QUESTÃO PREJUDICIAL
CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
NULIDADE POR OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário

Se na contestação, o arguido, põe em causa a validade do procedimento administrativo que culminou na sua desqualificação como entidade certificada para reparar e instalar aparelhos tacógrafos e se informa que intentou no Tribunal Administrativo acção pedindo a declaração de nulidade ou a anulação do respectivo acto administrativo, existe questão não penal prejudicial para o conhecimento da existência de crime de falsificação de documento, por falsa invocação daquela qualificação, uma vez que a decisão que aí vier a ser proferida pode resultar na
ineficácia do acto administrativo e, consequentemente, no preenchimento do elemento típico do crime “fazer constar falsamente de um documento um facto juridicamente relevante”.
Não tendo sido requerida ao tribunal nem tendo o tribunal determinado oficiosamente a suspensão do processo, ao abrigo do disposto no artigo 7º do CPP, e tendo o tribunal condenado o arguido sem conhecer da referida questão prejudicial, o acórdão é nulo por omissão de pronúncia, de acordo com o disposto no artigo 379º nº 1 al. c) do CPP.

Texto Integral

Acórdão deliberado em Conferência
1. Relatório

1.1. Decisão recorrida

Acórdão proferido em 3mai2024, no qual foi condenado, juntamente com um co-arguido não recorrente, o arguido AA, por 21 crimes de falsificação de documento, previstos nos artigos 255º al. a) e 256º nº 1 al. d) e nº 3 do CP, nas penas parcelares de 2 anos de prisão por cada crime e na pena única de 4 anos e 8 meses de prisão, suspensa na execução por igual período, bem assim como a pagar, solidariamente com o co-arguido, a quantia de 297,80 euros, acrescida de juros de mora à taxa de 4%, contados desde a notificação do pedido, à demandada BB.

1.2. Recurso, resposta e parecer

1.2.1. O arguido recorreu, alegando, em resumo, a existência dos seguintes vícios:

1. Erro de julgamento da matéria de facto:

- No que respeita aos factos dos pontos 2 e 3, está documentado que exerceu a actividade desde de aferição, verificação, reparações e instalação de aparelhos tacógrafos 1992 e não desde 1995, como ficou provado;

- No que respeita aos factos do ponto 4, a desqualificação para o exercício daquela actividade não se deveu às razões que constam no facto provado nem o arguido foi alguma vez notificado da intenção ou da decisão de desqualificação, tendo, por isso, intentado acção administrativa com vista à declaração de nulidade ou anulação desse acto, a qual, a proceder, elimina um dos elementos constitutivos dos crimes. Tendo o arguido alegado a falsidade dos pressupostos do referido despacho, não podiam os mesmos ser dados como provados;

- No que respeita aos factos do ponto 5, não se vê como pode ter sido considerado provado que no dia da publicação no Diário da República da decisão de desqualificação para o exercício daquela actividade decidiu continuar a dedicar-se à mesma, uma vez que também se provou que só meses depois ocorreu o primeiro crime de falsificação;

2. Erro de interpretação e aplicação do direito: qualificação jurídica/ crime continuado:

- Dos factos provados resulta sem dúvida que está em causa a realização do mesmo crime várias vezes e que as condutas foram todas praticadas de forma homogénea, com acções idênticas decorrentes da actividade profissional do arguido;

- Quanto ao requisito da existência de uma solicitação exterior motivadora dos actos, ele verifica-se, na medida em que todos os crimes foram praticados depois dos clientes encomendarem os seus serviços, sendo certo que sem essas marcações as aferições dos tacógrafos não se teriam realizado;

- Trata-se, portanto, de crime continuado, cuja pena deveria ser substancialmente inferior, entre 8 e 12 meses de prisão, com execução suspensa.

