- Verifica-se o vício de contradição insanável quando a sentença
considera como provados e não provados exactamente os mesmos factos;
- Há reenvio dos autos para novo julgamento, restrito à apreciação desta questão concreta, quando a leitura da motivação da matéria de facto não permite sanar a contradição.
No processo nº 869/19.5GCFAR do Tribunal Judicial da Comarca de …, Juízo de Competência Genérica de … - Juiz …, consta da parte decisória da sentença datada de 5/04/2024, o seguinte:
“Face ao exposto:
1 – Julgo procedente, por provada, a pronuncia do arguido AA pelo que se determina a sua condenação como autor material, de um crime de condução perigosa de veiculo rodoviário previsto e punível nos termos do Art.º 291º nº1 alinea b) do Código Penal, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 5,00€ (uma vez que aufere o ordenado mínimo nacional, num total de 750.00€.
2 - Condena-se ainda o arguido na sanção acessória de 5 MESES o de proibição de condução de veículos com motor, nos termos do Art.º 69º nº1º alínea a)..(…)”
*
Inconformado com a decisão condenatória, veio o arguido interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
“a) Procedendo-se à comparação e conjugação dos três factos não provados, com os factos provados 3, 4,14, 17, e 19 constatamos a total correspondência lógica e fáctica, ( a vontade ou consciência da realização e a efectiva concretização de uma manobra de ultrapassagem na condução do veiculo automóvel nas circunstancias de tempo e de lugar identificadas na sentença recorrida.
b) Donde emerge uma oposição que impossibilita que a mesma realidade não merecer ser considerada como não demonstrada a sua ocorrência, e ao mesmo tempo, e na mesma decisão recorrida, julgar-se como demonstrada essa mesma ocorrência.
c) E logo cumpre impugnar a decisão sobre a matéria de facto da sentença ora recorrida, nos termos e para os efeitos previstos na alínea b) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, por incorrer em contradição insanável da fundamentação, decorrente de terem sido dados como provados os factos constantes dos pontos 3, 4, 14, 17, e 19 na referida decisão, e ao mesmo tempo que ainda na mesma decisão foram dados como não provados os factos 1, 2, e 3 .
d) Nos termos e para os efeitos do previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, alega-se o erro notório na analise da prova produzida no presente processo, que determinou a decisão sobre a matéria de facto ora impugnada sobre os seguintes dos factos dados como provados da Fundamentação de Facto da sentença recorrida:
e) Entende-se que as declarações do ora arguido prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento realizada à ordem dos presentes, e documentadas em suporte informático e por referência à acta da referida audiência de discussão e julgamento datada de 14 de Março de 2024, conjugadas com as declarações da testemunha BB e documentadas em suporte informático e por referência à acta da referida audiência de discussão e julgamento datada de 14 de Março de 2024, e com os relatórios periciais, impõem efectivamente que se considere que existiu diferença na velocidade do veiculo conduzido pelo Recorrente e o veiculo que seguia imediatamente à sua frente no seu sentido de marcha, e não se demonstrou a velocidade excessiva pelo circunstancialismo do local e da configuração da via;
f) Todas as declarações prestadas a instâncias do tribunal recorrido e do Ministério Público quer do Recorrente, quer da única testemunha da Acusação, BB, sáo absolutamente coincidentes em como o veiculo conduzido pelo Recorrente naquelas circunstancias de tempo e de lugar mudou em direcção à berma da hemi-faixa contraria à que seguia o Recorrente, mais concretamente o veiculo foi conduzido em direção a um muro localizado na berma da hemi-faixa contrária à do sentido do Recorrente;
g) Da absoluta coincidência das respostas dos referidos elementos probatórios em como o veiculo conduzido pelo Recorrente naquelas circunstancias de tempo e de lugar mudou em direcção à berma da hemi-faixa contraria à que seguia o Recorrente, mais concretamente o veiculo foi conduzido em direção a um muro localizado na berma da hemi-faixa contrária à do sentido do Recorrente, ( todas as declarações prestadas a instâncias do tribunal recorrido e do Ministério Público quer do Recorrente, quer da única testemunha da Acusação, BB), sáo absolutamente coincidentes, e conduzem necessariamente à conclusão de foi realizada uma manobra evasiva para evitar uma colisão, e nunca uma ultrapassagem, porque uma ultrapassagem não visa a dirigir um veiculo a uma berma;
h) Todas as declarações prestadas a instâncias do tribunal recorrido e do Ministério Público quer do Recorrente, quer da única testemunha da Acusação, BB, sáo absolutamente coincidentes da reacção do Recorrente decorre que evitou a colisão com veiculo que seguia à sua frente, evitou a colisão com o muro da berma para onde dirigiu a manobra evasiva para evitar aquela primeira colisão, mas não conseguiu corrigir a trajectoria a tempo de evitar a colisão com o veiculo automóvel que seguia no sentido de marcha contrário ao veiculo conduzido pelo Recorrente.
