CONTRATO PARA PESSOA A NOMEAR
FORMA
NULIDADE
CONFIRMAÇÃO
Sumário


I - A aplicação do instituto do abuso do direito depende de terem sido alegados e provados os competentes pressupostos e, bem assim, da possibilidade de enquadrar as suas consequências no pedido feito ao Tribunal, o que tudo é uma decorrência do princípio do dispositivo.
II - Verificados tais pressupostos, o abuso do direito é do conhecimento oficioso do tribunal.
III - A forma da declaração, enquanto facto constitutivo do negócio jurídico, integra a causa de pedir em ação (de validade ou de cumprimento) que nele se funda, pelo que a invocação da nulidade por inobservância da forma legal não constitui defesa por exceção perentória, mas por mera impugnação (motivada).
IV - A cláusula aposta num contrato-promessa em que se atribuiu ao promitente-comprador a faculdade de designar um terceiro que ocupe a sua posição nesse mesmo contrato-promessa, tudo se passando como se este tivesse sido celebrado inicialmente com o designado, integra-se na figura do contrato para pessoa a nomear.
V - Em tal caso, a substituição do promitente comprador (stipilans) pelo amicus não opera automaticamente; ela só ocorre quando o primeiro, comunicar a designação ao promitente-vendedor (promitens), mediante declaração por escrito, dentro do prazo convencionado ou, na falta de convenção, dentro dos cinco dias posteriores à celebração do contrato.
VI - Ultrapassados os prazos convencional ou legal, ocorre a caducidade da cláusula para pessoa a nomear, bem como a subsequente ineficácia da designação do amicus.
VII - A referida comunicação deverá ser acompanhada do instrumento donde resulte que o nomeado aceita ocupar a posição que pertencia ao stipulens, que será uma procuração anterior à celebração do contrato ou, não sendo o caso, um instrumento de ratificação.
VIII - A ratificação deverá constar de documento que tenha a mesma força probatória do contrato retificando, não sendo de exigir, com base numa interpretação sistemática e atualista do n.º 2 do art. 454 do Código Civil, que tenha a mesma solenidade.
IX - Se a ratificação for nula, não ocorre a substituição.
X - A inalegabilidade formal, subtipo do venire contra factum proprium, está dependente da verificação dos pressupostos da tutela da confiança e de três requisitos específicos: (i)) só podem estar em jogo interesses das partes interessadas e não de terceiros de boa-fé; (ii)) a imputação da situação de confiança ao contraente a responsabilizar não se basta com a existência de um nexo de causalidade, exigindo simultaneamente uma imputação culposa, ou seja, assente num juízo de censura; e (iii)) o investimento de confiança deve possuir uma natureza sensível por dificilmente ser assegurado por outra via.

Texto Integral


Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I.
1) AA (Autora) intentou, no dia 25 de setembro de 2023, a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra a Massa Insolvente de BB e de CC (Ré), o que fez por apenso aos respetivos autos de insolvência, pedindo:

a) A condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de € 320 000,00, a título de indemnização pelo incumprimento culposo e definitivo do contrato-promessa com eficácia real, celebrado por escritura pública de 14 de outubro de 2014, pelo qual os insolventes prometerem vender à sociedade EMP01..., SA, que no mesmo ato prometeu comprar, pelo preço de € 160 000,00, o prédio urbano sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., composto de moradia de cave, ..., ... andar e anexos, de tipologia T-três, destinada a habitação, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...01 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...23;
b) Subsidiariamente, a condenação da Ré a restituir à Autora a quantia de € 160 000,00, paga no âmbito do contrato promessa referido;
c) Ainda subsidiariamente, a condenação da Ré a restituir à Autora a quantia de € 160 000,00, a título de enriquecimento sem causa.
d) Em qualquer caso, a condenação da Ré a pagar juros de mora, à taxa legal, contados desde a citação e até efetivo e integral pagamento.

Alegou, em síntese, que: em cumprimento do previsto no referido contrato-promessa, ao qual foi atribuída eficácia real, a promitente-compradora entregou aos promitentes-vendedores € 160 000,00, a título de sinal e de adiantamento da totalidade do preço convencionado como contrapartida pela transmissão da propriedade sobre o prédio; por sua vez, os promitentes-vendedores entregaram à promitente-compradora o prédio que, assim, entrou na posse desta; no referido contrato-promessa, foi atribuída à promitente-compradora a faculdade de nomear pessoa para assumir a sua posição contratual; no exercício dessa faculdade, a promitente-compradora nomeou a Autora para assumir a sua posição contratual, o que comunicou aos insolventes por carta registada de 11 de maio de 2017, que fez acompanhar de uma declaração de ratificação subscrita pela nomeada; declarada a insolvência dos promitentes-compradores, por sentença de 25 de janeiro de 2021, o administrador da insolvência nomeado apreendeu o prédio para a massa insolvente e procedeu à sua venda a terceiro; com isso, tornou impossível o cumprimento do contrato-promessa, em violação do disposto no art. 106/1 do CIRE; a Autora tem direito à restituição do sinal em dobro, o que constitui uma dívida da massa insolvente, atento o disposto no art. 442/2 do Código Civil e no art. 51 do CIRE; assim não sendo entendido, tem, pelo menos, direito à restituição do sinal em singelo, quanto mais não seja como forma de evitar um enriquecimento indevido da Ré.

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2) A Ré, representada pelo administrador da insolvência nomeado, contestou dizendo, também em síntese, que: a Autora carece de legitimidade para a ação, uma vez que não é parte no contrato-promessa nem nunca adquiriu, por forma válida e eficaz, a posição jurídica da promitente-compradora; a promitente-compradora exerceu sempre os direitos que para si resultaram do contrato-promessa, designadamente ao reclamar o crédito derivado do seu incumprimento pelos promitentes-vendedores no âmbito do processo especial para acordo de pagamento que antecedeu o processo de insolvência; a aceitação desse incumprimento significa que o contrato-promessa já não estava em vigor aquando da declaração de insolvência; de qualquer modo, depois de declarada a insolvência, a promitente-compradora interpelou o administrador da insolvência para que fosse celebrado o contrato definitivo; este, tendo constatado que a coisa prometida vender nunca havia sido entregue à promitente-compradora, optou pelo não cumprimento do contrato-promessa; em conformidade, procedeu à apreensão do prédio prometido vender para a massa insolvente; foi reconhecido no processo de insolvência um crédito de € 160 000,0 da promitente-compradora relativo ao incumprimento, imputado aos insolventes, do contrato-promessa; um eventual crédito da Autora, que apenas poderia consistir na restituição do sinal prestado, sempre seria uma dívida da insolvência, pelo que teria de ser reclamando através de ação de verificação ulterior de créditos,  nos termos previstos no art. 146 do CIRE, cujo prazo de propositura estava já esgotado à data da apresentação da petição inicial; desconhece a nomeação da Autora para ocupar a posição da promitente-compradora e a sua notificação aos insolventes.
Concluiu que a ação deve improceder, com a consequente absolvição da Ré dos pedidos formulados.
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3) Na sequência de despacho judicial, a Autora apresentou resposta à contestação dizendo, sempre em síntese, que: dispõe de legitimidade ativa, de acordo com a causa de pedir gizada na petição inicial; o pedido não assenta em crédito existente à data da declaração de insolvência, mas em crédito que adveio à Autora no âmbito da liquidação e em resultado da atuação do administrador da insolvência, pelo que a sua reclamação deve ser feita através de ação comum e não através da ação de verificação ulterior de créditos prevista no art. 146 do CIRE; o crédito reconhecido à promitente-compradora nos autos de insolvência corresponde a uma cláusula penal e não à restituição do preço convencionado.
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4) Os insolventes apresentaram nos autos, no dia 18 de abril de 2024, cópia da carta que lhes foi enviada, com registo de 11 de maio de 2017, pela sociedade EMP01... A, contendo a declaração de ratificação do contrato-promessa alegadamente subscrita pela Autora.
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5) Notificada, a Ré veio dizer, por requerimento apresentado no dia 7 de maio de 2024, que a referida ratificação não observa “a forma exigida por lei para ser válida e eficaz”, sendo assim “nula e de nenhum efeito.”
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6) Por requerimento apresentado a 8 de maio de 2024, a Autora apresentou “termo de autenticação da/e a ratificação que efetuou do contrato-promessa de compra e venda”, datado de 6 de maio de 2024.
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7) A Ré pronunciou-se dizendo que a autenticação da ratificação, realizada depois da alegada comunicação desta aos promitentes-compradores, não supre a nulidade decorrente da forma legalmente exigida para o ato.
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8) Realizou-se a audiência prévia, com audição das partes sobre o aspeto jurídico da ação, atenta a possibilidade de esta ser imediatamente decidida, e, após, foi proferido despacho classificado como saneador-sentença, datado de 12 de julho de 2024, em que o Tribunal de 1.ª instância, depois de ter fixado o valor processual em €320 000,00 e de ter afirmado tabularmente a verificação dos pressupostos processuais relativos ao tribunal e à personalidade e capacidade judiciárias das partes, bem como a inexistência de nulidades processuais, decidiu julgar a ação improcedente e absolver a Ré dos pedidos formulados pela Autora, o que fez com base na seguinte fundamentação (transcrição):

“(…) vem pelos RR. arguida a ilegitimidade da A. para a presente causa, pois nada contratou com a R., não alegando ou provando que lhe foi transmitida a posição contratual de promitente compradora no contrato promessa que refere.
Por outro lado, invoca, ainda, a extemporaneidade da ação, pois há muito decorreu o prazo para impugnação do crédito reconhecido à EMP01..., SA.
Defende-se, também, por impugnação.
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Por forma a decidir da exceção de ilegitimidade, há que considerar os seguintes factos, que considero provados:

Da petição inicial
1. Em ../../2014, os insolventes prometeram vender a EMP01..., SA, que lhes prometeu comprar, livre de ónus ou encargos, e inteiramente devoluta de pessoas e coisas, o seguinte imóvel: -pelo preço de cento e sessenta mil euros, o prédio urbano sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., composto de moradia de cave, ..., ... andar e anexos, de tipologia T-três, destinada a habitação, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...01 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...23, conforme tudo melhor consta do documento aqui junto e tipo por reproduzido- doc.1.
2. O convénio acabado de referir foi devidamente registado na mencionada Conservatória pela AP. ...38 de 2014/10/15 - doc.2.
3. A dita promitente compradora pagou aos insolventes o preço de 160000,00 € referente à prometida venda, sendo que a quantia de 35400,00 € foi paga em momento anterior ao contrato, e a quantia de 124600,00€ foi paga através dos cheques e transferências bancárias cujas cópias aqui junta e tem por reproduzidas- doc.s 3 a 11.
4. De acordo com o convénio, os insolventes consumaram a tradição do objeto mediato para a promitente compradora a qual, por sua vez, o deu de arrendamento a um terceiro, que tomou de arrendamento à referida promitente compradora.
5. A mencionada promitente compradora intentou contra os insolventes ação judicial que correu termos sob o processo nº2224/16.... do Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira - Juiz ... na qual peticionou a condenação dos insolventes “ … em verem retificado o parágrafo quarto de fls. 35 verso, da escritura de ../../2014, lavrada a fls. 34 e seg.s do Livro ...1-A do Cartório Notarial a cargo da Notária DD, no sentido de se declarar como aí escrito que o segundo outorgante “declarou que aceita este contrato para a sua representada, e que, também em nome dela, se reserva a faculdade de designar outra(s) pessoa(s) para assumir a sua posição neste contrato promessa, como se com essa(s) pessoa(s) o contrato tenha sido celebrado, mantendo-se os demais exatos termos da escritura, com custas pelos réus.”, como advém da petição inicial desses autos aqui junta por cópia e tida por reproduzida- doc.12.
6. Por sentença transitada em julgado proferida no processo identificado no artigo que antecede, foi homologada a transação judicial celebrada entre a promitente compradora e os insolventes, nos termos da qual estes confessaram o pedido acima exarado, como tudo resulta dos documentos aqui juntos e tidos por reproduzidos- doc.s 13 e 14.
7. Por carta registada de 11-5-2017, a qual continha a ratificação da aqui A., a promitente compradora comunicou aos insolventes, designadamente que “Relativamente ao contrato promessa de compra e venda de ../../2014 celebrado com V.Ex.ªs a folhas 34 do Livro ...1-A do Cartório Notarial a cargo da Notaria EE, vimos confirmar a indicação que já fizemos, de que nomeamos como promitente compradora a pessoa a seguir identificada, com quem devem formalizar a transmissão definitiva do imóvel: AA, divorciada, natural de ..., residente Av. .... ... ..., ..., titular do NIF...56 e portadora do B.l. nº...57 7 emitido em ../../2007 pelos Sic de ... e valido até ../../2018.”- doc.s 15, 16 e 17.
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A decisão sobre a matéria de facto resulta, quanto aos factos provados, da sua admissão por falta de legal impugnação dos documentos em que assentam e foram indicados à frente de cada um.

