RESPONSABILIDADE DA PESSOA COLECTIVA
REPRESENTANTE LEGAL
PRINCÍPIO "IN DUBIO PRO REO"
CULPA
FIM SOCIAL
Sumário

I – A arguida pessoa colectiva age, não por si, como realidade jurídica que é, mas por intermédio de pessoas físicas. Nos autos, em obediência ao princípio in dubio pro reo, afastou-se o arguido pessoa singular do cometimento dos factos objecto dos autos, ainda que figurando como gerente no Registo Comercial da arguida pessoa colectiva, não tendo sido possível apurar a identidade da pessoa física que actuou em nome e no interesse da arguida pessoa colectiva.
II – Mas ainda que se viesse a apurar a verdadeira identidade de tal pessoa (equacionando-se para o efeito o reenvio parcial dos autos para reabertura da audiência), considerando que a mesma não é sujeito processual nos presentes autos, nunca tendo sido constituído arguida, inibido ficaria o tribunal de alterar a factualidade objecto dos factos no que a tal imputação diz respeito. Por tal, [apenas] se torna possível julgar provado que pessoa não concretamente apurada cometeu os factos objecto dos autos, em nome e no interesse da arguida pessoa colectiva.
III – Societas delinquere potest é assunção clara e inegável do actual ordenamento penal português – cfr. artigo 11º do CP -, pelo que, e secundando a tese de Germano Marques da Silva, tendo sido possível decidir que o acto só podia ter sido praticado em razão da actuação, mediata ou imediata, por acção ou por omissão culposas de um órgão, representante ou pessoa com autoridade para exercer o controlo da arguida pessoa colectiva, impedido não fica o tribunal de responsabilizar penalmente a arguida pessoa colectiva, desde que esta tenha actuado com culpa, sendo este o sentido útil da parte final do n.º 7 do artigo 11º do CP.
IV – 4. A arguida pessoa colectiva age com culpa quando o acto ilícito é praticado em razão da prossecução dos fins sociais da pessoa colectiva e em nome e no interesse colectivo, pelo que tendo sido no desenvolvimento do respectivo objecto social e para o seu próprio interesse que a arguida pessoa colectiva cometeu os factos objecto dos autos (por intermédio de pessoa não concretamente apurada que actuou em seu nome e no seu interesse), por força do disposto nos artigos 11º, n.ºs 1, al. a), 4 e 7 do CP, confirma-se a sua condenação pelo cometimento de um crime de burla qualificada, p.p. pelos artigos 217º e 218º, n.º 1, al. a), todos do CP.

(Da responsabilidade da Relatora)

Texto Integral

Proc. n.º 65/21.1T9MCN.P1

Recurso Penal

Relatora: Juíza Desembargadora Carla Carecho

1º Adjunto: Juiz Desembargador Francisco Mota Ribeiro

2º Adjunto: Juiz Desembargador João Pedro Cardoso

Tribunal de Origem: Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Juízo Local Criminal de ...

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto

I – Relatório

Nos autos de Processo Comum Singular nº 65/21.1T9MCN do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo Local Criminal de ..., por Sentença de Acórdão de 16.02.2024, foi decidido, entre o mais

“A. Julgar o arguido AA autor imediato, na forma consumada, com dolo direto, da prática de 1 (um) crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 13.º; 14.º, n.º 1; 26.º, 1.ª parte; 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, com referência ao artigo 202.º, alínea a), todos do Código Penal e, em consequência:

i. Condenar o mesmo na pena de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz a quantia global de €1.750,00 (mil e setecentos e cinquenta);

B. Julgar a sociedade arguida “A..., Unipessoal, Lda.” penalmente responsável pela prática de 1 (um) crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 11.º, n.ºs 2, alínea a) e 4; 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, com referência ao artigo 202.º, alínea a) do Código Penal, e, em consequência:

ii. Condenar a mesma na pena de 280 (duzentos e oitenta) dias, à taxa diária de €100,00 (cem euros), o que perfaz a quantia global de €28.000,00 (vinte e oito mil euros).”


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O arguido AA, não se conformando com o teor da Sentença condenatória, da mesma interpôs Recurso, extraindo das motivações apresentadas as seguintes Conclusões (transcrição):

A) O arguido vinha acusado/pronunciado da prática, na forma consumada, de um crime de burla qualificada, na forma consumada, previsto e punido, pelas disposições conjugadas dos artigos 11º,217ºe 218º, nº 1, com referência ao artigo 202º, al. a), todos do Código Penal.

B) Submetido a julgamento, foi o arguido condenado autor imediato, na forma consumada, com dolo direto, da prática de 1 (um) crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 13.º; 14.º, n.º 1; 26.º, 1.ª parte; 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, com referência ao artigo 202.º, alínea a), todos do Código Penal e, em consequência, condenado o mesmo na pena de 350 (trezentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros), o que perfaz a quantia global de €1.750,00 (mil e setecentos e cinquenta).

C) Ao retirar as referidas conclusões (provados), e salvo o devido respeito, o M.mo Juiz a quo incorreu em “erro notório na apreciação da prova” – artº 410º, nº 2, al. c), CPP -, pelas seguintes razões:

D) Desde logo, para fundamentar a sua decisão no que a estes factos diz respeito, o Tribunal “a quo”, assenta a sua convicção no depoimento da sociedade assistente, na pessoa do seu legal representante BB e no depoimento das testemunhas CC e DD conjugada com os restantes elementos de prova constantes dos autos, tudo apreciado à luz das regras da experiência comum e lógica.

E) A testemunha BB nas suas declarações esclareceu que não conhecia o arguido AA, não conseguindo afirmar se era este o gerente de facto da sociedade posto que nunca conheceu pessoalmente o gerente da sociedade A..., falando apenas por telefone e que o mesmo tinha um “sotaque”.

F) Recorrente impugna os factos constantes nos pontos 2, 3, 6, 7, 8, 9, 10. que devem ser eliminados da matéria de facto provada, com os fundamentos abaixo expostos.

G) Quanto aos factos dos pontos 2 e 3 (devido à coincidência de argumentos que permitem impugnar o juízo efectuado pelo Tribunal a quo e requerer ao Tribunal ad quem a alteração da resposta, efectuamos a impugnação dos mesmos em conjunto), declarações prestadas pelo legal representante da assistente, nas quais não conhece o arguido nem o identifica como gerente da empresa – BB - no dia 10/01/2024 – vide diligência 65_21.1T9MCN_2024-01-10_10-05-19, minutos 00:00:40 a 00:00:50, diligência 65_21.1T9MCN_2024-01-10_10-08-36, minutos 00:01:24 a 00:01:43, e minutos 00:21: a 00:23:35.

H) A testemunha CC aquando o seu depoimento também referiu de forma clara e inequívoca que não conhecia o arguido AA, referindo que apenas o viu no dia da escritura da venda da empresa.

I) Aliás, referiu que todo o negócio que fez para a venda da sua empresa, desde as condições de venda, o preço, a forma de pagamento, foi efectuado com um tal Sr. DD – vide Diligência 65_21.1T9MCN_2024-01- 10_10-53-16, minutos 00:00:48 a 00:16:51; Minuto 00:03:46 a 00:06:00; Minuto 00.12:20 a 00:05:00; Minuto 00:14:30 a 00:14:50 e Minuto 00:16:26 a 00:01:33.

J) A testemunha DD, contabilista da sociedade A..., foi claro ao afirmar não conhecer o arguido, sendo um tal DD, quem se apresentava como “gerente de facto da empresa” – vide Declarações prestadas pelo contabilista DD, no dia 19/02/2024 - Diligência 65_21.1T9MCN_2024-02-19_09-33-41, minutos 00:00:56: a 00:01:23; Minutos 00:05:12 a 00:06:33; Minutos 00:08:12 a 00:08:34 e Minutos 00:15:42 a 00:16:02.

K) Como se dá à evidência, mal andou o Tribunal a quo em dar estes pontos como provados, quando, em verdade, as testemunhas foram claras em afirmar não conhecer o arguido nem este ter qualquer intervenção na gerência da sociedade.

L) Das declarações prestadas pelas testemunhas podemos concluir que o arguido apenas seria gerente de direito e não de facto posto que nenhuma intervenção teve na sociedade.

M)Face aos depoimentos acima identificados, os factos constantes nos pontos 2. e 3., têm de ser considerados não provados.

N) Quanto aos factos dos pontos 6 e 7 (devido à coincidência de argumentos que permitem impugnar o juízo efectuado pelo Tribunal a quo e requerer ao Tribunal ad quem a alteração da resposta, efectuamos a impugnação dos mesmos em conjunto), o arguido AA nunca exerceu quaisquer funções de gerência.

O) Nenhuma das testemunhas inquiridas identificou e/ou reconheceu o arguido AA como gerente de facto da sociedade A... e o facto de constar como sócio e gerente (de direito) no registo comercial da sociedade não implica que seja também gerente de facto.

P) Aliás, face à prova produzida em sede de julgamento, conclui-se que o arguido seria mero gerente de direito.

Q) Pelo que, não representou a sociedade em qualquer negócio com a assistente B... – Sociedade Unipessoal, Lda.

R) O arguido nunca exerceu funções de gerência de facto pelo que não poderia ter causado qualquer prejuízo à empresa assistente, muito menos ter obtido, para si, qualquer vantagem patrimonial, posto que em momento algum ficou provado pela prova produzida em tribunal que foi o arguido AA quem contratou tais serviços.

S) Na verdade, de acordo com a prova produzida em sede de julgamento, provou-se que o arguido AA não era gerente de facto, mas um mero gerente de direito.