3. Erro de interpretação e aplicação do direito: determinação da medida da pena;

- A qualificação, feita pelo tribunal, de que as exigências de prevenção geral são elevadas por causa do elevado número de crimes da mesma natureza praticados na comarca, não está demonstrada;

- Há excesso na qualificação das exigências de prevenção geral como elevadas, porque o arguido tem quase 72 anos, é doente, ficou sem as máquinas e aparelhos com que desenvolvia a actividade e sem as poupanças que tinha angariado, encontrando-se reformado e recebendo cerca de 400 euros por mês, não tendo, assim, meios para voltar a praticar os mesmos crimes;

- Não se provou, igualmente, que a sua actuação tivesse provocado qualquer perigo;

- As penas parcelares devem ser fixadas perto do mínimo de 6 meses e a pena única não deve ser superior a 24 meses de prisão, com execução suspensa.

1.2.2. O Ministério Público respondeu ao recurso, defendendo que o mesmo tem fundamento parcial, apenas no que respeita à redacção dos factos dos pontos 2 e 3, embora sem impacto na decisão final, em suma, pelos seguintes motivos:

- Nos pontos 2 e 3 dos factos provados, resulta dos documentos do processo que a data da decisão de qualificar o arguido para o exercício da actividade é aquela por ele referida no recurso;

- No ponto 4, o arguido não tem razão, visto que o tribunal se limitou a reproduzir o conteúdo essencial do despacho em causa e não a dar como provada a sua eficácia ou validade;

- No ponto 5, não tem igualmente razão porque, aceitando que realizou as falsificações provadas, não é crível que tivesse decidido cessar a actividade para a retomar uns meses depois;

- No que respeita ao crime continuado, não se verifica o pressuposto da actuação no quadro de solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa, visto que isso não ocorre quando é o próprio agente do crime que cria a situação que propicia ou facilita a repetição dos crimes;

- As penas, quer as parcelares quer a única, encontra-se correctamente fixadas, de acordo com os factos provados e os critérios legais aplicáveis.

1.2.3. Na Relação o Ministério Público emitiu parecer concordante com a expressa em primeira instância, citando doutrina e jurisprudência para sustentar a conclusão de que não há crime continuado e acrescentando, quanto à pena, que esta tem de ser suficiente para o condenado sentir o desvalor da sua conduta e que em recurso só é de alterar uma pena que se mostre desproporcionada, o que não é o caso.

2. Questões a decidir

Por ordem de precedência lógica, as questões invocadas no recurso para decidir são as seguintes: (i) erro de julgamento da matéria de facto; (ii) erro de qualificação jurídica dos factos – crime continuado ou pluralidade de crimes e (iii) erro na determinação da medida das penas. Porém, existe uma outra questão, de conhecimento oficioso, relativa à validade do acórdão, pela qual devemos começar, por ser prejudicial em relação às demais.

3. Fundamentação

3.1. Matéria de facto e motivação do acórdão recorrido

Resultaram provados os seguintes factos com relevância para a decisão da causa:

1. «CC», é uma sociedade comercial por quotas que tem por objeto a manutenção e reparação de veículos automóveis, com sede na ...,…, na freguesia da …, no concelho de …, e cuja gerência se encontra a cargo do arguido AA, não se encontra, nem nunca se encontrou, qualificada para a realização do controlo metrológico legal para aferição, verificação, reparação e instalação de aparelhos tacógrafos.

2. Por despacho do Instituto Português da Qualidade, I. P., (IPQ), publicado no Diário da República n.º …/95, de …/…/1995, o arguido AA foi qualificado para a realização de aferições, verificações, reparações e instalações de aparelhos tacógrafos, tendo-lhe sido atribuído, na ocasião, o certificado de qualificação n.º …, do Instituto Português da Qualidade, I. P. (IPQ).

3. A partir de 25 de março de 1995, o arguido AA passou a exercer a atividade de aferição, verificação, reparação e instalação de aparelhos tacógrafos, fazendo-o juntamente com o arguido DD, que vem laborou por conta do arguido AA.

4. Devido a irregularidades ou incumprimentos no desempenho da atividade de aferição, verificação, reparação e instalação de aparelhos tacógrafos, o arguido AA foi inibido de exercer tal atividade e impedido de utilizar a designação de entidade qualificada, bem como de proceder a ações publicitárias ou emitir qualquer documento com referência à antedita qualificação, por despacho do Instituto Português da Qualidade, I. P., (IPQ) com o n.º …, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º …, de ….