De Direito

É o artigo 30.º do CPC que nos dá o conceito de legitimidade quando dispõe:
1 - O autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar; o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
2 - O interesse em demandar exprime-se pela utilidade derivada da procedência da ação; o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
3 - Na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.

Daqui decorre que a legitimidade processual é o pressuposto adjetivo através do qual a lei seleciona os sujeitos de direito admitidos a participar em cada processo trazido a Juízo, sendo que ressalta da previsão adjetiva civil consignada que o critério para apreciar da legitimidade ativa, prende-se com o “interesse direto em demandar” manifestado na utilidade que resulta da procedência da ação, enquanto sujeito da relação material controvertida tal como é configurada pelo autor.
Donde, será suficiente uma afirmação alicerçada em factos da titularidade dum interesse direto e pessoal, designadamente, por ter sido lesada por ato (ação e/ou omissão), nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos, para se reconhecer um juízo positivo sobre o reconhecimento da legitimidade ativa.
Nesta sede o preenchimento do requisito da legitimidade processual (entendido como condição para a obtenção de uma pronúncia sobre o mérito da causa, e não como uma condição de procedência da ação) não exige a verificação da efetiva titularidade da situação jurídica invocada pelo demandante, bastando a alegação dessa mesma titularidade, elegendo-se a titularidade da “relação material controvertida” tal como a mesma foi alegada no articulado inicial, como critério definidor do referido pressuposto processual.
Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o novo processo civil, Lex, 1997, defende que a legitimidade, enquanto pressuposto processual geral, constitui uma condição cuja verificação é indispensável à obtenção da pronúncia judicial sobre o mérito da causa. Esta consiste numa posição concreta da parte perante uma causa, por isso, a legitimidade “não é uma qualidade pessoal, é antes uma qualidade posicional da parte face à ação”, apurando-se em função da titularidade dos interesses emergentes da relação controvertida tal como ela é configurada pelo autor no momento da sua propositura (isto é, na petição inicial).
Assim, a legitimidade processual caracteriza a concreta posição de quem é parte numa causa, “perante o conflito de interesses que aí se discute e pretende resolver”, posição essa que é “o ser-se a pessoa (ou pessoas) cuja procedência da ação lhes atribui uma situação de vantagem (autor) ou a pessoa ou as pessoas a quem essa procedência causa uma desvantagem”, o réu, cf. Remédio Marques, Ação Declarativa à Luz do Código Revisto, 3.ª edição, Coimbra Editora, 2011, páginas 372/373.» - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 15.12.2006, no Processo 28/16.9T8FLG.P1.
«Como todos sabemos, o Código de Processo Civil – na configuração da legitimidade - optou por uma fórmula prática. Ao falar em relação material controvertida aponta para aquilo que o autor tenha querido apresentar em juízo - artº 26.º nº 3 (correspondente ao atual art. 30.º).
Pode ler-se no Acórdão do STJ de 03.04.76, retirado do BMJ nº 256.º, pág. 112, que “a legitimidade é uma posição do autor e de réu em relação ao objeto do processo e tem de aferir-se, antes de mais, pelos termos em que o demandante configura o direito invocado e a ofensa que lhe foi feita”.
Sendo o objeto inicial do processo constituído pelo pedido e pela respetiva fundamentação, mas conferindo-se a esta, em sede de objeto do processo, apenas uma função individualizadora daquele, será aquele pedido a realidade aferidora da legitimidade de qualquer parte.
Assim, a ilegitimidade de qualquer das partes só se verificará quando em juízo se não encontrar o titular ou titulares da relação material controvertida ou quando legalmente não for permitida a titularidade daquela relação.
Entendimento diverso conduz a uma lastimável confusão entre legitimidade e procedência. Para a legitimidade processual ter algum conteúdo, deve entender-se que ele não se resume a uma questão de palavras: não chega, para que ela se tenha por verificada, que o autor diga, vocabularmente, que o réu ou requerido tem interesse em contradizer por ser titular da relação jurídica material objeto da controvérsia.
Há que ponderar, do conjunto da pretensão deduzida - pedido e causa de pedir - se o autor apresenta o demandado ou requerido como titular da posição controvertida ou se, tudo somado, ele não alega, sequer, uma posição consistente.» - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 09-04-2013, no Processo 330/09.6TBMLD-A.C1.
«I - A parte terá legitimidade, como réu, se for ela a pessoa que juridicamente se pode opor à pretensão, por ser a pessoa cuja esfera jurídica é diretamente atingida pela providência requerida.

A legitimidade é um pressuposto processual, isto é, um requisito do qual depende o dever do juiz proferir uma decisão sobre o fundo, o mérito da causa.
Com efeito, para que o juiz possa conhecer do mérito da causa, torna-se necessário que as partes, além de possuírem personalidade e capacidade judiciárias, tenham legitimidade para a ação.
Enquanto a personalidade e a capacidade judiciárias constituem uma qualidade das partes, genericamente exigida para todos os processos ou alguns deles, a legitimidade consiste na posição da parte numa determinada ação. Significa que o autor é o titular do direito e que o réu é o sujeito da obrigação, considerando que o direito e a obrigação na verdade existam.
Ou seja, através da legitimidade processual visa-se determinar qual é a posição das partes em face do pedido formulado. Pretende-se saber se são ou não os titulares da relação jurídica litigada, supondo que ela existe.
Assim, a parte terá legitimidade como autor, se for ela quem juridicamente pode fazer valer a pretensão em face do réu, admitindo que a pretensão exista. A parte terá legitimidade como réu, se for ela a pessoa que juridicamente se pode opor à pretensão, por ser a pessoa cuja esfera jurídica é diretamente atingida pela providência requerida.
Se tal não se verificasse, a decisão que viesse a ser proferida sobre o mérito da causa não teria eficácia, visto que não poderia vincular os verdadeiros titulares da relação jurídica litigiosa, ausentes da lide.
O artigo 26º, n.º 1 define a legitimidade, servindo-se do critério do direto interesse que a parte pode ter em demandar ou em contradizer. Assim, o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar e o réu é parte legítima quando tem interesse direto em contradizer.
O interesse significa a utilidade para o autor e o prejuízo para o réu.
Neste sentido, dispõe o n.º 2 do artigo 26º que o interesse em demandar se exprime pela utilidade derivada da procedência da ação e o interesse em contradizer, pelo prejuízo que dessa procedência advenha.
A lei procura ainda dar uma maior precisão a estes conceitos, por forma a afastar, tanto quanto possível, as dúvidas quanto á legitimidade das partes. Assim, o n.º 3 do mesmo artigo 26º dispõe que, na falta de indicação da lei em contrário, são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor.» - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25.10.2012, no Processo 344/07. 0TBCPV.P2.S1.
O Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 9.4.2013, no Processo 330/09.6TBMLD-A.C1, ensinou assim:
Sumário:
I. No tocante à legitimidade, a intenção do legislador foi a de a desvalorizar enquanto pressuposto processual, com o propósito de dar prevalência à decisão de mérito relativamente à decisão de pura forma, circunscrevendo as situações de ilegitimidade àqueles casos em que da própria exposição da situação da situação de facto controvertida, cuja existência tem de pressupor, se exclui a individualização por parte de alguns dos sujeitos presentes na causa - é de toda a conveniência não confundir legitimidade para pedir ou requerer ou para contradizer, com a procedência ou mérito do pedido ou do requerimento.
Este mesmo sentido de fazer prevalecer a decisão de fundo sobre a decisão formal constava já do n.º 3 do art. 288.º do CPC anterior e mantém-se no n.º 3 do art. 278.º do CPC vigorante quando determina:
3 — As exceções dilatórias só subsistem enquanto a respetiva falta ou irregularidade não for sanada, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º; ainda que subsistam, não tem lugar a absolvição da instância quando, destinando-se a tutelar o interesse de uma das partes, nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.
Ou seja: se dúvidas houver quanto à legitimidade de uma Parte, não se julgará procedente a exceção dilatória da sua ilegitimidade e decidir-se-á de fundo quando nenhum outro motivo obste, no momento da apreciação da exceção, a que se conheça do mérito da causa e a decisão deva ser integralmente favorável a essa parte.
Julgou o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão de 02-06-2015, que “É a legitimidade processual aferida pela relação das partes com o objeto da ação, consubstanciada na afirmação do interesse daquelas nesta, podendo acontecer situações em que a esses titulares não seja reconhecida a legitimidade processual, ao passo que, quanto a certos sujeitos, que não são titulares do objeto do processo, pode vir a ser reconhecida essa legitimidade.
Assim, a mera afirmação pelo autor de que ele próprio é o titular do objeto do processo não apresenta relevância definitiva para a aferição da sua legitimidade, que, aliás, não depende da titularidade, ativa ou passiva, da relação jurídica em litígio, sendo manifesta a existência de legitimidade processual nas ações que terminam com a improcedência do pedido fundada no reconhecimento de que ao autor falta legitimidade substantiva, pelo que, só em caso de procedência da ação, passa a existir fundamento material para sustentar, «a posteriori», quer a legitimidade processual, quer a legitimidade material, e ainda que, sempre que o Tribunal reconhece a inexistência do objeto da ação ou a sua não titularidade, por qualquer das partes, essa decisão de improcedência consome a apreciação da ilegitimidade da parte, pelo que, de uma forma algo redutora, as partes são consideradas dotadas de legitimidade processual até que se analise e aprecie a sua legitimidade substantiva”.
Com efeito, uma coisa é a legitimidade processual, constituindo um pressuposto processual relativo às partes, que se afere, na falta de indicação da lei em contrário, face à relação material controvertida tal como configurada pelo A., e cuja falta, determina a verificação da correspondente exceção dilatória, dando lugar à absolvição do Réu da instância (cf. artigos 576º, n.º 2 e 577º, alínea e), ambos do Código de Processo Civil) e outra, a legitimidade substancial ou substantiva, que tem que ver com a efetividade da tal relação material, interessando já ao mérito da causa.
Como se refere naquele Acórdão, “Assimilando Castro Mendes esta última reporta-se às “condições subjetivas da titularidade do direito”, tratando-se de “uma figura diferente daquela que temos vindo estudando. Assim, se o tribunal conclui pela ilegitimidade, entra no mérito da causa (tal pessoa não tem o direito de anular o contrato; tal pessoa não é credora de perdas e danos; etc. …) e profere uma absolvição do pedido. Estamos em presença da legitimidade em sentido material. Saliente-se, porém, que é figura diversa daquela a que se referem os artigos 24º, 26º, 288º, 494º (do Código de Processo Civil de 1961) etc. …, e em que temos vindo falando – aquilo que designaremos sempre por legitimidade “tout court”, a legitimidade processual ou em sentido processual”.
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A noção de contrato promessa resulta da redação do art. 410°, n° 1, CC: é a convenção pela qual ambas as partes, ou apenas uma delas (art. 411.°), se obrigam a celebrar determinado contrato.
Contrato promessa é a «convenção pela qual alguém se obriga a celebrar certo negócio jurídico», noção com que se abrange tanto negócios bilaterais ou contratos de eficácia real (compra e venda, trespasse, cessão de quotas) ou meramente obrigacional (locação, sociedade, mandato, trabalho) como negócios unilaterais – confirmação, resolução, denúncia, declaração de voto.
Do contrato promessa nasce uma obrigação de prestação de facto positivo, a obrigação de emitir a declaração de vontade correspondente ao negócio cuja realização se pretende assegurar, o negócio prometido.
O contrato promessa de compra e venda não transfere a propriedade, transferência esta que só ocorrerá quando e por força da outorga do negócio prometido, a prometida compra e venda, ou pela execução específica da promessa de venda, em que a sentença substitui a declaração de venda do faltoso – art. 830.º do CC.

