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VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
VITIMA
DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA
Sumário
I-Tendo em conta as finalidades da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro conclui-se, desde logo, que a produção antecipada de prova não tem tanto a ver com o perigo resultante da impossibilidade de produção na própria audiência de julgamento, mas antes com a proteção da própria vítima, assegurando a sua proteção célere e eficaz, por forma a minimizar a vitimização secundária, e assegurar-lhe a efetivação dos direitos garantidos por esta lei. II - De acordo com o disposto no citado artigo 33º lei 112/2009, de 16 de setembro, tal como resulta claro do seu número um, apenas está prevista a tomada de declarações das vítimas do crime de violência doméstica, ou seja, a quem foi atribuído o referido estatuto ao abrigo do artigo 14º, e não a todas as testemunhas do crime de violência doméstica, sendo que a lei não impõe ao juiz de instrução a obrigatoriedade de proceder à inquirição de uma vítima para memória futura, nem estabelece os critérios em que deve assentar essa decisão. III - Estando em causa duas testemunhas com 8 e 15 anos de idade, ou seja, crianças, importa ter em atenção as diretrizes que o Conselho da Europa adotou (adotadas pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa em 17 de novembro de 2010) sobre a justiça adaptada às crianças com o objetivo específico de garantir que a justiça é sempre adaptada às crianças, independentemente de quem sejam ou quais tenham sido os seus atos. Importa, também, ter em conta as Diretrizes das Nações Unidas sobre a Justiça em Processos que Envolvem Crianças Vítimas e Testemunhas de Crimes - Resolução nº 20/2005 – ECOSOC (Conselho Económico e Social das Nações Unidas).
Texto Integral
Em conferência, acordam os Juízes na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I – Relatório
Nos autos principais, em 4 de março do corrente ano de 2024, foi proferido despacho, incluído nos atos jurisdicionais a praticar na fase de inquérito, no qual foi indeferida a tomada de declarações para memória futura quanto às crianças AA, nascida em ........2015 e BB, nascida em ........2009.
Não se conformando com essa decisão, o MP recorreu para este Tribunal da Relação solicitando que o despacho recorrido seja revogado e substituído por outro que designe data para a tomada de declarações para memória finura às menores AA e BB.
Para o efeito, apresentou as seguintes Conclusões (transcrição):
A. No presente inquérito investigam-se factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea a), c), n.°2, alínea a), n°s 4 e 5 do Código Penal, praticado por CC na pessoa de DD, seu ex-marido com quem possui duas filhas em comum.
B. O Ministério Público, como titular da acção penal e a quem cabe a direcção do inquérito, efectuou a qualificação jurídica dos factos (crime de violência doméstica), como lhe compete por lei, e por razões de discricionariedade táctica na investigação, requereu ao Mmo. Juiz de Instrução, a tomada de declarações para memória futura das menores AA e BB nascidas, respectivamente, em ........2015 e ........2009, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 33.°, n.° 1 da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro.
C. Com efeito, tais diligências foram requeridas, visando evitar a revitimização das menores, que ocorreria necessariamente, caso as mesmas tivessem que prestar declarações perante várias entidades.
D. No que concerne à menor AA, considerou-se pertinente tomar-lhe declarações para memória futura porquanto, sendo a mesma filha da arguida e da vítima e, considerando a reiteração dos insultos que a arguida dirige a esta última, é de presumir que a menor terá presenciado, senão a todos, pelo menos a alguns dos episódios relatados pela vítima.
E. No que respeita à menor BB, requereu-se a sua tomada de declarações para memória futura considerando existir a certeza de que a mesma presenciou, pelo menos, o episódio que deu origem a estes autos, sendo pertinente apurar-se se presenciou algum ou alguns outros.
F. Sucede que, no dia 4 de Março de 2024 o Mm.° Juiz de Instrução Criminal proferiu despacho judicial em que indeferiu a tomada de declarações para memória futura às menores AA e BB fundamentando tal decisão na circunstância de os factos descritos nos autos não consubstanciarem, no seu entendimento, a prática do crime de violência doméstica p. e p. pelo disposto no artigo 152°, n.°1, alínea a), c), n.°2, alínea a), 4 e 5 do Código Penal e de as menores não serem consideradas testemunhas dos factos.
G. O Ministério Público, contudo, discorda de tal entendimento, porquanto, dos elementos constantes dos autos, no momento em que são requeridas as diligências que vieram a ser indeferidas, já haviam sido coligidos indícios da prática de um crime de violência doméstica.
H. Com efeito, não pode concluir-se que a agressão que motivou a instauração do presente procedimento criminal se trata de um acto isolado e desinserido do contexto de actuação que a arguida vem levando a cabo ao longo do tempo.
I. Com efeito, a circunstância de a arguida dirigir frequentemente expressões injuriosas à vítima, de o abordar de forma insultuosa sempre que o encontra na companhia de uma pessoa do sexo feminino e dc ameaçar que o mesmo não irá voltar a ver as filhas comuns, são condutas que têm subjacente a relação amorosa que mantiveram e a circunstância de a mesma não se conformar com o termo da mesma, estando o contexto em que as mesmas são praticadas intrinsecamente relacionado com a referida relação.
J. Assim, porque praticadas no referido enquadramento não podem as mesmas ser espartilhadas e analisadas de forma isolada.
K. Nesta medida, a agressão ocorrida no dia que deu origem aos presentes autos, não pode ser analisada como se de um acto isolado se tratasse, afirmando-se que a referida conduta configura apenas a prática de um crime de ofensa à integridade física p. e p. pelo disposto no artigo 143°, n.°1 do Código Penal.
L. Na verdade, a arguida, ao longo do tempo, tem vindo a praticar actos persecutórios, ameaçadores e injuriosas para com a vítima, comportamentos estes que têm que ser apreciados conjuntamente, considerando-se que a agressão em causa nos autos foi o culminar de uma sequência de condutas que, no seu todo, e considerando as circunstâncias que lhe servem de cenário, são susceptíveis de configurar a prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo disposto no artigo 152°, n.°1, alínea a), c), n.°2, alínea a), 4 e 5 do Código Penal,
M. Acresce que, sempre se dirá que, mesmo que o Mm.° JIC considerasse que, neste momento processual, os factos seriam insuficientes para permitir a referida qualificação jurídica, não poderia proceder ao indeferimento com base em tal argumento.
