2021, sem testamento ou qualquer outra disposição de última vontade, deixando dois únicos herdeiros, o executado e o exequente.

D) Em ...-06-2021, o executado prestou declarações à Autoridade Tributária, declarando ser o cabeça-de-casal por óbito de CC, por ser o filho mais velho.

E) Em ...-06-2021, o exequente prestou declarações à Autoridade Tributária, declarando ser o cabeça-de-casal por óbito de CC, por residir com o falecido há mais de um ano à data da morte.

F) Em ...-11-2021, o exequente intentou a ação executiva para obter cumprimento do decidido na sentença referida em A) e B.).

G) O exequente intentou a presente ação executiva da sentença referida em A) e B) considerando ser cabeça-de-casal.

H) O executado AA e co-executados não cumpriram o determinado na sentença, não procedendo à entrega dos bens da herança de GG, sua mãe, ao entretanto falecido viúvo, CC, cabeça-de-casal e seu pai.

I) Por acórdão transitado em julgado, no âmbito do processo 288/16.5... do Juízo de Competência Genérica de ... – ... 1, Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, aí ficou demonstrado que o documento denominado de contrato de arrendamento realizado entre CC e mulher GG e o executado e sua esposa, era falso.

L1) No acórdão referido em I), ficou demonstrado que o aqui executado fabricou esse documento, sabendo que não correspondia à real vontade dos declarantes/contraentes, neste caso a vontade dos então falecidos CC e GG, que no contrato incluiu.

M) Pelo menos parte dos bens que o executado foi condenado a devolver à herança de GG encontram-se num armazém.

N) No dia 15 de março de 2022, o Sr. Agente de Execução elaborou auto de diligência, onde consta na descrição que:

«No dia 16 de março de 2022 o A.E. deslocou-se ao armazém I da Av. ... ... e por acordo entre o exequente e os executados AA e EE ficou consignado que se mantém depositário dos bens FF, pelo que o exequente prescindiu da remoção dos bens».

O) Aquando do ato referido em N o exequente concordou que o executado sobrinho, FF, se mantivesse depositário desses bens.

Relevantes para a decisão da causa, não há factos não provados.

O DIREITO

Da alegada questão da (i)legitimidade activa do recorrido

Sobre esta questão, afirmou-se no Acórdão recorrido:

Começamos por reafirmar o que é patente: o embargado exequente era também autor no processo cuja sentença transitada em julgado constitui o título executivo, pelo que afigura-se-nos que o pleito em torno de a quem compete o cargo de cabeça de casal por óbito do anterior é desproporcionado na economia processual, tanto mais que segundo o disposto no art.º 5.º, n.º 3, do C.P.C., “[o] juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”.

Como observado pelo tribunal a quo, o art.º 53.º, n.º 1, do C.P.C. estabelece que “[a] execução tem de ser promovida pela pessoa que no título executivo figure como credor e deve ser instaurada contra a pessoa que no título tenha a posição do devedor”, resultado do art.º 54.º, n.º 1, do mesmo Código que “[t]endo havido sucessão no [direito], deve a execução correr entre os [sucessores]”..

Ora, do que referimos, resulta que o exequente, independentemente de ter sido autor na ação declarativa, comprovou ser herdeiro do outro autor nessa ação. De crucial importância é mantermos presente que em ambas as escrituras de habilitação de herdeiros, promovidas pelo exequente e pelo executado, constam como únicos herdeiros os dois – a divergência está no facto de cada um ter declarado ser o cabeça de casal.

Reiterando a ressalva feita do respeito devido a diferentes entendimentos, ficamos com a sensação que apenas o interesse – sempre subjetivamente configurado pela parte – no desfecho da ação ou, dito de outra forma, o interesse genérico do embargante em que, seja por que motivo for, a execução improceda, pode justificar a discussão em torno de quem é o cabeça de casal da herança.

Referimos antes que, para estes autos (que obviamente são de execução, não de inventário por sucessão), quando muito, seria necessário que o exequente provasse ser, também, herdeiro (além de ter sido autor), o que fez e é afirmado também pelo embargante.