Nos termos do disposto no art. 413º do CC:
1 - À promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre bens imóveis, ou móveis sujeitos a registo, podem as partes atribuir eficácia real, mediante declaração expressa e inscrição no registo.
2 - Salvo o disposto em lei especial, deve constar de escritura pública ou de documento particular autenticado a promessa a que as partes atribuam eficácia real; porém, quando a lei não exija essa forma para o contrato prometido, é bastante documento particular com reconhecimento da assinatura da parte que se vincula ou de ambas, consoante se trate de contrato-promessa unilateral ou bilateral.
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Estipula o artigo 424,1 C. Civil, que no contrato com prestações recíprocas, qualquer das partes tem a faculdade de transmitir a terceiro a sua posição contratual desde que o outro contraente antes ou depois da celebração do contrato consinta na transmissão.
Como se lê no Acórdão do STJ, de 5-1-04 – “trata-se de um contrato translativo pelo que implica a extinção subjetiva relativamente ao cedente, após transferência da relação contratual para o cessionário, tornando-se este o único titular da posição contratual. O cessionário subingressa na posição contratual do cedente, ou seja no conjunto de direitos, deveres e situações subjetivas que a integram. A relação contratual adquirida pelo cessionário permanece idêntica, apesar da modificação de sujeitos.
Para isso é, obviamente, necessário que o outro contraente dê o seu consentimento antes ou depois da cessão.
Ora, no caso em apreço, não foi alegado, ou provado que tenha havido esse consentimento, nem, em bom rigor, se pode dizer que tenha existido qualquer contrato.
Apenas se provou que por carta registada de 11-5-2017, a EMP01..., SA comunicou aos insolventes que “Relativamente ao contrato promessa de compra e venda de ../../2014 celebrado com V.Ex.ªs a folhas 34 do Livro ...1-A do Cartório Notarial a cargo da Notaria EE, vimos confirmar a indicação que já fizemos, de que nomeamos como promitente compradora a pessoa a seguir identificada, com quem devem formalizar a transmissão definitiva do imóvel: AA, divorciada, natural de ..., residente Av. .... ... ..., ..., titular do NIF...56 e portadora do B.l. nº...57 7 emitido em ../../2007 pelos Sic de ... e valido até ../../2018.” Conforme documentos juntos aos autos sob os n.ºs 15, 16 e 17.
Conforme jurisprudência prevalecente, tem-se entendido que constando do contrato promessa de compra e venda uma cláusula segundo a qual a escritura pública de venda (contrato-prometido) será feita ao promitente comprador a pessoa por este a indicar, não configura um contrato para pessoa a nomear, porque o promitente-comprador não se reservou o direito de indicar pessoa que o substituísse como tal, ou seja, como promitente-comprador, mas sim como comprador efetivo (cf., por ex., Ac do STJ de 23/1/1986, BMJ 353, pág.429; de 16/10/1990, BMJ 400, pág. 612).
Não sendo a Autora parte no contrato promessa de compra e venda, questionar-se-á, portanto, se houve cessão da posição contratual.
A cessão da posição contratual (art. 424 CC) consubstancia um negócio em que um dos contraentes (cedente), num contrato de prestações recíprocas, transmite a um terceiro (cessionário), com o consentimento do outro contraente (cedido), o complexo dos direitos e obrigações que lhe advieram desse contrato (contrato base).
Implica, portanto, uma modificação subjetiva dos sujeitos da relação contratual, que permanece objetivamente a mesma. Para o terceiro (cessionário) é transmitida a posição contratual no seu todo (teoria unitária), ou seja a posição global do cedente existente no momento da eficácia do negócio. Deste modo, a transmissão da posição contratual produz a liberação do cedente em face do cedido, no momento em que foi notificada ao cedido ou a aceitou, pois a partir daí o cessionário passa a ocupar o lugar do cedente no contrato inicial, com o complexo de direitos e obrigações.
Como se lê no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24-2-15, Existe um contrato base ou contrato inicial (realizado originariamente entre cedente e cedido) e o contrato instrumento da cessão (entre cedente e cessionário), através do qual se dá a transmissão.
Por força do art.º 425 CC, a forma de transmissão, a capacidade, a falta e vícios de vontade definem-se em função do tipo de negócio que serve de base à cessão (por ex., compra e venda, doação, dação em pagamento, etc.), significando que as relações entre o cedente e o cessionário estão sujeitas ao regime legal e convencional que regula o contrato que fundamentou a cessão, sendo, por isso, a cessão qualificada como “contrato de causa variável”.
Ora, como supra se viu, no caso vertente, não se comprova a cessão da posição contratual do promitente comprador (EMP01..., SA) para a Autora. A remessa de mera carta registada não integra os elementos necessários ao aludido contrato de cessão.
Em primeiro lugar, porque não está demonstrado o consentimento dos promitentes vendedores (cedidos), expresso ou tácito, antes ou depois da cessão, o que implica, para uns, a incompletude do contrato de cessão, por ausência de elemento essencial (cf. por ex., MOTA PINTO, Cessão da Posição Contratual, pág.474) ou a mera condição de ineficácia, para outros (cf., por ex., CARVALHO FERNANDES, A Conversão dos Negócios Jurídicos, pág.868 e segs.).
Por outro lado, ainda que estivessem reunidos os pressupostos de validade substancial, seria exigível a forma escrita da cessão, enquanto formalidade ad substantiam, logo o contrato de cessão da posição contratual seria nulo, por vício de forma (art.º 220 CC).
É jurisprudência corrente que quanto à forma da cessão da posição contratual do promitente vendedor se aplicam as exigências de forma do contrato promessa a que se reporta a cessão (cf. Ac STJ de 21/6/2007, proc. nº 07B1974; Ac RL de 10/9/2009, proc. nº 4595/07), disponíveis em www dgsi.pt; e Ac RC de 25/3/93, C.J. ano XVII, tomo III, 43).
Ensina VAZ SERRA que “ no caso da cessão da posição contratual do promitente comprador, as razões por que a lei (art.410 nº2 C Civil) exige documento assinado pelo promitente para a validade da promessa de compra são igualmente aplicáveis à cessão da posição contratual desse promitente, já que o cessionário irá ocupar a posição do cedente, não havendo mais razão para com o fim de proteger o promitente contra a precipitação e ligeireza, se exigir forma especial (documento assinado) para a declaração negocial do primitivo promitente comprador do que para o novo promitente comprador (cessionário)“ - RLJ ano 108, pág. 346.
Por conseguinte, conclui-se pela não comprovação da cessão da posição contratual e a existir seria formalmente nula.
Sendo assim, porque não houve cessão da posição contratual, não pode a Autora exigir a indemnização com fundamento no incumprimento do contrato promessa de compra e venda.
Assim, tendo a A invocado, como causa de pedir do pedido que deduz contra a ora R, factos que nenhum direito seu são suscetíveis de fundamentar, não é dotada de legitimidade substantiva.”
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9) Inconformada, a Autora (daqui em diante, Recorrente) interpôs o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, estas do seguinte teor (transcrição):
(…)
Pediu a revogação da decisão recorrida, “com as legais consequências” (sic).
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10) A Ré (daqui em diante, Recorrida) respondeu, pugnando pela improcedência do recurso.
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11) O recurso foi admitido como apelação, com subida nos autos e efeito meramente devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal ad quem.
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12) Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, ambos do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC).
Tendo isto presente, as questões que se colocam no presente recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos:
Primeira: saber se a decisão recorrida padece de deficiência no que tange à matéria de facto, ut art. 662/2, c), do CPC, por ter omitido, nessa sede, o facto descrito na Conclusão 2;
Segunda: independentemente da resposta à questão anterior, saber se a decisão recorrida incorreu em error in iudicando (ut art. 639/2, b), do CPC) quando julgou a ação improcedente por ter entendido  que a Recorrente não dispõe de legitimidade (substantiva) para exigir indemnização pelo incumprimento do contrato-promessa celebrado entre a sociedade EMP01..., SA, e os insolventes, visto não ser parte em tal negócio, quando na verdade substituiu a promitente-compradora nos respetivos direitos e obrigações, em virtude de ter sido designada para esse efeito, com arrimo em cláusula contratual.
Terceira: em caso de resposta negativa à segunda questão com fundamento na nulidade, por vício de forma, do instrumento de ratificação do contrato, saber se a alegação deste pela Recorrida conforma um abuso do direito, tornando este ilegítimo, tudo se devendo passar como se tal vício não existisse.
Esta última é, como facilmente se constata, uma questão que não foi colocada ao Tribunal a quo. Entende-se, no entanto que o conhecimento ex officio do abuso do direito se impõe sempre que os pressupostos factuais tenham sido alegados e provados e desde que as suas consequências estejam compreendidas no pedido, o que encontra apoio legal no art. 334 do Código Civil e no art. 5.º/3 do CPC. Na verdade, os Tribunais não podem deixar de, por si e em qualquer momento, ponderar os valores fundamentais do sistema, que tudo comporta e justifica, no que não estão vinculados às alegações jurídicas das partes. Neste sentido, RC 2.12.2008 (162/06.3TBVLF.C1), relatado por Teles Pereira. Na doutrina, António Menezes Cordeiro (Litigância de Má-fé, Abuso do Direito de Ação e Culpa In Agendo, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2014, p. 133).
Por outro lado, tendo a questão sido suscitada nas conclusões do recurso, a Recorrente exerceu já o contraditório em relação a ela na resposta adrede apresentada.
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III.
1).1. Na resposta à 1.ª questão, começamos por lembrar que o art. 607/4 do CPC, dando cumprimento ao disposto no art. 205/1 da CRP, diz que o juiz deve, na fundamentação da sentença, declarar quais os factos que julga provados e quais os factos que julga não provados.
Estão em causa, como se afigura axiomático, os factos essenciais, necessariamente alegados pelas partes nos respetivos articulados em substanciação da causa de pedir ou das exceções perentórias aduzidas ou do conhecimento oficioso ainda não apreciadas no despacho saneador (art. 5.º/1 do CPC). Estão também em causa os factos complementares e os factos concretizadores dos factos essenciais, quer tenham sido alegados pelas partes – nos articulados ou em resposta a um eventual despacho de aperfeiçoamento, cf. art. 590/4 do CPC –, quer resultem da instrução da causa, desde que, neste caso, a sua aquisição tenha sido precedida de contraditório (art. 5.º/2, b), do CPC).
Compreende-se que assim seja: conforme explica Manuel Tomé Soares Gomes (“Da Sentença Cível”, AAVV, O Novo Processo Civil. Textos e Jurisprudência, Lisboa: CEJ, 2015, p. 342), “o facto essencial não é consubstanciado num núcleo definido e cerrado, mas irradia-se numa multiplicidade de circunstâncias moleculares que, na sua aglutinação, preenchem o conceito indeterminado ou a cláusula genérica da fattispecie normativa. É sobretudo no âmbito deste tipo de factos complexos que podem ocorrer concretizações ou complementaridades dimanadas da produção da prova em audiência, suscetíveis de levar ao ajustamento do contexto narrativo dos articulados ao contexto histórico do litígio.”
A inobservância desta regra pode gerar uma de duas patologias, consoante o respetivo grau: a total omissão da enumeração dos factos provados e não provados é causa da nulidade da sentença, nos termos previstos no art. 615/1, b), a qual carece, de acordo com a doutrina e a jurisprudência maioritárias, de arguição, por via de recurso, quando este seja admissível, ou, não o sendo, por via de reclamação (art. 617/1 e 6 do CPC); a enumeração feita em termos deficientes, obscuros e contraditórios quanto a determinados pontos tem como consequência a nulidade da sentença, na parte afetada, nos termos previstos no art. 662/2, c), do CPC, a qual é do conhecimento oficioso.
Centrando a atenção na segunda patologia, podemos assentar, com base na lição de Manuel Tomé Soares Gomes (loc. cit., p. 374), que os enunciados de facto são deficientes quando expressam um sentido incompleto do juízo probatório, nos seus próprios termos, não abrangem toda a factualidade relevante ou quando não cobrem, de forma positiva ou negativa, todo o facto enunciado como provado. São obscuros quando se apresentam “vagos, ininteligíveis, equívocos ou imprecisos”. E são contraditórios quando exprimem sentidos reciprocamente excludentes.
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1).2. No caso vertente, a Recorrente afirmou (Conclusão 2) que deve ser aditado à matéria de facto provada que ela própria, “pelo documento autêntico junto aos autos pelo requerimento ref. Citius 48841652, de 8.05-2024”, declarou que, “ em 11 de maio de 2017 e por sua livre vontade, ratificou o contrato promessa de compra e venda celebrado em ../../2014 a folhas 34 do Livro ...1-A do Cartório Notarial a cargo da Notária Drª DD 0-05 2011 entre a EMP01..., S.A. e BB e mulher CC, por ter sido por aquela sociedade nomeada como promitente-compradora do imóvel melhor identificado no contrato, ratificação essa que hoje aqui reitera, com seus efeitos a partir daquela declaração e data.”
Está aqui em causa a confirmação do ato de ratificação do contrato-promessa, como meio de suprimento da sua nulidade formal.
Como veremos com mais pormenor na resposta à segunda questão, a ratificação do contrato-promessa – entenda-se, a ratificação feita de forma válida e eficaz –, é necessária para que a Recorrente possa considerar-se como substituta da EMP01..., S.A., nos direitos e obrigações que esta assumiu contratualmente com os insolventes. Sem ela, a Recorrente não dispõe de legitimidade substantiva para exigir dos promitentes-vendedores o cumprimento das obrigações por estes assumidas nem para exercer pretensões indemnizatórias derivadas de um eventual incumprimento.
Daí que se afigure evidente que a ratificação constitui um facto constitutivo do direito que a Autora pretende exercer através da ação e, nessa medida, um facto essencial. Sendo ela nula, pela razão indicada (inobservância da forma legal), a prática de um subsequente ato de confirmação, enquanto elemento integrador do negócio, assume a mesma natureza.
Tendo isto presente, podemos concluir que qualquer um destes factos – ratificação e sua confirmação – tinham a sua sede própria de alegação na petição inicial. Na verdade, como ensinam José Alberto dos Reis (Código de Processo Civil Anotado, III, 4.ª ed., Reimpressão, Coimbra: Coimbra Editora, 1985, pp. 85-86), João de Castro Mendes, Direito Processual Civil, II, Lisboa: AAFDL, 1987, p. 219) e Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 588), a forma da declaração é facto constitutivo do negócio jurídico, pelo que integra a causa de pedir em ação (de validade ou de cumprimento) que nele se funda. Em decorrência, a invocação da nulidade por inobservância da forma legal não constitui defesa por exceção perentória, mas por mera impugnação (motivada), ao contrário do que sucede quando tal nulidade derive de factos extrínsecos ao próprio negócio, como sucede, por exemplo, com a simulação.
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1).3. A questão que se coloca é, portanto, a de saber se o facto em questão, constitutivo do direito da Recorrente, foi introduzido no objeto processual.
Como vimos, o art. 5.º do CPC trata da repartição de poderes entre as partes e o tribunal, quer quanto à matéria de facto (n.º 1 e 2), quer quanto à matéria de direito (n.º 3).
Relativamente à matéria de facto, o regime é o seguinte, de acordo com a sistematização de Miguel Teixeira de Sousa (Código de Processo Civil Online, CPC: art. 1.º a 129.º, Versão de 2024/07, pp. 8-9): “(i) as partes têm o ónus de alegação da causa de pedir e do fundamento das exceções (n.º 1); (ii) sem prejuízo da sua alegação pelas partes, podem ser considerados pelo tribunal quer os factos complementares e os factos probatórios (ou instrumentais) que sejam apurados durante a instrução da causa (n.º 2, al. a) e b)), quer ainda os factos notórios e os factos de conhecimento funcional (n.º 2, al. c)).”
Daqui resulta que apenas os factos que integram a causa de pedir ou o fundamento da exceção estão na completa disponibilidade das partes, de tal modo que não podem ser conhecidos pelo tribunal se não forem alegados por elas. Ressalvam-se as situações em que ao tribunal se impõe o conhecimento de factos não alegados pelas partes, por força da atribuição específica de poderes inquisitórios, como sucede nos processos de jurisdição voluntária (art. 986/2), em que sobressai o interesse público na busca da verdade.
Os articulados constituem a sede própria para as partes introduzirem factos essenciais no objeto do processo. Assim, o autor deve alegar, na petição inicial, os factos que integram a causa de pedir – que são (apenas) os necessários para individualizar o direito ou interesse que pretende tutelar em juízo, conforme foi entendido em RG 19.12.2023 (7057/18.6T8BRG-A.G1), do mesmo relator; o réu deve alegar, na contestação, os factos que servem de fundamento da exceção (perentória: art. 576/1 e 3 do CPC); havendo reconvenção, o autor reconvindo deve alegar, na réplica, os factos que servem de fundamento à exceção que deduza quanto a tal pretensão; não havendo, o autor deverá alegar os factos que funcionam como contra-exceção nos termos previstos no art. 3.º/4 do CPC.
A introdução de novos factos fora destes momentos processuais apenas é possível nas situações de superveniência, seja objetiva, seja subjetiva. A parte tem então ao seu dispor a possibilidade (rectius, o ónus) de apresentar um articulado superveniente.
Neste sentido, diz o n.º 1 do art. 588 do CPC que “[o]s factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão.” O n.º do mesmo preceito acrescenta que “[d]izem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência.”
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1).4. Isto dito, está em causa um facto que, como vimos, sendo constitutivo, não foi alegado na petição inicial, o que se compreende: a sua ocorrência (no dia 6 de maio de 2024) é ulterior à apresentação daquele articulado.
Estamos perante uma superveniência objetiva.
Deste modo, a introdução do facto no objeto processual estava dependente da apresentação de um articulado superveniente, função que nos parece ser suficientemente desempenhada pelo referido requerimento de 8 de maio de 2024.
Na verdade, neste requerimento, não obstante a sua deficiente classificação, a Recorrente alegou, ainda que de forma incipiente, o facto e a sua superveniência – aliás, evidente –, juntando o correspondente meio de prova.
Apesar de tramitação errática que se seguiu a ele – resposta da Recorrida e decisão do mérito da ação, sem que tivesse sido, em algum momento, proferido o despacho liminar de admissão a que alude o art. 588/4 do CPC –, temos que o mesmo constitui mecanismo suficiente para a introdução do facto no objeto processual.
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1).5. Partindo do que antecede, fazendo o facto parte do objeto processual, a sua não consideração na decisão constitui uma deficiência desta, a qual deve ser suprida por este Tribunal ad quem, sem necessidade de anulação da decisão recorrida, em conformidade com o disposto no art. 662/1, c), do CPC, uma vez que os autos fornecem os elementos necessários para esse efeito.
Referimo-nos ao documento apresentado pela Recorrente, o qual constitui prova de que foi emitida por ela mesma a declaração transcrita na Conclusão 2 e, bem assim, a sua autenticação.
Pelo exposto, respondendo afirmativamente à 1.ª questão, determinamos o aditamento ao rol dos factos provados dos seguintes enunciados:
Por escrito datado de 6 de maio de 2024, assinado pelo seu punho, a Autora declarou que “em 11 de maio de 2017 e por sua livre vontade, ratificou o contrato promessa de compra e venda celebrado ...-10-2014 a folhas 34 do Libro 51-A do Cartório Notarial a cargo da Notária Dra. DD 0.05-2011 entre EMP01..., SA, e BB e mulher, CC, por ter sido por aquela sociedade nomeada com promitente-compradora do imóvel melhor identificado no contrato, ratificação que hoje aqui reitera, com seus efeitos a partir daquela declaração e data.”
Essa declaração foi emitada perante FF, na qualidade de colaboradora da Notária GG, com Cartório em ..., a qual lavrou o correspondente termo de autenticação, datado da 6 de maio de 2024, tudo conforme documento apresentado sob a ref. Citius 48841652, de 8 de maio de 2024.
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1).6. Antes de prosseguirmos, impõe-se notar que no ponto 7 da fundamentação de facto da decisão recorrida consta que a carta registada de 11 de maio de 2017 continha a “ratificação da aqui Autora” sem, no entanto, se especificar o conteúdo desta e a forma como a mesma se exteriorizou.
Estamos, assim, perante uma outra deficiência da decisão da matéria de facto, a qual deve ser suprida, com base no documento denominado Ratificação, apresentado com a petição inicial, mediante o aditamento, ao rol dos factos provados, do seguinte enunciado, que será incorporado em seguida ao do referido ponto 7:
A referida ratificação consistia numa declaração escrita, assinada pela Autora, com data de 11 de maio de 2017, do seguinte teor: “AA (…) declara que ratifica o contrato-promessa de compra e venda celebrado em ../../2014 a folhas 34 do Livro ...1-A do Cartório Notarial a cargo da Notária Dra. DD 0-05-2011 entre a EMP01..., SA, e BB e mulher CC, por ter sido por aquela sociedade nomeada como promitente-compradora do imóvel melhor identificado no contrato.”
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1).7. Em decorrência do que antecede, respigamos agora os factos a considerar na resposta à segunda questão, ordenando-os de acordo com a sequência lógica e cronológica que é conforme à realidade histórica[1]:

