I. No recurso da sentença que confirma decisão administrativa em matéria contraordenacional podem invocar-se vícios da sentença recorrida (artigo 410.º, § 2.º CPP), não os da decisão administrativa.
II. Tais vícios só ocorrem quando forem evidentes e passíveis de deteção através do mero exame do texto da decisão recorrida (sem possibilidade de recurso a outros elementos constantes do processo, designadamente a ponderação sobre as provas concretas documentadas nos autos), por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
III. Pese embora o direito penal (e, logo, a parte geral do Código Penal) constitua direito subsidiário do direito contraordenacional, tal subsidiariedade ocorrerá apenas no que não for contrário à lei reguladora dos ilícitos contraordenacionais em referência.
IV. Estabelecendo as leis mobilizadas - específicas das contraordenações ambientais -, critério distinto (próprio) para a suscetibilidade de suspensão da execução da coima, não se pode mobilizar a norma da suspensão da execução da pena, prevista no Código Penal.
- uma contraordenação ambiental muito grave, prevista no artigo 81.º, § 3.º, al. a) do DL n.º 226-A/2007, de 31 de maio, sancionável nos termos previstos no artigo 22.º, § 4.º, al. a) da Lei n.º 50/2006, de 29 e agosto (na sua redação atualizada); e
- uma contraordenação ambiental muito grave, prevista no artigo 81.º, § 3.º, al. u) do DL n.º 226-A/2007, de 31 de maio, sancionável nos termos previstos no artigo 22.º, § 4.º, al. a) da Lei n.º 50/2006, de 29 e agosto (na sua redação atualizada).
A coima única especialmente atenuada foi fixada em 8 000€
b. A arguida impugnou judicialmente essa decisão administrativa, invocando desconhecer quem e em que data colocou as manilhas para efeitos de passagem, as quais ali estão presentes há mais de 50 anos e que ao longo da existência da exploração pecuária, anteriormente detida pelo pai da arguida e depois por si e pelo seu marido, foram realizadas inúmeras visitas pelas entidades licenciadoras, sem que nunca antes se tivessem colocado esta questão, não obstante ter diligenciado pela regularização da situação; e no concernente à rejeição de águas degradadas no solo e para a água, sustentando não ter sido notificada da realização da vistoria anteriormente, motivo pelo qual não se encontrava presente na exploração na data dos factos em apreço, negando que a caixa que consta das fotografias do processo tivesse como objetivo a rejeição de águas no solo através de mangueiras. Mais afirmando que decorriam obras no local, com a deslocação de máquinas e consequente aparecimento de lama quando chovia. E que as águas são encaminhadas para as lagoas juntamente com os efluentes, as quais se encontravam longe da sua quota máxima. Negando que as águas degradadas a jusante da linha de água tenham proveniência da sua exploração, afirmando existirem outros agentes económicos nas imediações, nomeadamente lagares de azeite. E desconhecer se foi sido realizada qualquer operação para verificar a sua proveniência. A mais disso não foram recolhidas amostras das referidas águas para demonstrar que provinham da sua exploração, não podendo imputar-se-lhe a prática da contraordenação respetiva. E acrescentando, subsidiariamente, que a coima aplicada deveria ser substituída por admoestação.
Remetidos os autos ao Ministério Público pela autoridade administrativa, aquele fê-los presentes a Juízo, indicando prova para ser apreciada e valorada.
Veio a decorrer a audiência de discussão e julgamento, proferindo o tribunal a sentença no dia 16 de maio de 2024, pela qual, na parcial procedência do recurso decidiu manter integralmente a condenação aplicada pela entidade administrativa, mas reduzindo a coima única para 7 000€.
c. Inconformada com essa decisão a arguida interpôs o presente recurso, pretendendo seja a mesma revogada, com a consequente absolvição da recorrente; ou a coima suspensa na sua execução, rematando a respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
«(…)
2. Relativamente à questão das manilhas, o tribunal reconhece que todas as testemunhas foram unânimes em afirmar que as mesmas “... aparentarem estrem no local há já alguns anos, face às características do solo e vegetação que as cobriam...”