5. Não obstante, nesse mesmo dia … de julho de 2018, os arguidos AA e DD decidiram, de comum acordo entre si, continuarem a dedicar-se à atividade de aferição, verificação, reparação e instalação de aparelhos tacógrafos, como se o arguido AA mantivesse a qualificação para o efeito, o que fizeram a partir daquela data, pelo menos até à data de 12 de Outubro de 2021, utilizando para tal a oficina situada em …, na freguesia …, no concelho de ….

6. Para esse efeito, os arguidos AA e DD eram contactados telefonicamente por quem procurava os serviços por eles prestados e, no decurso de tais conversas telefónicas, os arguidos AA e DD agendavam a data e o local para a aferição e verificação de aparelhos tacógrafos, fazendo-o ora na oficina situada em …, na freguesia …, no concelho de …, ora, maioritariamente, nas instalações das empresas de cada um dos seus clientes, ora noutros locais previamente acordados com cada um dos seus clientes.

7. Quando acordavam com os seus clientes prestar o serviço de aferição e de verificação de aparelhos tacógrafos noutro local que não a oficina indicada em 5, os arguidos AA e DD deslocavam-se para tais locais, fazendo uso, nas suas deslocações, dos seguintes veículos automóveis: «…», de cor branca, de matrícula …, pertencente a EE, filha do arguido AA; «…”, de cor azul, de matrícula …, pertencente a EE; “…», de cor cinzenta, de matrícula …, pertencente a FF, mulher do arguido AA.

8. Na sobredita oficina, ou nas instalações das empresas de cada um dos seus clientes, ou noutros locais previamente acordados com estes, os arguidos AA e DD, preenchiam pelo seu próprio punho, todos os campos dos certificados de verificação/ verificação periódica bienal de aparelhos tacógrafos, emitidos pelo IPQ, de que o arguido AA dispunha por ter sido, no passado, qualificado para o exercício da atividade de aferição e verificação de aparelhos tacógrafos, após o que entregavam tais certificados aos seus clientes, atestando falsamente tratar-se de entidade qualificada para o efeito, o que não correspondia à realidade.

9. Em simultâneo, os arguidos AA e DD, no intuito de conferir uma aparência de que agiam na qualidade de real entidade certificadora, colocavam nos aparelhos tacógrafos e nas portas dos veículos automóveis dos seus clientes, os selos de segurança de verificação/ verificação periódica bienal, correspondentes aos certificados de verificação/ verificação periódica bienal de aparelhos tacógrafos, que preenchiam e entregavam aos seus clientes, dos quais constava a designação «…» - AA, o número do certificado de qualificação …, a respetiva data da certificação e a matrícula do veículo.

10. Por cada um dos serviços prestados, de aferição e verificação de aparelhos tacógrafos, os arguidos AA e DD cobravam, pelo menos, €80,00 (oitenta euros), que os clientes pagavam, ora em numerário, ora através de cheque, ora por transferência bancária, para a conta bancária com o IBAN …, domiciliada na instituição bancária «…» - Balcão de … –, titulada pela pessoa coletiva «CC».

11. Quando tal lhes era solicitado pelos seus clientes, os arguidos AA e DD emitiam e entregavam àqueles a fatura correspondente ao serviço por eles prestado, em nome da empresa «CC».

Concretizando:

12. No dia 20 de outubro de 2018, os arguidos preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «GG», o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo existente no veículo pesado de matrícula ….

13. No dia 24 de outubro de 2018 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «HH», o certificado de verificação/ verificação periódica sexenal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado de matrícula ….

14. No dia 6 de março de 2019 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «HH» o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo existente no veículo pesado de matrícula ….

15. No dia 30 de maio de 2019 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «II» o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado de matrícula ….

16. No dia 2 de julho de 2019 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «JJ» o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado de matrícula ….

17. No dia 8 de outubro de 2019 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «KK» o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado de matrícula ….

18. No dia 13 de novembro de 2019 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «LL» o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado de matrícula ….

19. No dia 24 de dezembro de 2019, preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «MM» o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado de matrícula ….