N. Com efeito, nos termos do disposto no artigo 263.° do Código de Processo Penal, a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, competindo, nesta fase, ao Juiz de Instrução, apenas a prática dos actos previstos no artigo 268.° do mesmo diploma legal e que ali se encontram delimitados, não podendo o Mm.° Juiz de Instrução Cirminal intrometer-se na autonomia legalmente atribuída ao Ministério Público, único titular do inquérito, fora das competências que a lei estabeleceu no mencionado artigo 268.°, não podendo, por ausência de previsão legal, o Juiz de Instrução Criminal imiscuir-se na qualificação jurídica definida pelo Ministério Público.
O. Assim sendo, em sede de inquérito cabe ao Ministério Público efectuar a qualificação jurídica dos factos, o que in casu, entendeu se tratar de um crime de violência doméstica (sem prejuízo, de ulterior apreciação, após a realização de todas as diligências probatórias, que se entenda por convenientes).
P. Perante este enquadramento, importa atentar que a Lei 112/2009, de 16 de Setembro, que estabelece o Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Protecção e Assistência das suas Vítimas, contém no seu artigo 33° norma específica para a prestação de declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica.
Q. Bem sabemos que, encontrando-se em investigação a prática de um crime de violência doméstica, a tomada de declarações para memória futura não é obrigatória.
R. Esse critério resultará de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida, senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo, e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça.
S. No caso dos autos, as testemunhas são ambas menores, resultando objetivamente desta factualidade a sua especial vulnerabilidade e importando acautelar a genuinidade do depoimento em tempo útil e, bem assim, a repetição da sua inquirição perante várias entidades, circunstância que conduziria à revitimização que a lei pretende evitar.
T. Contudo, sempre se dirá que, mesmo que o Mm.° Juiz de Instrução Criminal entendesse não estarmos perante a prática de um crime de violência doméstica, sempre deveria ter designado data para a tomada de declarações para memória futura às menores AA e BB.
U. No caso dos autos, as testemunhas cuja tomada de declarações para memória futura se requereu, são ambas menores, tendo AA 8 anos e BB, 15 anos.
V. No que concerne à menor AA, pese embora não resulta expresso dos autos que a mesma presenciou qualquer conduta levada a cabo pela arguida, a verdade é que, sendo a testemunha filha da arguida e da vítima e, considerando a reiteração dos insultos que a arguida dirige àquela, é de presumir que a menor terá presenciado, senão a todos, pelo menos a alguns dos episódios relatados pela vítima.
W. Pelo que, considerando a previsão do artigo 26°, n.°2, em conjugação com o que dispõe o artigo 28°, ambos da Lei 93/99, de 14 de Julho, a menor AA é uma testemunha especialmente vulnerável atenta a sua diminuta idade, devendo, por isso, evitar-se a repetição da sua audição durante o inquérito, podendo ser requerida a sua tomada de declarações para memória finura, independentemente do tipo de crime em causa.
X. Já no que respeita à menor BB, valendo para ela os mesmos argumentos que foram expendidos no que respeita à menor AA, acresce ainda a circunstância de existir a certeza absoluta que a mesma presenciou, pelo menos, o episódio que deu origem aos presentes autos, sendo pertinente apurar-se se presenciou algum ou alguns outros.
Y. Aqui chegados, é forçoso que se conclua que, pese embora não se concorde com a desqualificação jurídica operada pelo Mm.° Juiz de Instrução Criminal, nos termos supra expostos, mesmo a socorrer-se de tal argumento, nunca poderia o mesmo ter indeferido a designação de data para a tomada de declarações para memória futura às menores, considerando que as mesmas, atenta a tenra idade, são testemunhas especialmente vulneráveis a que acresce, no que respeita à menor AA, a circunstância de a arguida ser sua progenitora.
Z. Ao entender indeferir a tomada de declarações para memória futura, com os fundamentos invocados no despacho em crise, o Mmo. Juiz de Instrução violou o disposto nos artigos 64.°, n.° 1, alínea 1), 262.°, 268.° e 271°, ambos do Código de Processo Penal, 33.° da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro, 24.° da Lei n.° 130/2015, de 4 de Setembro, 20.°, n.°s 1 e 2 e 32.°, n.% 1, 3 e 5 da Constituição da República Portuguesa, 6.°, n.° 3, alínea c) da Convenção Europeia dos Direitos Humanos e 47.° e 48.0, n.° 2 da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia.
AA. Face a tudo o que supra se aduziu, forçoso é de concluir que o presente recurso deve ser julgado totalmente procedente, devendo o despacho recorrido ser substituído por outro que designe data para a tomada de declarações para memória finura às menores AA e BB.