3. Nem o depoimento de alguém que acompanha a exploração há pelo menos 24 anos, BB, que afirmou deslocar-se com frequência à mesma e que as manilhas já existiriam desde o tempo do pai da arguida”.
4. A decisão nem tão pouco reflete tais afirmações, essenciais para imputar à arguida ou não a prática da contraordenação de que vem acusada.
5. O tribunal recorrido conclui que, relativamente à constatação da instalação das manilhas no local há vários anos “circunstância que, de resto, nenhuma consequência detém para efeitos de exclusão da responsabilidade contraordenacional da arguida..”
7. O Tribunal em momento algum da decisão imputa à arguida a instalação das manilhas na linha de água.
8. Uma coisa é o tribunal concluir que as manilhas existem na exploração e que aí não se poderiam encontrar sem licenciamento, outra coisa é imputar à arguida tal responsabilidade.
9. A responsabilização da arguida tem de ser objetiva. Foi ela quem instalou ou mandou instalar as manilhas?
10. O Tribunal não sabe, e não curou por apurar.
11. Por outras palavras, também por aí a imputação subjectiva da infracção à recorrente fica na sentença destituída de suporte fáctico,o que não pode deixar de dar corpo ao arguido vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP).
12. Impõe-se que, à luz do art. 7.º, n.º 2, do RGCO, sustentá-lo, na factualidade provada, com factos de referência – a decisão e atuação de alguém que em concreto (e como) tivesse agido ilicitamente ou omitido a ação devida.
13. Só assim se perfectibiliza o tipo e em termos de por ele fazer responder a arguida – e sem isso e além de não poder sequer imputar-se o facto à própria, muito menos poderia afirmar-se na comissão dele o dolo ou a negligência que são condições alternativamente indispensáveis da punição (art. 9.º, n.º 1 e 2, da LQCA, e 8.º, n.º 1 e 3, do RCO).
14. Neste sentido, e faltando provas suscetíveis de imputar à arguida, a prática da contraordenação, deverá a mesma ser absolvida.
15. No que concerne ao Processo n.º …, respeitante à existência de mangueiras colocadas numa caixa aberta pertencente ao sistema de tratamento de águas da exploração pecuária e que se destinariam a permitir...”o encaminhamento do efluente pecuário, de aspecto leitoso e pastoso, com uma tonalidade esbranquiçada, como resulta dos factos provados (ponto 6.).
16. O tribunal sustenta a sua decisão no depoimento de duas testemunhas de acusação, os agentes da GNR, entendeu não dar relevância à divergência das testemunhas da acusação relativamente à entrada na exploração pecuária.
17. Ao contrário do aventado na decisão, a testemunha CC e a testemunha DD afirmaram ter entrado na exploração e a testemunha EE afirmou não terem entrado.
19. Esta última referiu-se a todos e a decisão vem redigida por forma a parecer que apenas o depoente não entrou.
20. Na impugnação da recorrente é feita referência ao facto de não terem sido realizadas análises às águas assinaladas como contendo efluente pecuário.
21. Na decisão não é referida tal circunstância, nem dada relevância a tal.
22. Os agentes não vislumbraram nenhuma descarga de efluentes, como resultou do depoimento dos mesmos, mas ainda assim o tribunal a quo entende que ”... o encaminhamento do efluente pecuário, de aspecto leitoso e pastoso, com uma tonalidade esbranquiçada e por vezes escura e odor característico, pelo solo do terreno pertencente à exploração e pela linha de água que a atravessa”.
23. O efluente pecuário por vezes tem uma cor escura? Ou tem sempre? E odor caracteristico?
24. Na motivação da matéria provada, o tribunal a quo afirma “... não tiveram dúvidas em afirmar, de forma perentória, que o efluente espalhado pelo solo e as águas provinham da pecuária, negando frontalmente que pudessem advir do lagar de azeite existente a montante da exploração pecuária, em face das características distintas que identificaram (mais esbranquiçado e gorduroso).”