20. No dia 15 de janeiro de 2020, preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «NN», com sede na …, n.º … e …, na …, em …, o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado de matrícula ….

21. No dia 22 de janeiro de 2020 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram a OO, dono do veículo pesado de passageiros matrícula …, afeto ao transporte de crianças, o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no aludido veículo pesado.

22. No dia 26 de fevereiro de 2020, preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «PP» o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado de matrícula ….

23. No dia 15 de abril de 2020 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «QQ» o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado de matrícula ….

24. No dia 17 de abril de 2020 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «RR» o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado de matrícula ….

25. No dia 24 de junho de 2020 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «HH» o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado de matrícula ….

26. No dia 26 de junho de 2020 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «BB” o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado da marca «…», de modelo «…», e de matrícula ….

27. No dia 13 de agosto de 2020 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «SS» o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado de matrícula ….

28. No dia 1 de setembro de 2020 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «TT» o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado de matrícula ….

29. No dia 3 de outubro de 2020 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «UU», por intermédio de VV, sócio-gerente da empresa «XX», o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado de matrícula ….

30. No dia 21 de outubro de 2020 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «YY» o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado de matrícula ….

31. No dia 15 de janeiro de 2021 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «ZZ» o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo com o n.º …, existente no veículo pesado de matrícula ….

32. No dia 26 de março de 2021 preencheram e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, entregaram à sociedade «AAA», o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo existente no veículo automóvel de matrícula ….

33. Os arguidos AA e DD atuaram da forma supra descrita, em conjugação de esforços entre si e em execução de um plano previamente combinado, com o propósito concretizado, de obterem para si um proveito económico que sabiam ser injustificado/ ilegítimo e que, de outra forma, não conseguiriam obter.

34. Os arguidos AA e DD sabiam que desde 27 de julho de 2018, o arguido AA se encontrava inibido de exercer a atividade de aferição, reparação e instalação de aparelhos tacógrafos e impedido de utilizar a designação de entidade qualificada, bem como de proceder a ações publicitárias ou emitir qualquer documento com referência àquela qualificação.

35. Mais sabiam que ao preencherem os certificados de verificação/ verificação periódica bienal, emitidos pelo IPQ, nos moldes em que o fizeram, neles atestavam que tinham procedido à aferição e verificação dos aparelhos tacógrafos e que tal aferição e verificação fora levada a cabo por entidade habilitada para o efeito, o que também sabiam não corresponder à realidade.

36. Com a sua atuação, os arguidos colocaram em causa a veracidade, credibilidade e confiança que revestem perante a generalidade das pessoas os elementos constantes de documentos emitidos por entidades públicas, levando a que os seus clientes circulassem na via pública com veículos pesados, crentes de que o faziam em segurança e no respeito da lei, quando na verdade tal não ocorria.

37. Os arguidos AA e DD agiram, sempre e em tudo, de forma livre, voluntária e consciente, sabiam que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei, podiam determinar-se em sentido contrário de acordo com essa avaliação que efetivamente fizeram e, ainda assim, não se abstiveram de as praticar.

Mais se provou:

38. O arguido AA pagava um salário mensal ao arguido DD pelo trabalho que este prestava, além do mais, na aferição dos tacógrafos.

39. A sociedade BB, crente que os arguidos agiam na qualidade de entidade autorizada a aferir e certificar tacógrafos, solicitou a aferição e verificação de tacógrafos dos seguintes veículos:

a) …, de matrícula …, em junho de 2020

b) …, de matrícula …, em junho de 2020;

c) …, de matrícula …, em junho de 2020;

d) …, de matrícula …, em junho de 2020;

e) …, de matrícula …, em julho de 2020;

f) …, de matrícula …, em agosto de 2020;

g) …, de matrícula …, em agosto de 2020;

h) …, de matrícula …, em dezembro de 2020;

i) …, de matrícula …, em fevereiro de 2021.

40. No dia 12 de outubro de 2021, pelas 8h00, uma equipa da GNR, exibindo Mandado de Busca e Apreensão, dirigiu-se às Instalações da demandante para aí proceder à apreensão de todos os veículos aferidos pelos arguidos.