***
Recebido o recurso, a arguida, na sua resposta, pugnou pelo não provimento do recurso, concluindo da seguinte forma (transcrição): 1º- A arguida CC concorda inteiramente com o despacho recorrido; 2º- O recurso do Ministério Público tem como objeto o despacho de indeferimento do Mm.ª JIC, à tomada de declarações para memória futura das menores AA e BB; 3º- O recurso interposto pelo Ministério Público revela que, supostamente, o Tribunal a quo, ao proferir o despacho recorrido, fez uma interpretação, alegadamente errada, das normas legais; 4º- Vem o MP pugnar pela substituição do douto despacho de indeferimento da tomada de declarações para memória futura, por outro que designe dia e hora para a tomada daquelas declarações, das menores AA e BB; 5º- O recorrido, sustenta as suas alegações no sentido de que AA e BB, são testemunhas especialmente vulneráveis devido à idade daquelas, pelo que deverão ser ouvidas as suas declarações para memória futura. 6º- O Mm.º JIC indeferiu o requerimento do MP, por considerar que os factos descritos nos autos não consubstanciam a prática de crime de violência doméstica e assim não considerou que as menores fossem consideradas testemunhas dos factos, pois foi o próprio ofendido que negou a presença das filhas de ambos aquando a ocorrência dos factos descritos, na sua tomada de declarações. 7º- No nosso entendimento, os indícios constantes nos autos de inquérito, salvo o princípio in dúbio pro reo, não poderão consubstanciar na prática pela arguida de um crime de violência doméstica, porquanto, os atos que alegadamente a arguida praticou não são passíveis de serem caracterizados como maus-tratos, ainda que eventualmente possam ter relevância penal. 8º- O crime de violência doméstica visa proteger muito mais do que a soma dos diversos ilícitos típicos que o podem preencher, como ofensas à integridade física, injúrias ou ameaças. 9º- Embora o processo ainda não se encontre integralmente materializado, certo é que os indícios que constam do mesmo incorporam um ato isolado de uma eventual ofensa à integridade física, embora entre ex-cônjuges, não espelhando uma situação de maus- tratos da qual fosse suscetível de resultar sérios riscos para a integridade física e psíquica da vítima. 10º- Os indícios até agora recolhidos poderão eventualmente apontar para uma “ação isolada de pouca gravidade” e assim não é suscetível de constituir um crime de violência doméstica, não sendo, portanto, as menores vítimas. 11º- Ainda assim, o MP requereu a inquirição de menores que nem sequer tiveram presentes aquando da altura dos alegados factos, o que não nos parece de todo, passível de prestação de declarações para memória futura das mesmas nos termos dos artigos 271º e 294º do CPC. 12º- As menores não são vítimas do alegado crime in casu, nem são testemunhas do mesmo, pelo que, salvo devido respeito, vislumbra-se que o requerimento do MP não tem acolhimento legal. 13º- Não estaremos perante o evitar de uma revitimização das menores, porquanto, estas não estavam sequer presente in loco dos factos alegados pelo ofendido. 14º- As eventuais testemunhas podem prestar declarações nos termos do art.º 349º do CPP ou ainda, pode o juiz presidente, restringir a livre assistência do público nos termos do arts.º 321º e 87º do CPP. 15º- Assim, a arguida acompanha o despacho recorrido.
Foi proferido despacho de sustentação no qual foi mantida a decisão objeto de recurso.
O Sr. PGR junto deste Tribunal da Relação acompanhou o recuso do MP interposto na primeira instância. ***
Não foi cumprido o artº 417º, n.º 2 do C.P.P dado que o MP junto deste tribunal limitou-se a aderir à posição do MP junto da primeira instância.
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II - Questões a decidir:
Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. Art.º 119º, nº 1; 123º, nº 2; 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPPenal, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/6/1998, in BMJ 478, pp. 242, e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).
Tendo em conta este contexto normativo e o teor das conclusões apresentadas pelo recorrente, há que analisar e decidir:
Pode o Juiz de Instrução Criminal, ao praticar atos jurisdicionais na fase de inquérito, imiscuir-se na qualificação jurídica definida pelo Ministério Público para efeitos de indeferir a inquirição de testemunhas para mémória futura.
Na fase de inquérito pode o juiz de instrução criminal indeferir a inquirição de testemunhas para memória futura com o argumento de que estas não têm conhecimento dos factos.
Cumpre, assim, apreciar no presente recurso se no concreto caso devem ser tomadas declarações para memória futura às duas testemunhas acima mencionadas.
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III – FUNDAMENTAÇÃO:
A decisão recorrida tem o seguinte teor (transcrição):
Os factos descritos nos presentes autos, se demonstrados, poderão integrar a prática de crime de ofensas à integridade física simples p. e p. pelo artº 143º, do Código Penal.
Conforme afirmado pelo queixoso em declarações que prestou: “Que a agressão de que foi vítima não foi presenciada pelas filhas de ambos”.
Isto é, as menores não são testemunhas pelo que não deverão ser envolvidas em conflitos entre os progenitores.
Com efeito:
Dispõe o artº 152º, do Código Penal, sob a epígrafe “Violência doméstica”: Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquico, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a. Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b. (...) É punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. 2 - No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
Conforme se vem afirmando na jurisprudência dos Tribunais Superiores, “o artº 152.°, do CP, no seu nº 2, pune a actuação de quem infligir ao cônjuge maus tratos físicos ou morais, e a sua redacção teve como propósito a eliminação de algumas dúvidas que doutrinariamente tinham surgido na interpretação do artº 153.°, do CP de 1982, e que conduziram a ter-se discutido se, no crime de maus tratos a cônjuge, fazia ou não parte do tipo uma certa habitualidade ou repetição de condutas ofensivas à da integridade física ou moral do consorte ofendido, embora, a final, se tivesse fixado a jurisprudência no sentido de que, mesmo com a redacção de 1982, a referida figura criminal se poderia verificar com uma única agressão, desde que a sua gravidade intrínseca a pudesse fazer qualificar como tal. A actual redacção, por consequência, mais não significa, no caso concreto, do que a incriminação, decorrente da lei penal, de condutas agressivas, mesmo que praticadas uma só vez, que se revistam de gravidade suficiente para poderem ser enquadradas na figura dos maus tratos. Não são, assim, todas as ofensas corporais entre cônjuges que cabem na previsão criminal do referido artº 152º, mas aquelas que se revistam de uma certa gravidade, ou, dito de outra maneira, que, fundamentalmente, traduzam crueldade ou insensibilidade, ou até vingança desnecessária, da parte do agente.” – Ac. do STJ de 13/11/1997, sumariado por LEAL-HENRIQUES e SIMAS SANTOS, Código Penal Anotado, 3ª edição, pág. 303, o qual mantém plena actualidade como, por todos se poderá verificar no Ac. do STJ de 12/03/2009, publicado em www.dgsi.pt/jstj.nsf, onde, de novo, se debateu a questão do suposto requisito da “reiteração”.
Na verdade, como resulta quer do elemento teleológico como da letra da citada lei criminal e vem traduzido nos citados arestos, o elemento diferenciador entre a generalidade dos crimes contra as pessoas e este específico tipo penal, não está na questão da reiteração ou habitualidade, requisito que o artº 152º, na actual redacção faz questão de, desde logo, afastar.
A conduta típica integradora do tipo objectivo da previsão do artº 152º, embora possa consistir num único acto, similar ou passível de absorver por consumpção as demais previsões penais que versam crimes contra as pessoas, deverá aditar algo mais a essas previsões.