i) Estas são reacções do Recorrente nas referidas circunstancias de tempo e de lugar e tendentes a procurar evitar o acidente rodoviário sáo contraditórios com o juízo de incapacidade de reacção como fonte de perigo para a segurança rodoviária.
j) E de todas as declarações prestadas a instâncias do tribunal recorrido e do Ministério Público quer do Recorrente, quer da única testemunha da Acusação, BB, decorre que não se podem dar como provados os factos que se ousam imputar ao ora Recorrente sobre a vontade e consciência a si atribuídos , nem tão pouco sobre o nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de estupefaciente .
k) Expurgando-se o erro notório na analise da prova decorrente das declarações do ora arguido prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento realizada à ordem dos presentes, e documentadas em suporte informático e por referência à acta da referida audiência de discussão e julgamento datada de 14 de Março de 2024, conjugadas com as declarações da testemunha BB e documentadas em suporte informático e por referência à acta da referida audiência de discussão e julgamento datada de 14 de Março de 2024, e com os relatórios periciais, impõe-se que efectivamente que se considere que não se pode dar como provados os factos que se ousam imputar ao ora Recorrente sobre a vontade e consciência a si atribuídos , nem tão pouco sobre o nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de estupefaciente .
l) Pelo que se impugna a decisão sobre a matéria de facto decorrente do erro notório das declarações do ora arguido prestadas em sede de audiência de discussão e julgamento realizada à ordem dos presentes, e documentadas em suporte informático e por referência à acta da referida audiência de discussão e julgamento datada de 14 de Março de 2024, conjugadas com as declarações da testemunha BB e documentadas em suporte informático e por referência à acta da referida audiência de discussão e julgamento datada de 14 de Março de 2024, e com os relatórios periciais, o que impõe que se dê como não provado os mencionados factos da Fundamentação de Facto da sentença ora recorrida 3, 4, 14, 17, 18, 19, e 7, 14, e 20. .
m) Impugna-se a decisão sobre a matéria de Direito que considerou preenchido o elemento subjectivo do tipo insito no artigo 291º nº1 alinea b) do Código Penal, e que considera como cumprido o pressuposto da responsabilidade criminal do ora Recorrente quanto ao nexo de causalidade não demonstrado entre o consumo do produto estupefaciente e o acidente rodoviário, por não se encontrar demonstrado que o sinistro se deveu ao referido consumo.
n) Reitera-se que nenhuma prova resulta dos presentes autos que permita dizer que o ora Recorrente tenha agido com vontade livre e perfeita consciência de que conduzia o seu veiculo pela faixa de rodagem destinada ao trânsito que então circulava em sentido oposto ao seu, e pior para se declarar que era essa a sua intenção.
o) Precisamente quando é a participação de acidente de viação que refere logo a fls. 77 sob a menção “Aderência pavimento” se refere molhado, ora estando o pavimento molhado, e apresentando-se tal observação a propósito da aderência, então é perfeitamente plausível, decorre da experiência comum e da lógica e da natureza das coisas, que o veiculo, conduzido pelo Recorrente nestas circunstancias descritas na participação de acidente de viação e nos autos, tenha perdido a aderência sem que o ora Recorrente contasse com tal facto, e sem que o quisesse ou fosse sua intenção tenha invadido a hemi-faixa ao que seguia a viatura conduzia pelo Sr. BB.
