I - Atento o princípio da livre apreciação da prova, nada obsta a que a convicção do tribunal assente no depoimento de uma única testemunha, seja ela quem for. O que se exige é que essa convicção seja devidamente fundamentada e obedeça a regras de experiência comum e a critérios de razoabilidade e lógica.
A crítica à convicção do tribunal que tem como único fundamento uma convicção distinta da do julgador não releva para efeitos de alteração da decisão de facto. E, não basta demonstrar que da prova produzida pode resultar uma outra realidade. É necessário demonstrar que a prova produzida impõe decisão distinta.
II - Só estaremos perante uma violação do princípio in dúbio pro reo quando se demonstre que a convicção do tribunal recorrido sobre determinados factos é inadmissível, ilógica, irracional ou que existem outras hipóteses decorrentes das provas produzidas que se mostram mais plausíveis do que aquela que é aceite pelo tribunal recorrido e que criam uma dúvida razoável.
1.1 Decisão recorrida
Por sentença de 22 de fevereiro de 2024, o arguido AA foi condenado, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86º, nº 1, al c), com referência ao disposto no art. 3º, nº 3, al. a), do Regime Jurídico das Armas e Munições, na pena de 2 anos e 8 meses de prisão.
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1.2. Recurso
Não se conformando com a decisão que o condenou, o arguido interpôs recurso invocando, em síntese (resumo nosso):
- Erro de julgamento
O tribunal recorrido formou a sua convicção com base apenas no depoimento da testemunha de acusação BB, agente da PSP e no auto de notícia por este elaborado. Por outro lado, as declarações do arguido e o depoimento da testemunha CC, foram desconsiderados apesar de se mostrarem claros, isentos, precisos e espontâneos. Desta forma, a prova produzida impõe decisão de facto diversa, designadamente que a arma apreendida e objeto destes autos não era detida pelo arguido, nem de sua propriedade, mas sim da sua companheira, a testemunha CC, tal como esta declarou em audiência de julgamento.
- Violação do princípio “in dúbio pro reo”
Face ao depoimento da aludida testemunha CC e às declarações do arguido, o Tribunal nunca poderia ter atendido exclusivamente ao depoimento do agente da PSP para efeitos de prova de que a arma em causa pertencia ao arguido. Impunha-se (pelo menos) a dúvida pelo que o facto em causa deveria ter resultado não provado, em benefício do arguido.
1.3. Resposta/Parecer
O Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu ao recurso defendendo, em suma, a sua improcedência.
Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que, no essencial, acompanhou a resposta apresentada.
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2. Questões a decidir no recurso
As questões a apreciar e a decidir são as seguintes:
- Da impugnação da matéria de facto provada
- Do princípio “in dubio pro reo”
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3. Fundamentação
3.1. Factualidade provada/não provada na sentença
Com relevo para o objeto do processo resultaram provados e não provados os seguintes factos:
Factos provados
“ 1) No dia 23 de Fevereiro de 2023, pelas 07h00m, no interior de um móvel da residência do arguido sita na Avenida …, em …, o arguido detinha, sem qualquer justificação, um revólver de calibre 6,35mm, sendo uma arma de fogo curta, de repetição, da marca …, com o n.º …, em mau estado de conservação, estando o mecanismo de disparo danificando, não sendo possível efectuar disparos.
2) O arguido conhecia as características daquele revólver, bem sabendo que o mesmo havia sido fabricado com a finalidade para ser utilizado como instrumento de agressão e que lhe era proibido guardar e deter o mesmo nas circunstâncias descritas.
3) O arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
(…) – (factos relativos às condições pessoais do arguido e seus antecedentes criminais)
Factos não provados
Realizada a audiência de julgamento, com relevância para a decisão da causa, não ficaram por provar quaisquer factos.”