T) Face aos depoimentos acima identificados, os factos constantes nos pontos 6. e 7., ora impugnados, serem retirados dos factos dados como provados e serem considerados como dados não provados.

U) Quanto aos factos dos pontos 8., 9. e 10 (devido à coincidência de argumentos que permitem impugnar o juízo efectuado pelo Tribunal a quo e requerer ao Tribunal ad quem a alteração da resposta, efectuamos a impugnação dos mesmos em conjunto), não foi produzida qualquer prova de que o arguido AA era o gerente de facto da empresa, que detinha os poderes de direcção da empresa e que contratou quaisquer serviços.

V) Não se provou que o arguido tenha sido contactado pela assistente e/ou se tenha furtado ao contacto.

W) O arguido nunca foi contactado e nunca se furtou a qualquer contacto quer por parte da assistente quer por parte das entidades judiciais.

X) Aliás, o arguido AA vive na morada constante dos autos há mais de 2018, e nunca recebeu qualquer correspondência por parte da assistente como desconhece o porquê de as autoridades não o conseguirem notificar na sua morada.

Y) O arguido sempre que notificado compareceu, voluntariamente, às diligências judiciais.

Z) Portanto, os factos constantes nos pontos 8. 9. e 10, ora impugnados, deverão ser retirados dos factos dados como provados e serem considerados como dados não provados.

AA) Por outro lado, verifica-se, in casu, Violação do Princípio in Dúbio Pro Reo e Vício do erro notório na apreciação da prova, nos termos do disposto no artigo 410.º, n.º 2, alíneas a) b) e c) do C. P. Penal.

BB) A decisão recorrida, em sede de fundamentação, não procedeu ao exame crítico das provas ou ausência delas, exigido no art.º 374º n.º 2 do Código Processo Penal, como consequência do dever de fundamentação das decisões dos tribunais imposto pelo art.º 205º,n.º1 da Constituição, violando o disposto nos referidos artigos art.º 205º, n.º 1 da Constituição, art.º 97º, n.º 5 e o art.º 374º n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.

CC) Face ao texto da sentença recorrida e da motivação da sua convicção, resulta, por si só, que o processo decisório do tribunal a quo, desembocou num estado de dúvida.

DD) E, tanto assim o é, que o Tribunal a quo, a final, acaba por determinar extraçção de certidão dos presentes autos e se remeta aos serviços do DIAP com vista a aferir da eventual prática por parte DD de factos que poderão integrar a prática de um ilícito criminal “ Em face da produção de prova realizada na audiência de julgamento e das considerações tecidas supra em sede de motivação da matéria de facto, determino que se extraia certidão dos presentes autos e se remeta aos serviços do DIAP com vista a aferir da eventual prática por parte DD de factos que poderão integrar a prática de um ilícito criminal.”

EE) A falta de corroboração de outros meios de prova nos presentes autos, o sentido da prova extraído do material probatório é de molde a gerar uma dúvida razoável ao julgador a quo, que devia ser valorada a favor do recorrente.

FF) Daqui se extrai que face ao “sentido da prova” o tribunal a quo deveria ter ficado em estado de dúvida razoável e valorar a favor do recorrente, o que não o fez.

GG) Na esteira do raciocínio demonstrado, outra conclusão não se pode extrair, se não a de que existem dúvidas razoáveis acerca da prática dos factos de quem vem acusado o arguido/recorrente.

HH) A decisão sindicada, encontra-se violado o Princípio in Dúbio pro Reo e, consequentemente violada a presunção de inocência constitucionalmente consagrada.

II) Posto que, na verdade, considerada a falta de prova outra decisão não se impunha a não ser a absolvição do arguido.

JJ) O tribunal a quo sempre deveria absolver o arguido aplicando o princípio “in dubeo pro reo”. Aliás, tal princípio assume a sua verdadeira aplicabilidade em situações como a que in casu se apresenta.

KK) Ora, pelo exposto incorreu, assim, o Tribunal a quo em “erro notório na apreciação da prova” – artº 410º, nº 2, al. c), do C.P.P..

LL) Não se vislumbra como minimamente razoável e justa outra decisão que não seja a da absolvição do arguido, ora Recorrente, da prática do crime de que vinha acusado/pronunciado.

MM) Em momento algum se verifica que exista qualquer prova da prévia intenção do arguido em não efectuar o pagamento dos serviços prestados pela assistente e, consequentemente, do plano astuto que alegadamente elaborou para enganar a assistente.

NN) In casu, o que está em causa é um mero negócio, entre empresas comerciais, que, alegadamente não correu conforme o expectado e, por isso, poderá dar causa à responsabilidade civil.

OO) Salvo melhor entendimento em contrário, tal questão terá, forçosamente, de ser dirimida nos tribunais cíveis e não os tribunais penais.

PP) Aliás, dispõe o artigo 217.º, n.º 1, do Código Penal que “Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa..”::

QQ) Ora, perante este dispositivo normativo, percebemos que o crime de burla (crime este pelo qual o arguido vem acusados – é qualificado, apenas em função do valor das facturas alegadamente, não pagas) pretende punir os comportamentos dos agentes que, forma engenhosa e enganosa, obtenham para si um enriquecimento ilegítimo, à custa do património daquele que é enganado ou do património de terceiros.

RR) Deste modo, para que os comportamentos dos agentes integrem este tipo legal de crime é necessário que, cumulativamente, se verifique o preenchimento dos seguintes requisitos:

a) intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo;

b) tal enriquecimento ilegítimo seja obtido por meio de erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou;

c) determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.

SS) A Doutrina e a Jurisprudência Portuguesas (unânime) vêm referindo que “existe fraude penal quando:

-há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico;

- se verifica dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto;

- se verifica um violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena;

- há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir;

- há uma impossibilidade de se reparar o dano;

- há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio.” - Cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 20 de Março de 2003, proferido no âmbito do processo 03P241, disponível em www.dgsi.pt.

TT) In casu, não estão, portanto, preenchidos todos os requisitos enunciados pela nossa Doutrina e Jurisprudência, para que o comportamento dos aqui arguidos possa ser considerado como um comportamento criminoso.

UU) O não pagamento de uma (ou mais facturas) não é suficiente para, por si só, fazer com que o agente incorra na prática de um ilícito penal, nomeadamente aquele que in casu está em causa.

VV) Torna-se necessário que se prove que havia uma intenção clara do agente ab initio de não efectuar o pagamento devido, tendo, para tanto, usado um estratagema para ludibriar esta sua intenção de obter, para si um enriquecimento, o que in casu nada se provou.” (fim de transcrição)

Indicou as seguintes disposições legais que entende violadas: - Art.º 410º, nº 2, al. b) do. Código de Processo Penal; - Artº Artigos 32º e 205º da Constituição da República Portuguesa; -Art.º 97º, n.º 5 e o art.º 374º n.º 2, ambos do Código de Processo Penal.


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Também a sociedade arguida “A..., Unipessoal, SA” não se conformou com o teor da Sentença condenatória e da mesma interpôs Recurso, extraindo das motivações apresentadas as seguintes Conclusões (transcrição):

“A – O presente recurso é interposto devido ao inconformismo da sociedade arguida recorrente quanto à decisão proferida pelo Tribunal a quo, que a condenou pela prática de um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217, n.º 1 e 218.º, n.º 1, por referência ao artigo 202.º, alínea a), todos do Código Penal, na pena de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de 100 € (cem euros), o que perfaz uma quantia global de 28.000 € (vinte e oito mil euros) e no pagamento das custas processuais, que se fixaram no mínimo legal.

B – O inconformismo da sociedade arguida quanto à decisão proferida prende-se com a matéria de facto e com a matéria de direito, concretamente quanto ao facto de, no seu entender, a Sentença a quo enfermar de erro de julgamento, mesmo considerando o princípio da livre apreciação da prova (há um claro erro notório na apreciação da prova), por não terem sido devidamente analisados e ponderados os factos e a prova produzida, como também não analisar, ponderar e apreciar, devidamente a lei aplicável, o que culmina com uma decisão/condenação injusta, ilegal e, até, inconstitucional. A sociedade arguida recorre ainda, em ultima ratio e por mera cautela de patrocínio, da determinação da medida concreta da pena.

C – O Tribunal a quo formulou e sustentou a sua decisão ao arrepio e à revelia da prova que foi produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e, em consequência, entende a sociedade recorrente que não deveriam ter sido considerados como provados (antes não provados) os factos descritos nos pontos 6, 8 A 11 E 13 (valor do prejuízo sofrido pela assistente; elementos subjectivos nevessários para se verificar a prática do tipo legal de crime e ainda as condições socioeconomicas da sociedade arguida).

D – Seguindo os ensinamentos de Simas Santos e Leal Henrique, in Código Processo Penal Anotado, Vol. II, página 740, “o erro notório na apreciação da prova quando se dá como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto contido no texto da decisão recorrida.”.

E – In casu, a exposição da motivação da decisão do Tribunal a quo é, portanto, manifestamente errada e a apreciação e valoração da prova produzida não teve em consideração as regras da experiência comum. Pelo contrário! Contraria-as… Pelo que o Tribunal a quo não se fez um correcto uso dos princípios gerais de apreciação da prova, nem dos critérios da razoabilidade e da experiência comum. Antes o Tribunal a quo limitou-se a ouvir e a ter em consideração apenas aquilo que lhe era conveniente para alicerçar o caminho que rumou e olvidando-se de outra prova que permite/obriga a decisão em sentido diverso, nem que fosse apenas por força da aplicação do princípio do in dubio pro reo e, por conseguinte, toda a decisão proferida e que ora se sindica fica inquinada, por ser assente em critérios ilógicos, arbitrários, inaceitáveis e indefensáveis.