1. Em ../../2014, os insolventes prometeram vender a EMP01..., SA, que lhes prometeu comprar, livre de ónus ou encargos, e inteiramente devoluta de pessoas e coisas, o seguinte imóvel: -pelo preço de cento e sessenta mil euros, o prédio urbano sito na Rua ..., freguesia ..., concelho ..., composto de moradia de cave, ..., ... andar e anexos, de tipologia T-três, destinada a habitação, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...01 e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo ...23, conforme tudo melhor consta do documento aqui junto e tipo por reproduzido- doc.1.
2. O convénio acabado de referir foi devidamente registado na mencionada Conservatória pela AP. ...38 de 2014/10/15 - doc.2.
3. A dita promitente compradora pagou aos insolventes o preço de 160000,00 € referente à prometida venda, sendo que a quantia de 35400,00 € foi paga em momento anterior ao contrato, e a quantia de 124600,00 € foi paga através dos cheques e transferências bancárias cujas cópias aqui junta e tem por reproduzidas- doc.s 3 a 11.
4. De acordo com o convénio, os insolventes consumaram a tradição do objeto mediato para a promitente compradora a qual, por sua vez, o deu de arrendamento a um terceiro, que tomou de arrendamento à referida promitente compradora.
5. A mencionada promitente compradora intentou contra os insolventes ação judicial que correu termos sob o processo nº 2224/16.... do Juízo Central Cível de Santa Maria da Feira - Juiz ... na qual peticionou a condenação dos insolventes “ … em verem retificado o parágrafo quarto de fls. 35 verso, da escritura de ../../2014, lavrada a fls. 34 e seg.s do Livro ...1-A do Cartório Notarial a cargo da Notária DD, no sentido de se declarar como aí escrito que o segundo outorgante “declarou que aceita este contrato para a sua representada, e que, também em nome dela, se reserva a faculdade de designar outra(s) pessoa(s) para assumir a sua posição neste contrato promessa, como se com essa(s) pessoa(s) o contrato tenha sido celebrado, mantendo-se os demais exatos termos da escritura, com custas pelos réus.”, como advém da petição inicial desses autos aqui junta por cópia e tida por reproduzida- doc.12.
6. Por sentença transitada em julgado proferida [no dia 14 de março de 2017] no processo identificado no artigo que antecede, foi homologada a transação judicial celebrada entre a promitente compradora e os insolventes [datada de 9 de março de 2017], nos termos da qual estes confessaram o pedido acima exarado, como tudo resulta dos documentos aqui juntos e tidos por reproduzidos- doc.s 13 e 14.
7. Por carta registada de 11-5-2017, a qual continha a ratificação da aqui A., a promitente compradora comunicou aos insolventes, designadamente que “Relativamente ao contrato promessa de compra e venda de ../../2014 celebrado com V.Ex.ªs a folhas 34 do Livro ...1-A do Cartório Notarial a cargo da Notaria EE, vimos confirmar a indicação que já fizemos, de que nomeamos como promitente compradora a pessoa a seguir identificada, com quem devem formalizar a transmissão definitiva do imóvel: AA, divorciada, natural de ..., residente Av. .... ... ..., ..., titular do NIF...56 e portadora do B.l. nº...57 7 emitido em ../../2007 pelos Sic de ... e valido até ../../2018.”- doc.s 15, 16 e 17.
8. A referida ratificação consistia numa declaração escrita, assinada pela Autora, com data de 11 de maio de 2017, do seguinte teor: “AA (…) declara que ratifica o contrato-promessa de compra e venda celebrado em ../../2014 a folhas 34 do Livro ...1-A do Cartório Notarial a cargo da Notária Dra. DD 0-05-2011 entre a EMP01..., SA, e BB e mulher CC, por ter sido por aquela sociedade nomeada como promitente-compradora do imóvel melhor identificado no contrato.”
9. Por escrito datado de 6 de maio de 2024, assinado pelo seu punho, a Autora declarou que “em 11 de maio de 2017 e por sua livre vontade, ratificou o contrato promessa de compra e venda celebrado ...-10-2014 a folhas 34 do Libro 51-A do Cartório Notarial a cargo da Notária Dra. DD 0.05-2011 entre EMP01..., SA, e BB e mulher, CC, por ter sido por aquela sociedade nomeada com promitente-compradora do imóvel melhor identificado no contrato, ratificação que hoje aqui reitera, com seus efeitos a partir daquela declaração e data.”
10. Essa declaração foi emita perante FF, na qualidade de colaboradora da Notária GG, com Cartório em ..., a qual lavrou o correspondente termo de autenticação, datado da 6 de maio de 2024, tudo conforme documento apresentado sob a ref. Citius 48841652, de 8 de maio de 2024.
***
2).1. Passamos a dar resposta à segunda questão.
Para tanto, lembramos que a decisão recorrida, sob o pretexto de apreciar a exceção dilatória da ilegitimidade ad causam da Recorrente invocada pela Recorrida na contestação, acabou por situar a questão no plano substantivo, no que denominou de ilegitimidade substantiva. Em conformidade, concluindo que a Recorrente não foi parte no contrato em cujo incumprimento estriba as pretensões deduzidas, julgou a ação improcedente e absolveu a Ré do pedido.
Esta decisão tem implícito um julgamento no sentido da improcedência daquela exceção dilatória, cuja consequência seria a absolvição da instância (art. 278/1, d), do CPC), que não foi questionado no recurso, pelo que as considerações que vamos fazer prendem-se exclusivamente com a dita ilegitimidade substantiva.
***
2).2. Assim dado o mote, cumpre agora dizer, citando RG 9.11.2023 (859/21.8T8PTL.G1), do mesmo relator, que o direito privado importou do direito processual o conceito de legitimidade. Para exercer o direito de ação, não basta ao titular ser capaz. Requer-se ainda que seja parte legítima, isto é, que seja o titular da relação jurídica em litígio. Assim, também no campo do direito civil, a pessoa plenamente capaz de exercer os atos da vida civil vê-se proibida de praticar alguns atos jurídicos em virtude da posição em que se encontra relativamente ao seu objeto. Trata-se de pressuposto diverso do da capacidade, porque a impossibilidade de agir é circunstancial.
Neste sentido, não suscita qualquer dúvida que apenas quem figure num contrato como credor pode exigir do respetivo devedor a realização da prestação debitória e, bem assim, a indemnização decorrente do seu incumprimento. Em contrapartida, a obrigação só vincula o devedor. Só o devedor deve cumprir. Tudo isto decorre de um dos princípios basilares do direito das obrigações: o da relatividade dos contratos, entre nós consagrado no art. 406/2 do Código Civil.[2]
É aqui que entronca a decisão recorrida: o Tribunal a quo entendeu que como a Recorrente não interveio, como promitente compradora, no contrato-promessa de compra e venda fonte da obrigação dos insolventes venderem o identificado prédio, nem adquiriu, por via de uma cessão, aquela posição, carece de legitimidade para exigir uma indemnização pelo respetivo incumprimento; a Recorrente contrapõe que, com arrimo em cláusula integrada no conteúdo daquele contrato-promessa, que conforma a figura do contrato para pessoa a nomear, foi nomeada pela promitente-compradora para adquirir os direitos e assumir as obrigações que cabiam a esta, ocupando a respetiva posição contratual, o que aceitou.
Quid inde?
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2).3. Se lermos o texto original do contrato-promessa, não encontramos nele qualquer cláusula que suporte a alegação da Recorrente.  Não podemos, porém, ignorar que aquele contrato foi alterado, por um outro subsequentemente celebrado pela partes contratuais (promitente-compradora e insolventes), no âmbito de uma ação judicial que as opôs, justamente batizado de transação, no qual se previu, a pretexto de uma retificação, o aditamento da cláusula transcrita no facto provado 6, nos termos da qual a promitente-compradora ficou com “a faculdade de designar outra(s) pessoa(s) para assumir a sua posição neste contrato promessa, como se com essa(s) pessoa(s) o contrato tenha sido celebrado.”
Esta cláusula vincula as partes no contrato-promessa, quer se entenda que tem carácter meramente retificativo, quer se entenda que tem carácter inovador (art. 406/1 do Código Civil), questão que aqui não importa abordar. O seu sentido deve ser captado por via interpretativa, de acordo com o art. 236 do Código Civil, em cujo n.º 1 se diz que [a] declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele”, acrescentando o n.º 2 que “[s]empre que o declaratário conheça a vontade real do declarante é de acordo com ela que vale a declaração emitida.”
Significa isto que o sentido da declaração negocial é aquele que seria apreendido por um declaratário normal, ou seja, medianamente instruído e diligente, colocado na posição do declaratário real, em face do comportamento do declarante. A normalidade do declaratário, que a lei toma como padrão, exprime-se não só na capacidade para entender o texto ou conteúdo da declaração, mas também na diligência para recolher todos os elementos que, coadjuvando a declaração, auxiliem a descoberta da vontade real do declarante.
A interpretação da declaração negocial deve procurar uma conciliação dos interesses do declarante e do declaratário dentro do sistema legislativo respeitante ao negócio jurídico. É evidente que o declarante tem interesse em ver relevante apenas a sua vontade, ao contrário do declaratário que pretende poder confiar naquilo que ele próprio entendeu. Mas a vontade é um elemento interno, puramente do foro psicológico e, como tal, insuscetível de conhecimento. Passível de conhecimento é unicamente a manifestação externa, a qual permite retirar as conclusões quanto à vontade real, subjacente como elemento psicológico. Consequentemente, objeto da interpretação é a manifestação da vontade, o elemento externo, a própria declaração negocial. O fim da interpretação é o sentido da mesma. O sentido a que se refere o n.º 1 do art. 236 é o sentido pretendido pelo declarante. A interpretação parte, metodologicamente, de elementos objetivos para obter, através deles, na medida do possível, o elemento subjetivo. O declaratário padronizado encontra-se em função das circunstâncias concretas que envolverem a proposta negocial e dos traços tipo lógicos que o aceitante apresenta: competência linguística, profissão e localização de atividade, nível cultural, conhecimentos técnicos relacionados com o contrato, etc.. Decisiva é a vontade do declarante, se ao declaratário for possível conhecê-la. Quando o declarante não pode contar razoavelmente com o sentido deduzido pelo declaratário normal do seu comportamento, o risco linguístico ou o risco do entendimento é imputado ao declaratário (art. 236/1, 2.ª parte).[3]
A declaração de aceitação vale como aceitação da proposta com esse sentido. O consenso corresponde à intenção do proponente que, por hipótese, o aceitante conhece; o contrato é, pois, interpretado de harmonia com a real intenção do proponente, que o aceitante efetivamente compreendeu. Essa falsa demonstratio pode resultar de ignorância (as partes recorrem a termos não adequados por não saberem melhor), de negligência (as partes recorrem a uma linguagem descuidada), de o declaratário ter tido notícia de qualquer circunstância decisiva que não era obrigado a conhecer, ou até da própria vontade real do declarante, de equívoco do declaratário, numa perspetiva objetiva, quanto à interpretação da declaração, chegando, porém, ao resultado desejado pelo seu autor.
A interpretação do negócio jurídico repercute-se na determinação lato sensu da fattispecie contratual, que compreende a sua qualificação jurídica e a consequente construção do material de facto de que o intérprete deve retirar os intentos prosseguidos pelas partes. Essa determinação não respeita apenas à fórmula final, pois que não se afigura ser verdade que a declaração esteja contida somente no teor final; essa encontra-se contida, por via de regra, na fattispecie global do negócio. De facto, a declaração não se encontra apenas vazada nas palavras adotadas, mas em tudo o que carreia a expressão da vontade. Trata-se, pois, de determinar o valor da declaração, o sentido relevante para o ordenamento jurídico da manifestação de vontade contratual. O intérprete deve indagar, através da declaração, a vontade real das partes contraentes, sendo as diversas cláusulas entendidas umas mediante as outras, e atribuindo a cada uma delas o sentido que resulta do contexto global, precisamente porque se trata de um pensamento unitário cuja descoberta compete ao intérprete.
Impõe-se, pois, ao intérprete determinar o alcance global do ato negocial praticado, considerado na sua unidade. Apresentando-se a iniciativa negocial como que funcionalizada à obtenção de uma determinada modificação da esfera económica (e, evidentemente, também da jurídica) daqueles que a empreendem, deve presumir-se que todos os componentes do regulamento negocial se encontram numa relação de coerência com o resultado pretendido e podem ser reconstruídos no seu alcance à luz daquele resultado.