25. É o tribunal que considera que o efluente do lagar de azeite teria um aspecto esbranquiçado e gorduroso e são estas as características atribuídas ao efluente que vislumbraram na exploração.
26. As características do efluente pecuário não serão de todo um aspecto esbranquiçado e leitoso. Isso é do conhecimento comum, mesmo de quem não se relacione com frequência de matéria relacionada.
27. Não sendo sindicável em sede de recurso a matéria de facto referente à audição das testemunhas, não podemos deixar de manifestar a nossa discordância como facto de se concluir que estamos perante evidências, que não foram mexidas, analisadas ou testadas, como se tal não fosse necessário para uma condenação.
28. Para isso servem as análises, as provas e contraprovas.
29. Verifica-se na douta sentença, um esforço no sentido de desvalorizar a prova apresentada pela arguida, pois, a título de exemplo e no que se refere ao depoimento do médico veterinário assistente da exploração, FF, e não obstante este ter afirmado ter estado no local no dia seguinte ao da inspeção, nada é referido, assim como o facto de não ter verificado a existência de qualquer escorrência, o que seria verificável no dia seguinte, até porque, segundo as testemunhas da acusação, também as mesmas não ocorreram no momento em que aí estavam.
30. Quis o tribunal a quo dar relevância à existência de uns tubos nas imediações da caixa do sistema de tratamento, como se não pudessem aí existir ou em qualquer outro local da exploração.
31. Os referidos tubos não estariam ligados a nada, até porque disso resulta o testemunho dos agentes fiscalizadores, se a outros não quisermos dar importância e um tubo não tem aptidão para encaminhar efluente de uma caixa de “visita” para lado algum, a não ser que existisse uma bomba a puxar o efluente, questão também abordada e refutada pelos agentes da GNR.
32. De que forma o mencionado tubo encaminharia o efluente? Não sabemos. Não sabe o tribunal. Mas condena a arguida.
33. Também no que se refere à concretização desta contraordenação importa referir que o tribunal não logrou imputar de forma objetiva à arguida a prática da contraordenação. Nem tão pouco de forma subjectiva.
34. Foi a arguida que praticou os factos? Foi a arguida que mandou praticar? Quem trabalha na exploração?
35. De que forma foi a arguida negligente? Não cuidou por impedir que alguém praticasse a contraordenação? Não vigiou?
36. Reitera-se que a imputação subjectiva da infracção à recorrente fica na sentença destituída de suporte fáctico, o que não pode deixar de dar corpo ao arguido vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410.º, n.º 2, al. a), do CPP).
37. Sem isso e além de não poder sequer imputar-se o facto à própria, muito menos poderia afirmar-se na comissão dele o dolo ou a negligência que são condições alternativamente indispensáveis da punição (art. 9.º, n.º 1 e 2, da LQCA, e 8.º, n.º 1 e 3, do RCO).
38. Na falta de provas susceptíveis de imputar à arguida com base cientifica necessária, a prática da contraordenação, nem a necessária imputação objetiva e subjetiva, deverá a mesma ser absolvida.
Sem prescindir,
39. Atento todo o circunstancialismo descrito, incluindo o facto de se tratar de uma arguida que nunca sofreu qualquer sanção pela prática de contraordenações ambientais, regularizou o que lhe foi solicitado, será de todo em todo razoável que o Tribunal, usando dos poderes que lhe são conferidos, ordene a suspensão da sanção em causa.