F – Desde logo, o facto elencado no ponto n.º 13, diz o Tribunal a quo que a sua convicção foi formulada e apurada por recurso, de forma exclusiva, à prova documental declaração de IRC, apresentada em 2019 e referente ao período de 021 de Janeiro de 2018 a 31 de Dezembro de 2018 – junta aos autos. No entanto, da análise do referido documento, junto já no decurso da audiência de discussão e julgamento, ressalta, à saciedade, que a sociedade arguida recorrente, em tal período, não teve um lucro (conforme referido na Sentença recorrida), mas antes um prejuízo de 6.193,26 € (dezasseis mil, cento e noventa e três euros e vinte e seis cêntimos).

G – Para além de documentalmente provado, a testemunha DD, contabilista da sociedade refere, no seu depoimento que a sociedade arguida já em período anterior ao dos factos em apreço e ainda na anterior gerência e com os anteriores sócios, passava por dificuldades económicas, com frequentes atrasos nos pagamentos e obrigações, o que corrobora o documento em causa – Depoimento prestado na diligência do dia 19 de Fevereiro de 2024 – Diligência 65_21.1T9MCN_2024-02-19_09-33-41, minutos 00:20:03 a 00:20:21, para onde remetemos, por razões de economia processual.

H – Em conclusão, o facto n.º 13, do elenco dos factos considerados provados, ora impugnado, deveria ter sido considerado provado nos seguintes termos: “13. Em sede de declaração de IRC apresentado no ano de 2019, quanto ao período de 01.01.2018 a 31.12.2018, a sociedade arguida apresentou um prejuízo no valor de €16.193,26.”, alteração esta que será relevante para apurar os critérios de determinação da medida concreta da pena, como também para apuramento dos elementos subjectivos que o tipo legal de crime.

I – Atenta a coincidência de argumentos que nos permitem impugnar o juízo efectuado pelo Tribunal a quo e requerer ao Tribunal ad quem a alteração da resposta, efectuamos a impugnação dos factos elencados sobre os pontos 8 a 11 em conjunto.

J – Quanto aos mesmos, a sociedade arguida recorrente não pode deixar de manifestar a sua discordância com a posição assumida pelo Tribunal a quo, quando refere que os mesmos referem-se a factos do foro subjectivo e, por isso, a motivação e a convicção do Tribunal baseou-se nas regras da experiência comum. É certo que, em parte tal afirmação é verdadeira, mas não o é na sua totalidade, porquanto nos mesmos estão inseridos factos objectivos, factos concretos, que teriam de ser considerados provados com base em elementos probatórios carreados para os autos, sob pena de o Tribunal a quo cometer, como cometeu, uma vez mais, um erro notoriamente grave na apreciação da prova.

K – Se atentarmos no facto elencado sobre o n.º 8, o Tribunal recorrido faz referência “(…) tanto mais que a sede da empresa foi indicada como se localizando num imóvel abandonado (…)”, assim como no facto elencado sobre o n.º 9, o Tribunal refere que “(…) após a celebração dos contratos e prestação dos serviços, sempre se furtou ao contacto com a firma denunciante, nunca tendo dado qualquer justificação para o não pagamento.”. Ora, estas partes dos pontos em causarevestem, claramente, factos concretos que não podem ser presumidos, nem resultar da análise e conjugação dos elementos objectivos com as regras da normalidade e da experiência comum.

L – Para além disso, quanto a estes elementos objectivos, se analisarmos a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento resulta claro o inverso do que o Tribunal recorrido verteu no elenco dos factos considerados provados.

M – Não foram carreados para os autos elementos probatórios suficientes para que o Tribunal crie a sua convicção, sem quaisquer margem para dúvidas, de que o imóvel que constituía a sede da sociedade arguida seria um imóvel abandonado – A única testemunha que tal refere é o legal representante da sociedade assistente, BB (Depoimento prestado na diligência do dia 10 de Janeiro de 2024 – Diligência 65_21.1T9MCN_2024-01-10_10-08-36, minutos 00:27:03 a 00:28:04 e para o qual remetemos, por razões de economia processual), pessoa interessada no desfecho da causa e que cujo discurso é claramente imiscuído de interesses e de condicionantes, pelo que não deveria ter sido suficiente para abalar a prova documental junta aos autos e que prova, claramente, que o imóvel em causa não está abandonado, e tem vizinhos/moradores, ao contrário daquilo que a testemunha refere.

N – Da referida prova documental, é possível constatar que o imóvel que constitui a sede da sociedade arguida recorrente se situa no centro da cidade de ... e que o referido prédio em causa é constituído por vários pisos, sendo certo que apenas uma loja/parte do mesmo estava afecta à sociedade recorrente.

O – E, desta prova objectiva, conjugada com as regras da normalidade e da experiência comum, poderá ser evidenciado que a sociedade arguida recorrente não tinha qualquer intenção prévia de se esconder de quem quer que fosse, muito menos da sociedade assistente. Fosse essa a sua intenção e teria, certamente, escolhido um local ermo, retirado e despovoado para ser a sua sede, pois só assim é que se poderia “esconder” e “mascarar” ou até mesmo “desaparecer” e, em consequência disso, conseguir furtar-se ao cumprimento das suas obrigações ou contacto com eventuais credores ou acções judiciais.

P – Para além disso, também consta dos autos que a pessoa que consta, na certidão permanente, como sócia e gerente da sociedade arguida tem a sua morada, desde há muitos anos (pelo menos desde 2018) na mesma morada, em ... (Travessa ..., ..., ...), pelo que se fosse prévia intenção da sociedade arguida recorrente furtar-se ao cumprimento das suas obrigações e ao pagamento dos serviços contratados, jamais teria indicado a sua efectiva residência como sua morada (teria-se até, de acordo com as regras da experiência comum e da normalidade, aproveitado da morada da sede da empresa para indicar como sendo a sua), evitando assim, de resto, ser facilmente encontrado por quem quer que dele procurasse.

Q – Assim, para além de não existir quaisquer provas que permitam a criação da convicção só Tribunal a quo, quanto aos elementos objectivos, não podemos olvidar que o depoimento do legal representante da sociedade assistente é um depoimento com várias incongruências (nomeadamente quando pretende fazer crer o Tribunal recorrido de que a compra da sociedade recorrente teve tão só o intuito de se aproveitar da reputação/antiguidade da mesma para enganar quem com eles negociavam e retirar para si vantagens, o que não é compatível com o facto desta empresa já ter vindo a ter incumprimentos (a sua reputação já estava abalada) e nunca ter estado inscrita nas bolsas de carga - C...) e, por isso, aquilo que parece ser, prima facie, um depoimento sério, imparcial e isento, afinal está carregado de iniquidade, de subjectividade e de parcialidade, com o claro intuito de conseguir obter para si o sucesso da causa, atendendo que o mesmo é legal representante da sociedade ofendida, com um claro interesse no desfecho da causa – vide depoimentos prestados na diligência do dia 10 de Janeiro de 2024, pelo BB – Diligência 65_21.1T9MCN_2024-01-10_10-08-36, minutos 00:27:03 a 00:28:04 e prestado por CC, pessoa esta que, efectivamente, depôs com total clareza e isenção, completamente desinteressado no desfecho da causa (Depoimento prestado na diligência do dia 10 de Janeiro de 2024 – Diligência 65_21.1T9MCN_2024-01-10_10-53-16, minutos 00:10:56 a 00:11:50), que, por razões de economia processual, se dão aqui por integralmente reproduzidos para os devidos e legais efeitos.

R – Mais que não fosse, se dúvidas ainda existissem, o Tribunal a quo, por força o princípio do in dubio pro reo (imposição dirigida ao juiz no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa (vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, 4.º ed., pág. 519) e no mesmo sentido Figueiredo Dias), um dos corolários do princípio da presunção da inocência, princípio este constitucionalmente consagrado, deveria e teria de ter considerado estes factos descritos nos pontos 8 a 11, da Sentença recorrida como não provados.

S – Portanto, os factos constantes nos pontos 8, 9, 10 e 11, ora impugnados, deverão ser retirados dos factos dados como provados e, ao invés, serem considerados como não provados e, consequentemente, não se mostrando preenchidos todos os elementos do tipo de ilícito criminal de que a sociedade arguida e recorrente vinha acusada/pronunciada, não poderia a mesma ser condenada pela prática de tal crime, impondo-se, portanto, a sua absolvição.

T – No que diz respeito ao facto n.º 6 do elenco dos factos provados, o Tribunal a quo não esteve bem e incorreu num claro erro notório de apreciação da prova, ao proceder ao simples cálculo aritmético da soma das facturas juntas aos autos.

U – Antes de qualquer outra consideração, devemos atentar que a previsão do tipo legal de crime de que a sociedade arguida vem acusada (burla) tem em vista a protecção do bem jurídico que é o património e, como tal, este é um crime de dano e a sua consumação, como nos ensina Almeida Costa, exige “o resultado consistente na saída dos bens ou valores da disponibilidade fáctica do legítimo titular (vítima), com a verificação de um efectivo prejuízo patrimonial do burlado ou de terceiro” (Sublinhado e negrito nosso).

V – Assim, o "prejuízo patrimonial", enquanto elemento de crime do tipo objectivo e, por isso, requisito da consumação do facto, tem de ser, pois, identificado com um conceito objectivo-individual de dano patrimonial, que traduza uma diminuição da posição económica efectiva da lesado em relação à posição em que se encontraria se não tivesse sido induzido em erro ou engano e realizado a conduta determinada por tal erro ou engano. Por outras palavras, “prejuízo patrimonial” relevante corresponde, assim, a um empobrecimento do lesado, que vê a sua situação económica diminuída, e efectivamente diminuída quando comparada com a situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido a situação determinante da lesão.