Talvez a referência feita pelo exequente, no requerimento executivo, a ser “cabeça de casal” – asserção, a nosso ver, despicienda, tendo em conta o que vimos dizendo – tenha dado azo a toda a celeuma em torno de tal…

Do sobredito, resulta a legitimidade do exequente embargado para a execução interposta e de que estes embargos são dependência, pelo que também improcede esta questão”.

Aprecie-se, começando-se por recordar o que se disse no Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 29.10.2020 (Proc. 604/18.5T8LSB-C.L1.S1):

“A herança jacente ou indivisa qualifica-se como património de afectação especial ou, numa fórmula de uso mais comum na linguagem normativa, como património autónomo. Como se explicou em Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 5.12.2019, Proc. 2921/17.2T8PTM-A.E, o conceito de património autónomo abrange todos os patrimónios cujo titular não é imediatamente identificável, designadamente porque não existe ou ainda não está determinado, como é o caso desta herança2.

Não obstante não ter personalidade jurídica, a herança indivisa (cujo titular ainda não está determinado) tem personalidade judiciária, por força do artigo 12.º do CPC, de cuja al. a), resulta que, além das pessoas jurídicas, têm personalidade judiciária “[a] herança jacente e os patrimónios autónomos semelhantes cujo titular não esteja identificado3. Consoante é administrada por todos os sucessíveis chamados à herança, por curador ou pelo cabeça-de-casal (cfr. artigos 2047.º, 2048.º e 2079.º do CC), é representada em juízo pelos sucessíveis em conjunto, pelo curador ou pelo cabeça-de-casal (cfr. artigo 26.º do CPC).

Perante isto, verifica-se que não é correcto o pressuposto de que parte o recorrente – de que a herança jacente (ainda não aceite ou declarada vaga para o Estado) e a herança indivisa (já aceite mas ainda não partilhada) não têm personalidade judiciária (cfr. conclusão II). A herança jacente e, por maioria de razão, a herança indivisa têm, sim, personalidade judiciária; o que não têm é personalidade jurídica.

O que se suscita é, então, não um rigoroso problema de legitimidade, mas um problema relativo à representação da herança, a que corresponde a solução, formulada com alcance geral, no artigo 26.º do CPC.

Dispõe-se nesta norma que, salvo disposição especial em contrário, a representação das entidades deste tipo cabe aos seus administradores.

Ora, como resulta do que é dito no acórdão acima referido, os administradores da herança são, em regra, os sucessíveis chamados à herança (cfr. artigo 2047.º do CC) ou o curador (cfr. artigo 2048.º do CC), no caso da herança jacente, e o cabeça-de-casal, no caso da herança indivisa (cfr. artigo 2079.º do CC).

Seja quem for o cabeça-de-casal, é a ele que cabe, designadamente, pedir aos herdeiros ou a terceiros a entrega dos bens que deva administrar e que estes tenham em seu poder (cfr. artigo 2088.º, n.º 1, do CC), cobrar as dívidas activas da herança quando a demora importe risco de não cobrança ou haja pagamento espontâneo (cfr. artigo 2089.º), vender frutos ou bens deterioráveis (cfr. artigo 2090.º, n.º 1, do CC).

Esta regra não prejudica, todavia, o poder de outras pessoas agirem em nome e no interesse da herança, em casos especiais. De acordo com o artigo 2091.º do CC, fora dos casos referidos, os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros. Existem, assim, casos em que, competindo a administração da herança ao conjunto dos herdeiros, são eles, em conjunto os representantes da herança.

Feitas estas considerações sobre como a herança indivisa pode agir em juízo, retorne-se ao caso dos autos.

É verdade que não está apurado quem é o cabeça-de-casal, arrogando-se recorrente e recorrido, um e outro herdeiros, esta qualidade [cfr. factos provados D), E) e G)].

Mas, em primeiro lugar, não pode desprezar-se o facto de o recorrido BB ter intervindo na acção que deu origem à condenação dos executados à restituição dos bens e o pagamento da indemnização à herança de GG, tendo-lhe, portanto, sido judicialmente reconhecido o poder de agir em nome da herança, se bem que em conjunto com o então cabeça-de-casal [cfr. factos provados B) e C)].