Isto é, a gravidade da conduta deverá aportar uma nítida degradação da pessoa humana, física ou psicologicamente – nisto consistindo tratar com crueldade, humilhando... – assim extravasando a mera ofensa à integridade física ou injúria e acarretando, no plano subjectivo, um dolo dirigido não só à ofensa do corpo mas também de tratamento cruel, ínsito à sujeição a maus tratos.
O episódio descrito pelo queixoso, ainda que acompanhado dos conflitos que vem vivenciando com o seu ex-cônjuge, não têm a virtualidade de justificar o agravamento da moldura penal prevista no artº 152º, do CP.
Sobretudo, não existem elementos que permitam qualificar os menores de testemunhas ou de testemunhas especialmente vulneráveis.
O recurso ao meio de produção de prova antecipada por declarações para memória futura não tem enquadramento legal neste momento processual e estado da investigação.
De facto, a precipitação que vem ocorrendo para o enquadramento jurídico de factos em investigação no âmbito da previsão do disposto no artº 152º, do Código Penal, deriva não dos factos apurados mas sim de directiva vinculativa para Ministério Pública mas que não constitui norma a considerar por este tribunal.
Recorde-se o que ficou recentemente exposto no acórdão do TRL proferido no processo nº 813/22.2SXLSB-A, que embora versasse aspecto diversos da ilegalidade do recurso precoce à tomada de declarações para memória futura também encontra cabimento na questão aqui em análise, no que respeita à necessidade do Juiz de Instrução proceder a uma criteriosa ponderação dos meios de prova para os quais é exigida a intervenção do Juiz, não obstante a direcção do inquérito caber ao Ministério Público: Tal tomada de declarações está prevista no artº 33º da Lei 112/2009 de 16.9 e em consonância com o regime geral respeitante a declarações para memória futura (nº 3 do artº 271º do Código de Processo Penal) salvaguarda o contraditório, ao prever a notificação do arguido e do seu defensor, para que possam estar presentes (...) Tem, pois, razão de ser o despacho de sustentação da decisão recorrida, ao afirmar que “verdadeiramente o Ministério Público vem entendendo que deve haver (sempre) lugar à tomada de declarações para memória futura, independentemente da existência ou não de fundada suspeita (pois só esta permite e reclama a constituição como arguido) transmutando-as, amiúde, em mera diligência de inquérito/investigação. Ora, salvo o devido respeito, tal entendimento, inequivocamente banalizador, para além do mais, defrauda a real natureza da tomada de declarações para memória futura (pois que, como é sabido, está em causa, tendencialmente, prova pré-constituída).” Contudo, é conhecida a fonte do problema. Trata-se da directiva 5/2019 da Procuradoria-Geral da República que é obrigatória para a magistratura do Ministério Público. Ali se preceitua para os MMP (magistrados do Ministério Público) que “a recente criação de Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD), compostas, cada uma delas, por Núcleos de Ação Penal (NAP) e Núcleos de Família e Crianças (NFC), justifica o estabelecimento de regras específicas no que concerne à tomada de declarações paramemória futura, atenta a afetação exclusiva dos MMP das SEIVDNAP à investigação daquele fenómeno criminal. Assim, A. Nas Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD) 1. O MMP da SEIVD-NAP requer obrigatoriamente a tomada de declarações para memória futura nas situações de: avaliação de risco da vítima de nível elevado avaliação de risco da vítima de nível médio associada a circunstâncias que objetivamente sejam suscetíveis de agravar a vulnerabilidade daquela, designadamente qualquer uma das seguintes:
a. aumento do número de episódios violentos e/ou da gravidade dos mesmos, em particular
b. no último mês, acompanhado da convicção da vítima de que o denunciado ou arguido pode matá-la;
c. existência de processo(s) contra o denunciado ou arguido pela prática de crime(s) contra a vida, integridade física ou de ameaça, bem como a repetida verbalização perante familiares ou pessoas próximas da vítima da intenção de a matar. 2. Sempre que haja notícia da existência de crianças presentes num contexto de violência doméstica e independentemente de serem aquelas ou não destinatárias de atos de violência, o MMP da SEI VD-NAP requer obrigatoriamente a tomada de declarações para memória futura das mesmas. B. Inexistindo Secções Especializadas Integradas de Violência Doméstica (SEIVD) o MMP, verificadas as situações elencadas nos n.ºs 1 e 2, deve igualmente requerer a tomada de declarações para memória futura, salvo a concreta verificação de condições de serviço que a tal obste, dando disso imediato conhecimento ao respetivo superior hierárquico, com vista à adoção das adequadas medidas gestionárias.” É desde logo visível a não conformidade integral com as regras gerais na matéria que nos ocupa. Muito particularmente na pretensão de serem tomadas declarações para memória futura dependendo da quantificação do risco em abstracto, ou na existência de crianças presentes, independentemente dos casos concretos. Mais quando se retira, ou pretende retirar, aos agentes do Ministério Público aquela quantificação, desde logo, circunstância incompatível com a sua categorização constitucional como magistratura (nº 4 do artº 219º da Constituição da República Portuguesa). É o que resulta da forma de apuramento daquele risco - através de uma ficha de avaliação, levada a cabo, naturalmente, por entidade policial – à qual, depois de junta, procederá o magistrado do Ministério Público “a uma análise rigorosa e crítica dos respetivos elementos”. Todavia, resulta bem claro e logo no trecho seguinte da directiva, que tal análise visa tão somente poder agravar aquele nível de risco, porque aquele magistrado irá cotejá-lo “com outros factores de risco que, não se mostrando contemplados naquele instrumento, justifiquem a elevação do nível de risco de revitimização, caso em que, obrigatoriamente, deverá agravá-lo”. Semelhante procedimento é susceptível de retirar àquela magistratura, com facilidade e em grande medida, a capacidade de condução do inquérito conforme o mais adequado ao caso concreto e daí, depois, o inevitável surgimento do conflito de que aqui tratamos, já que os tribunais não estão sujeitos ao mesmo. Trata-se, aliás, de um bom exemplo, na devida proporção, da razão de ser da proibição de tribunais especiais patente no nº 4 do artº 209º da Constituição da República Portuguesa. “Característica normal do conceito de Estado de direito democrático é a proibição de tribunais criminais especiais, ou seja, de tribunais com competência específica para o julgamento de determinados crimes. Trata-se de uma garantia tradicionalmente associada à proibição de entregar a jurisdição penal em certas categorias de crimes (crimes políticos, crimes contra a segurança do Estado, crimes de imprensa, etc.) a tribunais especiais, caracterizados por menores garantias de independência e menos seguras garantias de defesa processual, como sucedia com os famigerados «tribunais plenários» do Estado Novo” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, 3ª edição, Coimbra 1993, em anotação ao nº 4 do então artº 211º daquela).”