W – Ora, o valor total constante das facturas não transmite o real prejuízo da empresa assistente, porquanto, como decorre da experiência comum e das regras da normalidade, nelas está contemplado não só os gastos que o prestador do serviço tem com essa mesma realização do serviço e bem assim o lucro que a sociedade pretende obter com tal serviço.

Ou seja, a situação que a empresa assistente estaria, caso não tivesse ocorrido a relação comercial com a sociedade arguida, não seria com um saldo contabilistico de mais de 8.917,50 € (oito mil, novecentos e dezassete euros e cinquenta cêntimos), mas tão só com um valor, não apurado pelo Tribunal a quo, sendo este superior nos gastos que teve de incorrer para prestar o serviço que foi contratado pela sociedade arguida.

X – O Tribunal a quo, não tendo logrado conseguido apurar com exactidão os gastos que a sociedade assistente teve, não poderia limitar-se a proceder à soma aritmética dos valores constantes das facturas e, ao fazê-lo, incorre num claro erro notório de apreciação da prova.

Y – Em consequência, ao invés de ter sido considerado provado o facto elencado no ponto n.º 6 “A conduta do arguido causou à ofendida um prejuízo de, pelo menos, 8.917,50 €”, deveria ter-se considerado como provado que “A conduta do arguido causou à ofendida um prejuízo não concretamente apurado.”.

Z – Posto isto, e até, mais uma vez, por força do princípio do in dubio pro reo, os arguidos, em especial a sociedade arguida recorrente, a ser condenada (o que não se concebe, não só pelo que já ficou aqui exposto e também pelo que infra ainda se irá referir, só se equacionando tal possibilidade por uma remota hipótese de raciocínio e por mera cautela de patrocínio), deveria ter sido condenada pelo crime de burla simples, o que diminui substancialmente os limites absatractos da moldura penal associada à prática do crime, por não se verificar “o prejuízo de valor elevado”.

AA – A decisão que ora se sindica, não poderia, mesmo que V.ª Ex.ª assim nãoentendam, ter sido no sentido em que foi proferida, mas antes teria o Tribunal a quo de proferir decisão de absolvição da sociedade arguida recorrente, por não se encontrarem preenchidos todos os requisitos – cumulativos – para que o comportamento da sociedade arguida recorrente se integre no tipo legal do crime, pelo qual vinha acusada/pronunciada.

BB – Atendendo à disposição normativa do artigo 217.º, do Código Penal, para que os comportamentos dos agentes integrem este tipo legal de crime é necessário que, cumulativamente, se verifique o preenchimento dos seguintes requisitos: a) intenção do agente de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo; b) tal enriquecimento ilegítimo seja obtido por meio de erro ou engano sobre factos que o agente astuciosamente provocou; c) determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial.

CC – É unânime (e a própria Sentença recorrida refere, ainda que por outras palavras) no seio da Doutrina e a Jurisprudência Portuguesas (cita-se, a título de exemplo, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 20 de Março de 2003, proferido no âmbito do processo 03P241, disponível em www.dgsi.pt) que “existe fraude penal quando: - há propósito ab initio do agente de não prestar o equivalente económico; - se verifica dano social e não puramente individual, com violação do mínimo ético e um perigo social, mediato ou indirecto;

- se verifica um violação da ordem jurídica que, por sua intensidade ou gravidade, exige como única sanção adequada a pena; - há fraude capaz de iludir o diligente pai de família, evidente perversidade e impostura, má fé, mise-en-scène para iludir; - há uma impossibilidade de se reparar o dano; - há intuito de um lucro ilícito e não do lucro do negócio.”

DD – In casu, em momento algum se verifica que exista qualquer prova da prévia intenção do arguido em não efectuar o pagamento dos serviços prestados pela assistente e, consequentemente, do plano astuto que alegadamente elaborou para enganar a assistente.

No nosso modesto entendimento, está em causa é um mero negócio, entre empresas comerciais, que, alegadamente não correu conforme o expectado e, por isso, poderá dar causa à responsabilidade civil, conflito este que, assim sendo, terá de ser dirimido pelos tribunais cíveis, não havendo qualquer ilícito penal, uma vez que o não agamento de uma (ou mais facturas) não é suficiente para, por si só, fazer com que o agente (leia-se sociedade recorrente) incorra na prática de um ilícito penal, nomeadamente aquele que in casu está em causa.

EE – Mais, inexiste qualquer prova da “astúcia” do plano da sociedade arguida recorrente (nem poderia existir, pois as relações entre as sociedades limitaram-se ao plano cível que, como em muitos outros negócios, correu mal).

FF – De salientar que o preenchimento deste requisito assume tamanha importância, pois se os factos forem praticados sem “astúcia” não pode haver a prática do crime de burla, nem mesmo na forma tentada.

GG – É unânime na doutrina e jurisprudência portuguesas que é usada astúcia quando os factos invocados dão a uma falsidade a aparência de verdade, ou são referidos pelo agente factos falsos ou este altere ou dissimule factos verdadeiros e actuando com destreza e um especial requinte fraudulento, o agente pretende enganar e surpreender a boa fé da pessoa que é enganada, de forma a convencê-la a praticar actos em prejuízo do seu património ou do prejuízo do património de terceiro.

HH – Fazendo a subsunção ao presente caso, mais uma vez se refere, jamais se verifica nos autos, por banda da sociedade recorrente, qualquer indício que possa levar-nos a crer que existiu uma elaboração prévia (ou não) de qualquer plano com a intenção do não pagamento dos serviços que iriam ser prestados pela assistente. Aliás, resulta, claramente o contrário, pois o seu comportamento pelo cumprimento das obrigações assumidas, muito embora, em algumas das vezes, com algum esforço e enorme capacidade de gestão financeira.

II – Em resumo, não se verificando preenchidos todos os requisitos objectivos do crime em causa, impunha-se a absolvição da sociedade arguida, o que ora expressamente se requer a este Venerando Tribunal, requerendo-se a substituição de da decisão recorrida por outra que importe a absolvição da ora recorrente.

JJ – Por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que o fim último da punição é a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, sendo este o pressuposto e limite da aplicação da pena.

KK – Tendo por axioma que a culpa é o limite inultrapassável da pena, há que considerar na individualização desta todos os elementos e circunstâncias do facto, tendo presente os fins da punição.

LL – Uma vez fixado o limite máximo da culpa, poderá ser tida em conta a prevenção geral, de modo a garantir-se aquilo a que o Prof. Figueiredo Dias, in “Direito Penal Português – Das Consequências Jurídicas do Crime”, chama de estabilização das expectativas comunitárias da validade da norma violada.

MM – In casu, é do entendimento da sociedade arguida recorrente que a Sentença a quo não teve em consideração os fins da mesma nem os critérios legais para a sua concreta determinação - em clara violação aos artigos 47.º e artigo 74.º, do Código Penal – cuja incorrecta interpretação levou a uma pena de multa exagerada e injusta que para além de exceder a culpa do agente/sociedade recorrente, não considerou as atenuantes especiais e gerais da sociedade arguida, aqui recorrente, que, conforme a própria Sentença recorrida refere - “que a mesma não possui qualquer antecedente criminal e que pese atualmente se encontra insolvente” –, quanto à sociedade arguida recorrente são diminutas.

NN – Sendo estas exigências de prevenção especial diminutas e porque o risco de continuidade da actividade criminosa é também diminuído, entende-se como justa a aplicação de uma medida concreta da pena de multa muito próxima do limite mínimo, até porque a mesma se encontra insolvente e, portanto, com fracas condições socioeconómicas, pelo que, na nossa modesta opinião, a pena de multa a aplicar à sociedade arguida recorrente deveria ser, sempre, inferior a 240 dias de multa.

OO – E a assim se considerar, teria o Tribunal a quo de ponderar a aplicação ou não de uma pena de substituição, porquanto este exercício é um poder/dever do Tribunal e não uma faculdade discricionária do julgador na sua aplicação, desde que verificados os respectivos pressupostos para a sua aplicação.

PP – Entendendo-se que a pena a aplicar à sociedade arguida deverá ser inferior a 240 dias, verificam-se reunidas as condições/pressupostos para a aplicação de uma pena de substituição – admoestação (artigo 90.º-C, do Código Penal) – caminho este que deverá ser enverdado por este Venerando Tribunal, por entendermos que a substituição da pena de multa por uma admoestação as exigências de prevenção geral e especial se encontram asseguradas e bem assim esta pena de substituição realiza, de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, a protecção dos bens jurídicos ofendidos e a reintegração do agente na sociedade.

QQ – A Sentença a quo violou, assim, os artigos 32.º e 205.º, ambos da Constituição da República Portuguesa, 40.º, 47.º, 71.º, 90.º-C, 217.º e 218.º, todos do Código Penal e os artigos 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.” (fim de transcrição)


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Ambos os recursos foram admitidos por despacho de 15.04.2024 (ref.ª Citius n.º 94948860), a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.

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O Magistrado do Ministério Público junto da 1ª instância apresentou Resposta, pugnado pela improcedência de ambos os recursos, apresentando as seguintes Conclusões:

“a) Não foi violado qualquer normativo legal na douta sentença, nem a mesma padece de qualquer vício;

b) A prova produzida em audiência de julgamento, quer documental, quer testemunhal, foi devida e legalmente analisada e ponderada pela Meritíssima Juiz de Direito, não suscitando qualquer reparo;

c) A pena encontrada pelo Meritíssimo Juiz de Direito vai ao encontro das necessidades que se fazem sentir, quer nos recorrentes, quer na comunidade, mas V. Exas., farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA.”


