1º INTERROGATÓRIO JUDICIAL
DECLARAÇÕES DE ARGUIDO
ARTIGOS 355º E 357º DO CPP
PROVA PROÍBIDA
NULIDADE DA SENTENÇA
Sumário

- As declarações feitas pelo arguido no processo perante autoridade judiciária com respeito pelo disposto nos artigos 141.º, n.º 4, al. b), e 357.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, podem ser valoradas como prova desde que reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento.
Não resultando dos autos, nomeadamente das atas das sessões da audiência de julgamento, bem como as gravações destas disponibilizadas pelo tribunal a quo, que essa reprodução ou leitura tenha sido efetuada pelo tribunal recorrido ou que o arguido tenha aceite de forma livre, inequívoca e esclarecida o seu conteúdo e ele, o Ministério Público e a assistente, por consenso, tivessem dispensado essa reprodução ou leitura, tais declarações do arguido integram prova proibida para efeitos de formação da convicção do tribunal, por violação do artigo 355º, nº 1, do CPP.
- A sentença que se funda em prova proibida é nula – nulidade que é até do conhecimento oficioso, pois estão em causa direitos e princípios processuais fundamentais, como os do contraditório e processo justo e equitativo, tutelados pelos artigos 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa e 6º, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Texto Integral

Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
I - RELATÓRIO

1. Nos presentes autos com o nº 164/23.5JAFAR, do Tribunal Judicial da Comarca de … – Juízo Central Cível e Criminal de … – Juiz … em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Colectivo, foi o arguido AA (bem como a arguida BB, cujo recurso não foi admitido por extemporaneidade, tendo sido certificado o trânsito em julgado da decisão da 1ª instância, por esta, quanto à mesma) condenado, por acórdão de 03/04/2024, nos seguintes termos:

Pela prática, em coautoria material, de dois crimes de homicídio, p. e p. pelo artigo 131º, nº 1, do Código Penal, na pena de catorze anos de prisão por cada um dos crimes.

Pela prática, em coautoria material, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 2 e 204º, nº 1, alínea f), do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão.

Após cúmulo jurídico, foi aplicada a pena única de vinte e dois anos de prisão.

Foi ainda o arguido/demandado civil condenado (solidariamente com a arguida/demandada civil BB) a pagar à assistente/demandante civil CC a quantia de trinta mil euros, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora a contar da data da prolação do acórdão.

2. O arguido não se conformou com a decisão e dela interpôs recurso, tendo extraído da motivação as seguintes conclusões (transcrição):

a) O Recorrente foi condenado, de entre o mais, pela prática, em co-autoria material, de dois crimes de homicídio p.p. pelo artigo 131º do Código Penal, na pena de catorze anos de prisão por cada um dos crimes; e no pagamento do pedido civil deduzido por CC; de 30.000,00€ (trinta mil euros) a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora a contar da prolação do acórdão.

b) Visa-se o reexame da prova, incorrendo a decisão no vicio de: Erro notório na apreciação da prova. Devia o recorrente, ao invés do que sucedeu, ter sido absolvido dos crimes de homicídio.

c) Subsidiariamente, e caso não se perfilhe a tese do arguido importa ajuizar se as penas parcelares a que o arguido foi condenado por cada um dos crimes de homicídio se afiguram justas.

d) Na sequência da prova produzida em sede de audiência de julgamento, foram dados como provados os factos constantes dos pontos 11, 15, 16, 17 e 18, os quais entendemos que não podiam tê-lo sido.

e) Como se extrai do Douto acórdão recorrido é facto pacifico que, exceção feita á testemunha DD, - inquirida para memória futura- nenhuma das demais testemunhas ouvidas em sede de audiência de julgamento, presenciou qualquer discussão o arguido e EE e FF ou constatou a sua presença na quinta das vítimas.

f) O arguido, que no 1º interrogatório judicial prestou extensas declarações, optou em sede de audiência de julgamento por se remeter ao silêncio, prerrogativa que a Lei lhe confere.

g) Sem embargo, e como aliás decorre da Motivação do Douto acórdão o arguido já havia admitido no 1º interrogatório judicial os factos que levaram á sua presença na habitação das vítimas, designadamente a sua difícil situação económica, o despejo da casa onde viviam, o relacionamento que já mantinha com o casal, o acordo no sentido de irem algum tempo para sua casa tendo como contrapartida a realização de determinadas tarefas bem como a existência de discussões relacionadas com a alimentação que lhe era fornecida e ainda por entender que lhe deviam ser efetuados pagamentos pelos serviços

h) Quanto às declarações para memória futura prestadas pela mãe da arguida – DD – importa sublinhar que estas entram, em diversos pontos, em contradição frontal com as declarações prestadas perante o Senhor Inspetor da Polícia Judiciária no dia 12.05.2023 (a fls… do volume I do processo); o que indicia falta de verdade, senão na segunda vez, necessariamente na primeira.

i) Não podia o Tribunal, como o fez, ter concluído que o arguido AA se dirigiu ao quarto de dormir onde se encontrava EE e, desferiu-lhe várias pancadas, com recurso a uma barra de ferro, em diversas partes do corpo, ao mesmo tempo que a vítima EE gritava de dor e aflição, até que ficou inanimada e foi deixada em cima da cama (cfr 11 dos factos provados), porque:

I. O grito que a testemunha DD ouviu não foi por ela descrito, depois de reiteradamente questionada a este propósito, como sendo de dor ou de aflição; tendo até concluído que aquele ocorreu na sequência de uma discussão entre o arguido AA e a vítima EE.

II. Quando a testemunha, após o grito, se dirige escassos metros no sentido da cozinha, estaria o arguido AA, de acordo com a descrição no Douto acórdão, ainda no quarto e não na cozinha; porém é aqui que a testemunha o coloca.

III. E se tivessem sido desferidas várias pancadas, com recurso a uma barra de ferro, em diversas partes do corpo, de modo serem causa direta e necessária da morte, não se compreende como poderiam não ser encontrados em sede de perícia médico-legal (autópsia), e não obstante o avançado estado de decomposição, sinais de lesões traumáticas nos remanescentes cadavéricos.