As diligências de prova que requerem a intervenção de Juiz de Instrução Criminal têm subjacentes questões que o legislador processual penal entendeu não dever deixar na discricionariedade do Ministério Público (não obstante a direcção do inquérito que lhe cabe), já que contendem, sempre, com direitos fundamentais dos cidadãos.
Tais direitos fundamentais poderão estar relacionados com uma maior ingerência na privacidade ou no desequilíbrio processual que provocam, originando distorções do processo equitativo.
A tomada de declarações para memória futura tem, não só, a finalidade de preservação de prova que poderá desaparecer se não for recolhida atempadamente, mas também a protecção de testemunhas fragilizadas.
A sua utilização inadequada porque impertinente ou precoce, para além de submeter pessoas frágeis a situações formais indesejáveis, causará um desequilíbrio na igualdade de armas sempre que a fragilidade a acautelar não for efectiva e real no caso concreto.
Pelo exposto, indefiro o requerido.
Notifique e devolva” ***
Analisando:
Antes de apreciarmos o cerne do presente recurso cumpre precisar em que consistem as declarações para memória futura e em que circunstâncias este meio de prova pode e deve ser produzido.
A produção da prova em processo penal, com vista a assegurar o princípio basilar do julgamento, que é do da livre apreciação da prova, decorre perante o tribunal com respeito por dois princípios fundamentais: o da oralidade e o da imediação
O princípio da imediação, também conhecido como da prova imediata, tal como previsto no artigo 355º do CPP, pressupõe um contacto direto e pessoal entre o juiz e as pessoas que perante ele depõem, sendo esses depoimentos que irá valorar e servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
Assim, o princípio da imediação exige uma relação de proximidade, não só física como temporal, entre os intervenientes processuais e o tribunal, de modo a que este possa ter uma perceção própria e segura dos elementos que servirão de base para a fundamentação da decisão jurisdicional.
Não obstante esta ser a regra, existem exceções a este princípio e uma dessas exceções é precisamente a prestação de declarações para memória futura prevista e regulada no artigo 271º do Código de Processo Penal.
Dispõe o artigo 271º do CPP o seguinte:
1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder á sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e. o. local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
4 - Nos casos previstos, no n,° 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito.
5- A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
6 - É correspondentemente. aplicável o disposto nos artigos 352º, 356.°, 363.° e 364.°
7 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e as acareações.
8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores, não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.».
Daqui decorre que as declarações para memória futura, por configurarem uma exceção ao princípio da imediação, constituem uma produção antecipada de prova, um meio cautelar de prova, que tem como objetivo assegurar a obtenção e conservação de determinada prova pessoal, com vista ao respetivo aproveitamento em sede de julgamento, decorrente do perigo adveniente da impossibilidade de produção na própria audiência de julgamento.
Para além de se traduzirem num meio de conservação da prova testemunhal, nas situações de doença grave ou deslocação para o estrangeiro, as declarações para memória futura representam, também, um direito que aos sujeitos processuais é conferido de garantir aquela prova, assim como um instrumento de proteção das próprias fontes de prova.
Da análise deste preceito decorre, ainda, que nas situações previstas no número um a prestação de declarações para memória futura não é obrigatória, dado que o legislador diz expressamente que o juiz “pode proceder”, enquanto que nas situações previstas no número dois, ou seja, no caso de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, terá sempre lugar a audição em declarações para memória futura, durante o inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
A tomada de declarações para memória futura, verificados que estejam os pressupostos para a sua admissibilidade, visa, ainda, acautelar o respeito por princípios estruturantes do processo penal, nomeadamente o respeito pelo princípio do contraditório, o qual encontra assento constitucional no artigo 32º nº 5 da CRP, bem como garantir o princípio do processo equitativo, inscrito como direito fundamental no art.º. 6.º, § 1.º da CEDH.
Estando em causa, de acordo com o Ministério Público, a investigação de um crime de violência doméstica, há que ter em atenção a Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à proteção e assistência às suas vítimas, onde prevê no seu artigo 33.º a possibilidade de o juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa ser tomado em conta no julgamento.
A Lei nº 112/2009, de 16-09 - que instituiu o Regime Jurídico aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Proteção e Assistência às suas Vítimas (LVD) - regula autonomamente as declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, o que faz com estas normas, por serem especiais, afastem a norma geral prevista no citado artigo 271º do CPP.
Há que ter em atenção a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas mínimas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substituiu a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, publicada no Jornal Oficial da União Europeia L 315/72 de 14.11.2012, conhecida como Diretiva das Vítimas. Esta Diretiva foi transposta para a ordem jurídica nacional através da Lei nº 112/2009 de 16 de setembro, que estabelece um regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, bem como para o Estatuto da Vítima aprovado pela Lei 130/2015 de 4 de setembro.
Diz o artigo 33º da lei 112/2009, de 16 de setembro:
1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal.
4 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
5 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal.
6 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações.
7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.
Conforme resulta do artigo 2º alíneas a) e b) da lei em causa, para efeitos de aplicação da presente lei, considera-se:
a) «Vítima» a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, diretamente causada por ação ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152.º do Código Penal, incluindo as crianças ou os jovens até aos 18 anos que sofreram maus tratos relacionados com exposição a contextos de violência doméstica;
b) «Vítima especialmente vulnerável» a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social.