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Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer (ref.ª Citius n.º 18217360), no qual concluiu:

“Em conclusão, aderindo à superior argumentação contida na resposta do magistrado do Ministério Público na primeira instância, que aqui damos por reproduzida, somos de parecer que:

-a prova foi devidamente apreciada e valorada;

-a sentença está devida e acertadamente fundamentada, e não padece que qualquer erro ou vício;

-não houve violação de lei;

-os recursos do arguido, e da sociedade arguida, devem ser julgados improcedentes, mantendo-se a, aliás douta sentença ora em crise, nos seus precisos termos.”


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Foi dado cumprimento ao estabelecido no artigo 417º, nº 2 do CPP, nada mais tendo sido acrescentado.

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Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, foram os autos à conferência.

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Nada obsta ao conhecimento do mérito.

Cumpre apreciar e decidir.


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II – Fundamentação

Do âmbito do recurso e das questões a decidir

De acordo com o preceituado nos artigos 402º, 403º e 412º, n.º 1 do CPP, o poder de cognição do tribunal de recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente, já que é nelas que sintetiza as razões da sua discordância com a decisão recorrida, expostas na motivação. Umas e outras definem, pois, o objecto do recurso e os limites dos poderes de apreciação e decisão do Tribunal Superior (cfr. Germano Marques da Silva in “Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335; Simas Santos e Leal-Henriques in “Recursos Penais”, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág. 113; Paulo Pinto de Albuquerque in “Comentário do Código de Processo Penal, à luz da Constituição da República Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”, 4ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 2011, págs. 1059-1061).

Além destas, o tribunal está obrigado a decidir todas as questões de conhecimento oficioso, como é o caso das nulidades insanáveis que afectem o recorrente, nos termos dos artigos 379º, nº 2 e 410º, nº 3 ambos do CPP e dos vícios previstos no artigo 410,º nº 2 do CPP, que obstam à apreciação do mérito do recurso, mesmo que este se encontre limitado à matéria de direito (assim se decidiu no Ac. do Plenário das Secções do STJ nº 7/95 de 19.10.1995, in Diário da República, Iª Série-A, de 28.12.1995 e no AUJ nº 10/2005, de 20.10.2005, DR, Série I-A, de 07.12.2005).

Olhando então para as conclusões do recorrente, as questões a apreciar são:

a. Vício de erro notório na apreciação da prova – artigo 410º, n.º 2, al. c) do CPP;

b. Erro de julgamento da matéria de facto;

c. Violação do princípio in dubio pro reo;

d. Qualificação jurídica dos factos;

e. Medida concreta da pena aplicada à pessoa colectiva recorrente

f. Aplicação da pena de substituição - Admoestação - prevista no artigo 90º-C do CP.


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É o seguinte o teor da Sentença recorrida na parte atinente à fundamentação de facto - factos julgados provados e respectiva motivação (transcrição):

A – Factos provados:

Da decisão instrutória:

1. A sociedade “B... - SOCIEDADE UNIPESSOAL LDA.”, com sede em ..., dedica-se aos transportes e o seu gerente é BB

2. A sociedade arguida “A..., UNIPESSOAL LDA”, gerida pelo arguido AA, com sede, neste concelho e comarca, dedica-se aos transportes rodoviários de mercadorias.

3. Durante o ano de 2020, o arguido AA, no nome e no interesse da arguida “A..., UNIPESSOAL LDA”, publicitou, na plataforma digital “C... GmbH”, cargas que necessitavam de ser transportadas, já com a ideia de não pagar de antemão.

4. Assim, a ofendida “B... - SOCIEDADE UNIPESSOAL LDA.” prestou vários serviços de transporte de cargas para a sociedade arguida, conforme indicação detalhada constante de fls. 174 e 175 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido. (…)

5. Não foi efetuado a pagamento de qualquer quantia.

6. A conduta do arguido causou à ofendida um prejuízo de, pelo menos, 8.917,50 €.

7. O arguido, em nome e no interesse da arguida sociedade, sabia e quis adotar tal comportamento, bem sabendo que causava prejuízo à denunciante e com a específica intenção de obter, para si, um enriquecimento ilegítimo no valor de 8.917,50€, correspondente ao preço do valor dos transportes de cargas efetuados e não pagos.

8. O arguido, agindo por si e em representação da sociedade arguida, nunca teve qualquer tipo de intenção de proceder ao pagamento dos ditos serviços, tanto mais que a sede da empresa foi indicada como se localizando num imóvel abandonado, com o propósito de evitar e obstar a qualquer diligência judicial, designadamente ações judiciais de cobrança coerciva dos serviços contratados.

9. Da mesma forma, após a celebração dos contratos e prestação dos serviços, sempre se furtou ao contacto com a firma denunciante, nunca tendo dado qualquer justificação para o não pagamento.

10. Atuando com intenção prévia de não pagar os serviços em causa.

11. Bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei.

Das condições socioeconómicas da sociedade arguida:

12. Por sentença proferida a 11.07.2023 e transitada em julgado, foi a sociedade arguida declarada insolvente.

13. Em sede de declaração de IRC apresentado no ano de 2019, quanto ao período de 01.01.2018 a 31.12.2018, a sociedade arguida apresentou um lucro tributável no valor de €21.722,92.

Das condições socioeconómicas do arguido:

14. O arguido é divorciado, vive sozinho, em casa propriedade de um amigo e não entrega qualquer quantia monetária por conta de aí residir.

15. O arguido beneficia da prestação social de rendimento social de inserção, no valor de €202,00, desde o ano de 2018.

16. O arguido realiza pequenos trabalhos na agricultura e aufere em média a quantia mensal de €300,00.

17. O arguido tem seis filhos, três dos quais menores de idade e não entrega qualquer prestação de alimentos a favor dos mesmos.

18. O arguido é doente oncológico.

19. O arguido tem o 6.º ano de escolaridade.

Mais se provou que:

20. A sociedade arguida “A..., Unipessoal, Lda.” não tem antecedentes criminais averbados no seu certificado do registo criminal.

21. O arguido AA tem averbado no seu certificado do registo criminal as seguintes condenações: (…).

B – MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO:

O Tribunal formou a sua convicção relativamente à matéria de facto dada como provada e não provada com base nos seguintes elementos probatórios produzidos em sede de audiência e valorados na sua globalidade, segundo o princípio da livre apreciação da prova previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal e sem prejuízo do disposto no artigo 163.º do mesmo diploma.

Coligiu e concatenou os seguintes meios de prova:

 Declarações do arguido apenas quanto à sua situação socioeconómica;

 Declarações da sociedade assistente, na pessoa do seu legal representante BB;

 Prova testemunhal:

- CC, pai do anterior gerente da sociedade arguida;

- DD, contabilista da sociedade arguida até 2020;

 Prova documental:

- Certidão permanente de fls. 37 e seguintes;

- Faturas de fls. 21 e seguintes;

- Certificado do registo criminal da sociedade arguida de fls. 312;

- Certificado do registo criminal do arguido de fls. 313 a 318;

- Relatório social de fls. 319 a 321;

- Certidão permanente atualidade da sociedade arguida de fls. 322 a 327;

- Declaração de IRC entregue no ano de 2019, quanto ao ano de 2018, de fls. 331 a 345.

Concretizando:

O facto provado n.º 1 resulta do teor da certidão permanente de fls. 37 e da qual resulta a denominação da sociedade, o objeto social e o respetivo gerente.

O facto provado n.º 2 resulta do teor da certidão perante da sociedade arguida e da qual resulta qual a sede da sociedade, o seu objeto social (“transportes rodoviários de mercadorias”) e o seu único sócio e gerente – o arguido AA.

Os factos provados 3 e 4 resulta da conjugação de diversos elementos de prova.

Vejamos.

Em primeiro lugar, o Tribunal ouviu o legal representante da sociedade assistente. BB, de forma clara, explicou forma de contratação dos serviços. O mesmo explicou que o negócio teve origem nas chamadas “Bolsas de carga” – que respeita a uma plataforma através da qual as sociedades contratam com outras sociedades para que concretizem o transporte de mercadorias por seu turno por se encontrarem impossibilitadas de o fazer. Referiu o legal representante da sociedade assistente que nunca chegou a receber qualquer pagamento pelos serviços contratados e que, mesmo assim, lhe requererem que continuasse a prestar novos serviços, o que recusou, pois estaria em causa muito dinheiro e não havia recebido ainda qualquer quantia, sem prejuízo dos pagamentos serem deferidos no tempo por vezes a 60 dias.

Acontece que, estranhando a demora, e em face das insistências por via telefone e e-mail com a ausência de resposta, o legal representante, decorridos 3 a 4 meses, referiu que se deslocou ao ..., para conhecer a sede da sociedade arguida, tendo presenciado um prédio devoluto, sem a presença de quaisquer camiões.

O legal representante da sociedade arguida referiu que nas conversas em telefone não conseguia identificar a pessoa com quem falava, mas que quando se deslocou ao ..., ao tentar contactar com o arguido, o seu pedido para se conhecerem presencialmente e falarem foi negado por motivo de saúde (o que é corroborado pelo facto do próprio arguido ter referido que é doente oncológico).

O legal representante da sociedade assistente apresentou um discurso claro e conciso e referiu que nunca foi abordado no sentido de lhe ser oferecida uma explicação para a falta de pagamento ou mesmo marcação de uma data para fazer face à falta de pagamento.