Em segundo lugar, deve destacar-se que o recorrente AA, que é o único outro herdeiro além de BB [cfr. facto provado C)], praticou actos que o excluem como potencial cabeça-de-casal, portanto, como possível administrador e representante em juízo da herança.

Com efeito, o recorrente AA não só não cumpriu o determinado na sentença que o condenou, não procedendo à entrega dos bens da herança de GG [cfr. facto provado H)], como também e falsificou um contrato de arrendamento em nome dos pais, sabendo que tal contrato ia contra a vontade destes [cfr. facto provado L)].

Num contexto em que um sujeito adopta este tipo de comportamentos – comportamento do tipo dos previstos no artigo 2086.º, n.º 1, do CC, susceptíveis de conduzir à remoção do sujeito como cabeça-de-casal –, a averiguação da pessoa que está (ou pode ser) investida na qualidade de cabeça-de-casal com vista a determinar quem pode administrar e representar a herança, torna-se inútil.

Explica-se na sentença:

(…) na sentença condenatória no âmbito do processo 288/16.5T8ILH, em que era autor o exequente/embargado e réu o executado/embargante, confirmada pelo Tribunal da Relação do Porto, ficou demonstrado que o executado/embargante procedeu à falsificação de um documento, em que pretendia demonstrar perante o tribunal que o de cujus, possuía uma vontade que bem sabia que não era a vontade do falecido CC.

Estas duas realidades, demonstram com a necessária aptidão que o executado/embargante não é competente para assumir a administração da herança dos falecidos.

Assim considerando, fica então demonstrada a incompetência do embargante/executado para administrar a herança, bem como que dolosamente ocultou a existência de bens pertencentes à herança (note-se que os mesmos bens mencionados na sentença exequenda, são os mesmos bens do falecido CC) o que necessariamente implicaria a remoção do cargo de cabeça de casal, nos termos do art. 2086.º, n.º 1, alínea a) e d) do Código Civil.

(…) não nos parece possível, sequer, que o executado/embargante consiga administrar a herança com o cumprimento das deveres inerentes ao cargo, o que, necessariamente, implica que só o exequente/embargado poderá desempenhar esse cargo, inexistindo mais herdeiros legais para o fazer”.

Tudo ponderado, a solução correcta é, em suma, a de reconhecer que o recorrido BB tem o poder de, em representação da herança, executar a sentença que condena o recorrente AA e outros a restituir os bens ou a pagar a indemnização, porquanto, além de ser ele a pessoa que, conjuntamente com o seu falecido pai, figura no título dado à execução como quem agiu em nome da autora herança, não existe a possibilidade de que o recorrente AA, seu irmão e único outro herdeiro, seja o cabeça-de casal, logo o administrador e o representante da herança em juízo.

Saliente-se, por fim, que a credora e exequente é, em rigor, a herança, tendo a execução de que os presentes autos são apenso a finalidade de realização forçada do direito desta a recuperar os bens que lhe pertencem e de obter a indemnização que lhe é devida.


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III. DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido.


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Custas pelo recorrente.

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Lisboa, 17 de Outubro de 2024

Catarina Serra (relatora)

Paula Leal de Carvalho

Isabel Salgado

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1. A falta do facto provado J) é uma aparência, tendo simplesmente ocorrido um lapso na sucessão das letras que identificam os factos provados (originário da 1.ª instância).

2. Sobre a classificação dos patrimónios de afectação especial cfr. Orlando de Carvalho, Teoria Geral do Direito Civil, policopiado, Coimbra, Centelha, 1981, pp. 125 e s.

3. Esta alínea é fundamental para compreender o critério da extensão da personalidade judiciária e o que a justifica, tanto neste caso como nos casos previstos nas restantes alíneas. É visível que este critério da extensão é o da autonomia patrimonial (têm personalidade judiciária os patrimónios autónomos independentemente da existência ou o número de titulares) e que entre os propósitos da extensão estará, sem dúvida, o de evitar as acções contra incertos (nos casos dos patrimónios autónomos stricto sensu, como a herança jacente) ou as acções com um número elevado de litigantes (nos casos dos patrimónios colectivos).