40. No Código Penal, a execução da pena está consagrada no artigo 50.º, no qual se estabelece que o tribunal suspende a pena se ”atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”
41. Determinados os requisitos em que deve assentar a decisão de suspensão da execução da sanção aplicada, importa agora demonstrar que no caso sub judice estão preenchidos tais requisitos, para se concluir a final, como se verá, pela suspensão da execução da sanção, in casu, a suspensão da aplicação da coima em que foi condenada.»
d. Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, pugnando pela sua improcedência, aduzindo, em síntese que:
- a recorrente procura indevidamente atacar o modo de aquisição e valoração da prova, mas o recurso para o Tribunal da Relação não abrange a questão de facto;
- a sentença recorrida não padece de nenhum vício, sendo que estes têm de resultar da própria decisão (artigo 410.º CPP);
- o artigo 50.º do Código Penal é inaplicável ao caso, por razão de haver norma especial (artigo 20.º-A da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto);
- não pode a coima ser suspensa por falta dos requisitos legais.
e. Subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ministério Público junto desta instância referiu, no essencial, ao que já alegara junto do Tribunal de 1.ª instância.
f. Assegurado o contraditório, não houve resposta.
g. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.
2. Conhecendo dos fundamentos do recurso
O regime dos recursos de decisões proferidas em 1.ª instância relativas a processos de contraordenação, consta dos artigos 73.º a 75.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro – Regime Geral das Contraordenações (RGC). Daí decorre que nos processos de contraordenação o Tribunal da Relação funciona como tribunal de revista ampliada, sem prejuízo do conhecimento oficioso de qualquer dos vícios referidos no artigo 410.º CPP, por força do disposto nos artigos 41.º, § 1.º e 74.º, § 4.º do RGC, e como última instância, conhecendo apenas da matéria de direito, podendo alterar a decisão do tribunal recorrido sem qualquer vinculação aos termos e ao sentido em que foi proferida, ou anulá-la e devolver o processo ao mesmo tribunal.
Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, que delimitam o seu âmbito, verifica-se terem sido trazidas as seguintes questões, de que importa conhecer: i. vício da insuficiência para a matéria de facto; ii. verificação dos ilícitos; iii. suspensão da coima única.
2.1 Factos provados (da sentença recorrida)
«Com relevância para a boa decisão da causa, provaram-se os seguintes factos:
Processo n.º…
1. Em 2019/10/24, a arguida possuía uma exploração suinícola sita na Rua …, em …, concelho de ….
2. Na data em apreço, pelas 11h30m, na exploração pecuária referida no ponto anterior, a arguida tinha manilhas no leito da linha de água que atravessa a propriedade.
3. A exploração da arguida não detinha título de utilização dos recursos hídricos que a habilitasse a atuar da forma descrita no ponto anterior.
4. Ao atuar da forma descrita supra, a arguida agiu de forma descuidada, sem a prudência e diligência a que estava obrigada e de que era capaz, mormente de conhecimento e cumprimento do dever que sobre si impendia de se abster de utilizar os recursos hídricos, por não ser detentora do respetivo título.
5. A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente.
Processo n.º …
6. Nas circunstâncias referidas nos pontos 1. e 2. supra, a arguida tinha mangueiras colocadas numa caixa aberta pertencente ao sistema de tratamento de águas da exploração pecuária (que antecede as lagoas de retenção) e tubos no solo junto à referida caixa.
7. (…) permitindo o encaminhamento do efluente pecuário, de aspeto leitoso e pastoso, com uma tonalidade esbranquiçada e por vezes escura e odor característico, pelo solo do terreno pertencente à exploração e pela linha de água que o atravessa.
8. Nas circunstâncias referidas nos pontos 1. e 2. supra, as lagoas de retenção que se situavam algumas dezenas de metros mais abaixo das escorrências referidas no ponto anterior não se encontravam no ponto máximo da sua capacidade.
9. Ao atuar da forma descrita supra, a arguida agiu de forma descuidada, sem a prudência e diligência a que estava obrigada e de que era capaz, mormente de conhecimento e cumprimento do dever que sobre si pendia de não descarregar efluentes provenientes do seu sistema de retenção e tratamento de efluentes, sem qualquer tipo de depuração prévia do mesmo e que poderia afetar o solo e a linha de água, introduzindo-se nos mesmos, mas, ainda assim, não se absteve de agir daquele modo, o que quis e fez, de modo livre, voluntário e consciente da censurabilidade e punibilidade contraordenacional da sua conduta.