CC, pai do anterior sócio-gerente da sociedade arguida, referiu que se via a si mesmo como dono da empresa, mas era o filho quem constava da certidão. Referiu que no ato da venda da sociedade pensou que a mesma seria vendida a DD. Contudo, no dia, DD fez-se acompanhar do arguido, sendo que este compraria a sociedade e que DD compraria os veículos à sociedade.

DD, contabilista da sociedade arguida atá finais de 2020, referiu que foi contacto por DD que lhe havia informado que a sociedade teria um novo sócio (que seria o arguido).

A testemunha referiu que foi informado que os assuntos relativos à empresa não seriam mais tratados por DD. Referiu que achava que a sociedade arguida não tinha trabalhadores, pois não processava salários, não fazia conciliações e não tinha veículos. Referiu ainda que DD nunca se identificou como gerente e que era um sr. AA (arguido) quem entregava as coisas necessárias.

Em face do antedito, torna-se claro que, o arguido, enquanto gerente conforme resulta da certidão permanente, tinha os poderes de direção da empresa. Torna-se ainda claro que a empresa não dispunha de trabalhadores, de veículos para realizar transportes, nem de instalações (pelo menos no ano de 2020). Não procedeu ao pagamento de quaisquer valores à sociedade assistente, não apresentou plano de pagamento ou qualquer justificação (conforme declarações de BB).

Pelo que, ao celebrar o contrato com a sociedade assistente, sabia o arguido, por si e na qualidade de legal representante da sociedade arguida, conclui o Tribunal que não iria cumprir com a obrigação de pagamento, o que sabia, mas ainda assim, quis obter fazer o transporte em seu nome, com recurso a transporte de terceiro, sem lhes pagar o serviço (vide as faturas de fls. 21 e seguintes).

Os factos provados n.ºs 5 e 6 resultam da conjugação do somatório dos valores das faturas emitidas pela sociedade assistente (fls. 21 e seguintes) e não pagas pela sociedade arguida, conforme confirmado pelas declarações prestadas pelo legal representante da sociedade arguida.

Os factos provados n.ºs 7 a 11, considerando que se tratam de factos que integram o elemento subjetivo, uma vez que o arguido não confessou os factos, os mesmos não são apreensíveis de forma direta, pelo que encontram chancela na conjugação das regras da experiência comum e da normalidade, conjugadas com os elementos exteriores versados nos factos anteriormente dados como provados (os elementos do foro objetivo), os quais revelam que, com tal conduta, o arguido não podia ter outra intenção senão aquela descrita, agindo, portanto, de forma intencional, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

O facto provado n.º 12 resulta do teor da certidão permanente atualizada da sociedade arguida que se encontra a fls. 322 a 327, da qual conta a inscrição da decisão que decretou a insolvência da sociedade.

O facto provado n.º 13 resulta do teor da declaração de IRC entregue no ano de 2019, quanto ao ano de 2018, de fls. 331 a 345.

Os factos provados n.ºs 14 a 19, que respeitam às condições socioeconómicas do arguido AA, resultam das declarações prestadas pelo mesmo, quantia à sua condição de vida, familiar, habitacional e profissional, que se afiguram como cedíveis e corroboradas pelo teor do relatório social de fls. 319 a 321.

O facto provado n.º 20 resulta do teor do certificado do registo criminal da sociedade arguida de fls. 312.

O facto provado n.º 21 resulta do teor do certificado do registo criminal do arguido AA de fls. 313 a 318. (…)

(fim de transcrição)


*

Questão prévia:

Ao abrigo do artigo 380º, n.º 2 do CPP, procede-se à correcção de lapso de escrita constante da sentença recorrida, nos seguintes termos:

- onde aí, no item Motivação, a págs. 7, 4º parágrafo, se lê “O legal representante da sociedade arguida referiu que (…)”, deve ler-se: “O legal representante da sociedade assistente referiu que (…)”.


*

Das Conclusões apresentadas, resulta que os arguidos alegam padecer a sentença recorrida do vício consagrado no artigo 410º, n.º 2, al. c) do CPP - vício do erro notório na apreciação da prova - e, lançando mão do mesmo argumentário recursivo, impugnam a matéria de facto julgada provada (cumprindo o triplo ónus da prova imposto pelo artigo 412º, n.ºs 3, 4 e 6 do CPP), pugnando pela eliminação da factualidade onde figuram como autores dos factos ali descritos, bem assim quanto à facticidade atinente ao elemento subjectivo do crime em apreço, porquanto, no seu entender, da prova coligida nos autos conjugada com aquela que foi produzida em audiência, não poderia o juiz de julgamento ter feito um juízo positivo dos factos vertidos na acusação.

Com efeito, entendem que:

a. em audiência de julgamento, o legal representante da sociedade assistente não indicou o arguido AA como tendo sido a pessoa com quem contactou a fim de estabelecer relações comerciais com a arguida “A..., Unipessoal, L.da”, mormente aquelas sobre que versam os autos;

b. o arguido AA, ainda que seja facto irrefutável que é o gerente da sociedade arguida, é tão somente “gerente de direito”, não exercendo, de facto, a gestão daquela;

donde, em obediência ao princípio in dubio pro reo, deveria o arguido ter sido absolvido, e consequentemente a sociedade arguida, sendo que a convicção do juiz de julgamento não se alicerçou em prova, mas em mera convicção pessoal.

Advogam ainda no sentido da inexistência de prova quanto à verificação do elemento objectivo do crime em apreço – o ardil e/ou esquema enganoso -, pois o que sucedeu foi apenas uma situação de incumprimento contratual, igual a tantas outras, sem relevo penal.

Decidindo.

Como é consabido, a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2 do CPP, no que se convencionou chamar de “revista alargada” ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se reporta o artigo 412º, n.ºs 3, 4 e 6 do mesmo diploma legal.

No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios, cuja indagação, como decorre do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.

No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus da especificação imposto pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do CPP. Estamos aqui no campo do erro de julgamento.

E existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a quo valorou contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, por ser grosseiro, ostensivo, evidente (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª Edição, 2000, Editorial Verbo, pág. 341). Dito de outra forma: trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Edição, 2007, Rei dos Livros, pág. 74). Ou ainda, como bem aduziu, a este propósito, o Magistrado do Ministério Público na Resposta apresentada: “o erro notório na apreciação da prova consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que não carece da análise da prova produzida bastando-se com o texto da decisão recorrida. Assim, verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com evidência, do ponto de vista de um homem médio, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Ora, é por isso que na fundamentação da sentença, deve constar uma exposição, o mais completa possível, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”

Olhando para a sentença recorrida, acima transcrita na parte para o que ora importa decidir, o tribunal a quo fundamentou de forma crítica e exaustiva as razões que o levaram a dar uns factos provados e outros como não provados, não decorrendo do texto da mesma a violação de quaisquer normativos legais, nem das regras da experiência comum, tão pouco do normal acontecer das coisas, não padecendo assim a mesma do imputado vício. Como bem se frisa na Resposta apresentada, o que os arguidos recorrentes pretendem é “antes uma valoração diferente da prova produzida em julgamento”, o que nos leva para o campo, bem diverso, do erro de julgamento, cuja disciplina se mostra consagrada no artigo 412º, n.ºs 3 e 4 do CPP.

Face ao exposto, importa que não se conceda provimento aos recursos interpostos na parte em que cada um deles pugna pela verificação, na Sentença recorrida, do vício decisório previsto na al. c) do n.º 2 do artigo 410º do CPP.


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Passando então agora à apreciação da segunda questão objecto do recurso – erro de julgamento -, incitados somos a relembrar que, julgando o tribunal a quo de acordo com as regras da experiência e a livre convicção (vide artigo 127º do CPP), só é admissível a alteração da matéria de facto quando as provas especificadas pelo recorrente conduzam necessariamente a decisão diversa da recorrida.

Cotejando as Conclusões apresentadas, e como acabámos de ver, o que cada um dos recorrentes pretende é a impugnação ampla da matéria de facto, solicitando ao Tribunal de Recurso que proceda à reapreciação dos meios de prova que indicou e revogue o julgamento da matéria de facto julgada provada, passando esta a fazer parte do elenco dos factos não provados, como vimos. Estamos assim, repete-se, no campo do erro de julgamento.

E se é certo que quando o Tribunal de Recurso, ao abrigo do regime estatuído pelo artigo 412º, n.ºs 3 e 4 do CPP, é chamado a conhecer da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto não pode, nem deve, fazer um segundo julgamento sobre os concretos pontos de facto especificados pelo recorrente, está contudo obrigado a fazer a reapreciação da prova indicada (que implica a sua audição, quando gravada,) e de outra que tiver como necessária para aquela concreta decisão, podendo ouvir outras passagens para além das indicadas e mesmo outros depoimentos, a fim de se poder pronunciar sobre os concretos pontos de facto apontados como incorrectamente julgados, como o impõe o n.º 6 do citado artigo 412º. Ou seja, sobre os concretos pontos de facto que, segundo o(s) recorrente(s), foram incorrectamente julgados, e com assento nas provas indicadas por este(s), o tribunal de recurso deve fazer o seu juízo, um juízo crítico autónomo, um exercício crítico substitutivo do exame crítico realizado pela primeira instância, que pode ou não coincidir com o da 1.ª instância. Deve assim o tribunal de recurso fundamentar a sua própria apreciação, não bastando que reproduza os fundamentos do tribunal a quo ou que faça uma mera remição para eles (neste sentido, Ac. STJ de 14.09.2006, Proc. n.º 06P2669, relator Juiz Conselheiro Pereira Madeira, in www.dgsi.pt) (sublinhados nossos)

Neste seguimento, diz-nos ainda Sérgio Poças, in ob. cit.: “Na decisão de fundo sobre a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, deve ser claro que a Relação desde logo ponderou devidamente a motivação /argumentação da 1.ª instância e a fundamentação/argumentação do recorrente e recorrido sobre a prova dos concretos pontos de facto em questão; que ouviu a gravação das provas indicadas pelo recorrente e outras que teve como necessárias para conhecimento da concreta matéria impugnada, que apreciou devidamente aquelas provas de acordo com as regras da experiência e que a final, num juízo autónomo, concluiu ou não, por erro de julgamento, no que diz respeito àqueles concretos pontos de facto” (sublinhado nosso).