p) Estando o pavimento molhado, e apresentando-se tal observação a propósito da aderência, sendo plausível e decorrente da experiência comum e da lógica e da natureza das coisas, que o veiculo conduzido pelo Recorrente nestas circunstancias descritas nos autos, tenha perdido a aderência sem que o mesmo contasse com tal facto, e sem que o quisesse ou fosse sua intenção tenha invadido a hemi-faixa ao que seguia a viatura conduzia pelo Sr. BB;
q) Ao que acresce, como acima se alegou , releva que todas as declarações prestadas a instâncias do tribunal recorrido e do Ministério Público quer do Recorrente, quer da única testemunha da Acusação, BB, sáo absolutamente coincidentes em como o veiculo conduzido pelo Recorrente naquelas circunstancias de tempo e de lugar mudou em direcção à berma da hemi-faixa contraria à que seguia o Recorrente, mais concretamente o veiculo foi conduzido em direção a um muro localizado na berma da hemi-faixa contrária à do sentido do Recorrente;
r) Tem de relevar desta absoluta coincidência das respostas dos referidos elementos probatórios em como o veiculo conduzido pelo Recorrente naquelas circunstancias de tempo e de lugar mudou em direcção à berma da hemi-faixa contraria à que seguia o Recorrente, mais concretamente o veiculo foi conduzido em direção a um muro localizado na berma da hemi-faixa contrária à do sentido do Recorrente, ( todas as declarações prestadas a instâncias do tribunal recorrido e do Ministério Público quer do Recorrente, quer da única testemunha da Acusação, BB) , coincidem em que foi realizada uma manobra evasiva para evitar uma colisão, e nunca uma ultrapassagem, porque uma ultrapassagem não visa a dirigir um veiculo a uma berma;
s) Todas as declarações prestadas a instâncias do tribunal recorrido e do Ministério Público quer do Recorrente, quer da única testemunha da Acusação, BB, sáo absolutamente coincidentes da reacção do Recorrente decorre que evitou a colisão com veiculo que seguia à sua frente, evitou a colisão com o muro da berma para onde dirigiu a manobra evasiva para evitar aquela primeira colisão, mas não conseguiu corrigir a trajectoria a tempo de evitar a colisão com o veiculo automóvel que seguia no sentido de marcha contrário ao veiculo conduzido pelo Recorrente, e conduzido pelo Sr. BB.
t) Ora estas reacções do Recorrente nas referidas circunstancias de tempo e de lugar e tendentes a procurar evitar o acidente rodoviário sáo contraditórios com o juízo de incapacidade de reacção como fonte de perigo para a segurança rodoviária., e de todas as declarações prestadas a instâncias do tribunal recorrido e do Ministério Público quer do Recorrente, quer da única testemunha da Acusação, BB, decorre que não se pode dar como provados os factos que se ousam imputar ao ora Recorrente sobre a vontade e consciência a si atribuídos , nem tão pouco sobre o nexo de causalidade entre a condução sob o efeito de estupefaciente .
u) Sendo certo que de fls. 167 frente e verso não se identifica qual a regra científica que determine que a concentração de ʌ9 – tetrahidrocanabinol se torna indetectável 3 a 4 horas após o consumo, aliás todas premissas e conclusões vertidas a fls. 167 frente e verso não referem as fontes, as regras , e a literatura em que se baseiam.