41. Para o efeito, a demandada, por ordem da GNR, fez deslocar toda a sua frota às instalações, constatando-se que nos veículos aferidos pelos arguidos e identificados no ponto 39.º, a aferição não tinha sido efetuada por entidade qualificada para o efeito, razão pela qual os veículos ficaram impossibilitados de circular sem que antes fosse feita aferição por entidade qualificada e certificada para o efeito.

42. A demandante teve que deslocar os veículos pesados, por reboque, incluído o identificado no ponto 39, à sociedade BBB, em …, despendendo com a aferição dos tacógrafos e selagem do aludido veículo o montante de 148,63€ (cento e quarenta e oito euros e sessenta e três cêntimos).

43. Por causa da conduta dos arguidos, conjugada com a factualidade descrita nos pontos 40 e 41, os veículos estiveram parados, sem que dos mesmos a demandante pudesse auferir o rendimento da sua atividade comercial, sendo o veículo de matrícula … com 7.500Kg de peso bruto, durante um dia e meio.

Factos atinentes ao relatório social

Arguido AA

44. AA de 71 anos de idade viveu até à idade adulta com o pai, empregado de escritório e com a mãe, doméstica, em ambiente afetuoso e normativo.

45. Integrou o ensino escolar em idade regular, tendo completado o 4.º ano com 13 anos após reprovar várias vezes, por via de uma atitude pautada pelo desinvestimento, falta de assiduidade, preferindo privilegiar pequenos biscates por forma a, desde cedo, garantir alguma autonomia financeira.

46. Iniciou pouco tempo depois, funções como operário fabril numa fábrica de malas onde não permaneceu muito tempo, passando a exercer funções na área da reparação automóvel.

47. Em 1989 constituiu a sua própria empresa em nome individual no âmbito da atividade de reparação e manutenção de tacógrafos que manteve até outubro de 2021, cessando por via dos factos em causa nos presentes autos.

48. Padece de … e … estando medicado.

49. Atualmente reside em casa tipologia T3 em meio rural com a mulher com quem mantém relacionamento há 50 anos, uma filha com …anos … e com a sogra ….

50. Tem mais 3 filhos todos adultos e autónomos, mantendo relação afetiva de grande proximidade com todos os filhos, mulher e sogra.

Arguido DD

51. O arguido tem 63 anos, sendo o mais novo de uma fratria de 5 irmãos, tendo residido na infância em ambiente familiar afetuoso, normativo, mas modesto, composto pelo pai trabalhador na …, a mãe, … em casa e os seus quatro irmãos.

52. Ingressou o ensino escolar em idade normativa tendo completado o 10.º ano, com duas reprovações, após o que iniciou funções numa oficina.

53. Ao longo do seu percurso profissional, exerceu funções na … na manutenção naval e … e ainda na área de bate-chapa e pintura auto.

54. Frequentou formação em controlo de tacógrafos tendo passado a exercer funções na área para a sociedade ….

55. No ano 2000 começou a trabalhar na mesma área para a empresa CC, titulada pelo coarguido.

56. Após a detenção nos presentes autos ficou na situação de desemprego estando inscrito no Centro de Desemprego, mas sem propostas concretas, razão pela qual realizado biscates em pequenas remodelações e pinturas, obtendo rendimento semanais que poderão variar entre os 50,00€ e os 200,00€.

57. O arguido reside atualmente em casa própria com a mulher com quem casou há 40 anos, tendo tido uma filha.

58. A mulher é …, não auferindo mais do que o salário mínimo.

59. O arguido sofre de … já tendo sido sujeito a intervenção cirúrgica.

60. Os arguidos não têm antecedentes criminais.

B) Factos não provados com relevância para a decisão da causa:

a) Que no dia 21 de outubro de 2020 os arguidos tenham preenchido e, em conjunto com os respetivos selos de segurança, tenham entregue à sociedade «ZZ» o certificado de verificação/ verificação periódica bienal com o n.º …, respeitante ao tacógrafo existente no veículo pesado de matrícula….