Da audiência de julgamento:
10. No ano fiscal de 2022, a arguida obteve rendimentos do trabalho dependente e/ou pensões no valor de € 14.958,23.
11. A arguida foi notificada, por ofício da Agência Portuguesa do Ambiente, datado de 2019/11/07, para, no prazo de 30 dias, proceder à remoção das manilhas existentes no leito da linha de água e do tubo de polietileno que se encontrava enterrado até à saída na linha de água, cessar as descargas de águas residuais no solo e na água e proceder à remoção do tubo de polietileno que drena para a linha de água.
12. Em data não concretamente apurada, mas posterior a 2019/11/07, a arguida retirou as manilhas do leito da linha de água, o tubo de polietileno que se encontrava enterrado até à saída na linha de água, cessou as descargas de águas residuais no solo e na água e removeu o tubo de polietileno que drenava para a linha de água.
2.2 Dos fundamentos do recurso
2.2.1 Do vício da insuficiência para a matéria de facto
Comecemos por sublinhar o que foi referido pelo Ministério Público na resposta ao recurso, a propósito do que preceitua e de como se deve interpretar o artigo 75.º, § 2, al. a) do RGC, deste decorrendo que o Tribunal de recurso apenas pode sindicar a matéria de facto através do conhecimento dos vícios da sentença - mesmo oficiosamente, conforme resulta do artigo 410.º, § 1.º e 2.º CPP.
Mas só dos vícios da sentença (não já dos da decisão administrativa) previstos no artigo 410.º, § 2.º CPP, os quais só ocorrem quando forem evidentes e passíveis de deteção através do mero exame do texto da decisão recorrida (sem possibilidade de recurso a outros elementos constantes do processo, designadamente a ponderação sobre as provas concretas documentadas nos autos), por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.
A recorrente tece indevidamente considerações sobre o modo como as provas produzidas foram valoradas. Debalde o faz! Mas suscita também – como se fora espécie do mesmo género (e não é) – a
existência do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto (fá-lo na motivação 17.º e 46 e nas conclusões 11.ª e 36.º), relacionando-o com a falta de suporte fáctico para a imputação subjetiva dos factos ilícitos.
Mas não tem razão, desde logo porque a questão da imputação subjetiva consta com clareza nos pontos 1., 4., 5. e 11. da matéria de facto julgada provada no respeitante às manilhas; e nos pontos 6., 9. e 11. relativamente às mangueiras colocadas numa caixa aberta pertencente ao sistema de tratamento de águas da exploração pecuária.
Ora, como decorre da lei e da exegese que os Tribunais vêm dela fazendo, a insuficiência para a decisão da matéria de facto, enquanto vício desta, não corresponde nem com a eventual insuficiência da prova produzida para se poder ter por assente a factualidade apurada pelo tribunal recorrido. Antes concerne à impossibilidade de permitir uma qualquer decisão segundo as várias soluções plausíveis para a questão. Daí que se os factos provados permitirem uma decisão, ainda que com orientação diferente da prosseguida, já não estamos perante a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, mas, eventualmente, face a erro de julgamento e de subsunção dos factos provados ao direito. É precisamente neste linha que se vem pronunciando o Supremo Tribunal de Justiça nesta matéria, entendendo que o conceito de insuficiência da matéria de facto provada significa que os factos apurados e constantes da decisão recorrida são insuficientes para a decisão de direito, do ponto de vista das várias soluções que se perfilem - absolvição, condenação, existência de causa de exclusão da ilicitude, da culpa ou da pena, circunstâncias relevantes para a determinação desta última, etc.( 1) Ora isso, claramente, não sucede. Sem prejuízo de se reconhecer que a descrição do local, das manilhas, mangueiras e seu contexto poderiam e deveriam ser mais e melhor descritas e explicadas. Não se verifica, portanto, o apontado vício à sentença recorrida, na medida em que a matéria de facto fixada na sentença é suficiente para suportar a decisão tomada.