Note-se que a vítima era pessoa de idade e de acordo com as regras da experiência comum, a agressão com um ferro, sempre provocaria fraturas. Que a vítima não o apresentava.

j) Na mesma linha não se compreende, como pôde o Tribunal sustentar a conclusão de que os arguidos desferiram várias pancadas, com recurso a uma barra de ferro, na cabeça, de FF, (cfr ponto 16 dos factos provados) estribando-se no depoimento da testemunha DD, dado que de acordo coma as regras da experiência comum não é verosímil que a testemunha estivesse a escassos metros da cozinha da casa e não tivesse ouvido, em absoluto, qualquer ruido da alegada agressão, nem um grito, num um murmúrio, nem um gemido. Nada.

k) Adiante-se ainda no que a esta vítima respeita que a lesão traumática observada em sede de autópsia poderia ser prévia ao mês de abril de 2023; sendo certo que também quanto a esta vítima não foram observadas quaisquer fraturas(!)

l) Do que existe erro notório na apreciação da prova pelo Tribunal a quo, que assentou as suas conclusões, e a consequente condenação do Recorrente pelos crimes de homicídio, em provas meramente circunstanciais e nas declarações prestadas por uma testemunha que não oferece seriedade nos seus depoimentos; desde logo porque os alterou; ficando, de resto, a legitima questão sobre qual é, afinal, a verdade.

m) O Recorrente, não olvidando o princípio da livre apreciação da prova – consagrado no artigo 127º C.P.P. – pretende abalar não apenas o seu raciocínio conclusivo, mas sobretudo os pressupostos lógico-dedutivos desse raciocínio.

n) Não se afirma que o Tribunal tenha feito uma apreciação arbitrária, discricionária ou caprichosa de toda a matéria constante dos autos; porém ao apreciar livremente a prova deveria ter procurado atingir um grau seguro na formação do juízo de valoração e atingir tal objetivo não de uma forma subjetiva e emotiva, mas fundamentada, racionalmente objetivada e logicamente motivada. Que cremos não aconteceu.

o) Erradamente, o Tribunal assentou a sua convicção sobre a autoria dos homicídios em factos exteriores aquela dinâmica: porque o Recorrente viveu alguns dias com as vítimas, porque com elas discutiu, porque lhes furtou os cartões bancários e o carro e porque decidiu deixar a Quinta …, então, conclui, que também as matou.

p) Em suma, e como retro se tentou escalpelizar, deveria o Tribunal a quo ter absolvido o Recorrente dos dois crimes de homicídio e, em consequência, do pedido civil formulado pela assistente, pelo que se pugna.

q) Não merecendo acolhimento a tese perfilhada pelo Recorrente ao longo do presente recurso, importará ajuizar sobre a medida das penas parcelares aplicadas por cada um dos crimes de homicídio simples.

r) Tal como resulta do 46. dos factos provados o Recorrente, de 54 anos de idade, não tem antecedentes criminais sendo, por conseguinte, este o seu primeiro contato com o meio judicial.

s) Relativamente ao seu percurso de vida, nomeadamente familiar e laboral, como constante do ponto 46 dos factos provados, o arguido teve duas relações maritais significativas, antes da sua união de facto com a co-arguida. Em termos laborais revela-se uma pessoa ativa e que sempre trabalhou, não obstante a precaridade resultante da contratação informal.

t) Em meio institucional tem-se revelado adaptado às normas e regras do universo penitenciário.

Está a trabalhar, como faxina.

u) Os elementos supra concorrem para a análise da personalidade do arguido e deverão ser tidos em conta como elementos atenuantes.

v) Quanto ao crime de homicídio, previsto no artigo 131º do Código Penal, é punido com pena de prisão de oito a dezasseis anos, tendo ao recorrente sido aplicada a pena de 14 (catorze anos) de prisão por cada um dos crimes de homicídio o que, pelas circunstâncias retro alegadas e que militam a favor do recorrente, se afiguram excessivas, mostrando-se desproporcionais.

w) A determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial e deve o tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do crime, depuserem a favor do agente. Ora foi precisamente o que o Tribunal a quo não fez, violando o artigo 71º nºs 1 e 2 do Código Penal

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente recurso com a revogação parcial da decisão, absolvendo-se o Recorrente da prática dos dois crimes de homicídio e do pedido de indemnização civil ou, quando assim não se entenda, sejam reduzidas as penas parcelares aplicadas pela prática de cada um dos homicídios e, como consequência, operando o cúmulo jurídico, seja reduzida a pena única.

3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

4. A Magistrada do Ministério Público junto do tribunal a quo apresentou resposta à motivação de recurso, pugnando pela manutenção da decisão revidenda.

5. Neste Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.

6. Foi cumprido o estabelecido no artigo 417º, nº 2, do CPP, tendo sido apresentada resposta pelo arguido em que, no essencial, reitera o constante da motivação de recurso.

7. Resposta apresentou também a assistente/demandante civil CC, concluindo pela inalterabilidade do acórdão revidendo.

8. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

Cumpre apreciar e decidir.

II - FUNDAMENTAÇÃO

1. Âmbito do Recurso

O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do CPP – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/99, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ nº 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.

No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:

Verificação do vício de erro notório na apreciação da prova.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento.

Dosimetria das penas parcelares concernentes aos crimes de homicídio e pena única aplicadas.

2. A Decisão Recorrida

O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

Da acusação:

1. Em data não determinada, os arguidos AA e BB, e a mãe da arguida foram viver para a localidade de …, tendo arrendado uma casa, de onde foram despejados, no dia 10.04.2023.

2. Os arguidos não trabalhavam, sendo que era a reforma da mãe da arguida BB que os sustentava aos três.

3. Porque a reforma da mãe da arguida era insuficiente para os três, os arguidos pediam dinheiro a várias pessoas e contraíam dívidas, nomeadamente junto dos estabelecimentos comerciais e condutores de táxis.

4. Desde data não concretamente apurada, mas seguramente desde o início do ano de 2023, EE, nascida a …1951, e FF, nascido a …1943, ambos de nacionalidade …, fixaram residência na Quinta …, na localidade de …, concelho de ….

5. Em data não concretamente apurada, mas seguramente no início do mês de Abril de 2023, os arguidos AA e BB ganharam a confiança de EE e FF, sendo os arguidos vistos com aqueles, pela localidade de ….

6. Sensível à situação económica e financeira precária dos arguidos, FF convidou os arguidos em ir residir na sua habitação, na Quinta …, na localidade de …, concelho de ….

7. Assim, em data não apurada, os arguidos AA e BB, acompanhados da progenitora da arguida, DD, foram residir para habitação de EE e FF, na já referida Quinta, na localidade de …, concelho de …, mediante a contrapartida de ajudarem na horta e nos serviços domésticos.

8. Os arguidos AA e BB tinham uma dívida para com EE e FF em virtude destes lhe terem emprestado dinheiro, em quantia não concretamente apurada.

9. A dada altura, os arguidos AA e BB entenderam que EE e FF lhes deviam entregar uma contrapartida monetária pelos serviços prestados, mas estes últimos discordavam de tal entendimento.

10. Devido a este diferendo, gerou-se um clima de tensão entre os arguidos e EE e FF, sendo habitual a ocorrência de discussões entre o arguido AA e EE e FF.

11. Em data não concretamente apurada, mas não anterior ao dia 16.04.2023, na referida quinta, depois do jantar no qual os arguidos discutiram com EE e FF porque queriam receber dinheiro pelos trabalhos efectuados, de acordo com um plano previamente elaborado entre eles e por ambos aceite, e em conjugação de intentos, o arguido AA, dirigiu-se ao quarto de dormir onde se encontrava EE e, desferiu-lhe várias pancadas, com recurso a uma barra de ferro, em diversas partes do corpo, ao mesmo tempo que a vítima EE gritava de dor e aflição, até que ficou inanimada e foi deixada em cima da cama.