b) Que os tacógrafos alegadamente aferidos e verificados pelos arguidos não ficassem a funcionar corretamente após a sua intervenção.

c) Que montantes despendeu a BB com a deslocação do veículo …, de matrícula …, para o local onde procedeu a nova aferição do tacógrafo porque a efetuada pelos arguidos não era válida.

d) Que os objetos em ouro apreendidos ao arguido AA, descritos e fotografados a fls. 17 verso do Apenso A Volume I (A2) tenham sido adquiridos com o produto das aferições e certificações de tacógrafos efetuadas após 27 de julho de 2018.

e) Que o dinheiro apreendido no quarto da sogra do arguido AA, no montante de 13.730,00€ descrito e fotografado a fl. 20 do Apenso A Volume I (A23 e A24) pertençam ao arguido AA e reflitam pagamentos de clientes por aferições e certificações de tacógrafos após 27 de julho de 2018.

C) Convicção do Tribunal

(…)

3.1. Validade do acórdão

As nulidades da sentença (no caso, do acórdão) encontram-se previstas no artigo 379º nº 1 do CPP. Sendo de conhecimento oficioso (nº 2 do preceito), o tribunal de recurso não está limitado pela impugnação apresentada pelo recorrente.

Na contestação, o arguido, depois de pôr em causa a validade do procedimento administrativo que culminou na decisão de o desqualificar como entidade certificada, alegando a existência de vícios procedimentais (pontos 26 a 31), informou que intentou «no competente Tribunal Administrativo ação de impugnação de ato administrativo, alegando a nulidade do ato, por vicio de usurpação de poder e a sua anulabilidade por preterição de formalidades previstas na lei» (ponto 33) e juntou o respectivo documento comprovativo.

A questão ali suscitada é determinante para a decisão do processo-crime. Na eventualidade de vir a proceder a referida acção, onde o arguido pede, a título principal, a declaração de nulidade do acto administrativo que desqualificou o certificado de reconhecimento da sua qualificação de reparador e instalador de tacógrafos, tal acto será tido como ineficaz e insusceptível de produzir quaisquer efeitos ab initio, independentemente da declaração de nulidade (artigo 162º nº 1 do Código de Procedimento Administrativo). Mesmo no caso de uma eventual decisão de anulação do acto administrativo, que o arguido naquela acção pede a título subsidiário, os seus efeitos jurídicos podem ser destruídos com eficácia retroactiva (artigo 163º nº 2 do Código de Procedimento Administrativo). Portanto, em suma, a decisão que vedou ao arguido de exercer a actividade de aferição, verificação, reparação e instalação de aparelhos tacógrafos pode vir a ser considerada como não tendo produzido quaisquer efeitos jurídicos.

É evidente a importância de uma tal decisão na definição da responsabilidade penal que se discute neste processo. O crime em questão, nos elementos objectivos do tipo que agora importam, consiste na acção de fazer constar falsamente de um documento um facto juridicamente relevante. No caso, o facto juridicamente relevante, alegadamente falso, é a aposição da entidade como empresa qualificada pelo IPQ e dos respectivos selos e número de certificado de qualificação, por tal qualificação se encontrar revogada por acto administrativo. Ora, se vier a decidir-se que esse acto nunca produziu efeitos, importará verificar o impacto que isso possa ter no preenchimento dos elementos típicos dos crimes imputados aos arguidos.

Na hipótese de já existir uma decisão condenatória transitada em julgado, a eventual decisão dos tribunais administrativos de declaração de nulidade ou anulação do acto administrativo em causa poderá mesmo abrir uma discussão sobre a possibilidade de revisão extraordinária, com fundamento no disposto no artigo 449º nº 1 als. c) ou d) do CPP. Simplesmente, a possibilidade de revisão extraordinária da decisão condenatória não deve ser usada como argumento para afastar a resolução da relação de prejudicialidade que é já certo existir. No plano da justiça material, não é defensável permitir que prossiga um processo penal até se obter uma condenação potencialmente injusta e de revisão incerta, pois isso violaria de forma grave o princípio do processo equitativo, consagrado nos artigos 32º nºs 1 e 5 e 20º nº 4 da CRP, no artigo 6º nº 3 da CEDH e nos artigos 47º e 48º nº 2 da CDFUE.