2.2.2 Da comissão dos ilícitos
Comecemos por afirmar que a punição de condutas lesivas do ambiente encontra escora constitucional no direito fundamental a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado, previsto no artigo 66.º, § 1.º da Constituição da República, bem assim, nas als. d) e e) do artigo 9.º, onde se enumeram as tarefas fundamentais do Estado, entre as quais está justamente a promoção do bem-estar e da qualidade de vida do povo e a defesa da natureza e do ambiente.
A tutela dos bens jurídicos conexos com o ambiente é feita pelo Direito Penal, pelo Direito Contraordenacional (direito penal administrativo), pelo Direito Administrativo e ainda por outros ramos do direito.
No concernente ao direito contraordenacional, justamente por se constituir como um dos meios de tutela desses bens jurídicos, importa referir que este (novo) ramo do direito surge com o advento e desenvolvimento do Estado Social, que passa pela assunção pelo
Estado que as infrações no âmbito das novas áreas da intervenção pública deveriam ser resolvidas no âmbito da própria administração, pelo menos numa primeira linha, deixando-se aos tribunais o foco da criminalidade mais relevante, sem prejuízo da garantia de recurso para estes das decisões daquela nas referidas matérias.
Criou-se assim não apenas uma nova categoria de ilícitos, que a lei (o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro) crismou de «ilícito de mera ordenação social» (IMOS), constituindo as contraordenações, em conformidade com o que dispõe o seu artigo 1.º: os factos ilícitos e censuráveis que preencham um tipo legal no qual se comine uma coima. O regime jurídico do IMOS é cerzido pelas garantias do Estado de Direito, sobretudo através das regras e garantias procedimentais (a competência para a instrução e decisão dos ilícitos está deferida às autoridades administrativas, mediante um procedimento com estrutura inquisitória e célere) e recurso para um tribunal, em conformidade com o que dispõem os artigos 33.º e 59.º RGC, 2.º, 20.º, § 1.º e 32.º, § 10.º da Constituição (e 6.º da CEDH (2) justamente por razão da garantia do recurso judicial) (3), surgindo o direito e processo penais comos seus referenciais subsidiários (artigos 32.º e 41.º RGC). Não sendo o direito contraordenacional processo penal em sentido estrito – isto é, direito constitucional aplicado -, nem por isso prescinde de certas garantias fundamentais (artigo 32.º, § 10.º da Constituição). Sendo essa a «pedra de toque» que permite aferir, em cada caso, se a realização do ato processual de uma dada maneira (por uma dada «forma») vulnera (ou não) o(s) valor(es) que ela própria tem por função acautelar. Volvendo ao caso concreto. Os ilícitos imputados à arguida e que a sentença recorrida confirmou, mostram-se previstos na lei, nos artigos 81.º, § 3.º, al. a) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, em conjugação com o previsto no artigo 22.º, § 4.º, al. a), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (ilícito a que respeita o proc. …); e nos artigos 81.º, § 3.º, al. u) do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio, conjugado com o disposto no artigo 22.º, § 4.º, al. a), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (ilícito a que respeita o proc. …).
Na data da realização da inspeção às instalações da arguida, dispunha o artigo 81.º, § 3.º do Decreto-Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio (Regime Jurídico da Utilização dos Recursos Hídricos), sob a epígrafe «contraordenações», que:
«3 – Constitui contraordenação ambiental muito grave:
a) a utilização dos recursos hídricos sem o respetivo título:
(…)
u) Rejeição de águas degradadas diretamente para o sistema de disposição de águas residuais, para a água ou para o solo, sem qualquer tipo de mecanismos que assegurem a depuração destas.