12. De seguida, o arguido AA mandou a arguida BB chamar por FF, para o interior da habitação.

13. A arguida BB foi ao encontro de FF, que estava na casa de banho, junto ao escritório, sito no anexo à habitação.

14. Quando FF saiu da casa de banho, a arguida BB, que não fala nem inglês nem alemão, disse-lhe: “venha cá, venha cá que o AA quer falar consigo”, indicando com a sua mão, ao FF para se dirigir para a cozinha da habitação.

15. FF entrou na habitação, pela porta que dá acesso directo à cozinha.

16. Em seguida os arguidos AA e BB, em conjugação de esforços e intentos e mediante um plano previamente delineado e por ambos aceite, desferiram várias pancadas, com recurso a uma barra de ferro, na cabeça, de FF, que ficou inanimado no chão, e com lesões naquela parte do corpo.

17. De seguida, o arguido AA colocou todos os seus pertences e os pertences da progenitora da arguida num saco de compras e aí colocou igualmente a barra de ferro utilizada nas agressões desferidas nos ofendidos.

18. Depois, os arguidos AA e BB saíram da habitação, e saíram da quinta, trancando o portão de saída, acompanhados pela mãe da arguida a quem disseram “Eles estão a dormir” referindo-se aos proprietários da habitação, ora ofendidos, EE e FF.

19. Os arguidos AA e BB, acompanhados pela mãe da arguida, nessa noite, andaram alguns quilómetros a pé e apanharam um táxi já em …, em direcção a ….

20. Posteriormente, em data não apurada, mas seguramente, antes do dia 19.04.2023, em comunhão de vontades e divisão de tarefas, o arguido AA dirigiu-se à Quinta, na morada mencionada, com a intenção de subtrair e de se apropriar dos cartões bancários dos ofendidos bem como do veículo automóvel de marca …, cor …, de matrícula …, da propriedade do ofendido FF, a fim de os fazerem seus, o que conseguiram.

21. EE e FF são titulares de duas contas bancárias, uma no …, com o n.º …, e a outra no banco …, com o n.º …, sendo que estas têm associadas cartões bancários para efectuarem levantamentos, pagamentos, transferências e/ou outros movimentos, nomeadamente os cartões com os n.ºs … e ….

22. Os arguidos utilizaram os cartões bancários dos ofendidos na aquisição de bens alimentares e outros produtos, nomeadamente na loja do … de …, e no …, e,

23. Circularam com o veículo automóvel de marca … pela localidade de ….

24. Contudo, os arguidos decidiram vender o veículo automóvel e fazer seu o dinheiro proveniente da venda do mesmo.

25. Para tal, os arguidos compraram o jornal do …, e entre os dias 18 e 19 de Abril de 2023, contactaram um interessado na compra do veículo automóvel do ofendido FF, com quem acordaram a venda pelo preço de €500,00.

26. O comprador deslocou-se de .. até …, de autocarro, sendo que ambos os arguidos o esperavam.

27. Depois de ver o veículo automóvel, negociaram novamente o preço do veículo automóvel, acabando os arguidos por vendê-lo pelo montante de €200,00.

28. Entre os dias 03.05.2023 e 07.05.2023, os arguidos AA e BB deslocaram-se em várias ocasiões às instalações do supermercado “…”, de …, e utilizaram um dos cartões bancários pertencentes à conta bancária das vítimas:

a) no dia 03.05.2023, pelas 15h29, efectuaram o pagamento de 18,89€, utilizando o cartão bancário terminado em …;

b) no dia 04.05.2023, pelas 19h49, efectuaram o pagamento de 7,99€, utilizando o cartão bancário terminado em …;

c) no dia 06.05.2023, pelas 20h42, efectuaram o pagamento de 2,55€, utilizando o cartão bancário terminado em …;

d) no dia 06.05.2023, pelas 20h50, efectuaram o pagamento de 2,23€, utilizando o cartão bancário terminado em …;

e) no dia 07.05.2023, pelas 13h40, efectuaram o pagamento de 39,38€, utilizando o cartão bancário terminado em ….

29. No dia 11.05.2023 após o alerta dado pelo filho das vítimas que reside na …, as autoridades deslocaram-se à residência das vítimas EE e FF na Quinta …, na localidade de …, concelho de …, tendo sido ambos encontrados sem vida e em avançado estado de decomposição.

30. Com efeito, FF encontrava-se deitado em posição de decúbito ventral, completamente vestido, atrás da porta da entrada da habitação que dá acesso directo à cozinha.

31. Realizada autópsia ao cadáver de FF, concluiu o perito médico-legal que “um estado de putrefacção, mesmo em fase inicial pode inviabilizar um diagnostico de certeza da causa de morte e no caso (..), o cadáver encontrava-se em esqueletização quase total, (..) ausência de fracturas (..) conjugando a informação disponível e os resultados do estudo necrópsico conclui-se não ser possível determinar a causa da morte, no entanto foi evidente vestígio de lesão traumática, nos remanescentes cadavéricos”.

32.EE encontrava-se deitada sobre a cama do primeiro quarto da habitação, em posição de decúbito lateral direito, numa posição pouco natural, completamente vestida, sendo que um dos chinelos estava ao lado do corpo em cima da cama e o outro chinelo estava no chão do quarto, ao pé da cama.

33. Foram verificadas manchas e projecções de sangue existentes no chão e na cama onde o cadáver de EE se encontrava, bem como na sola dos chinelos.

34. Realizada a autópsia ao cadáver de EE, concluiu o perito médico-legal não ser possível determinar a causa de morte nem a etiologia, sendo que não foram encontrados sinais de lesões traumáticas nos remanescentes cadavéricos.

35. Os arguidos AA e BB não têm nenhuma actividade laboral conhecida.

36. Ao tempo dos factos, a ofendida EE tinha 71 anos e o ofendido FF tinha 79 anos.

37. Os arguidos AA e BB agiram de forma concertada e em comunhão de esforços e intentos, cumprindo o plano previamente formulado e por ambos aceite, com o propósito concretizado de atentar contra a vida das vítimas, mais sabiam que as características da barra de ferro utilizada, o tipo de movimentos, as zonas atingidas e a força empregada, e que ao abandonarem a habitação sem chamarem as autoridades de saúde causariam a morte de EE e de FF, pessoas de idade avançada, o que lograram.

38. Os arguidos AA e BB agiram em comunhão de esforços e intentos e mediante o plano que previamente traçaram, com o propósito concretizado de retirar os cartões bancários e o veículo automóvel às vítimas e de fazê-los seus, bem sabendo que não lhes pertenciam e que actuavam contra a vontade dos seus legítimos proprietários, EE e de FF, o que lograram.

39. Os arguidos AA e BB agiram de forma livre, deliberada e consciente em todas as suas acções, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas pela lei penal, não se coibindo de agirem como agiram.

Do pedido de indemnização civil

40. CC é filha de EE.

41. Em consequência da morte da sua mãe, a assistente passou a sofrer de perturbações ao nível do sono e da alimentação.

42. Sente sofrimento e angústia pelo sucedido.

43. Deixou de se relacionar com os amigos, de frequentar actividades recreativas, de praticar desporto regularmente e de se alimentar de forma correcta e saudável.