v) O que se apresenta como parecer pericial a fls. 167 frente e verso vai contra o que consta de documento do Observatório Europeu da Droga e da Toxicodependência e do Canadian Centre on Substance Use and Addiction, intitulado “Canabis e condução Perguntas e respostas para a elaboração de politicas” de Maio de 2018, disponível em https://www.emcdda.europa.eu/system/files/publications/8805/20181120_TD0418132PTN_PDF.pdf
w) Termos em que se impugna o juízo sobre a matéria de Direito que julgou preenchido o tipo previsto e punido pelo artigo 291º nº1 alinea b) do Código Penal, e que determinou estar cumprido o pressuposto de responsabilidade criminal do ora Recorrente, quando não ficou demonstrado que acidente se deveu ao consumo de produto estupefaciente. ”
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O recurso foi admitido, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
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O Ministério Público apresentou resposta ao recurso do arguido, pugnando pela concessão de provimento parcial, pela revogação da sentença recorrida e pela determinação de reenvio do processo para novo julgamento, formulando as seguintes conclusões:
“1. O vício de contradição insanável de fundamentação ocorre quando se afirma e nega ao mesmo tempo uma coisa ou uma emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas. A contradição pode suceder entre segmentos da própria fundamentação – dão-se como provados factos contraditórios, dá-se como provado e não provado o mesmo facto, afirma-se e nega-se a mesma coisa, enfim, as premissas contradizem-se (cf., neste sentido, Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, III, 2ª Ed., Editorial Verbo, págs. 340 e 341).
2. Dúvidas não subsistem de que a factualidade provada em 3, 4, 14, 17 e 19 é insanavelmente contraditória com a matéria de facto não provada da sentença recorrida.
3. O tribunal a quo, nos factos provados e nos factos não provados, considerou provada e não provada, a realização de uma manobra de ultrapassagem na condução do veículo automóvel pelo arguido.
4. A sentença recorrida padece do vício previsto na alínea b), do n.º 2, do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, impondo-se, nos termos do disposto no artigo 426.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, o reenvio do processo para novo julgamento.
5. O reenvio do processo prejudica o conhecimento das demais questões suscitadas pelo recorrente.”
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Nesta Relação, o Ministério Público emitiu parecer, acompanhando a posição assumida na primeira instância.
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Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417º, nº 2 do Cód. Proc. Penal, nada tendo o recorrente vindo acrescentar ao já por si alegado.
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Proferido despacho liminar, teve lugar a conferência.
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2 – Objecto do Recurso
Conforme o previsto no art.º 412º do Cód. Proc. Penal, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação do recurso, as quais delimitam as questões a apreciar pelo tribunal ad quem, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cf. neste sentido, Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, vol. III, 1994, pág. 320, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos Penais”, 9ª ed., 2020, pág. 89 e 113-114, e, entre muitos outros, o acórdão do STJ de 5.12.2007, no Processo nº 3178/07, 3ª Secção, disponível in Sumários do STJ, www.stj.pt, no qual se lê: «O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação - art. 412º, nº 1, do CPP -, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, (...), a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes.»)
À luz destes considerandos, são as seguintes as questões que cumprem apreciar:
- Verificação dos vícios previstos no art.º 410º, nº 2, alíneas b) e c) do Cód. Proc. Penal;
- Idoneidade dos factos provados para o preenchimento do tipo legal de crime de condução perigosa de veículo rodoviário.
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3- Fundamentação:
3.1. – Fundamentação de Facto
A decisão recorrida considerou provados e não provados os seguintes factos e com a seguinte motivação:
“De relevante para a decisão da causa, resultou provada a seguinte matéria de facto:
Relativa à censurabilidade da conduta
1. No dia 14 de novembro de 2019, por volta das 09h20, o arguido conduziu o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula …, na Estrada …, em …, área deste município de …, circulando no sentido de marcha de … para ….
2. Nessas circunstâncias de tempo e lugar, BB conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros com a matrícula …, circulando no sentido oposto ao do arguido.
3. Ao chegar perto de uma curva existente junto do restaurante denominado “…”, o arguido saiu da sua faixa de rodagem para a contrária, com o propósito de ultrapassar um veículo automóvel que circulava no mesmo sentido.
4. Quando se encontrava a efetuar a referida manobra, o arguido foi embater na parte frontal do veículo conduzido por BB, tendo-se ambos despistado posteriormente.