Assim também se mostra decidido pelo STJ, no Ac. de 23.03.2006, Proc. n.º 06P547, relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho, in www.dgsi.pt: “É de fulcral importância para a salvaguarda dos direitos constitucionais de defesa que as Relações façam um efectivo controlo da matéria de facto provada na 1ª instância, por confronto desta com a documentação em acta da prova produzida oralmente”

Mas antes de prosseguirmos, atentando no que se extrai da prova produzida e registada nos autos, nomeadamente a indicada por cada um dos recorrentes, importa que antecipemos a análise da terceira questão objecto do recurso - violação do princípio in dubio pro reo -, intrinsecamente ligada à segunda questão objecto do presente recurso - erro de julgamento.

O princípio in dubio pro reo, constitucionalmente consagrado e um dos pilares fundadores do nosso edifício processual penal, encerra uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa. A sua violação exige que o juiz tenha ficado num estado de dúvida insanável sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido. A par, só pode concluir-se pela sua violação quando do texto da decisão recorrida decorrer, por forma evidente, que o tribunal encontrando-se nesse estado, optou por decidir contra o arguido (fixando como provados factos dubitativos ao mesmo desfavoráveis ou assentando como não provados outros que lhe são favoráveis) ou, quando embora se não vislumbre que o tribunal tenha manifestado ou sentido dúvidas, da análise e apreciação objectiva da prova produzida, à luz das regras da experiência e das regras e princípios válidos em matéria de direito probatório, resulta que as deveria ter (neste sentido, Ac. STJ de 27.05.2009, Proc. nº 05P0145 e o Ac. Rel. Évora de 30.01.2007, Proc. nº 2457/06-1, ambos em www.dgsi.pt).

Da leitura da sentença sob escrutínio resulta que em momento algum o tribunal a quo ficou em estado de dúvida razoável, objectiva e motivável e que, sem embargo de tal estado, tenha julgado provados os factos imputados ao arguido. Ao invés, afirmou peremptoriamente, em sede de motivação da convicção, que foi o arguido AA quem, em nome e representação da sociedade arguida “A...” celebrou o contrato com a sociedade assistente “B...”. Não obstante, e como bem realçam os recorrentes, determinou a extracção de certidão dos presentes autos e “a sua remessa aos serviços do DIAP com vista a aferir da eventual prática por parte de DD de factos que poderão integrar a prática de um ilícito criminal.”, atendendo à “produção de prova realizada na audiência de julgamento e das considerações supra tecidas em sede de motivação da matéria de facto” (vide, último parágrafo da sentença recorrida).

Impõe-se assim ponderar as provas coligidas e produzidas em audiência, conjugadas com as regras da experiência e do normal ser das coisas, com vista a aferir se se justificaria o pretendido estado dubitativo referente ao arguido AA.

E o que resulta dos apontados meios de prova, como sejam as declarações do assistente e os depoimentos das duas apontadas testemunhas é o seguinte, sublinhando que o arguido, quanto aos factos objecto dos autos, se remeteu ao silêncio.

Declarou o assistente, como bem sublinha o arguido recorrente, e com o relevo para o que ora importa, que nos contactos que manteve com a sociedade arguida referentes ao negócio objecto dos autos, nunca contactou pessoalmente com qualquer pessoa, mormente com o aqui arguido, razão pela qual não o conhece. Todos os contactos foram estabelecidos através de telemóvel ou por correio electrónico. A pessoa que, “a mando da “A...””, consigo falou telefonicamente, tinha “sotaque daqui de cima” (diferente do seu “que é do Porto” (sic)) e não tinha qualquer problema de gaguez. Não recorda quem “assinava” os emails. Depois de descrever como chegou ao contacto com a sociedade arguida - porque integrante de uma plataforma digital que funciona como bolsa de transportes -, deu nota que a mesma tinha “bons reviews”, o que lhe inspirou confiança, razão pela qual lhe encomendou, no espaço de 2 meses, vários serviços de transporte. Após o vencimento das cinco facturas que constam de fls. 21 e ss. dos autos, num total de cerca de 8.000,00 €, sem que tivesse sido feito qualquer pagamento à “B...”, deixando, ademais, de conseguir contactar com quem quer que fosse da sociedade arguida, em Outubro/Novembro de 2020 decidiu dirigir-se à morada que naqueles documentos figurava como sendo a sede da empresa, constatando que se tratava de um imóvel onde em tempos fora um talho, então devoluto. Por telefone foi recusado encontro pessoal, por motivo de doença. Instado pela defesa dos arguidos, esclareceu que pese embora nas facturas que constam dos autos se encontre aposto o prazo de 30 dias para pagamento, o acordado neste ramo do negócio é de 60 dias, o que, in casu, também sucedeu. Confirmou assim que após a contratação do último transporte a que se reporta a quinta factura (emitida a 25.08.2020), a primeira factura (emitida a 23.07.2020) ainda não se havia vencido. Apesar de tal circunstância, não quis correr mais riscos – em causa já estavam mais de 8.000,00 € -, uma vez que não lhe foram dadas quaisquer garantias de pagamento e a “A...” não lhe deu indicações precisas sobre quando iria ser o pagamento da primeira factura, tendo apenas referido que o mesmo seria feito “na semana seguinte”. Só a partir desse momento – Setembro de 2020 -, começaram a surgir “reviews” negativas sobre a sociedade arguida na aludida bolsa, pese embora a venda desta ao aqui arguido (segundo a certidão comercial) tenha tido lugar em Dezembro de 2019. Não sabe precisar quando a sociedade arguida saiu da aludida bolsa de transportes, mas foi depois dos comentários negativos terem começado a surgir.

CC, pai do anterior sócio-gerente da sociedade arguida e motorista por conta da mesma, relatou ter publicitado na OLX a venda da empresa, tendo sido então contactado por um tal DD com quem negociou para o efeito. No dia da celebração da escritura, surgiu o DD, acompanhado do aqui arguido AA e de um outro senhor, pessoa que iria comprar ao DD os 4 camiões da empresa (4 tractores e quatro atrelados). O pagamento foi feito da seguinte forma: por três vezes, a última das quais em finais de Julho/princípios de Agosto de 2019, o DD levou-lhe dinheiro a casa, sendo que só na segunda vez - a 1.06.2019 - foi acompanhado de um tal EE que, ao que pensa, é sócio daquele; na ocasião da celebração da escritura, recebeu “o resto do dinheiro - 40.000,00 € -, por transferência bancária feita pelo senhor que acompanhava o DD e que ia comprar a este (DD) os camiões e ainda dois cheques, entregues pelo DD, num total de 12.000,00 €, que não tiveram provisão. Soube depois que estes cheques não eram do DD, mas “de uma empresa que não era movimentada” (sic). A partir de então não mais foi contactado pelo tal DD. Tempos depois, um senhor de ... dirigiu-se a sua casa e disse-lhe ter contratado com a “A...” e que não lhe pagaram; queria saber onde era a sede da empresa. Para além deste, recebeu telefonemas de mais 3 pessoas que também se diziam lesadas pela “A...”. Esclareceu que quem assinou as declarações de venda dos camiões da “A...” foi o seu filho, na qualidade de gerente da “A...”. O arguido, presente na escritura, só assinou a escritura, “não deu qualquer palpite” (sic).

Por fim, a testemunha DD, contabilista da sociedade arguida desde a anterior gerência até 2020 afirmou: o gerente era o FF, mas quem lhe entregava toda a documentação era o pai, o Sr. CC. Foi então avisado que iria haver uma troca de gerência, desconhecendo quem viria de novo. Mais tarde foi contactado por um tal DD, que gaguejava, que foi ao seu escritório dizer-lhe que seria o novo gerente e perguntou-lhe se poderia continuar como contabilista da empresa, ao que assentiu, “desde que lhe pagassem” (sic). Depois foi-lhe dito que o gerente já não era o tal DD, mas um outro senhor, AA. Tentou contactá-lo, mas em vão. Foi então que “renunciou como contabilista”. Contactava com o DD, por telemóvel, e com a D. GG, por email para tratar da contabilidade da sociedade arguida e foi o DD quem lhe pagou, em dinheiro, o trabalho feito. Nunca recebeu nenhum documento assinado pelo gerente da sociedade arguida, AA. Os últimos elementos que recebeu para efeitos de elaboração da contabilidade da empresa foi em Dezembro de 2020: recebeu um email da D. GG, com conhecimento ao DD. Nunca precisou de contactar com o AA, porque tratou sempre da contabilidade da sociedade arguida, durante cerca de um ano, com o DD. Afirmou ter questionado DD sobre a razão pela qual não havia veículos, ao que lhe respondeu que era por sub-contratação – “o que pode ser”, atalhou a testemunha -, questionando-o ainda porque não fazia o processamento de salários, ao que lhe disseram que tal iria ser alterado. Entretanto “renunciou à contabilidade”.