44. Mais se provou relativamente ao arguido AA:

45. À data dos factos, o arguido AA residia com a companheira, co-arguida nos autos, e a mãe desta DD, com 74 anos, em economia comum. O seu percurso institucional tem-se revelado adaptado às normas e regras que enformam o universo penitenciário. Encontra-se a trabalhar, como faxina, na copa da ala em que se aloja. À data da sua reclusão, AA, encontrava-se a residir em … havia três meses onde procurou estabelecer-se com a companheira e progenitora desta, com a intenção de vir a encontrar trabalho na … ou em empresas subempreiteiras desta, o que não chegou a concretizar. Há cerca de 5 anos faleceu a progenitora e, mais recentemente, o progenitor. Tem dificuldades de relacionamento com os irmãos, quatro sobrevivos, desde o falecimento dos pais, face à falta de entendimento quanto ao destino da casa de morada dos pais e à partilha de alguns objectos/recordações que os acompanharam desde …. Em termos afectivos teve duas relações maritais significativas, antes da sua união de facto com a co-arguida. A mais duradora foi a união de facto constituída por altura do cumprimento do Serviço Militar, que perdurou por cerca de 16-17 anos, da qual nasceu o único filho, GG, actualmente com cerca de 30 anos, com o qual não mantém proximidade relacional, desde que ocorreu a separação da respectiva progenitora, acontecimento que o filho não aceitou. O arguido, que havia mantido, até então, uma relação coesa com o filho, tendo chegado a levá-lo para o estrangeiro, para trabalhar consigo, sente tristeza pelo seu afastamento, pretendendo reatar o convívio com o mesmo. O arguido veio a contrair casamento com HH, em 2018, casamento que não perdurou para além de 7 ou 8 meses, em face de dificuldades relacionais decorrentes da inexistência de um período prévio de aprofundamento de um conhecimento mútuo, para além do conhecimento superficial advindo dos contactos via internet, nos quais a relação se iniciou. Há cerca de 2 anos instalou-se em … onde se lhe reuniu BB com quem iniciara relação de namoro, e a respectiva progenitora, a qual possuía familiares em …, iniciando então a respectiva união de facto, que mantém. Frequentou o ensino em …, escola da sua área de residência, na qual concluiu o 6.º ano de escolaridade. Integrou dois cursos profissionais, igualmente na zona de residência, … e …, de marcenaria e de padaria. Após cumprimento do Serviço Militar, como voluntário nos …, iniciou a vida laboral, através de contratação informal, com duração assente na finalização dos trabalhos, na construção civil, na área da carpintaria de cofragem, tendo trabalhado no país e no estrangeiro no Grupo …. Posteriormente trabalhou na área do transporte e entregas para a empresa …, altura em que conheceu BB, no … onde esta trabalhava. Em 2018 encontrava-se, de novo, a trabalhar na área da construção Civil, cofragem, em …, de onde, há cerca de 2 anos, seguiu para o …, acompanhando a empresa de cofragem que trabalhou, durante algumas semanas, na construção do …, na zona de …. Inicialmente o casal, quando se fixou em …, auferia rendimento da apanha da azeitona. Em … o valor da renda da habitação era de 270€, e terminada a campanha da apanha da azeitona passaram a depender da pensão de sobrevivência da progenitora de BB, no montante de € 400,00, que era gerida por esta. Mantém com a companheira, um envolvimento emocional e afectivo que perdura.

46. O arguido AA não tem antecedentes criminais.

Mais se provou relativamente à arguida BB:

47. Em meio prisional, a arguida mantém um comportamento ajustado às normas. No EP esteve a trabalhar na etiquetagem de embalagens, encontrando-se presentemente inactiva, a aguardar uma nova oportunidade de colocação laboral. A relação entre BB e AA, co-arguido no presente processo e que se encontra no EP de …, mantém-se. O casal tem tido visitas presenciais e por videoconferência. A mãe da arguida visita-a no Estabelecimento Prisional, uma vez por mês. O período da infância da arguida pautou-se pela estabilidade, tendo o seu processo de socialização sido marcado por défices sociofamiliares após o falecimento do progenitor (vítima de doença …), no seu período de adolescência. Nessa sequência a progenitora desenvolveu problema de saúde … (…) e hábitos de …, tendo-se revelado incapaz de desempenhar as funções parentais, a mesma foi, inclusive, sujeita a internamento no Hospital …. Aos 15/16 anos, beneficiou do apoio da Associação de Bombeiros da … (um parente exercia funções nessa corporação de bombeiros), onde permaneceu com pernoita durante cerca de cinco anos, enquanto que o seu irmão veio a ser institucionalizado. Com boa adaptação àquela Associação, realizou formações específicas para o exercício das funções de bombeiro(a). Por opção própria saiu dessa instituição, com cerca de 20 anos, uma vez que o seu namorado, à época, não concordava que permanecesse na mesma, por ser um meio com muitos elementos do sexo masculino. Assim, integrou o agregado familiar de origem do namorado, residente em …, …, durante cerca de cinco anos, contexto familiar que também se revelou problemático. Teve um segundo relacionamento significativo, que se manteve durante cerca de um ano, até meados de 2018, sem coabitação. Seguiu-se o relacionamento com o actual companheiro, AA, iniciado em 2022. No seu percurso laboral, após a sua experiência na Associação de Bombeiros da …, teve actividades variadas, nomeadamente em Lar de Idosos, na indústria de bolos e na restauração. Desenvolvia de forma irregular trabalhos indiferenciados, associados à sua mobilidade geográfica. A última actividade da arguida, anterior aos trabalhos domésticos em troca de habitação e alimentação em casa das vítimas no presente processo, foi na apanha da azeitona, na altura em que residia em …. A progenitora constitui-se como a figura de referência da arguida, tendo passado a residir com esta após a ruptura da sua relação marital, quando contava cerca de 25 anos. Nos períodos de desemprego subsistiam com base na pensão de sobrevivência da mãe. Foi condenada por um crime violência doméstica sobre II (processo 137/20.0…, transitado em julgado em 21-05-2021) na pena de 18 meses de prisão, suspensa pelo período de 2 anos, sujeita a regime de prova, com acompanhamento por parte da equipa de Reinserção Social …, enquanto permaneceu a viver em …, e por último, pela equipa do …, quando se deslocou para …. Durante o período deste acompanhamento viveu em várias localidades, …. No cumprimento do dever imposto na decisão desta suspensão de pena, foi encaminhada para o Serviço de … do Hospital de …, a cuja intervenção não aderiu. Após a sua prisão tem acompanhamento … e beneficia de medicação passada pelo … em contexto prisional, para ajudar a lidar com a ansiedade causada pela situação processual actual, tendo já sido sujeita a várias consultas. Revela défices em termos de autocrítica e capacidade de descentração, mantendo um discurso socialmente desejável, centrando-se essencialmente no seu sofrimento e colocando nos outros o ónus das dificuldades e vicissitudes vivenciadas. Mantém no Estabelecimento Prisional um comportamento cordato nas relações interpessoais, sem manifestar agressividade.

48. A arguida não tem outras condenações para além da supra referida.

Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição):

- a arguida BB desferiu pancadas no corpo de EE;

- a arguida BB voltou à habitação dos falecidos para retirar o veículo e o cartões.

Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

A audiência decorreu com o registo da prova nela produzida. Tal circunstância que, também nesta fase se deve revestir de utilidade, dispensa o relatório detalhado das declarações e depoimentos nela prestados.

O decidido funda-se em todos os meios de prova produzidos em audiência de julgamento, valorados na sua globalidade.

Assim, a convicção do Tribunal assentou na conjugação dos seguintes meios de prova:

- Exames periciais com Identificação lofoscópica dos arguidos encontrados na habitação das vítimas de fls. 212 a 227,

- Estudo tomodensitométrico de corpo de FF de fls. 295 a 299,

- Estudo tomodensitométrico do corpo de EE, de fls. 300 a 302,

- Relatório de autópsia médico-legal realizada ao cadáver de FF, de fls. 824 verso e ss,

- Relatório de autópsia médico-legal realizada ao cadáver de EE, de fls. 826 e ss.

- Comunicação da notícia de crime, a fls. 82 e 83;

- Auto de inspecção judiciária, a fls. 85 e 89;

- Cópias de registos de multibancos talões de fls. 90;

- Comprovativos de IBAN de fls. 91;

- Aditamento a auto de notícia de fls. 92 e 93;

- Prints do registo automóvel de fls. 97;

- Correio electrónico da Segurança Social respeitante à situação contributiva de cada um dos arguidos de fls. 101 a 102;

- Cotas ao processo e relatórios da PJ, de fls. 103 a 107;

- Auto de análise documental de fls. 109;

- Declaração da Junta de Freguesia de … com manuscrito na parte traseira das contas bancárias dos ofendidos de fls. 110;

- Relatório de inspecção judiciária com reportagem fotográfica da casa dos ofendidos e dos cadáveres dos ofendidos de fls. 112 a 152;

- Auto de diligência de fls. 153,

- Autos de apreensão de talões de compras realizadas pelos arguidos no … de …, de fls. 156 a 158;

- Reportagem Fotográfica dos arguidos na loja do … de …, de fls. 159 a 162;

- Auto de busca e apreensão de documentos de fls. 163 a 170;

- Auto de revista e apreensão, de fls. 171,

- Auto de revista e de apreensão de fls. 177,

- Talões de compras realizadas no … de …, com utilização do cartão bancário de FF, com terminação em …, de fls. 178 a 183,

- Mandados de detenção de fls. 196 a 199,

- Verificações de óbitos de fls. 489 a 493,

- Compilação de fotogramas, de fls. 555 a 556,

- Cópia de capa do …, no qual foi publicado anúncio de compra de todo o tipo de carros de fls. 568 e 569,

- Comprovativo do pagamento do anúncio no … de compra de carros de fls. 568 a 570,

- Auto de apreensão do casaco de cor vermelha colocado no vidro do postigo da porta de casa que dá acesso à cozinha de fls. 572,

- Documentação bancária referente à conta titulada pelo ofendido FF sediada no …, com cartão bancário com terminação em …, de fls. 581 a 597;

- Auto de apreensão do veículo automóvel de matrícula …, de fls. 579 e documentação do mesmo no envelope lacrado a fls. 572,

– Relatório – recolha de imagens de videovigilância nas quais aparecem os arguidos e a mãe da arguida na Bomba …, no …, no … e em hotéis, de fls. 594 e ss, e pen com imagens de fls. 600,

- Relatório de dados contidos no telemóvel da arguida, BB de fls. 601 a 615,

- Documentação junta com o pedido de indemnização civil,

- Relatórios Sociais,

- CRC’s.

Concretizemos.

Em sede de primeiro interrogatório, ambos os arguidos prestaram declarações, sendo que ambos negaram ter sido os responsáveis pela morte de FF e EE. O arguido AA afirmou que no dia em que vieram embora, despediu-se das pessoas (o casal …) e trouxe um cartão de Multibanco.

Em julgamento, o arguido remeteu-se ao silêncio. A arguida prestou declarações, que não foram integralmente coincidentes com aquelas anteriormente prestadas, fazendo-o de uma forma impetuosa e agressiva, sendo evidente o seu desagrado relativamente à opção do arguido de não as prestar, tendo chegado ao ponto de afirmar que ele devia confessar os factos! Quanto à sua intervenção, foi evidente a tentativa de se apresentar como uma vítima, sem qualquer conhecimento ou intervenção em toda a actuação do arguido, sendo uma mera acompanhante do mesmo. Negou que tivesse matado quem quer que fosse, dizendo que se o tivesse feito o confessaria.

Todavia, a demais prova produzida, as suas próprias declarações e a forma como foram prestadas demonstraram à saciedade que todos os factos foram praticados por ambos os arguidos, no âmbito de uma actuação concertada e com um propósito comum.

Ambos os arguidos, apesar de negarem qualquer agressão às vítimas, admitiriam os factos que levaram à sua presença na habitação, designadamente a sua difícil situação económica (ambos estavam desempregados e apenas tinham como rendimento a pensão da mãe da arguida, que com eles vivia), o despejo da casa onde viviam, o relacionamento que já mantinham com o casal, o acordo celebrado no sentido de irem viver para a casa destes tendo como contrapartida a realização de determinadas tarefas. A arguida confirmou ainda a existência de várias dívidas (que afirmou terem sido contraídas pelo arguido AA e não por ela, embora acabasse por admitir que as quantias em causa eram utilizadas em benefício de todos) e ainda de uma dívida a FF. Referiu ainda a existências de várias discussões entre o arguido AA e o casal, relacionados com a alimentação que lhes era fornecida e com pagamentos que achava que lhe deveriam ser efectuados.

A testemunha DD, mãe da arguida, confirmou também os factos supra relatados.

Temos, pois, demonstrado, sem qualquer dúvida, que os arguidos se encontravam a viver na casa onde foram encontrados mortos o casal de nacionalidade alemã, sendo que existia já um conflito entre eles.

O referido casal foi visto na aldeia de …, pela última vez, no dia 16.04.2023, conforme resulta das declarações objectivas e seguras das testemunhas JJ e KK.

Anteriormente a essa data (15.04.2023), a vítima EE havia contactado duas pessoas amigas – LL e MM – dando conta da preocupação que tinha com a permanência dos arguidos em sua casa, que não realizariam as tarefas a que se tinham disposto. A testemunha MM voltou a ligar após essa data, não tendo obtido qualquer resposta.

Após as datas referidas, os arguidos abandonaram o local, tendo vindo para …, onde ficaram a pernoitar, facto esse confirmado pelos arguidos e pela testemunha DD. Confirmam também que saíram do local a pé, dirigiram-se para a aldeia, onde chamaram um táxi que os veio buscar.

E a partir deste momento as declarações começaram a divergir.

O arguido AA, como já se disse, referiu uma despedida normal, ocorrida durante o dia e motivada apenas pelo facto de ter terminado o trabalho que se tinha disposto a realizar.

Tais declarações são contrariadas desde logo pelas declarações da própria arguida, que apresenta uma versão diferente, bem como da testemunha DD.