5. Na sequência do despiste, BB sofreu dores e uma escoriação na cabeça na região temporal direita.
6. Acresce que o arguido conduziu após ter ingerido produtos estupefacientes, nomeadamente haxixe.
7. Após ser transportado para o Hospital de …, foi o arguido submetido a análise ao sangue, tendo sido apurado que o mesmo tinha no sangue as seguintes substâncias:
a. D9 – tetrahidrocanabinol (THC) – 6,4ng/ml;
b. 11-Nor-9-Carboxi-D9-tetrahidrocanabinol (THC-COOH) – 39 ng/ml;
c. 11-Hidroxi-D9-tetrahidrocanabinol (11-OH-THC) – 2,3 ng/ml.
8. Na via onde se deu o acidente, o piso estava molhado, porquanto havia chovido.
9. A estrada em causa tinha a largura total de 5,30mtos, sendo composta por duas vias.
10. A curva acima aludida era de visibilidade reduzida.
11. No local descrito, antes da curva, no sentido descrito pelo arguido, existia um sinal c14 de proibição de ultrapassar.
12. Nas circunstâncias de lugar descritas, a velocidade máxima permitida era de 90kms/h.
13. No local em causa, não era permitida a manobra de ultrapassagem referida mercê da sinalização descrita e porquanto não é permitido efetuar tal manobra na aproximação de uma curva, o que era do conhecimento do arguido.
14. O arguido agiu da forma descrita como consequência da ingestão de produto estupefaciente e porquanto resolveu ultrapassar um veículo automóvel em local que não lhe era permitido.
15. Ademais, considerando as quantidades apuradas das substâncias indicadas em 7.º, o arguido não se encontrava apto a conduzir o veículo acima referido em condições de segurança para os demais utentes da via, o que era do conhecimento do arguido e, não obstante, decidiu conduzir nas circunstâncias de tempo e lugar descritas.
16. Mais sabia o arguido que deveria ter reduzido a velocidade e adequado a mesma ao local, ao se aproximar de uma curva.
17. Mais sabia o arguido que não podia efetuar manobra de ultrapassagem no referido local, porquanto se aproximava uma curva e porque tal lhe estava vedado em face da sinalização existente.
18. Atuou ainda o arguido com a vontade livre e a perfeita consciência de que circulava com o veículo pela faixa de rodagem destinada ao trânsito que então circulava em sentido oposto ao seu, o que aliás era a sua intenção.
19. Ao atuar da forma descrita, o arguido bem sabia que não estava a cumprir com as regras estradais, que ao se aproximar de uma curva deveria reduzir e adequar a velocidade ao local, que não podia conduzir por estar sob a influência de produto estupefaciente e que não podia efetuar manobra de ultrapassagem e circular pela via de sentido contrário, pelo que não observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adotar e que devia ter adotado, tendo colocado em perigo o veículo e a vida, o corpo e a saúde de BB que conduzia o citado veículo, o que representou.
20. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Relativa à determinação da sanção
1- O arguido não tem antecedentes criminais
2- O arguido trabalha na construção civil e aufere cerca de 820.00€ mensais;
3- O arguido paga mensalmente 50,00€ pela habitação onde reside.
4- O arguido encontrar-se a pagar cerca de 100.00€ de uma divida da autoridade tributária
Matéria de Facto não provada
1. Ao chegar perto de uma curva existente junto do restaurante denominado “…”, o arguido saiu da sua faixa de rodagem para a contrária, com o propósito de ultrapassar um veículo automóvel que circulava no mesmo sentido.
2. Mais sabia o arguido que não podia efetuar manobra de ultrapassagem no referido local, porquanto se aproximava uma curva e porque tal lhe estava vedado em face da sinalização existente.
3. Ao atuar da forma descrita, o arguido bem sabia que não estava a cumprir com as regras estradais, e que não podia efetuar manobra de ultrapassagem e circular pela via de sentido contrário, pelo que não observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adotar e que devia ter adotado, tendo colocado em perigo o veículo e a vida, o corpo e a saúde de BB que conduzia o citado veículo, o que representou.