Quanto aos negócios formais, em princípio, a declaração negociar não pode valer com um sentido que não tenham um mínimo de ressonância no texto do documento respetivo (art. 238/1). Contudo, um sentido desprovido desta correspondência sempre pode valer se se revelar conforme à vontade real das partes do negócio e as razões determinantes da forma se não opuserem a essa validade (art. 238/2).
Atualmente, a doutrina dominante reconhece autonomia à formação de contratos pela subscrição de um mesmo texto escrito, muitas vezes exigido por lei. Uma análise rigorosa impõe que se continuem a observar as regras do art. 236, ainda que adaptadas à unicidade textual e frequentemente circunscritas pelos limites do art. 238. A dupla tarefa da interpretação de cada uma das declarações em separado pode ser simplificada, porque não há necessidade de proceder ao controlo de imputabilidade ao declarante. Na verdade, à coincidência entre declaratário de uma das declarações e declarante da outra, que é comum a todos os contratos com duas partes, junta-se a coincidência do texto em que se baseia a interpretação. Se o resultado da interpretação das declarações conjuntas for idêntico, em função da compreensão pelo declaratário, assegurado está que esse sentido é comum e imputável às mesmas pessoas, agora vistas como declarantes.
A interpretação do contrato não se esgota na interpretação de cada uma das declarações por que se forma. Inclui, pois, um segundo momento lógico para a verificação do consenso, resultado de um processo hermenêutico que consiste na comparação entre os sentidos juridicamente relevantes de cada uma das declarações contratuais e na averiguação acerca da sua concordância. Além disso, em conformidade com a lei (art. 236, na alusão ao comportamento do declarante), o teor da declaração, a fórmula escrita de que o declarante se serviu para exprimir o seu pensamento, deve ser integrada pelo conjunto das circunstâncias de facto, quer anteriores à emissão da declaração de vontade, quer concomitantes dela, que sejam de molde a fazer luz sobre as verdadeiras intenções do autor. De facto, interpretar não significa apenas um negócio (tendo em conta os seus efeitos jurídicos), mas também esclarecer o sentido dos sinais utilizados através do recurso a critérios de significado linguístico. Permite-se, pois, um recurso amplo ao material interpretativo e às circunstâncias. Por conseguinte, admite-se levar em linha de conta elementos extrínsecos tais como o comportamento das partes, anterior, contemporâneo ou posterior à conclusão do contrato.
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2).4. Isto dito, na decisão recorrida concluiu-se que a cláusula em questão não configura um contrato para pessoa a nomear uma vez que a promitente-compradora não se reservou o direito de indicar pessoa que a substituísse como tal, ou seja, como promitente-compradora, mas sim como compradora efetiva, comparando-se a situação dos autos com as que foram apreciadas em STJ 23.01.1986 (BMJ, 353, p. 429) e STJ 16.10.1990 (BMJ, 400, p. 612).
Há aqui um evidente equívoco, que redundou numa interpretação da cláusula que não tem qualquer apoio na respetiva letra.
Na verdade, ao contrário do que sucedia com as cláusulas nos contratos-promessa que foram apreciados nos indicados arestos, em que se tinha consagrado, para o promitente-vendedor, a obrigação de vender a coisa ao promitente-comprador ou a quem este indicasse para esse efeito, a cláusula em apreço o que prevê é o direito de o promitente-comprador fazer-se substituir por terceiro no próprio contrato-promessa, tudo se passando, nessa hipótese, como se este tivesse sido inicialmente celebrado com esse terceiro. O uso do vocábulo neste, que é o resultado da contração da proposição em com o pronome este, no próprio texto (retificado ou modificado?) do contrato-promessa, bem como o teor do segmento final da cláusula (“como se com essa(s) pessoa(s) o contrato tenha sido celebrado”) apontam inequivocamente no sentido exposto, coincidente com o sufragado pela Recorrente.
A ideia sai reforçada quando se atenta ao contexto em que foi celebrada a transação que levou ao aditamento da cláusula ao contrato-promessa: uma ação judicial intentada pela promitente-compradora contra os promitentes-vendedores em que aquela pediu a retificação do texto do contrato-promessa de modo a que nele ficasse claro que as partes também convencionaram a possibilidade de a primeira fazer-se substituir por terceiro no próprio contrato e não no contrato prometido.
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2).5. A conclusão a que chegámos no ponto anterior permite-nos, sem margem para tergiversações, enquadrar a cláusula em questão na figura do contrato para pessoa a nomear, prevista no art. 452/1 do Código Civil, nos seguintes termos: “Ao celebrar o contrato, pode uma das partes reservar o direito de nomear um terceiro que adquira os direitos e assuma as obrigações provenientes desse contrato.”
A norma acabada de transcrever, não obstante a sua epígrafe (Noção) não nos dá, pelo menos de forma direta, a noção de contrato para pessoa a nomear; apenas nos diz quando é que tal contrato ocorre. A doutrina tem vindo, porém, a retirar dela a definição de contrato para pessoa a nomear. Assim, a título meramente exemplificativo, para Antunes Varela (Direito das obrigações em Geral, I, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 1996, p. 441), o contrato para pessoa a nomear é o contrato “em que uma das partes se reserva a faculdade de designar uma outra pessoa que assuma a sua posição na relação contratual, como se o contrato tivesse sido celebrado com esta última.”
Em bom rigor, não há um contrato para pessoa a nomear. Todos os contratos, com ressalva daqueles em que não é admitida a representação e daqueles em que é indispensável a determinação dos contraentes (art. 452/2 do Código Civil), podem ser contratos para pessoa a nomear, desde que lhe seja aposta a respetiva cláusula. É o que sucede com frequência nos contratos de compra e venda, bem como nos respetivos contratos-promessa, conforme ensina Brandão Proença (Direito das Obrigações, Relatório sobre O Programa, O conteúdo e Os Métodos de Ensino da Disciplina, Porto: UCE, 2007, p. 169).
Neste âmbito, a doutrina usa habitualmente a terminologia promitens ou promitentes para referir o contraente que se mantém firme; stipulans ou estipulante, para o contraente que pode nomear um terceiro, para ocupar o seu lugar; amicus, para mencionar o terceiro, quer a nomear, quer já nomeado; eligendus, para designar o terceiro ainda a nomear; electus, para referir o terceiro já nomeado; pro amico electus, para o contrato para pessoa a nomear em que há procuração anterior; e pro amico elegendo, no caso do contrato para pessoa a nomear em que não há procuração anterior. Por todos, vide Fernando Botelho, “Art. 452.º”, AAVV, Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das obrigações em Geral, reimpressão, Lisboa: UCE, 2021, p. 188.
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2).6. A figura em apreço distingue-se da representação: nesta os efeitos do negócio produzem-se imediata e automaticamente na esfera jurídica do representado; no contrato para pessoa a nomear ocorre uma atuação para que os efeitos se transfiram para o nomeado; na representação sem poderes, o representante atua nessa qualidade, ou seja, por nome e por conta do representado, ainda que lhe faltem os respetivos poderes; no contrato para pessoa a nomear, o stipulans age em nome próprio.
Distingue-se da cessão da posição contratual. Nesta, os contraentes iniciais apresentam-se como definitivos. O que sucede é que um deles, em momento ulterior, com o acordo do outro, cede a sua posição a terceiro (art. 428 do Código Civil). Pelo contrário, no contrato para pessoa a nomear está prevista, desde o início, a possibilidade de haver uma modificação subjetiva em relação a um dos contraentes.
Distingue-se, também, do contrato a favor de terceiro. Neste, o beneficiário de uma prestação não assume a posição de parte no contrato. No contrato para pessoa a nomear, uma vez verificada a vinculação ao contrato através de procuração anterior ou de ratificação (art. 453/2 do Código Civil), o nomeado passa a ocupar a posição de contraente.
Distingue-se, ainda, do mandato sem representação: o mandante recebe os direitos adquiridos por sua conta pelo mandatário, não ocupando, ab initio, a correspondente posição; no contrato para pessoa a nomear, o nomeado de forma eficaz (art. 455 do Código Civil) adquire a posição ex tunc.
Distingue-se, finalmente, da gestão de negócios uma vez que o gestor não ocupa a posição do dominus.
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2).7. A questão da natureza jurídica da figura, relevante para aferir dos respetivos efeitos, por exemplo no que tange à atuação do stipulans entre o momento da celebração do contrato e o momento da nomeação do amicus, é controvertida na doutrina.
Sinteticamente, existem entre nós duas teorias: a teoria da condição e a teoria da representação.
Para a primeira, sufragada por Inocêncio Galvão Telles (Manual dos Contratos, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2010, pp. 437-438), Antunes Varelas (Das Obrigações cit., pp. 446-448) e Luís Menezes Leitão (Direito das Obrigações, I, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2005, p. 258), existe uma condição – a electio amici – que é resolutiva em relação ao stipulans e suspensiva em relação ao nomeado. Daqui decorre que o contrato produz imediatamente os respetivos efeitos, sejam eles reais ou meramente obrigacionais, entre as partes primitivas. Assim, na primeira hipótese, o stipulans pode, desde a celebração do contrato, praticar todos os atos de disposição ou de oneração das coisas que dele são objeto. Esses atos ficam, porém, sujeitos à referida condição, considerando-se resolvidos quando esta ocorrer, com as consequências previstas nos arts. 433, 434 e 435 do Código Civil.
Para a segunda, defendida por Pessoa Jorge (O Mandato sem Representação, reimpressão, Coimbra: Almedina, 2001, p. 248) e Ana Isabel Afonso (A Condição. Reflexão Típica em Torno de Subtipos de Compra e Venda, Porto: UCE, 2014, pp. 540-542, nota 1189), o contrato para pessoa a nomear insere-se no fenómeno representativo. A nomeação do terceiro resulta de uma relação de representação entre ele, como representado, e o stipulans, como representante. Por virtude de tal relação, o stipulans atua, desde a celebração do contrato, por conta e no interesse de outrem. Trata-se de uma modalidade especial da representação, em que o dono do negócio é designado em data ulterior e não, como em regra sucede, no momento da celebração do contrato ou dos seus preliminares, sendo até lá representado de forma anónima.
Há ainda quem, como António Menezes Cordeiro (Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das Obrigações, t. 2, Coimbra: Almedina, 2010, pp. 599-600), entenda que as referidas duas teorias apresentam parcelas de verdade, mas nenhuma delas esgota a compreensão da figura, pelo que o contrato para pessoa a nomear deve ser enquadrado como categoria contratual típica e autónoma, com um conjunto coerente: a cláusula para pessoa a nomear e a electio, modeladas pela axiologia da boa-fé, no sentido de não poderem ser violadas as expetativas do promitens pelo stipulans ou pelo amicus.
Este último é, também, o entendimento de Adelaide Menezes Leitão (“Art. 452.º”, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, II, Das Obrigações em Geral, Coimbra: Almedina, 2021, p. 328), que realça que “[a] essência da figura do contrato para pessoa a nomear parece residir na faculdade de o stipulans – que se enquadra tecnicamente num direito potestativo com a correspondente sujeição do promitens – se fazer substituir nos direitos e obrigações contratualmente assumidos.
É, ainda, o entendimento de Fernando Botelho (loc. cit., pp. 192-193), que escreve, em seu favor, que “a equiparação entre o contrato para pessoa a nomear e outros institutos jurídicos, onde, de uma maneira ou de outra, é possível ocorrer a substituição de um dos contraentes, permite facilmente verificar que tal equiparação não é possível, pelo menos em termos totais, podendo haver apenas uma certa harmonização, mas nunca uma completa uniformização. Motivo esse pelo qual não é possível aplicar, pelo menos integralmente, as regras desses outros institutos jurídicos ao contrato para pessoa a nomear, com os inconvenientes daí advenientes (…).”
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2).8. Como quer que seja, a substituição do stipulans pelo amicus não opera automaticamente; ela só ocorre quando, com a concordância do amicus, visto que ninguém pode surgir num contrato sem o respetivo assentimento (cf. António Menezes Cordeiro, Tratado cit., p. 593), ocorrer a electio e a comunicação deste ato ao promitens. Neste sentido, diz o art. 453/1 do Código Civil que “[a] nomeação deve ser feita mediante declaração por escrito ao outro contraente, dentro do prazo convencionado ou, na falta de convenção, dentro dos cinco dias posteriores à celebração do contrato.” O n.º 2 do preceito acrescenta que “[a] declaração de nomeação deve ser acompanhada, sob pena de ineficácia, do instrumento de ratificação do contrato ou de procuração anterior à celebração deste.”