Afigura-se claro que não se pode conhecer a existência dos crimes imputados aos arguidos sem que se decida primeiro a questão da eventual invalidade do acto administrativo que retirou a qualificação cuja invocação é imputada como falsa na pronúncia. Existe, portanto, uma questão prejudicial, cuja resolução se encontra regulada no artigo 7º do CPP.

De harmonia com as disposições do referido artigo 7º, a regra é que no processo penal se resolvem todas as questões que interessam à decisão da causa. Tal regra cede apenas nas situações em que, para se conhecer da existência de um crime, for necessário julgar qualquer questão não penal que não possa ser convenientemente resolvida no processo penal. Nesse caso, pode haver lugar à suspensão do processo penal, durante um prazo que a lei fixa, findo o qual, se o tribunal não penal não decidir em tempo, competirá ao juiz do processo penal a sua resolução. Há, pois, uma ponderação a fazer, que é a de saber se a validade do acto administrativo que retirou a qualificação ao arguido ora recorrente para exercer a actividade a que se vinha dedicando pode ou não ser convenientemente resolvida neste processo ou se é necessário suspendê-lo e aguardar a decisão dos tribunais administrativos na acção já pendente.

Os factos alegados na contestação do arguido ora recorrente eram suficientes para o tribunal se ter apercebido da existência de uma questão prejudicial. É certo que ninguém requereu a suspensão do processo, mas também é certo que o tribunal tinha o poder-dever de verificar isso oficiosamente e de retirar daí as consequências previstas no artigo 7º do CPP. Ou considerava que era de suspender o processo ou decidia a questão prejudicial no acórdão.

O certo é que, de uma maneira ou de outra, o caso em apreço não pode decidir-se sem essa questão estar resolvida. Não se pode condenar os arguidos com base no facto provado de terem conhecimento da revogação de uma qualificação que falsamente continuaram a usar, sem verificar primeiro se essa revogação foi válida e produziu quaisquer efeitos.

E assim chegamos ao problema da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia.

A decisão condenatória em processo penal tem de conter os motivos de facto e de direito em que se fundamenta e tem de se pronunciar sobre todas as questões que devesse resolver, sob pena de nulidade (artigos 374º nº 2 e 379º nº 1 al. c) do CPP.

As questões sobre as quais o tribunal está obrigado a pronunciar-se são aquelas que tiverem relevância para a decisão das diversas questões em que se desdobra a análise da culpabilidade e da determinação da espécie e da medida da pena, nomeadamente os factos que integram o tipo de crime imputados na pronúncia (339º nº 4, 368º nº 2 e 369º nº 2 do CPP).

No caso em apreço, o tribunal deu como provado que «Devido a irregularidades ou incumprimentos no desempenho da atividade de aferição, verificação, reparação e instalação de aparelhos tacógrafos, o arguido AA foi inibido de exercer tal atividade e impedido de utilizar a designação de entidade qualificada, bem como de proceder a ações publicitárias ou emitir qualquer documento com referência à antedita qualificação, por despacho do Instituto Português da Qualidade, I. P., (IPQ) com o n.º …, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º …, de … de julho», sem analisar previamente a questão que tinha sido invocada na contestação, de esse despacho ser inválido e insusceptível de produzir efeitos.

É, pois, de concluir que neste segmento o acórdão é nulo por omissão de pronúncia, de acordo com o disposto no artigo 379º nº 1 al. c) do CPP.

3.2. Conclusão:

A nulidade da sentença prejudica o conhecimento do recurso e implica o seu suprimento pelo tribunal que a proferiu.

No caso, tal suprimento impõe que o tribunal assegure uma decisão sobre a identificada questão prejudicial, nos termos em que o artigo 7º do CPP a prevê.

4. Decisão

Pelo exposto, acordamos em julgar o recurso procedente e em declarar a nulidade do acórdão para suprimento nos termos referidos.

Não há lugar ao pagamento de custas.

Évora, 22 de Outubro de 2024

Manuel Soares

Carla Oliveira

Carla Francisco