A arguida quis fazer passar a ideia de que nada teve a ver com o que se terá passado no interior da casa, já que após o jantar se deslocou para o exterior, para fumar um cigarro, apenas tendo ouvido uma discussão com o arguido AA, o que não estranhou porque já tinham discutido durante o dia. Ele saiu de casa, disse para irem embora, ao que acedeu, sem nada questionar. Trouxeram um saco com a pouca roupa que tinham levado para lá, e um candeeiro que lhes pertencia. Saíram do local a pé e andaram até perto da aldeia, onde chamaram um táxi que os transportou a …. No dia seguinte o arguido AA ausentou-se por um período de tempo e regressou trazendo o veículo automóvel propriedade do casal alemão, dizendo que lhe tinha sido dado como pagamento dos serviços prestados, o que mais uma vez aceitou, sem questionar. Durante os dias seguintes, viu o arguido utilizar cartões para fazer compras, mas também não estranhou, pensando que se tratasse de um cartão dele. Relativamente à venda do carro, também não teve qualquer participação, limitando-se, como em tudo o mais, a acompanhar o seu companheiro.

Esta versão é completamente inverosímil, contraria as regras da experiência comum e não se coaduna com a personalidade da arguida, revelada em audiência de julgamento, demonstrando ser uma pessoa impetuosa, autoritária e agressiva, ao contrário da imagem que quis fazer passar.

É ainda contrariada pelas declarações para memória futura prestadas pela mãe da arguida que, embora sendo notória a tentativa de ilibar a filha dos factos, descreveu os mesmos de uma forma que não suscitou reservas e, conjugado com os demais elementos, permitiu ao Tribunal ficar convencido terem os arguidos sido os seus autores.

Referiu que jantaram todos juntos e que, após o jantar, veio cá para fora sentar-se numa cadeira. A filha veio fumar um cigarro e o FF foi para o escritório (que se localizava num outro edifício no exterior). O arguido AA ficou no interior da residência acompanhado da EE. A determinado momento ouviu um grito e aproximou-se da porta da cozinha para ver o que se passava. O arguido AA veio de imediato ao postigo e mandou-a a embora, ao que acedeu. Depois ele chamou pela BB, dizendo-lhe para dizer ao senhor para vir à cozinha. O FF encontrava-se na casa de banho junto ao escritório e a sua filha disse-lhe para entrar na cozinha, ao que este acedeu. Referiu que não viu a filha entrar pela porta da cozinha, mas que depois a viu sair da habitação (que tem duas portas – a da cozinha e a do quarto – que dão acesso ao interior), o que demonstra que após o FF ter entrado na residência, esta também o fez. Nesse momento chegou o arguido AA, dizendo que tinham de ir embora. Quando perguntou o porquê, ele disse que não queria estar mais ali e que eles estavam a dormir. O arguido AA entrou novamente em casa e trouxe um saco com roupa deles, sendo que no interior do saco estava um ferro sujo. Quando o questionou, respondeu que era um candeeiro, para jogar fora depois. Saíram da quinta a pé e só chamaram o táxi já perto da localidade. Foram para … e passado um dia ou dois, o arguido AA apareceu com o carro propriedade do casal.

Da análise do relatório de inspecção com reportagem fotográfica efectuado na casa dos ofendidos é possível verificar que a EE se encontra deitada na cama, sendo visíveis vestígios hemáticos no chão e na parede, o que leva a crer que terá sido agredida naquele local e depois transportada para cima da cama (está um chinelo caído no chão) e que FF se encontrava caído no chão, atrás da porta da cozinha, precisamente para onde a arguida lhe disse para ir, logo após a sua mãe ter ouvido um grito de aflição (que a arguida diz não ter identificado como tal!) e o arguido AA a ter mandado afastar, obstruindo-lhe a visão com a colocação de um casaco na porta, como é visível nas fotos, o que, em nosso entender, demonstra uma actuação concertada com vista a agredir e retirar a vítima ao casal que os acolheu.

E só assim se explica o abandono de tal local, à noite e sem que tivessem outra casa para ir, o facto de a arguida nem sequer se ter tentado despedir das pessoas que os acolheram e com quem, segundo ela, teria um bom relacionamento, a necessidade de levarem com eles o objectos descrito, sendo absolutamente inverosímil a explicação dada em audiência (não tinham objectos pessoais para além das roupas que cabiam num saco e faziam-se acompanhar de um candeeiro!), o caminhar até à localidade a fim de chamarem um táxi, ao invés de pedirem que os fossem buscar à quinta, a utilização posterior do veículo automóvel (admitida pela arguida e demonstrada pelas imagens), a venda do mesmo pelos arguidos – confirmada pela testemunha NN, que esclareceu os termos em que foi feito o negócio, o motivo avançado para a ausência de declaração de venda, e as conversações mantidas entre o casal - , sendo a única explicação plausível para que os arguidos o fizessem o saberem que os donos a tal não se poderiam opor por estarem mortos, a utilização dos cartões sem qualquer preocupação para que não fossem identificados – sendo visível nos fotogramas a presença de ambos aquando da realização das transacções.

Acresce que, face à postura aparentemente revoltada da arguida perante a opção do co-arguido, que ao não confessar a sua exclusiva autoria a estará a prejudicar, então mostra-se destituída de qualquer sentido lógico a proximidade e intimidade que o casal mantém em contexto prisional, tal como vem expressamente vertido nos relatórios sociais.

Por todo o exposto, o Tribunal não ficou com quaisquer dúvidas terem sido os arguidos os autores dos factos em questão.

Importa salientar que apesar de não ter sido possível ao perito determinar a causa da morte, atento o avançado estado de decomposição em que se encontravam os corpos, dúvidas não existem de que tal se verificou em consequência das agressões de que foram alvo, tendo em atenção o que resulta dos relatórios das autópsias, conjugados com a demais prova produzida.

A intenção dos arguidos e o conhecimento do carácter reprovável das suas condutas resultam provados em face dos factos objectivos demonstrados, conjugados com as regras da experiência comum.

Os factos relativos ao pedido de indemnização civil tiveram em consideração o declarado pelas testemunhas OO e PP, os quais descreveram de uma forma isenta e credível o estado de sofrimento e angústia em que ficou a assistente após a morte da sua mãe, conjugados com os documentos juntos aos autos.

Quanto aos factos não provados, o decidido funda-se na circunstância de não ter sido prova suficiente acerca da sua verificação, nos termos sobreditos.

Apreciemos.

Verificação do vício de erro notório na apreciação da prova

Conforme estabelecido no artigo 428º, nº 1, do CPP, os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, de onde resulta que, em regra e quanto a estes Tribunais, a lei não restringe os respectivos poderes de cognição.

A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito dos vícios previstos no artigo 410º, nº 2, do CPP, no que se denomina de “revista alargada”, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento – neste sentido, por todos, Ac. do STJ de 05/06/2008, Proc. nº 06P3649 e Ac. do STJ de 14/05/2009, Proc. nº 1182/06.3PAALM.S1, in www.dgsi.pt. - ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, nºs 3, 4 e 6, do mesmo diploma legal.

Sustenta o recorrente que o acórdão recorrido padece do vício de erro notório na apreciação da prova, censurando que se tenha considerada provada a factualidade vertida sob os pontos 11, 15, 16, 17 e 18.