Como se constata, a eficácia da declaração de nomeação – a electio – pressupõe que o nomeado aceite ocupar a posição que pertencia ao stipulens, expressa através de uma procuração anterior à celebração do contrato ou, não sendo o caso, de um instrumento de ratificação.
Tanto a procuração como o instrumento de ratificação constituem negócios jurídicos unilaterais.
A exigência da comunicação ao promitens – que deverá ser feita juntamente com a electio, muito embora alguma doutrina, como é o caso de Raúl Guichard (A Representação sem Poderes no Direito Civil Português. A Representação, Porto: UCE, 2009, p. 550, nota 466), admita que assim possa não suceder, desde que ambas cheguem ao poder do respetivo destinatário, ainda que em separado, dentro do prazo convencionado para a nomeação, ou, na falta de convenção, no prazo supletivo de cinco dias previsto no n.º 1 do art. 453 do Código Civil – confere a estes atos uma natureza receptícia (art. 224/1 do Código Civil).
Estabelece-se, portanto, um prazo para que a electio e a sua aceitação sejam comunicadas e recebidas pelo promitens, o que “evidencia a relutância legal à alternatividade subjetiva, com a consequente insegurança jurídica” (Adelaide Menezes Leitão, loc. cit., p. 330). Esse prazo será o que for convencionado pelas partes ou, na falta de convenção, o prazo de cinco dias. O termo a quo é marcado pela data da celebração do contrato. No cômputo do prazo, observam-se as regras constantes dos arts. 279 e 296 do Código Civil.
Ultrapassados os prazos convencional ou legal, ocorre a caducidade da cláusula para pessoa a nomear, bem como a subsequente ineficácia da designação do amicus. Assim, Adelaide Menezes Leitão (idem), e Fernando Botelho (loc. cit., pp. 200-201). Em decorrência lógica, a posição contratual do stipulens fica definitivamente concentrada na sua esfera jurídica, desde que não haja estipulação em contrário (art. 455/2 do Código Civil).
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2).9. Por outro lado, a declaração de nomeação e a ratificação do terceiro nomeado devem constar sempre, como exigência mínima, de documento escrito, ainda que o contrato tenha sido verbal (art. 454/1). Impõem-se aqui razões de segurança jurídica.
Se, porém, o contrato tiver sido celebrado por meio de documento dotado de maior força probatória que aquela que resulta da observância da forma escrita (cf. art. 376 do Código Civil), a ratificação terá de observar esta, como resulta do disposto no n.º 2 do art. 454 do Código Civil. Trata-se de uma exigência paralela tanto à procuração (art. 262/2 do Código Civil) como à ratificação do negócio celebrado pelo representante sem poderes (art. 268/2 do Código Civil), aparentemente com uma nunce que resulta dos respetivos textos legais: enquanto no art. 262/2, para o qual remete o art. 268/2, se diz que “a procuração revestirá a forma exigida para o negócio que o procurador deva realizar”, no art. 454/2 diz-se que a ratificação revestirá a mesma forma por que foi celebrado o contrato. Daqui parece decorrer que, ao contrário do que sucede na procuração e na ratificação da representação sem poderes, em que basta a observância da forma legalmente prescrita para o contrato, ainda que este, por convenção das partes, tenha sido celebrado por forma mais solene, a ratificação do amicus deve sempre observar a forma do contrato, quer esta tenha resultado de uma imposição legal (forma legal), quer tenha resultado de uma convenção (forma convencional).
É este o entendimento de Jacinto Rodrigues Bastos (Notas ao Código Civil, II, Coimbra: Almedina, 1988, p. 248), que encontra justificação para a diferença no facto de a ratificação estar destinada a integrar-se na parte subjetiva de um contrato já concluído, pelo que a declaração de vontade que lhe dá corpo deverá revestir a forma adrede observada pelos contraentes iniciais.
No mesmo sentido, entendeu-se, em RG 23.02.2017 (1146/15.6T8VRL.G1), relatado por Eva Almeida, que “[o] art. 454º do CC, dispondo sobre a forma da ratificação, estabelece que a mesma deve constar de documento escrito, mas se o contrato tiver sido celebrado por meio de documento de maior força probatória, necessita a ratificação de revestir igual forma. Assim, tendo o contrato sido celebrado por escritura pública e inexistindo procuração anterior à sua celebração, a ratificação, por integrar, na parte subjetiva, um contrato já concluído, deveria revestir igual forma, isto é, escritura pública, não bastando documento particular autenticado, quer porque, ao tempo da sua celebração e da ratificação, o contrato exigia forma mais solene para a sua validade, quer porque, mesmo que a ratificação tivesse ocorrido posteriormente a 2008, em que tal exigência de forma não se colocava para o contrato, essa tinha sido a forma adotada para o contrato e a ratificação tem de revestir igual forma (nº 2 do art.º 454º do CC).”
Este entendimento não é, porém, unânime.
Assim, para Luís Menezes Leitão (Direito cit., p. 258, nota 556), “a lei consagra aqui um requisito de forma absolutamente desnecessário, já que não se vê qualquer razão para que a ratificação do contrato para pessoa a nomear não seja sujeita à mesma forma que a ratificação da representação sem poderes, que é a mesma da procuração.”
Ciente disto, o Conselho Técnico da DGRN deliberou, por unanimidade (Proc. nº 13/96 Not 3, Boletim dos Registos e Notariado, 1996, Caderno II, disponível em https://irn.justica.gov.pt/), que “no contrato para pessoa a nomear que tenha revestido a forma de escritura pública, a respetiva ratificação deve constar de igual força probatória à do contrato ratificando [não necessitando de ter a mesma forma de tal contrato], pelo que é bastante, em tal caso, o instrumento público avulso”, o que reiterou mais recentemente, em parecer homologado a 18 de novembro de 2015 (R.P. 72/2015 STJSR-CC, também disponível em https://irn.justica.gov.pt/), ainda que com dois votos desfavoráveis, nos seguintes termos: “No contrato para pessoa a nomear, a eficácia da nomeação do terceiro depende de que haja procuração (anterior ao contrato) ou ratificação (posterior ao contrato) desse terceiro, devendo em ambos os casos (procuração ou ratificação) observar-se os requisitos de forma que resultam da aplicação conjugada dos arts. 262.º/2 e 268.º/2, do Código Civil, e 116.º, do Código do Notariado.”
Na doutrina, Fernando Botelho, que primeiro defendeu a tese de Jacinto Rodrigues Bastos, entendendo que não cumpre a exigência legal a ratificação que tenha uma forma diferente, e menos solene, do que a forma que tem o contrato, ainda que tal forma diferente da ratificação tenha a mesma força probatória que tem o contrato (Fernando Botelho, O Contrato para Pessoa a Nomear, Porto: UC, 2013, pp. 18-19, disponível em ...), considera, em texto mais recente, com o qual concordamos, que a posição mais consentânea com a razão de ser do art. 454/2 é a do Conselho Consultivo do IRN. Neste sentido, escreve (“Art. 454.º”, AAVV, Brandão Proença (coord.), Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Das obrigações em Geral cit., pp. 198-199) que[,] “em primeiro lugar, (…) o elemento teleológico, ou, se se preferir, a ratio do preceito em causa (…), que consiste, nomeadamente, em razões de segurança jurídica, designadamente a nível da prova, na devida ponderação das partes que se vinculam, e na publicidade do ato, fica plenamente satisfeito se a ratificação assumir uma forma que tenha a mesma força probatória que tem o contrato. Depois, em segundo lugar, a unidade do sistema jurídico aponta igualmente no sentido da tese que estamos a defender. Efetivamente, se, v.g., C, sem poderes de representação de B, celebrar, em nome de B, e como comprador, um contrato de compra e venda, que tem A como vendedor, relativamente a um imóvel, o contrato é ineficaz em relação a B, até que este o ratifique (artigo 268.º, 1), estando a ratificação sujeita à forma exigida para a procuração, ou seja, e tendo em conta os artigos 262.º, 1 e 2, do CC, e 116.º do CNot, à forma de instrumento público, de documento escrito e assinado pelo representado, com reconhecimento presencial da letra e assinatura, ou de documento autenticado, e ainda que o contrato de compra e venda tenha sido lavrado por escritura notarial pública. Não se compreende pois porque é que a ratificação, a que alude o artigo 454.º, não poderia também assumir tais formas, no caso de B, em lugar de adquirir diretamente o imóvel em causa a A, o adquirir através da nomeação dele B, para ocupar o lugar de comprador, num contrato de compra e venda, do mesmo imóvel, celebrado entre A, como vendedor, e C, como comprador, contrato esse que contenha a cláusula de contrato para pessoa a nomear por C. Na verdade, tal discrepância entre as duas situações atrás descritas, violaria a unidade do sistema jurídico, violação esta que o artigo 9.º exorciza. Isto, por um lado, enquanto, por outro lado, e, em terceiro e último lugar, também se chega a similar conclusão, tomando em linha de conta as circunstâncias em que a lei, no caso, o CC, e o artigo 454.º dele, foi elaborado, e entrou em vigor, o que ocorreu, na sua generalidade, no dia 1 de janeiro de 1968 (artigo 2.º, do DL n.º 47 344, de 25 de novembro de 1966), e as condições específicas do tempo em que nos é dado viver, em que a lei, rectius esse artigo 454.º, está a ser aplicado, o que convoca uma interpretação atualista de tal artigo 454.º, cuja redação se mantém inalterada desde o início do CC até hoje. Efetivamente, em 1968, a compra e venda de imóveis tinha, para ser válida, que ser celebrada por escritura notarial pública (artigos 220.º e 875.º, este último na redação inicial dele, ou mesmo naquela que lhe foi dada pelo DL .º 263-A/2007, de 23/07, que admitiu uma exceção a tal obrigatoriedade, consistente em haver disposição legal em contrário), o que agora já não sucede, pois que a compra e venda de bens imóveis, pode, atualmente, e desde 1 de janeiro de 2009, ser feita também por documento particular autenticado (artigo 875.0, na redação atual dele). Pelo que, se a compra e venda de imóveis pode agora, e já há vários anos, ser feita por documento particular autenticado, também, a pari, ou mesmo a fortirori, pode igualmente ser feita, através de documento particular autenticado, a ratificação, a que alude o artigo 454.0 Aliás, mesmo sob o ponto de vista literal, o artigo 454.0, comporta a interpretação que dele atrás se fez, pelo que tal interpretação não contraria a ideia de que o elemento literal é o ponto de partida, mas também o ponto de chegada, de toda a interpretação jurídica, ideia esta que encontra respaldo nos n.ºs 1 e 2, ambos do artigo 9.º Na verdade, se o legislador, nesse artigo 454.º, ligou a forma da ratificação à força probatória dela, dizendo-nos, no n. º 2, desse artigo 454.º, que, se o contrato tiver sido celebrado por meio de documento de maior força probatória (naturalmente maior força probatória do que a do mero documento escrito, a que alude o n.0 1, desse artigo 454.º), necessita a ratificação de revestir igual forma, sem que do preceito resulte, pelo menos expressamente, qual é essa forma, a que a forma que a ratificação tem de revestir deve ser igual, é aceitável entender-se ser essa forma uma que tenha a mesma força probatória que tem o contrato, e não, necessariamente, a forma do próprio contrato. Sendo até, pelo menos de certa maneira, admissível, e tendo em conta que as palavras forma e força, divergem apenas numa única letra, que o autor do preceito (artigo 454.0), tivesse querido dizer necessita a retificação de revestir igual força, e não necessita a ratificação de revestir igual forma, o que, por erro, até eventualmente de impressão, foi depois desvirtuado, de igual força para igual forma. Na verdade, se se tratasse de uma questão de forma, e de uma questão de força probatória, não faria qualquer sentido chamar-se a força probatória, devendo a norma referir-se então apenas dizendo V.g., unicamente, que a ratificação deve revestir a forma do contrato (…)”
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2).10. Isto dito, voltemos ao caso dos autos.
Tendo concluído que, por força da cláusula em questão, a promitente-compradora EMP01... A ficou com o direito potestativo de designar um terceiro que a substituísse no contrato-promessa, assumindo, com efeitos ex tunc, aquela posição jurídica, temos que a electio da Recorrente veio a ser comunicada aos promitentes-vendedores, acompanhada do instrumento de ratificação, por carta registada no dia 11 de maio de 2017.
Embora se desconheça a data em que esta comunicação chegou ao conhecimento dos insolventes, certo é que a mesma sempre se apresenta como tardia, porque realizada num momento em que aquele direito potestativo já estava extinto por caducidade. Isto quer consideremos que a transação celebrada no dia 9 de março de 2017 e homologada no dia 14 do mesmo mês implicou uma mera retificação do texto do contrato original, não tendo qualquer conteúdo inovador, quer consideremos que modificou aquele texto mediante a adição de algo que nele não estava previsto.