4. A tentativa e a negligência são puníveis.
(…)»
Preceituando o artigo 22.º, § 4.º, al. a), da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto (Lei Quadro das Contraordenações Ambientais), sob a epígrafe «montantes das coimas», que:
«(…)
4 - Às contraordenações muito graves correspondem as seguintes coimas:
a) Se praticadas por pessoas singulares, de (euro) 10 000 a (euro) 100 000 em caso de negligência e de (euro) 20 000 a (euro) 200 000 em caso de dolo;
b) Se praticadas por pessoas coletivas, de (euro) 24 000 a (euro) 144 000 em caso de negligência e de(euro) 240 000 a (euro) 5 000 000 em caso de dolo.»
A sentença recorrida efetuou a subsunção jurídica, de modo aliás proficientemente, nos termos seguintes:
«a arguida, ao atuar da forma descrita supra, agiu de forma descuidada, sem a prudência e diligência a que estava obrigada e de que era capaz, mormente de conhecimento e cumprimento do dever que sobre si impendia de se abster de utilizar os recursos hídricos, por não ser detentora do respetivo título, deste modo, agindo com negligência.
Note-se que, perante a infração aqui em causa, é irrelevante apurar em que data foram colocadas as manilhas no leito da linha de água, porquanto não foi imputada a infração prevista no artigo 81.º, n.º 2, alínea e), do Decreto-Lei 226-A/2007, de 31 de maio, de “ [e]xecução de obras, infra-estruturas, plantações ou trabalhos de natureza diversa, com prejuízo da conservação, equilíbrio das praias, regularização e regime de rios, lagos, lagoas, pântanos e mais correntes de água” (4), relevando tão-somente que estas estavam colocadas na linha de água no momento da fiscalização, sem que a arguida fosse detentora de título que a habilite a utilizar os recursos hídricos.
Mais se provou que, nas referidas circunstâncias de tempo e lugar, a arguida tinha mangueiras colocadas numa caixa aberta pertencente ao sistema de tratamento de águas da exploração pecuária (que antecede as lagoas de retenção) e tubos no solo junto à referida caixa, permitindo o encaminhamento do efluente pecuário, de aspeto leitoso e pastoso, com uma tonalidade esbranquiçada e por vezes escura e odor característico, pelo solo do terreno pertencente à exploração e pela linha de água que o atravessa, sem que as lagoas de retenção que se situavam algumas dezenas de metros mais abaixo das referidas escorrências se encontrassem no ponto máximo da sua capacidade.
Atuando de forma livre, voluntária e consciente, a arguida agiu de forma descuidada, sem a prudência e diligência a que estava obrigada e de que era capaz, mormente de conhecimento e cumprimento do dever que sobre si pendia de não descarregar efluentes provenientes do seu sistema de retenção e tratamento de efluentes, sem qualquer tipo de depuração prévia do mesmo e que poderia afetar o solo e a linha de água, introduzindo-se nos mesmos, mas, ainda assim, não se absteve de agir daquele modo, o que quis e fez. Da globalidade dos factos provados e atendendo a que não se verificam quaisquer causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, dúvidas não poderão subsistir de que se encontram preenchidos os elementos objetivo e subjetivo dos tipos contraordenacionais imputados à arguida/recorrente, pelo que se impõe a condenação pela sua prática, a título negligente.
O acervo dos factos provados demostra, efetivamente, o preenchimento dos elementos constitutivos dos ilícitos assinalados, os quais eram patentes na área da exploração da arguida, sendo-lhe nessa medida os mesmos imputáveis, ainda que de forma negligente, como bem considerou a sentença recorrida (na esteira do que já havia entendido a autoridade administrativa autuante).
Improcedendo também este fundamento do recurso.
2.2.3 Da suspensão da coima única
A determinação da medida das coimas parcelares e a fixação da coima única não mereceram impugnação, decerto em razão de a recorrente as ter considerado ajustadas aos critérios normativos concernentes.