Tendo em conta as finalidades da presente lei conclui-se, desde logo, que a produção antecipada de prova não tem tanto a ver com o perigo resultante da impossibilidade de produção na própria audiência de julgamento, mas antes com a proteção da própria vítima, assegurando a sua proteção célere e eficaz, por forma a minimizar a vitimização secundária, e assegurar-lhe a efetivação dos direitos garantidos por esta lei, nomeadamente, no artigo 20º nº 2 e 3 – direito de proteção - (O contacto entre vítimas e arguidos em todos os locais que impliquem a presença em diligências conjuntas, nomeadamente nos edifícios dos tribunais, deve ser evitado, sem prejuízo da aplicação das regras processuais estabelecidas no Código de Processo Penal. 3 - Às vítimas especialmente vulneráveis deve ser assegurado o direito a beneficiarem, por decisão judicial, de condições de depoimento, por qualquer meio compatível, que as protejam dos efeitos do depoimento prestado em audiência pública.) e artigo 22º nº 1 – condições de prevenção da vitimização secundária - (1 - A vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões). Ao conferir estes direitos à vítima, a serem concretizados através destas garantias processuais, pretendeu-se que ela encerre o episódio de que foi vítima, já que só será prestado novo depoimento, em casos excecionais (nº7 do artigo 33.º da mesma Lei).
Para além de conferir este direito à vítima e funcionar como um meio de proteção desta, a tomada de declarações para memória futura visa, ainda, assegurar, em tempo útil, a autenticidade do depoimento da vítima, muitas vezes o único meio de prova dada a natureza do crime e o modo em que é cometido, e evitar as pressões ou manipulações decorrentes da proximidade da vítima ao agressor, prejudiciais à liberdade e espontaneidade de declaração da vítima.
Por forma a dar concretização prática às finalidades da presente lei, definidas no artigo 3º (entre elas consagrar os direitos das vítimas, assegurando a sua proteção célere e eficaz) deve a autoridade judiciária, neste caso o Ministério Público, ou o órgão de polícia criminal, atribuir à vítima do crime de violência doméstica, o estatuto de vítima. Com efeito, dispõe o artigo 14º nº 1 e 3 – 1 -Apresentada a denúncia da prática do crime de violência doméstica, não existindo fortes indícios de que a mesma é infundada, as autoridades judiciárias ou os órgãos de polícia criminal competentes atribuem à vítima, para todos os efeitos legais, o estatuto de vítima. 3 - No mesmo ato é entregue à vítima documento comprovativo do referido estatuto, que compreende os direitos e deveres estabelecidos na presente lei, além da cópia do respetivo auto de notícia, ou da apresentação de queixa.
No mesmo sentido, dispõe o artigo 20º da Lei 130/2015, de 4-09, diploma que aprovou o Estatuto da Vítima e que contém um conjunto de medidas que visam assegurar a proteção e a promoção dos direitos das vítimas da criminalidade, transpondo para a ordem jurídica interna a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade.
A atribuição do Estatuto de Vítima não constitui uma mera formalidade. Ela representa o momento em que a vítima toma conhecimento dos seus direitos e garantias estabelecidos na LVD, que hoje tem de ser complementada com as normas que constam do Estatuto da Vítima em processo penal, aprovado pela Lei n° 130/2015, de 4/9, bem como na Lei de Proteção de Testemunhas, aprovada pela Lei n° 93/99, de 12/7 e respetivas alterações.
De acordo com o disposto no citado artigo 33º lei 112/2009, de 16 de setembro, tal como resulta claro do seu número um, apenas está prevista a tomada de declarações das vítimas do crime de violência doméstica, ou seja, a quem foi atribuído o referido estatuto ao abrigo do artigo 14º, e não a todas as testemunhas do crime de violência doméstica, sendo que a lei não impõe ao juiz de instrução a obrigatoriedade de proceder à inquirição de uma vítima para memória futura, nem estabelece os critérios em que deve assentar essa decisão. Com efeito, o legislador diz claramente que o juiz pode proceder à inquirição da vítima no decurso do inquérito.
Apesar do legislador não estabelecer os critérios em que deve assentar a decisão do juiz em autorizar a tomada de declarações para memória futura, isso não significa que essa decisão não tenha de ser fundamentada ou que esteja no âmbito da discricionariedade do juiz de instrução de criminal.
Com efeito, tendo em conta a definição do conceito de vítima prevista no artigo 2º, as finalidades da lei, previstas no artigo 3º, o estatuto de vítima previsto no artigo 14º, bem como os direitos da vítima consagrados nos artigos 15º, 20º e 22º, isto é, direito à informação, direito à proteção e condições de prevenção de vitimização secundária, permite-nos concluir em que condições devem ser prestadas as declarações para memória futura. Para além destes fatores devem ser levados em consideração aquando da tomada de decisão, a fragilidade da vítima, a idade da vítima, a relação que esta tem com o suspeito ou o arguido, o local onde reside e com quem etc.
Na verdade, uma vítima de tenra idade, tendo em conta as regras da experiência comum, tenderá a esquecer o que vivenciou, uma vítima que continua a viver com o alegado agressor, portanto, sob a sua influência, poderá provocar uma eventual contaminação do seu depoimento e a perda de memória dos factos que a mesma vivenciou, prejudicando-se, deste modo, não só a investigação e a descoberta da verdade material, bem como a própria vítima ao ser sujeita a estar presente no tribunal de julgamento e a reviver a situação, causando uma situação de vitimização secundária. Em suma, é importante ponderar que as declarações para memória futura, neste tipo de crime, materializam um dos direitos da vítima que é o direito de audição antecipada.
Assim sendo, estando em causa um crime de violência doméstica e enquadrando-se a vítima numa das situações enunciadas no parágrafo precedente, apesar da lei não impor uma obrigatoriedade na realização de tomada de declarações para memória futura, será aconselhável que o juiz o faça dado que só assim serão alcançadas as finalidades da lei e garantidos os direitos da vítima neste tipo de crime em função da fragilidade das vítimas ou da sua idade, mas, sobretudo, da relação que têm com o arguido, em que deve evitar-se a exposição da vítima em julgamento. Deve ser este o procedimento a adotar, em nome da proteção das vítimas contra a vitimização secundária, só assim se não acontecendo quando existam razões relevantes para o não fazer.
Para além disso, estando em causa um crime de violência doméstica, previsto no art.° 152.°, n.º 1, do C. Penal, punido com pena de prisão de um a cinco anos de prisão, o mesmo integra a noção de criminalidade violenta, definida no art.º- 1.°, alínea j), do C.P.P. nos seguintes termos:
Para efeitos do disposto neste Código considera-se criminalidade violenta:
- as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos.