Com efeito, não tendo as partes convencionado um prazo para o exercício do direito potestativo atribuído à promitente-compradora, valia o prazo supletivo de cinco dias. Na primeira hipótese, esse prazo atingiu o seu termo final no dia 20 de outubro de 2014; na segunda, no dia 20 de março de 2017.
Como vimos, com o esgotar deste prazo caducou ipso facto a cláusula para pessoa a nomear e os efeitos do contrato consolidaram-se definitivamente na titularidade dos contraentes originais.
Esta simples constatação permite-nos concluir que a Recorrente não substituiu a sociedade EMP01... A na posição jurídica de promitente-compradora e, portanto, como acabou por concluir a decisão recorrida, que não tem legitimidade (substantiva) para exigir uma indemnização derivada do incumprimento (lato sensu) do contrato-promessa.
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2).11. Ainda que assim não fosse, sempre chegaríamos ao mesmo resultado partindo para o efeito da constatação de que a ratificação revestiu uma forma – escrito particular –  que se apresenta menos solene e dotada de menor força probatória que a que foi observada no contrato-promessa – escritura pública, o que equivale a dizer que estamos perante um documento autêntico (arts. 363/2 e 369/1 do Código Civil). Com efeito, como sabemos, o legislador hierarquiza a prova documental de acordo com o grau de certeza que os documentos podem garantir. O documento autêntico, em razão da qualidade do documentador, prova por si a proveniência das declarações nele vertidas (art. 371/1 do Código Civil); diversamente, o documento particular não faz prova plena da sua proveniência (arts. 374/1 e 376/1 do Código Civil). Há, entre os dois, uma clara diferença estrutural que Luís Pires de Sousa (Direito Probatório Material Comentado, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 169) explica do seguinte modo: “o documento autêntico tem a força de uma probatio probata na medida em que faz por si a prova da sua proveniência; o documento particular tem uma eficácia menor de probatio probanda porquanto a prova da proveniência tem de completar-se com um elemento que lhe é extrínseco.”
Não tendo revestido a forma legalmente exigida, a ratificação que acompanhou a carta de 11 de maio de 2017 sempre seria nula e de nenhum efeito (art. 220 do Código Civil), vício este que é do conhecimento oficioso (art. 286 do Código Civil).
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2).12. Não ignorámos que a Recorrente, por escrito datado de 6 de maio de 2024, reiterou aquela ratificação, atribuindo, unilateralmente, a este ato, efeitos retroativos, de modo a produzir efeitos desde a data da ratificação comunicada com a carta de 11 de maio de 2017. Como também não ignoramos que esta declaração de reiteração foi objeto de autenticação, pelo que observou uma forma que, como escrevemos, apesar de menos solene, tem a mesma força probatória que aquela que foi observada no contrato.
Simplesmente, ao contrário do que parece entender a Recorrente, a declaração de reiteração – que mais não é que a confirmação da anterior ratificação – não produz – rectius, não pode produzir –, um efeito convalidante reportado à data da emissão da declaração nula. A tal opõe-se a norma do n.º 1 do art. 288 do Código Civil, que restringe o instituto da confirmação, enquanto forma de sanação de um negócio jurídico inválido, com efeitos retroativos (art. 288/3), aos negócios anuláveis.
É por isto que se diz que “[a] confirmação é um ato jurídico privativo dos negócios anuláveis” (Maria Clara Sottomayor, AAVV, Comentário ao Código Civil. Parte Geral, 2.ª ed., Lisboa: AAFDL, 2023, p. 867), muito embora não se ignore que a lei prevê, em casos pontuais, a confirmação de negócios nulos, como sucede, por exemplo, nos arts. 968, 1939/2, 1941 e 2309, todos do Código Civil. Salienta-se, porém, que não está, em tais casos, em causa o instituto previsto no ar. 288, mas aquilo a que Rui Alarcão (A Confirmação dos Negócios Jurídicos, I, Coimbra: Atlântida, 1971, p. 128), chama de confirmação imprópria e que mais não é que uma renúncia, pelo seu autor, ao direito de invocar a nulidade que, não obstante, pode ser invocada por outros interessados (idem, pp. 134-135).
Compreende-se que assim seja: existe uma incompatibilidade lógica entre as características da nulidade e a possibilidade de confirmação. Enquanto os negócios anuláveis produzem efeitos jurídicos, que se consolidam se não forem anulados, os negócios nulos não produzem efeitos negociais ab initio. Existem ainda outros aspetos que, conforme ensina Maria Clara Sottomayor (idem) tornam praticamente impossível a confirmação de negócios nulos: “a indeterminação do número de legitimados para invocar a nulidade, suscetível de incluir várias pessoas, e a necessidade de intervenção de alguém que represente o interesse público.”
Desde modo, a declaração de 6 de maio de 2024 mais não é que uma nova ratificação, que apenas seria suscetível de produzir efeitos para o futuro. É que, como também ensina Maria Clara Sottomayor (loc. cit., p. 868), “se um negócio é nulo por falta de forma, os seus autores podem conclui-lo ex novo, observando as formalidades prescritas pela lei. O novo negócio só vale para o futuro. A renovação distingue-se da confirmação porque, na renovação, as partes concluem ex novo um como se não tivesse havido um negócio anterior, enquanto, na confirmação, o negócio inválido convalida-se, ficando a valer como se o vício nunca tivesse existido, por força de um ato complementar ou integrativo do negócio anulável: o negócio jurídico unilateral confirmativo.”
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2).13. Pelo exposto, a conclusão constante da decisão recorrida no sentido de que a Recorrente carece de legitimidade (substantiva) para exigir uma indemnização pelo incumprimento (lato sensu) do contrato-promessa se apresenta como acertada.
Com isto – e tendo o segundo argumento que nos levou a esta conclusão – está aberta a porta para conhecermos da invocada questão do abuso do direito, a qual se apresenta como bastante simples.
Na tese da Recorrente, a invocação da nulidade da declaração da ratificação por inobservância da forma legal configuraria um abuso do direito uma vez que os insolventes, “de quem a Ré é representante” (sic), tomaram dela conhecimento em 2017 e, não obstante aquele vício, aceitaram-na.
Esta argumentação conduz-nos a um dos casos-tipo que têm convocado a aplicação do instituto do abuso do direito, genericamente consagrado no art. 334 do Código Civil, onde se proclama que “[é] ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.” Referimo-nos às denominadas inelegabilidades formais, subtipo do venire contra factum proprium, situação que ocorre quando uma parte, num primeiro momento, faz crer à contraparte que o contrato celebrado é formalmente válido, quando não o é, e vem, num segundo momento, pedir a declaração de nulidade daquele.
Naquele primeiro momento, está em causa a violação do princípio da boa-fé, visto que a criação da situação de confiança do confiante na validade do negócio celebrado provém do incumprimento do dever de lealdade. No segundo momento, com a invocação da nulidade, o foco deixa de estar na boa-fé propriamente dita, passando para a tutela da confiança, em razão da frustração da expectativa do confiante na validade formal do contrato.
A solução encontrada pela doutrina e pela jurisprudência para proteger o confiante passa por considerar inalegável o vício de forma. O que significa que ninguém, com exceção do confiante, pode invocar a nulidade derivada de tal vício. Também o tribunal não a pode declarar oficiosamente. Vale isto por dizer que se bloqueia todo o regime da nulidade (assim, Elsa Vaz de Sequeira, “Art. 334.º”, AAVV, Comentário ao Código Civil. Parte Geral, 2.ª ed., Lisboa: UCE, 2023, p. 969).
Como se compreende, a inalegabilidade formal está dependente da verificação dos pressupostos da tutela da confiança. Exige-se que haja uma relação de confiança absoluta na contraparte, nomeadamente mercê de um vínculo familiar ou de amizade, ou ainda quando existe uma grande disparidade sociocultural entre as partes. Em tal cenário, é normal que o contraente com menos recursos confie na contraparte, portadora de um nível educacional, social ou económico manifestamente superior ao seu.
Por causa do desvio que representa ao regime imperativo da nulidade, a inalegabilidade está ainda dependente de três requisitos específicos: (i)) só podem estar em jogo interesses das partes interessadas e não de terceiros de boa-fé; (ii)) a imputação da situação de confiança ao contraente a responsabilizar não se basta com a existência de um nexo de causalidade, exigindo simultaneamente uma imputação culposa, ou seja, assente num juízo de censura; e (iii)) o investimento de confiança deve possuir uma natureza sensível por dificilmente ser assegurado por outra via. Neste sentido, na doutrina, António Menezes Cordeiro, AAVV, António Menezes Cordeiro (coord.), Código Civil Comentado, I, Parte Geral, Coimbra: Almedina, 2020, p. 642). Na jurisprudência, STJ 11.12.2014 (1370/10.8TBPFR.P1-S1), relatado por João Bernardo, STJ 25.05.2012 (850/07.7TVLSB. LI.S2) e STJ 8.10.2015 (370/13.0TBEPS-A.G1.S1), estes últimos relatados por Carlos Lopes do Rego.
O não preenchimento de um destes requisitos terá por consequência a invocabilidade da nulidade e a inerente aplicação do seu regime, devendo o tribunal declarar nulo o negócio. Isso não significa, contudo, a privação em absoluto de tutela do confiante. O que acontece é, no dizer de Elsa Vaz de Sequeira (loc. cit., p. 969), “que perde protagonismo a frustração da confiança, ganhando relevância o momento da criação dessa situação de confiança. Por esta provir da violação dos deveres de lealdade impostos pela boa-fé, é de aplicar a responsabilidade pré-contratual, prevista no art. 227, sustentando-se não raro que a indemnização a atribuir ao lesado deverá ser calculada segundo o interesse contratual positivo e não de acordo com o interesse contratual negativo, como em regra é determinada a indemnização nesta sede.”
Estas breves considerações evidenciam a fragilidade da tese da Recorrente, qualquer que seja o prisma da análise.
Desde logo, não há qualquer base factual que permita suportar o juízo de que os insolventes induziram, por qualquer forma, a Recorrente a confiar que bastava a observância da forma escrita para que fosse assegurada a validade da declaração de ratificação; os factos apurados evidenciam apenas que os insolventes se limitaram a receber aquela ratificação, em nada tendo contribuído para o modo como se exteriorizou a declaração de vontade da Recorrente que nela ficou plasmada. Vale isto por dizer que não houve, por parte dos insolventes, a violação da boa-fé que é característica daquele primeiro momento a que fizemos referência.
Depois, ao contrário do que equivocamente sugere a Recorrente, a Recorrida não é uma representante ou sequer um prolongamento dos insolventes; ela constitui um património autónomo de afetação especial, para recorrermos à terminologia de Orlando de Carvalho (Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, p. 125 e ss.), composto por todos os bens e direitos (ativo) que integram o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como pelos bens e direitos que este adquirir na pendência do processo de insolvência, conforme resulta do disposto no art. 46/1 do CIRE, a que o legislador, por razões essencialmente práticas, reconhece personalidade judiciária, estabelecendo que a sua representação em juízo cabe ao administrador da insolvência. Por inexistir aquela identidade subjetiva e por os interesses da massa não serem os interesses do insolvente, é perfeitamente configurável que a massa – rectius, quem a representa – adote comportamento contraditórios com aqueles que foram adotados antes da declaração de insolvência pelo insolvente. É o que sucede quando a massa insolvente argui, na prossecução do seu interesse, a nulidade de um negócio jurídico em que o insolvente foi parte invocando um vício formal a que este deu causa. Não há aqui qualquer confiança que mereça tutela, posto que a nulidade está a ser invocada por outrem que não aquele que lhe deu causa.
A resposta a esta questão é, sem necessidade de outras considerações, negativa.
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3) Aqui chegados, concluímos pela improcedência total da pretensão recursiva.
Vencida, a Recorrente deve suportar as custas: art. 527 do CPC.
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V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o presente coletivo da 1.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar o presente recurso de apelação improcedente e confirmar a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 17 de outubro de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.º Adjunto: Fernando Manuel Barroso Cabanelas
2.ª Adjunta: Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade



[1] Inter alia, RG 10.07.2023 (4607/21.4T8VNF-A.G1), relatado por Maria João Matos. No dizer de António Abrantes Geraldes, “A sentença cível”, disponível em Publicações - Supremo Tribunal de Justiça (stj.pt), pp. 10-11, “na enunciação dos factos apurados o juiz deve observar uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da ação. Por isso, é inadmissível (…) que se opte pela enunciação desordenada de factos, uns extraídos da petição, outros da contestação ou da réplica, sem qualquer coerência interna.”
[2] Reconhecem­‑se, todavia, pelo menos, cinco limites à relatividade das obrigações e contratos, que têm assento legal claro (como o próprio art. 406.º/2 ressalva): (i)) O contrato a favor de terceiro (arts. 443.º e ss.); (ii)) os contratos com eficácia real[2]; (iii)) a impugnação pauliana e o regime da impugnação dos atos praticados pelo insolvente, antes da declaração da insolvência[2]; (iv)) o abuso do direito (art. 334.º); (v)) a proibição de concorrência desleal. Além desses cinco limites à relatividade de eficácia, que têm consagração legal evidente, alguma da doutrina clássica, em especial Antunes Varela (Das obrigações em Geral, I, 10.ª ed., Coimbra: Almedina, 2000, pp. 172 e 174-175), ainda defende a tutela do credor contra terceiros nos casos chamados de violação da titularidade do crédito.
[3] A consideração desta situação como de dissenso oculto conduz à inexistência de contrato (art. 232). Verificar-se-ia a ausência de concordância entre as declarações das partes, a falta de encontro completo das vontades manifestadas na proposta e na aceitação. As partes, sem de tal se aperceberem, não teriam chegado a acordo sobre todas as cláusulas consideradas essenciais, de modo que a declaração negocial não coincide com a vontade real do declarante, nem tão pouco com a do declaratário.