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3.2 – Da impugnação da matéria de facto provada
O recorrente impugnou a decisão da matéria de facto, quanto aos factos provados constantes dos pontos 1 a 3, tendo no essencial cumprido o disposto no artigo 412º nºs 3 e 4 do Cód. Proc. Penal (em conformidade com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 3/2012, de 18 de abril). Foram indicados os factos que entende estarem mal julgados, as provas que considera imporem decisão diversa e indicada a localização das partes dos depoimentos que menciona. Cumpre assim apreciar a impugnação da matéria de facto nos termos do art. 412º, nº3, do Cód. Proc. Penal, ou seja, verificar se existiu erro no julgamento da matéria de facto.
Porém importa, antes de mais, esclarecer em que moldes essa apreciação pode ser feita.
O Tribunal da Relação conhece de facto e de direito, mas os seus poderes de cognição são limitados – arts. 428º e 431º, do Cód. Proc. Penal. O recurso não se traduz num novo julgamento permitindo tão só a verificação e fiscalização, por parte de um tribunal superior, de eventuais erros na decisão da matéria de facto.
Assim, a reapreciação com vista a detetar erros de julgamento de facto é limitada aos pontos de facto concretos que o recorrente considera julgados de forma incorreta e às razões concretas dessa discordância.
O tribunal de recurso, ao apreciar os fundamentos da impugnação da matéria de facto deve verificar se o tribunal de 1ª instância apreciou os meios de prova (legais e produzidos da forma legalmente estabelecida) de acordo com as regras de experiência comum não retirando deles conclusões irrazoáveis, ilógicas, destituídas de sentido ou contrárias à lei. E, fora destes casos, deve respeitar a livre convicção do tribunal recorrido, princípio esse expresso no art. 127º, do Cód. Proc. Penal e do qual resulta que a prova é apreciada pelo tribunal sem qualquer tipo de sujeição a critérios legais pré-definidos.
Na verdade, se o tribunal recorrido apreciou a prova validamente produzida segundo as regras de experiência comum e em obediência a critérios de razoabilidade e lógica não pode o tribunal superior dar prevalência a outra convicção. É que, de acordo com o disposto no art. 412º, nº3, al.b), do Cód. Proc. Penal, não basta que se apure a possibilidade de ocorrência de uma versão distinta da preconizada pelo julgador para que se altere a decisão de facto. O mencionado preceito legal refere “As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida” e, é manifesto, admitir e impor são realidades distintas. A imposição de decisão diversa implica assim que se demonstre que a decisão de facto recorrida está errada, que se mostra impossível ou é destituída de toda e qualquer lógica ou razoabilidade. Não basta, deste modo, a demonstração de uma interpretação da prova alternativa à do tribunal.
Com efeito, o sistema de reapreciação da matéria de facto tem em consideração que é o tribunal de julgamento aquele que, com a imediação, o conhecimento pessoal e direto do conjunto da prova produzida, em melhores condições se encontra de apurar a verdade – ao contrário do tribunal de recurso que procede a uma avaliação indireta, mediata e fragmentada da prova.
Apreciemos então, de acordo com os mencionados princípios, o alegado pelo recorrente nesta sede.
A defesa impugna os factos provados e constantes dos pontos 1º a 3º da matéria de facto provada por os considerar incorretamente julgados já que existem nos autos elementos probatórios que impõem decisão diversa.
E, a sua pretensão assenta: no facto de ter negado perentoriamente a prática dos factos; na circunstância da testemunha CC, sua companheira, ter assumido a detenção e propriedade da arma aqui em causa; no facto do depoimento da testemunha de acusação não se mostrar suficiente, por si só, para a prova dos factos em causa; na circunstância de, na casa viverem outras pessoas; no facto da arma se encontrar no exterior da casa.
Na fundamentação da decisão da matéria de facto pode-se ler – na parte que nos interessa – o seguinte:
«O Tribunal formou a sua convicção, no que concerne aos factos provados, tendo por base a análise global e a valoração crítica da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, à luz do estatuído no artigo 127.º, do Código de Processo Penal, aliado às regras da experiência comum e à livre convicção do julgador.
O Arguido pretendeu prestar declarações tendo apresentado um discurso incoerente referindo que não sabia da existência de qualquer arma na referida habitação, mas que a mesma pertencia ao avô da sua companheira, proprietária da casa.