Ora, tendo em conta a natureza do crime em causa - criminalidade violenta – a vítima deste tipo de crime é sempre especialmente vulnerável, nos termos do artigo 67°-A n º 3 do CPP.
Também a Lei n° 130/2015, de 4 de setembro - Estatuto da Vítima – prevê, no artigo 21º nº 2 al. d), o direito das vítimas especialmente vulneráveis, - como uma das medidas especiais de proteção - à prestação de declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 24º.
O referido art.º. 24°, n°1, prevê que o juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.° do Código de. Processo Penal.
Importa, ainda, chamar aqui à colação o que está estabelecida na lei de proteção de testemunhas Lei 93/99, de 14 de julho.
De acordo com o artigo 1º nº 1, a presente lei regula a aplicação de medidas para proteção de testemunhas em processo penal quando a sua vida, integridade física ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objeto do processo.
Conforme resulta do nº 3 do mesmo artigo 1º, são também previstas medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo referido no n.º 1.
Deste modo, a Lei de Proteção de Testemunhas prevê medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo referido no n.º 1 do art.º 1º - cf. art.º 1º, nº 3, do mesmo diploma. Dizendo o art.º 26º, nº 1, que “quando num determinado ato processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal ato decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas.” Acrescentando no nº 2 que a “a especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.”
Por outro lado, nos termos do diploma citado, “durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime” - nº 1 do art.º 28º. E, “Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal.”.
Estando em causa duas testemunhas com 8 e 15 anos de idade, ou seja, crianças, ambas com capacidade para depor, nos termos do artigo 131.º do Código de Processo Penal, importa ter em atenção as diretrizes que o Conselho da Europa adotou (adotadas pelo Comité de Ministros do Conselho da Europa em 17 de novembro de 2010) sobre a justiça adaptada às crianças com o objetivo específico de garantir que a justiça é sempre adaptada às crianças, independentemente de quem sejam ou quais tenham sido os seus atos. Acima de tudo, as crianças até aos 17 anos – que sejam parte num processo, vítimas, testemunhas ou infratores – devem beneficiar da chamada abordagem «crianças primeiro». Importa, também, ter em conta as Diretrizes das Nações Unidas sobre a Justiça em Processos que Envolvem Crianças Vítimas e Testemunhas de Crimes - Resolução nº 20/2005 – ECOSOC (Conselho Económico e Social das Nações Unidas).
Entre essas diretrizes, tendo em conta o caso concreto, importa destacar as seguintes:
Todas as autoridades relevantes devem adotar uma abordagem abrangente, que tenha em devida conta o conjunto dos interesses em causa, incluindo o bem-estar psicológico e físico da criança e os seus interesses jurídicos, sociais e económicos.
As sessões de tribunal nas quais participem crianças devem ser adaptadas ao ritmo e à capacidade de atenção da criança: devem estar previstas pausas regulares e as audiências não devem ser demasiado longas. Para permitir que as crianças participem com todas as suas capacidades cognitivas e a fim de preservar a sua estabilidade emocional, devem reduzir-se ao mínimo as interrupções e as distrações durante as sessões de tribunal.
Na medida do possível e necessário, as salas de interrogatório e de espera devem estar organizadas de forma a criar um ambiente adaptado às crianças.
Deve envidar-se todos os esforços para que as crianças prestem depoimento no ambiente mais favorável possível e nas condições mais adequadas, tendo em atenção a sua idade, maturidade e nível de compreensão e quaisquer dificuldades de comunicação que possam ter.
O número de interrogatórios deve ser tão limitado quanto possível e a sua duração deve ser adaptada à idade e à capacidade de atenção da criança.
Deve ser evitado, tanto quanto possível, o contacto direto, o confronto ou a comunicação entre a criança vítima ou testemunha e o presumível infrator, a não ser que a criança vítima o requeira.
Os profissionais devem desenvolver e implementar medidas para tornar mais fácil para as crianças testemunharem ou darem provas para melhorar a comunicação e compreensão nas fases pré-julgamento e julgamento.
Daqui decorre que a prática para a tomada de depoimento de crianças perante a justiça penal gira em torno dos seguintes aspetos essenciais: que ocorra uma única vez; o mais cedo possível; em sala diferenciada e pelo intermédio de profissionais capacitados – principalmente psicólogos ou assistentes sociais – a fim de que sejam feitas perguntas de forma mais adequada ao depoente.
Após este breve percurso importa regressar ao caso concreto, sendo que o que está em causa é a questão de saber se o depoimento das duas crianças, alegadamente testemunhas de um crime, mormente crime de violência doméstica imputado a sua mãe e tendo como vítima o pai de ambas, deve ser prestado antecipadamente.
O Ministério Público começou por concluir que o Juiz de Instrução de Criminal, quando chamado a praticar atos jurisdicionais na fase de inquérito, apenas está autorizado a praticar os atos previstos no artigo 268º do CPP não podendo, por ausência de previsão legal, imiscuir-se na qualificação jurídica dos factos definida pelo Ministério Público e que isso constitui uma intromissão na autonomia legalmente atribuída ao titular da ação penal.
A tomada de declarações para memória futura constitui um ato processual a ser autorizado e praticado pelo juiz de instrução criminal, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, conforme resulta do artigo 268º do nº 1 al. f) e 271º nº 1, ambos do CPP, ou da própria vítima, conforme resulta do artigo 33º nº 1 da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro e desde que estejam verificados os respetivos pressupostos formais e materiais.
Tendo em conta o disposto no artigo 33º nº 1 da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro, para que seja autorizada a inquirição para memória futura de uma vítima do crime de violência doméstica, durante a fase de inquérito, é necessário, antes de mais, que os factos denunciados sejam suscetíveis de serem qualificados como tal e que a pessoa em causa seja considerada como vítima na definição constante no artigo 2º alínea a) e b) do citado diploma.