Tendo ensaiado a substituição da coima por admoestação, que lhe foi indeferida pelo Juízo de 1.ª instância, a recorrente procura agora sustentar em recurso a substituição da coima única por suspensão da sua execução, para tanto lançando mão do artigo 50.º do Código Penal!
Também esta pretensão está votada ao insucesso, porquanto, como bem assinala o Ministério Público, aquele normativo do Código Penal não é aqui aplicável.
Efetivamente, pese embora o direito penal (e, logo, a parte geral do Código Penal) constitua direito subsidiário do direito contraordenacional (artigo 32.º do Regime Geral das Contraordenações – Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro), ali logo se preceitua que assim será se não houver previsão normativa específica no direito contraordenacional, id est: «em tudo o que não for contrário à presente lei aplicar-se-ão subsidiariamente, no que respeita à fixação do regime substantivo das contraordenações, as normas do Código Penal». Com efeito, «o direito subsidiário tem a ver com a determinação do elenco das fontes de direito mobilizáveis como critérios para a sua realização, diferentemente, no problema das lacunas vai ínsita a ausência de fonte ou critério positivo para essa mesma objetivação» - conforme assinala o Supremo Tribunal de Justiça( 5), citando Castanheira Neves. (6) Pois bem. A lei contraordenacional aplicável possui critério distinto (próprio) para a suscetibilidade de suspensão da execução da coima, estabelecendo justamente o artigo 20.º-A, § 1.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, que:
«Na decisão do processo de contraordenação, a autoridade administrativa pode suspender, total ou parcialmente, a aplicação da coima, quando se verifiquem as seguintes condições cumulativas:
a) Seja aplicada uma sanção acessória que imponha medidas adequadas à prevenção de danos ambientais, à reposição da situação anterior à infração e à minimização dos efeitos decorrentes da mesma;
b) O cumprimento da sanção acessória seja indispensável à eliminação de riscos para a saúde, segurança das pessoas e bens ou ambiente.»
Não tendo sido aplicada à recorrente qualquer sanção acessória, designadamente nenhuma das previstas no artigo 30.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, não é legalmente possível a suspensão da coima, carecendo por isso de fundamento legal também este segmento do recurso.
Com o que concluímos não ser o recurso merecedor de provimento.
5. Dispositivo
Destarte e por todo o exposto, acordam, em conferência, os Juízes que constituem a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em:
a) confirmar a decisão recorrida, por esta se mostrar irrepreensivelmente bem fundada na lei e no direito.
b) A taxa de justiça a suportar pela recorrente é fixada em 3 UCs. (artigo 93.º, § 3.º RGC).
Évora, 22 de outubro de 2024
J. F. Moreira das Neves (relator)
Edgar Valente
Laura Goulart Maurício
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1 Cf. Cf. acórdão STJ, de 3jul2002, proc. 1748/02-5.ª, citado no CPP, Notas e Comentários, Vinício A. P. Ribeiro, 3.ª ed., 2020, Quid Juris, p. 979.
2 O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) tem vindo a confirmar a aplicação do artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, respeitante ao processo justo e equitativo, em processos contraordenacionais (Cf. Acórdão do TEDH de 27set2011, (Menarini Diagnóstics S.R.L. c. Itália, queixa 43509/08).
3 Sobre a natureza do regime das contraordenações e da sua estrutura procedimental cf. Nuno Brandão, Crimes e Contraordenações: da cisão à convergência material, pp. 19 ss., Coimbra Editora, 2016.
4 Sobre a distinção duas das infrações, veja-se o Ac. TRC de 2011/11/30, Proc. n.º 266/10.8TBTCS.C1, disponível em www.dgsi.pt.
5 Acórdão de Fixação da Jurisprudência n.º 2/2014, de 6/3/2014, DR, I-A, de 4abr2014. 6 Castanheira Neves, Metodologia Jurídica, Problemas Fundamentais, 214, BFDUC, Studia Jurídica.