Por seu turno, ouvida a testemunha CC, companheira do Arguido, a mesma afirmou que a habitação é sua, que a arma em apreço era pertença do seu avô e que o local onde a arma foi encontrada lhe pertence, não só a si, mas também à sua vizinha. Mais referiu que os agentes da PSP, ao encontrarem a referida arma, disseram ao Arguido que o mesmo apenas teria duas opções, ou admitia que a arma era sua ou estes factos seriam imputados à sua companheira e que, nesse seguimento, o Arguido admitiu que a arma seria sua.
A versão apresentada pelo Arguido e pela testemunha CC não colheu porquanto se afigura inverosímil e não consentânea com a demais prova produzida, nem com as regras de experiência comum.
De facto, o Tribunal considerou o depoimento isento e coerente da testemunha BB, agente da PSP que, de forma circunstanciada e pormenorizada, explicou que se dirigiu à referida residência na sequência de uma busca no âmbito de crimes de roubo, cujo visado era o irmão (pelo menos foi assim que ouviu o Arguido a tratá-lo). Referiu ainda que no local se encontrava, designadamente, o Arguido e que, ao encontrarem o revólver dentro de uma bolsa, no logradouro da habitação, o Arguido manifestou, de forma espontânea, ter conhecimento da existência da arma, que a mesma seria sua, que já ali estaria há muito tempo e que por essa razão, lhe pediu para não o prejudicar. Mais concretizou que o referido logradouro é de acesso restrito através da residência do Arguido.
A credibilidade quanto aos factos relatados pela testemunha saiu reforçada pelos elementos de prova documental junta aos autos, concretamente, o auto de notícia por detenção de fls. 8 a 11, o auto de busca e apreensão de fls. 15 e 16, fotografias de fls. 18 a 20 – cuja autoria e teor foi confirmado pela testemunha –, e bem assim o auto de exame pericial de fls. 31 e 32.
Perante o exposto, o Tribunal considerou como provada a factualidade descrita no ponto 1) (…)».
Saliente-se, antes de mais, que resulta claro da presente transcrição que as mencionadas circunstâncias, enunciadas pela defesa, não foram ignoradas pelo tribunal recorrido. Pelo contrário, este analisou-as e, conjugou-as entre si e com a restante prova produzida, afastando-as.
Em concreto. O tribunal recorrido não ignorou que o arguido negou totalmente a prática dos factos aqui em causa. Aliás, afirma-o expressamente na sua fundamentação. Porém, tendo em conta os demais elementos probatórios (que explica) considerou essa negação não credível. Também não ignorou o depoimento da testemunha CC, companheira do arguido, referindo-o expressamente, mas afastando-o por não o considerar credível. E, explica porquê.
Por outro lado, esclarece devidamente as razões pelas quais entendeu como credível o depoimento da testemunha de acusação, BB.
Importa salientar, pese embora tal questão não tenha sido expressamente suscitada em sede de recurso, que esta testemunha se trata do agente de autoridade que procedeu à apreensão da arma. Porém, o seu depoimento mostra-se plenamente válido, quanto ao seu conteúdo, já que o mesmo relata aquilo que viu, e que lhe foi dito, no momento em que praticava os atos cautelares necessários e adequados para apurar a autoria dos factos e que ocorreram imediatamente após o conhecimento do crime (após a deteção, inesperada, da arma), portanto sem que existisse qualquer processo de inquérito relativo a tais factos, sem suspeito conhecido ou sequer a possibilidade de constituição de arguido (já que a busca na sequência da qual a arma foi apreendida respeitava a factos diferentes e era visado pessoa distinta do arguido). Não se verificou, pois, qualquer violação do disposto nos arts. 59º, nº1, nem do 356º, nº7, do Cód. Proc. Penal.
Afirma o recorrente, a propósito do depoimento desta testemunha, que o mesmo, por si só, se mostra insuficiente para a prova dos factos aqui impugnados.
Sem qualquer razão, entende este Tribunal.