2- Motivação da decisão de facto
O arguido prestou declarações e congruentemente com o que afirmou anteriormente no processo e que até se encontra vertido na decisão instrutória proferida nos autos, tendo negado ter consumido haxixe no dia do acidente mencionado nos autos e que a ultrapassagem que fez não foi uma verdadeira ultrapassagem, porquanto ao se ter distraído com o rádio inadvertidamente “guinou” o seu carro para a faixa de rodagem contrária, embatendo no veículo que circulava.
Por sua vez o ofendido BB também com idêntica credibilidade referiu que o arguido estava a ultrapassar um veículo corsa.
Esta duvida insanável, é ainda suportada pelo teor de fls. 148 do relatório final, no qual também se admite uma “manobra mal realizada”, ficando o tribunal sem saber se por via de uma ultrapassagem querida ou uma distracção, pelo que e no exercício do principio in dubeo pro reo, o facto foi simultaneamente considerado provado e não provado bem como o elemento subjectivo correspondente, razão pela e no que concerne a tal imputação sempre será de absolver o arguido.
Já no que respeita à condução perigosa com fundamento em condução sob influência de substância psicotrópica, não merece credibilidade a declaração do arguido de que já teria consumido em dias anteriores e que não é consumidor habitual, porquanto as duas alegações se encontram em oposição com o relatório de fls. 38.
Ora tal é incompatível com qualquer estudo cientifico sobre o tempo de presença do THC no sangue.
Com efeito todos os estudos revelam que no consumidor ocasional o THC desaparecer após 24 Horas, sendo que nos consumidores regulares é detectável até 72 Horas.
Não podendo ser colocada em causa a perícia de fls. 38, significa, pois, que das duas uma, ou o arguido não é consumidor ocasional, ou não tinha fumado haxixe dois ou três dias antes, razão pela qual nesta parte o depoimento do arguido não mereceu credibilidade.
No que concerne às condições pessoais do arguido o tribunal fundou a sua convicção no teor suas declarações, sendo que a prova relativa aos seus antecedentes criminais resultou do teor do certificado de registo criminal junto aos autos.”
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3.2.- Mérito do recurso
Como primeiro fundamento do seu recurso invoca o arguido a verificação, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 410º, nº 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal, de contradição insanável na decisão recorrida entre os factos provados sob os nºs 3, 4, 14, 17 e 19 e os factos não provados sob os nºs 1, 2 e 3, e de erro notório na apreciação da prova.
Quanto a estas questões, estabelece o art.º 410º, nº 2 do Cód. Proc. Penal que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do Tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
c) O erro notório na apreciação da prova.
Tratam-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto que são vícios da própria decisão, como peça autónoma, e não vícios de julgamento, que não se confundem nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida.
Estes vícios são também de conhecimento oficioso, pois têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e decorrem do próprio texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de recurso a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo constantes do processo (cfr., neste sentido, Maia Gonçalves, in “Código de Processo Penal Anotado”, 16ª ed., pág. 873; Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª ed., pág. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6ª ed., 2007, pág. 77 e seg.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, prevista no artigo 410º, nº 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal, consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada, porquanto todos os vícios elencados neste artigo se reportam à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto (cfr., neste sentido, Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal”, 6ª ed., 2007, págs. 71 a 73).
Especificamente quanto ao vício da contradição insanável, decidiu o STJ, no acórdão de 12/03/2015, proferido no processo nº 418/11.3GAACB.C1.S1 - 3.ª Secção, que: «[o] vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão verifica-se quando no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspetiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respetivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito».
Pode, assim, afirmar-se que há contradição insanável da fundamentação quando, através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os factos provados, entre estes e os não provados, ou até entre a fundamentação probatória da matéria de facto.
A contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, por sua vez, ocorrerá quando, também através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão.