Como vimos, o apontado vício, a que se reporta o artigo 410º, nº 2, alínea c), do CPP, só releva se resultar do texto (e do contexto) da decisão recorrida apreciado na sua globalidade, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum. É vício da decisão, não do julgamento, como frisa Maria João Antunes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro/Março de 1994, pág. 121.

O erro notório na apreciação da prova está presente quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.

Também ocorrendo quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis.

Como bem se alumia no referido Acórdão do STJ de 29/10/2015, Proc. nº 230/10.7JAAVR.P1.S1, consultável em www.dgsi.pt, o erro notório na apreciação da prova consiste em o tribunal ter dado como provado ou não provado determinado facto, quando a conclusão lógica seria a contrária já por ofender princípios ou leis formulados cientificamente, nomeadamente das ciências da natureza e das ciências físicas ou contrariar princípios gerais da experiência comum das pessoas, já por se ter violado ou postergado um princípio ou regra fundamental em matéria de prova.

O requisito da notoriedade afere-se pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio. Ou, se partirmos de um critério menos restritivo, de acordo com o entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido - cfr. também Acs. do STJ de 18/11/2021, Proc. nº 2029/17.0GBABF.E2.S1 e 23/06/2022, Proc. nº 11/20.0GACLD.C1.S1, consultáveis em www.dgsi.pt.

Destarte, a discordância, face aos elementos de prova apreciados, entre aquilo que foi dado como provado e aquilo que o recorrente entende não ter resultado da prova produzida – ou que devia ter ficado provado – não se configura como erro notório na sua apreciação.

Ora, não suscita o recorrente questão alguma que resulte de erro notório na apreciação da prova, enquanto vício da matéria de facto nos termos legalmente configurados e que densificados pela jurisprudência nacional se mostram, mas tão só, relativamente à sua actuação, exprime a divergência quanto à forma como foi apreciada pelos julgadores da 1ª instância a prova produzida em audiência, a convicção firmada e a subsunção efectuada dos factos ao direito, o que naquele se não enquadra.

Com efeito, partindo do texto da decisão sob recurso não se vê que o tribunal recorrido tenha retirado de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, dado como provado algo que normalmente está errado, que não podia ter acontecido, ou, de todo o modo, que do mesmo texto, usando um processo racional e lógico, suposto no cidadão comum minimamente prevenido (e no juiz “normal”), se retire de um facto considerado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum.

Face ao que, improcede o recurso neste segmento.

Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento

Mas, como vimos, o recorrente censura a factualidade dada como provada na decisão recorrida, fazendo apelo, entre o mais, às declarações para memória futura prestadas pela testemunha DD.

Ora, quando se visa impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto na modalidade ampla, as conclusões do recurso, por força do estabelecido no artigo 412º, nº 3, do CPP, têm de discriminar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;

c) As provas que devem ser renovadas.

Segundo o nº 4 da mesma disposição legal, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 364º (cumprindo, actualmente, face à revogação deste nº 3 pela Lei nº 94/2021, de 21/12, que entrou em vigor em 22/03/2022, considerar a remissão como feita para o seu nº 1), devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa - nº 6.

Para dar cumprimento a estas exigências legais tem o recorrente nas suas conclusões de especificar quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência – o que se verifica no caso em apreço - o que não obsta a que, nesta eventualidade, o recorrente, querendo, também proceda à transcrição dessas passagens).

Analisando as conclusões e a motivação (corpo) de recurso, constata-se que se podem considerar como, minimamente (ainda que não estabeleça o arguido a relação entre um concreto segmento, individualizado pela menção ao seu início e termo, do depoimento trazido à colação e o ponto ou pontos de facto que, por este meio, almeja alterar) cumpridas as exigências legais, não constituindo, no caso, essa deficiência obstáculo ao conhecimento da impugnação na modalidade ampla.

Assim se entendendo, importa analisar então a prova produzida com o objectivo de determinarmos se consente a convicção formada pelo tribunal recorrido, norteados pela ideia – força de que o tribunal de recurso não procura uma nova convicção, mas apurar se a convicção expressa pela 1ª instância tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e demais elementos probatórios podem exibir perante si (partindo das provas indicadas pelo recorrente que, na sua tese, impõem decisão diversa, mas não estando por estas limitado) sendo certo que apenas poderá censurar a decisão revidenda, alicerçada na livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se for manifesto que a solução por que optou, de entre as várias possíveis e plausíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum - artigo 127º, do CPP.

E, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção”, pois “doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”.

Cumpre ter em atenção também que os diversos elementos de prova não devem ser analisados separadamente, antes ser apreciados em correlação uns com os outros, de forma a discernir aqueles que se confortam e aqueles que se contradizem, possibilitando ou a remoção das dúvidas ou a constatação de que o peso destas é tal que não permite uma convicção segura acerca do modo como os factos se passaram.

Analisemos então a concreta factualidade que o arguido critica, considerando a óptica da censura que lhe faz e se tem ou não suporte na prova produzida.

Começa o arguido por assinalar que as declarações prestadas para memória futura pela testemunha DD “entram, em diversos pontos, em contradição frontal com as declarações prestadas perante o Senhor Inspetor da Polícia Judiciária no dia 12.05.2023 (…) o que indicia falta de verdade, senão na segunda vez, necessariamente na primeira”.

De acordo com o estabelecido no artigo 355º, do CPP, não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência – nº 1 - ressalvando-se as contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes – nº 2.

Como reiteradamente tem decidido o nosso Supremo Tribunal de Justiça, “a exigência do art. 355.º prende-se apenas com a necessidade de evitar que concorram para a formação daquela convicção provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo pelos intervenientes, com respeito pelo princípio do contraditório, e não que tenham de ser reproduzidas na audiência, isto é, lidas ou apresentadas formalmente aos sujeitos processuais todas as provas documentais dele constantes. Basta que existam no processo com pleno conhecimento dos sujeitos processuais, que puderam inteirar-se da sua natureza, da sua importância e do seu conteúdo, bem como do seu valor probatório, para que qualquer desses sujeitos possa, em audiência, requerer o que se lhe afigurar sobre elas, examiná-las, contraditá-las e realçar o que, do seu ponto de vista, valem em termos probatórios. Neste sentido, tais provas são examinadas em audiência, sob a presidência dos princípios da imediação e do contraditório, podendo concorrer sem reservas para a convicção do tribunal” – cfr. Ac. do STJ de 15/02/2007, Proc. nº 06P4092, disponível em www.dgsi.pt.

Só que, dos autos não consta que tenha o tribunal recorrido procedido à leitura ou reprodução em audiência do aludido depoimento da testemunha DD prestado perante inspector da Polícia Judiciária (admissível ao abrigo do estabelecido no artigo 356º, nºs 2, alínea b) e 5, do CPP, mas que o recorrente nem sequer requereu oportunamente) pelo que, não pode ser valorada essa prova que não foi produzida ou examinada na audiência, sob pena de violação do disposto no artigo 355º, nº 1, do CPP.

Mas, analisada a decisão recorrida, ressalta problemática que cumpre analisar desde já.