Deste modo, o juiz de instrução criminal, por estar em causa uma exceção aos princípios da oralidade e da imediação e, em certa medida, uma restrição justificada dos direitos de defesa do arguido, só poderá autorizar a produção antecipada de prova verificados que estejam todos os pressupostos, não lhe sendo permitido aderir, de forma acrítica, à pretensão do Ministério Público. Com efeito, mesmo nas situações em que decisão do JIC seja de total adesão à posição do Mº Pº é imperativo que essa decisão seja sempre uma opção livre, autónoma e independente, resultante de uma apreciação atribuível à autoria própria do Juiz que a profere.
Na verdade, estando em causa questões relacionadas com o exercício de direitos fundamentais, mormente as garantias de defesa em processo penal e proteção das vítimas e testemunhas, a questão não poderá ficar fora da sindicância jurisdicional a exercer pelo juiz de instrução criminal, enquanto juiz das garantias e de liberdades, por força do artigo 202º nº 2 da CRP quando afirma que na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e do artigo 17º do CPP.
Este entendimento não colide com a estrutura acusatória do processo penal, consagrada no artigo 32º nº 5 da CRP, nem com a separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase do inquérito e nem, muito menos, poderá ser tida como uma posição de sindicante por parte do JIC da atividade do Ministério Público. Esta posição é, em nosso entender, a que melhor se coaduna com as funções do juiz de instrução enquanto garante de direitos fundamentais dos cidadãos.
Na verdade, o que está em causa com a decisão recorrida não é a autonomia do Ministério Público e nem, muito menos, a titularidade do inquérito, mas sim a defesa de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Assim sendo, o despacho recorrido ao fazer uma diferente qualificação jurídica dos factos daquela que foi feita no inquérito não violou o artigo 263º do CP, que diz que a direção do inquérito cabe ao Mº Pº e nem a autonomia do Mº Pº prevista nos artigos 219º nº 2 da CRP e 3º do EMP.
Questão diferente é saber se a qualificação jurídica dos factos descritos no inquérito efetuada pelo despacho recorrido se mostra correta. Ora, tendo em conta aquilo que se mostra alegado pelo recorrente e os elementos de prova que indicou nas conclusões, entendemos que os factos denunciados são suscetíveis de configurar a prática de um crime de violência doméstica p e p pelo artigo 152º n.° 1, alínea a), c), n.°2, alínea a), n°s 4 e 5 do CP e não, como fez o despacho recorrido, um crime de ofensa à integridade física simples p e p pelo artigo 143º do CP.
Nesta conformidade, procede, nesta parte, a pretensão do Ministério Público.
Não obstante estarmos perante factos suscetíveis de configurarem um crime de violência doméstica não estamos em presença, dado que não se mostra alegado pelo recorrente, que as duas testemunhas são vítimas, nos termos da definição no artigo 2º alínea a) e b) da LVD e nem se mostra alegado e demonstrado que tenha sido dado cumprimento ao disposto no artigo 14º do mesmo diploma, ou seja, que o Ministério Público tenha atribuído o estatuto de vítima às duas testemunhas.
Deste modo, não estando em causa a inquirição de vítimas de crime de violência doméstica, mas sim de duas testemunhas de um crime de violência doméstica não se mostram verificados os pressupostos enunciados no artigo 33º da LVD motivo pelo qual não poderá, ao abrigo desta norma legal, ser deferida pretensão do recorrente.
Vejamos agora, dado que também invocado pelo recorrente, se estão verificados os pressupostos previstos na lei de proteção de testemunhas - Lei 93/99, de 14 de julho.
A factualidade carreada aos autos, em relação à qual se impõe ao Ministério Público, em obediência ao princípio da legalidade, o dever de investigação e apuramento da verdade material, permite, no âmbito das respetivas possibilidades, sustentar a existência de uma suspeita fundada de que sobre a vítima identificada, possa ter sido praticado um crime de violência doméstica p e p pelo artigo 152.°, n.° 1, alínea a), c), n.°2, alínea a), n°s 4 e 5 do Código Penal, que carece objetivamente de ser investigado, seja no sentido de serem apurados os contornos ou a efetiva e cabal dimensão objetiva dos respetivos factos, como também da forma como os mesmos poderão ser subjetivamente imputados à arguida, neste caso para efeitos de verificação do preenchimento ou não do respetivo tipo subjetivo do ilícito. Em qualquer caso, a inquirição das duas testemunhas, por serem filhas a arguida e do ofendido, do ponto de vista de quem investiga o crime, e dadas as circunstâncias supra referidas, nomeadamente por supostamente terem presenciado alguns dos factos, mostra-se devidamente justificada, não cabendo, neste segmento, ao juiz de instrução criminal, apreciar da oportunidade ou da utilidade da inquirição das testemunhas em causa na fase de inquérito.
Por outro lado, são evidentes os sinais ao nível da idade das duas testemunhas, ambas crianças, que lhes conferem a qualidade de pessoas especialmente vulneráveis, por força do artigo 26º da Lei 93/99, mesmo sem necessidade de estarmos em presença do perigo referido no n.º 1 do art.º 1º - cf. art.º 1º, nº 3, do mesmo diploma. Para além disso, estando em causa a tomada de depoimento de duas crianças, importa ter presente as diretrizes do Conselho da Europa sobre a justiça adaptada às crianças, acima enunciadas, das quais se extrai que o depoimento deve ser prestado o mais brevemente possível e de forma a evitar-se a repetição da audição dela como testemunha, com alcance que a este conceito é dado pelo art.º 2º, al. a), da Lei nº 93/99.
Assim sendo, faz todo o sentido que, à luz do disposto nos artigos 1º nº 3, 26º e 28º da Lei 93/99, seja requerido o registo do depoimento das duas crianças, nos termos do disposto artigo 271.º do Código de Processo Penal, tal como fez o Ministério Público nos presentes autos. Razão por que deve ser concedido provimento ao recurso, embora não pelos mesmos argumentos jurídicos, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra em que se determine a prestação de depoimento para memória futura, nos termos requeridos pelo Ministério Público.
IV - DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra em que se determine a prestação de declarações para memória futura, nos termos requeridos pelo Ministério Público.
Sem custas
Lisboa, 24 de outubro de 2024,
Ivo Nelson Caires B. Rosa
Paula Cristina Bizarro
Ana Paula Guedes