Ainda nas palavras de Simas Santos e Leal Henriques, in “ Código de Processo Penal Anotado”, II volume, 2ª Edição, 2000, editora Rei dos Livros, Lisboa, pág. 379: «por contradição, entende-se o facto de afirmar e de negar ao mesmo tempo uma coisa ou a emissão de duas proposições contraditórias que não possam ser simultaneamente verdadeiras e falsas, entendendo-se como proposições contraditórias as que tendo o mesmo sujeito e o mesmo atributo diferem na quantidade e qualidade. Para os fins do preceito (al. b) do n.º 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser integrada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com auxílio das regras da experiência.»
No que concerne ao erro notório na apreciação da prova, segundo o disposto no art.º 410º, nº 2, alínea c) do Cód. Proc. Penal, o mesmo releva como fundamento de recurso desde que resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.
Pese embora a lei não o defina, o «Erro notório» tem sido entendido como aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade e que ressalta do teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, só podendo relevar se for ostensivo, inquestionável e percetível pelo comum dos observadores ou pelas faculdades de apreciação do «homem médio».
Há «erro notório» quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum e ainda quando determinado facto provado é incompatível, inconciliável ou contraditório com outro facto, positivo ou negativo, contido no texto da decisão recorrida (cf. neste sentido, LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, in “Código de Processo Penal anotado”, II volume, 2ª edição, 2000, Rei dos Livros, pág. 740).
Este é um vício do raciocínio na apreciação das provas, de que nos apercebemos apenas pela leitura do texto da decisão, o qual, por ser tão evidente, salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental, em que as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu uma ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial (cf. entre muitos outros, Acs. TRC de 09.03.2018, proferido no processo nº 628/16.7T8LMG.C1, em que foi relatora Paula Roberto, e de 14.01.2015, proferido no processo nº 72/11.2GDSRT.C1, em que foi relator Fernando Chaves, ambos disponíveis em www.dgsi.pt).
Ora, da simples leitura da decisão recorrida se constata que a mesma padece efectivamente do vício de contradição insanável, pois se deu como provado que:
“(…) 3. Ao chegar perto de uma curva existente junto do restaurante denominado “…”, o arguido saiu da sua faixa de rodagem para a contrária, com o propósito de ultrapassar um veículo automóvel que circulava no mesmo sentido. (…)
17. Mais sabia o arguido que não podia efetuar manobra de ultrapassagem no referido local, porquanto se aproximava uma curva e porque tal lhe estava vedado em face da sinalização existente.(…)
19. Ao atuar da forma descrita, o arguido bem sabia que não estava a cumprir com as regras estradais, que ao se aproximar de uma curva deveria reduzir e adequar a velocidade ao local, que não podia conduzir por estar sob a influência de produto estupefaciente e que não podia efetuar manobra de ultrapassagem e circular pela via de sentido contrário, pelo que não observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adotar e que devia ter adotado, tendo colocado em perigo o veículo e a vida, o corpo e a saúde de BB que conduzia o citado veículo, o que representou. (…).
e como não provado que:
“ (…)1. Ao chegar perto de uma curva existente junto do restaurante denominado “…”, o arguido saiu da sua faixa de rodagem para a contrária, com o propósito de ultrapassar um veículo automóvel que circulava no mesmo sentido.
2. Mais sabia o arguido que não podia efetuar manobra de ultrapassagem no referido local, porquanto se aproximava uma curva e porque tal lhe estava vedado em face da sinalização existente.
3. Ao atuar da forma descrita, o arguido bem sabia que não estava a cumprir com as regras estradais, e que não podia efetuar manobra de ultrapassagem e circular pela via de sentido contrário, pelo que não observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adotar e que devia ter adotado, tendo colocado em perigo o veículo e a vida, o corpo e a saúde de BB que conduzia o citado veículo, o que representou. (…)”
Na verdade, não é possível numa mesma decisão darem-se como provados e como não provados exactamente os mesmos factos.
Analisada a decisão, poderíamos concluir que a inclusão dos mesmos factos no elenco dos provados e dos não provados se poderia ter ficado a dever a um mero lapso.