Para a formação da convicção do tribunal de 1ª instância quanto à intervenção do recorrente (que em audiência de julgamento se prevaleceu do direito de não prestar declarações) na morte de FF e EE e dar como provada a respectiva factualidade, que se mostra impugnada, contribuíram também, como ressalta do acórdão censurado, as suas declarações prestadas em sede de 1º interrogatório judicial de arguido detido.

O que é manifesto, quando nessa peça processual se refere:

Em sede de primeiro interrogatório, ambos os arguidos prestaram declarações, sendo que ambos negaram ter sido os responsáveis pela morte de FF e EE. O arguido AA afirmou que no dia em que vieram embora, despediu-se das pessoas (o casal …) e trouxe um cartão de Multibanco.

(…)

Ambos os arguidos, apesar de negarem qualquer agressão às vítimas, admitiriam os factos que levaram à sua presença na habitação, designadamente a sua difícil situação económica (ambos estavam desempregados e apenas tinham como rendimento a pensão da mãe da arguida, que com eles vivia), o despejo da casa onde viviam, o relacionamento que já mantinham com o casal, o acordo celebrado no sentido de irem viver para a casa destes tendo como contrapartida a realização de determinadas tarefas.

(…)

Após as datas referidas, os arguidos abandonaram o local, tendo vindo para …, onde ficaram a pernoitar, facto esse confirmado pelos arguidos e pela testemunha DD. Confirmam também que saíram do local a pé, dirigiram-se para a aldeia, onde chamaram um táxi que os veio buscar.

E a partir deste momento as declarações começaram a divergir.

O arguido AA, como já se disse, referiu uma despedida normal, ocorrida durante o dia e motivada apenas pelo facto de ter terminado o trabalho que se tinha disposto a realizar.

Tais declarações são contrariadas desde logo pelas declarações da própria arguida, que apresenta uma versão diferente, bem como da testemunha DD.

Pois bem.

Estabelece-se no artigo 141º, do CPP:

“1 - O arguido detido que não deva ser de imediato julgado é interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, logo que lhe for presente com a indicação circunstanciada dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam.

(…)

4 - Seguidamente, o juiz informa o arguido:

a) Dos direitos referidos no n.º 1 do artigo 61.º, explicando-lhos se isso for necessário;

b) De que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova (…)”.

Já no artigo 357º, do mesmo Código, preceitua-se:

“1 - A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só é permitida: a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas; ou

b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº 4 do artigo 141º.

2 - As declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência não valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.º 3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 7 a 9 do artigo anterior.”

Por sua vez, o Ac. do STJ nº 5/2023, in DR I Série, nº 111/2023, de 09/06/2023, fixou a seguinte jurisprudência:

“As declarações feitas pelo arguido no processo perante autoridade judiciária com respeito pelo disposto nos artigos 141.º, n.º 4, al. b), e 357.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, podem ser valoradas como prova desde que reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento.”

Vejamos então, em concreto.

Compulsadas as actas das sessões da audiência de julgamento (de 19/03/2024, manhã e tarde e 03/04/2024, bem como as gravações destas disponibilizadas pelo tribunal a quo), não se alcança que essa reprodução ou leitura tenha sido efectuada pelo tribunal recorrido ou que o arguido tenha aceite de forma livre, inequívoca e esclarecida o seu conteúdo e ele, o Ministério Público e a assistente, por consenso, tivessem dispensado essa reprodução ou leitura.

Daí que tais declarações do arguido integrem prova proibida para efeitos de formação da convicção do tribunal, por violação do artigo 355º, nº 1, do CPP.

Como anota o Colendo Conselheiro Santos Cabral no Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2ª edição revista, Almedina (anotado por Exmºs Conselheiros do STJ), pág. 407, “declarada a proibição de prova, não está em causa o vício que afecta a matéria de facto, a necessitar de um adequado esclarecimento, mas sim o expurgar do vício da nulidade que afecta a mesma decisão o que tem, em princípio, por consequência, a emissão de uma nova sentença pelo tribunal recorrido, mas expurgada do vício apontado”.

Ou seja, a ideia subjacente é a de que a sentença que se funda em prova proibida é nula – nulidade que é até do conhecimento oficioso, pois estão em causa direitos e princípios processuais fundamentais, como os do contraditório e processo justo e equitativo, tutelados pelos artigos 32º, nº 5, da Constituição da República Portuguesa e 6º, da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e, sendo outra a cominação, proibições de prova que os rejeitam poderiam transformar, por via da não arguição, vícios insanáveis em vícios sanáveis - pelo que importa declarar a nulidade parcial da sentença, o que impõe a prolação de nova decisão que, analisando a restante prova, mantenha ou modifique em conformidade a matéria de facto e a respectiva matéria de direito - assim Ac. do STJ de 06/10/2016, Proc. nº 535/13.5JACBR.C1.S1 e Acs. da Relação do Porto de 02/02/2022, Proc. nº 161/16.7GAVLG.P2 e 09/11/2022, proc. nº 471/20.9PIVNG.P1, consultáveis em www.dgsi.pt.

Destarte, a decisão revidenda enferma de nulidade, resultando como consequência processual inerente a da exclusão dessa prova por declarações do arguido do conjunto das que foram valoradas na fundamentação da matéria de facto levada a cabo na decisão recorrida, o que impõe a prolação de nova decisão, que analisando a restante prova mantenha ou modifique em conformidade a matéria de facto e a respectiva matéria de direito.

E, uma vez que, nos termos do artigo 402º, nº 2, alínea a), do CPP, “salvo se for fundado em motivos estritamente pessoais, o recurso interposto por um dos arguidos, em caso de comparticipação, aproveita aos restantes”, resultando dessa decisão a actuação dos arguidos em coautoria, a mesma proibição de prova/nulidade do acórdão abrange as declarações prestadas em 1º interrogatório judicial de arguido detido da arguida (recorrente, mas cujo recurso não foi admitido por extemporâneo) BB, também não lidas ou reproduzidas em audiência e tidas em conta para a formação da convicção do tribunal quanto à sua intervenção e do arguido.

Fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso que apreciadas não foram.

III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

A) Declarar a nulidade parcial do acórdão recorrido, por utilização na formação da convicção do julgador de prova de valoração proibida no que concerne à supra referida factualidade e demais com ela conectada, incluindo a concernente à arguida, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355º, nºs 1 e 2 e 357º, nº 1, alínea b), do CPP, impondo-se a prolação de novo acórdão que exclua como meio de prova as declarações prestadas pelos arguidos AA e BB em sede de 1ª interrogatório judicial de arguido detido e, em conformidade, reconfigure a matéria de facto e respectiva matéria de direito;

B) Julgar prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso que não foram apreciadas, sendo que, proferido que se mostre novo acórdão, pretendendo o recorrente que tais questões (e/ou outras relativas a esta nova peça) sejam apreciadas, terá de ser interposto o pertinente recurso.

Sem tributação.

Évora, 22 de Outubro de 2024

(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário)

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(Artur Vargues)

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(Edgar Gouveia Valente)

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(J. F. Moreira das Neves)