Com efeito, ouvido o mencionado depoimento, resulta claro que o seu conteúdo é exatamente aquele que consta da fundamentação da decisão de facto, não se verificando por isso – e ao contrário do que é sugerido em sede de recurso – que, em abstrato, não se mostre apto para a prova dos factos em questão. Pelo contrário. O que resulta provado é exatamente aquilo que resulta do depoimento dessa mesma testemunha a qual, o tribunal recorrido, como se viu, considerou idónea, coerente e credível.
E, foi nesse depoimento que assentou a sua convicção. Ora, atento o já mencionado princípio da livre apreciação da prova, nada obsta a que a convicção do tribunal assente numa única testemunha, seja ela quem for. O que se exige é que essa convicção seja devidamente fundamentada e obedeça a regras de experiência comum e a critérios de razoabilidade e lógica. O que, como também se viu, se verifica no caso concreto.
A crítica à convicção do tribunal que tem como único fundamento uma convicção distinta da do julgador – que é o que ocorre no caso concreto – não releva para efeitos de alteração da decisão de facto. E, não basta demonstrar que da prova produzida pode resultar uma outra realidade. É necessário demonstrar que a prova produzida impõe decisão distinta. E tal, decididamente, e por aquilo que se deixa dito, não se verifica no caso concreto. Prevalece assim, a convicção do julgador.
Em suma, não há qualquer erro de julgamento.
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3.3 - Do princípio “in dubio pro reo”
A defesa veio suscitar a violação do princípio “in dúbio pro reo” invocando que atenta a prova produzida o tribunal recorrido deveria ter concluído pela existência de uma situação de incerteza probatória o que importaria a absolvição do arguido.
Apreciando.
O “in dúbio pro reo” trata-se de um princípio da legislação processual penal, decorrente da presunção de inocência estabelecida constitucionalmente, que determina que na dúvida sobre os factos a provar o tribunal decide em benefício do arguido. Consubstancia assim uma imposição destinada ao julgador o qual, caso não tenha adquirido a certeza sobre os factos integradores dos crimes em apreciação – após a produção de toda a prova – terá que decidir de forma favorável ao arguido.
Assim, como se vê, para a aplicação do mencionado princípio, é necessário que o julgador tenha ficado num estado de dúvida sobre os factos em causa. Se o legislador se convence, adquire a convicção de que os factos ocorreram ou que não ocorreram não há qualquer dúvida, existindo apenas a prova ou a não prova dos factos.
Em contrapartida, para que se verifique a violação do mesmo princípio é necessário que o julgador, não tendo adquirido a certeza sobre os factos, decida em sentido desfavorável ao arguido. E, para este efeito o princípio em causa deve ser entendido objetivamente, ou seja, a sua violação não pode ocorrer apenas nos casos em que o julgador declara expressamente as suas dúvidas (mas decidindo contra o arguido), mas também nas situações em o julgador manifeste certezas (ou não manifeste quaisquer dúvidas), mas em que se verifique, através da análise razoável, lógica e de acordo com critérios de experiência comum, que da prova produzida, se impunha um estado de dúvida.
Assim, só estaremos perante uma violação do princípio em causa quando se demonstre que a convicção do tribunal recorrido sobre determinados factos é inadmissível, ilógica, irracional ou que existem outras hipóteses decorrentes das provas produzidas que se mostram mais plausíveis do que aquela que é aceite pelo tribunal recorrido e que criam uma dúvida razoável.
No caso concreto a convicção do tribunal mostra-se esclarecedora, a fundamentação é suficiente e totalmente convincente por se mostrar lógica e racional. Não só não é demonstrada qualquer dúvida pelo tribunal como também estas não ressaltam da análise da prova produzida (como em sede própria já se apontou).
Não existem elementos de dúvida que possam abalar a razoabilidade da convicção do tribunal.
Não se verifica a violação do princípio “in dubio pro reo”.
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4 - DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que compõem este Tribunal Coletivo em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (arts. 513º, nº1, do Cód. Proc. Penal e art.8º, nº9, do Reg. Custas Processuais e Tabela III anexa a este último diploma).
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Évora, 22 de outubro de 2024
Carla Oliveira (Relatora)
Manuel Soares (1ºAdjunto)
Laura Goulart Maurício (2ªAdjunta)