Sucede, porém, que a leitura da motivação da matéria de facto não permite sanar este vício, porquanto aí expressamente se refere que:
“(…) O arguido prestou declarações e congruentemente com o que afirmou anteriormente no processo e que até se encontra vertido na decisão instrutória proferida nos autos, tendo negado ter consumido haxixe no dia do acidente mencionado nos autos e que a ultrapassagem que fez não foi uma verdadeira ultrapassagem, porquanto ao se ter distraído com o rádio inadvertidamente “guinou” o seu carro para a faixa de rodagem contrária, embatendo no veículo que circulava.
Por sua vez o ofendido BB também com idêntica credibilidade referiu que o arguido estava a ultrapassar um veículo corsa.
Esta duvida insanável, é ainda suportada pelo teor de fls. 148 do relatório final, no qual também se admite uma “manobra mal realizada”, ficando o tribunal sem saber se por via de uma ultrapassagem querida ou uma distracção, pelo que e no exercício do principio in dubeo pro reo, o facto foi simultaneamente considerado provado e não provado bem como o elemento subjectivo correspondente, razão pela e no que concerne a tal imputação sempre será de absolver o arguido..(…)”
Deste segmento da decisão recorrida não é possível extrair o pensamento do julgador ao fixar os factos provados e os não provados, pois se ficou com dúvidas quanto à factualidade em apreço, em obediência ao princípio in dubio pro reo, não a deveria ter considerado como provada, não obstante o depoimento do arguido e da testemunha referida levarem a que se considerassem tais factos como provados.
Considerar como provados e não provados exactamente os mesmos factos encerra uma contradição nos seus termos, contradição esta que é efectivamente insanável, pois a motivação da matéria de facto não permite concluir, com um juízo de certeza, se tais factos se encontram provados ou não provados, sendo estes factos absolutamente imprescindíveis não só para o preenchimento do tipo legal de crime, como para a escolha e determinação da medida da pena a aplicar.
Impõe-se, assim, concluir que a decisão recorrida enferma do vício de contradição insanável previsto no art.º 410º, nº 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal, o que determina a sua nulidade e o reenvio dos autos para novo julgamento, restrito à apreciação desta questão concreta, de harmonia com o disposto nos arts.º 426º, nº 1 e 426º-A do mesmo diploma, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.
Deverá, pois, a primeira instância determinar a produção de prova necessária e adequada para sanar a referida contradição e, após, proferir nova decisão, com base no conjunto dos factos que vierem a provar-se e aqueles já dados como assentes na decisão recorrida.
Fica prejudicado o conhecimento das restantes questões objecto do recurso.
*
4. DECISÃO:
Pelo exposto, acordam as Juízes que integram esta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em declarar nula a sentença recorrida por contradição insanável entre os factos provados em 3, 17 e 19 e os factos não provados em 1, 2 e 3, nos termos previstos no art.º 410º, nº 2, alínea b) do Cód. Proc. Penal, e, em consequência, determinam o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do art.º 426º, nº 1 do mesmo diploma, a fim de determinar se se provam ou não os seguintes factos, e após retirar as devidas consequências jurídicas:
- Ao chegar perto de uma curva existente junto do restaurante denominado “…”, o arguido saiu da sua faixa de rodagem para a contrária, com o propósito de ultrapassar um veículo automóvel que circulava no mesmo sentido;
- Mais sabia o arguido que não podia efetuar manobra de ultrapassagem no referido local, porquanto se aproximava uma curva e porque tal lhe estava vedado em face da sinalização existente;
- Ao atuar da forma descrita, o arguido bem sabia que não estava a cumprir com as regras estradais, e que não podia efetuar manobra de ultrapassagem e circular pela via de sentido contrário, pelo que não observou as precauções exigidas pela mais elementar prudência e cuidado que era capaz de adotar e que devia ter adotado, tendo colocado em perigo o veículo e a vida, o corpo e a saúde de BB que conduzia o citado veículo, o que representou.
Sem custas ( arts.º 513º do Cód. Proc. Penal ).
Évora, 22 de Outubro de 2024
(texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto pela relatora)
Carla Francisco
(Relatora)
Laura Goulart Maurício
Carla Oliveira
(Adjuntas)