Exposto o teor destes meios de prova pessoais, com o devido respeito pela decisão em consciência feita pela Senhora Juíza de Direito, várias observações há a fazer à sentença recorrida no que tange à apreciação da prova que foi feita. Vejamos então:

- na motivação da convicção, quando aí se afirmou que o legal representante da sociedade assistente (vide correcção de escrita supra feita) tentou contactar pessoalmente com o arguido, impor-se-ia antes referir que aquele tentou contactar pessoalmente a pessoa com quem vinha a conversar telefonicamente a propósito dos negócios em causa nos autos, o qual tinha sotaque do norte, desconhecendo aquele se a pessoa em causa era ou não o aqui arguido AA;

- acresce que a circunstância de ter sido recusado ao declarante encontro pessoal por banda do seu interlocutor telefónico, alegando para tanto motivo de doença, não permite, sem mais, concluir que a pessoa em causa era o aqui arguido, pese embora este seja doente oncológico, pelo que a inferência feita pelo tribunal a quo, ao afirmar “(o que é corroborado pelo facto do próprio arguido ter referido que é doente oncológico)” não encontra, a nosso ver, substracto probatório suficiente, nem premissas suficientes para se poder alcançar a conclusão que o tribunal a quo alcançou;

- também do depoimento de CC não resulta o que se deixou lavrado na sentença recorrida “(…) e que DD compraria os veículos à sociedade”, antes que um terceiro de quem o aludido DD se fez acompanhar na ocasião da outorga da escritura de transmissão de quotas seria a pessoa que compraria as viaturas e que efectivamente as comprou, ademais directamente ao então (ainda) gerente da sociedade arguida (o seu filho FF) e pagou, por transferência bancária, o preço acordado de 40.000,00 €;

- na motivação, a propósito do teor do depoimento do, em tempos, contabilista da sociedade arguida, só por lapso se poderá aí ter escrito que “(…) DD nunca se identificou como gerente e que era um sr. AA (arguido) quem entregava as coisas necessárias.”, quando verdadeiramente tal não foi afirmado. Com efeito, do depoimento desta testemunha, conjugado com o teor da certidão comercial da sociedade arguida junta aos autos, pese embora tenha passado a figurar na certidão como gerente da mesma o aqui arguido, a sociedade arguida terá passado a ser “comandada” pelo aludido DD após a venda da mesma, não tendo a testemunha em causa feito alusão à entrega, por banda do aqui arguido, de quaisquer documentos referentes à sociedade arguida, sempre mencionando a este propósito o tal de DD.

Sendo estes os reparos a fazer, importa concluir que a prova produzida nos autos não permite, para além da dúvida razoável, concluir que foi o aqui arguido AA quem, em nome e representação da pessoa colectiva arguida, celebrou com a “B...” os contratos de transporte de cargas a que aludem as cinco facturas juntas aos autos, actuando com o intuito de obter para si um enriquecimento ilegítimo no valor de 8.917,50€, correspondente ao valor dos transportes de cargas efectuados e não pagos, pois que nunca teve a intenção de proceder ao pagamento dos aludidos serviços, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei.

E se é certo que o arguido não padece de gaguez, tanto quanto se descortinou da audição que fizemos das declarações que o mesmo prestou em julgamento reportadas às suas condições pessoais, e que apresenta um sotaque do norte-interior (se assim o podemos catalogar), o certo é que tal se mostra insuficiente para poder afirmar que a pessoa com quem o legal representante da sociedade assistente conversou ao telefone no âmbito da relação comercial objecto dos autos foi o aqui arguido, pois que tal evidenciado sotaque é comum a muitos outros nascidos/habitantes da zona de ....

E ainda que se determinasse a reabertura de audiência a fim do tribunal a quo ordenar a junção aos autos dos emails trocados entre a arguida e a assistente, documentos esses que o legal representante desta, em sede de audiência de julgamento, afirmou possuir no seu computador, pouco ou nada se descortinaria com peso bastante para afastar o estado de dúvida em que nos encontramos pois que, como o próprio declarante afirmou, “eu posso assinar no nome de quem quiser no email” (sic).

A este conspecto se dirá: em matéria de prova indiciária, é jurisprudência do STJ que “a prova nem sempre é directa, de percepção imediata, muitas vezes é baseada em indícios”, sendo estes “as circunstâncias conhecidas e provadas a partir das quais, mediante um raciocínio lógico, pelo método indutivo, se obtém a conclusão, firme, segura e sólida de outro facto; a indução parte do particular para o geral e, apesar de ser prova indirecta, tem a mesma força que a testemunhal, a documental ou outra” e, assim, “a prova indiciária é suficiente para determinar a participação no facto punível se da sentença constarem os factos-base (requisito de ordem formal) e se os indícios estiverem completamente demonstrados por prova directa (requisito de ordem material), os quais devem ser de natureza inequivocamente acusatória, plurais, contemporâneos do facto a provar e, sendo vários, estar interrelacionados de modo a que reforcem o juízo de inferência”, devendo este “ser razoável, não arbitrário, absurdo ou infundado, e respeitar a lógica da experiência e da vida; dos factos-base há de derivar o elemento que se pretende provar, existindo entre ambos um nexo preciso, directo, segundo as regras da experiência” (Ac. de 11.07.2007, Proc. n.º 07P1416, in www.dgsi.pt).

E, na decorrência, o mesmo STJ afirma que “as normas dos artigos 126º e 127º do CPP podem ser interpretadas de modo a permitir que possam ser provados factos sem que exista uma prova directa deles. Basta a prova indirecta, conjugada e interpretada no seu todo, nesse sentido, essa interpretação não ofende quaisquer princípios constitucionais, como o da legalidade, ou das garantias de defesa, ou da presunção de inocência e do contraditório, consagrados no artigo 32°, n.os 1, 2, 5 e 8 da Constituição da República Portuguesa, desde que haja uma fundamentação crítica dos meios de prova e um grau de recurso em matéria de facto para efectivo controlo da decisão” (Ac. de 23.11.2006, Proc. n.º 06P4096, in www.dgsi).

Se não podemos deixar de comungar com este entendimento jurisprudencial, cremos que na situação que nos detém, o facto base que se pudesse extrair dos apontados emails (no que concerne à menção do nome do (suposto) autor dos mesmos), não nos permitiria, sem mais, “dar o salto”, lógico e seguro o bastante para nos permitir afirmar, com a certeza que a presente fase exige, que o nome nos mesmos aposto corresponderia, na verdade, à pessoa física que os pudesse ter escrito e remetido à sociedade assistente.

Por tal, reafirmamos, entendemos ser despiciendo, face à ausência de outros meios de prova capazes de sustentar a imputação dos factos ao arguido AA, a junção aos autos de outra prova documental, mormente aquela a que o legal representante da assistente aludiu nas declarações que prestou em sede de audiência de julgamento.


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Não obstante esta conclusão concernente ao arguido AA, conseguimos alcançar a mesma quanto à sociedade arguida?

Da prova coligida resulta claro que a relação comercial objecto dos autos foi estabelecida entre duas sociedades comerciais: a aqui arguida e a “B...”, não restando dúvidas que no âmbito de tal relação o serviço de transporte de cargas solicitado pela arguida foi prestado pela sociedade assistente e que aquela não procedeu ao respectivo pagamento. Por tal, dúvidas inexistem quanto ao concreto prejuízo causado à sociedade assistente, por tal falta de pagamento: o mesmo corresponde ao somatório do valor dos serviços prestados evidenciado nas cinco facturas juntas aos autos.

Ainda que se possa reconhecer valor ao esforço argumentativo tecido a este concreto propósito pela recorrente, singelamente se dirá que o lucro que a sociedade assistente deixou de alcançar em virtude do não pagamento, pela sociedade arguida, dos valores acordados, integra o conceito de prejuízo patrimonial, pois que este – o lucro – é precisamente o escopo das sociedades comerciais no nosso sistema económico e por tal faz parte integrante/reflecte-se no preço acordado entre os vários agentes comerciais, a par dos demais apontados pela recorrente – gasto em combustível, desgaste dos camiões, gastos com pagamento a motoristas… Importa assim manter o que vertido se encontra na segunda parte do ponto 6. dos factos julgados provados.

Mais resulta da prova coligida o que se mostra julgado provado pelo tribunal a quo no ponto 9., razão pela qual se manterá nos precisos termos o decidido neste particular ponto. Com efeito, o legal representante da assistente foi claro e insistente neste ponto, tendo o contabilista da sociedade arguida dado igualmente nota da impossibilidade de contactos com esta sociedade a partir de finais de 2020.

Quanto à inexistência da sede da sociedade arguida na Rua ..., ..., tal factualidade resulta provada, não apenas considerando as declarações do legal representante da sociedade assistente, mas ainda do teor das informações policiais juntas aos autos a 16.05.2022 (ref.ª Citius n.º 7937825) e a 29.11.2022 (ref.ª Citius n.º 8377536). Não obstante, e no rigor das coisas, importa que se altere a redacção do facto julgado provado sob o n.º 8, porquanto das apontadas informações o que resulta é ligeiramente diverso daquilo que se deixou vertido na sentença recorrida. Com efeito, do expediente em causa resulta que na aludida artéria o n.º ...8 não existe (de todo) e que nos números mais próximos deste existiu, há uns anos, um talho que terá sido explorado pelo agora arguido AA (o que não se afasta do relato feito pelo legal representante da sociedade assistente, não se mostrando assim ferida a credibilidade que a este foi atribuída pelo tribunal a quo).

Passa assim o ponto 8. dos factos provados a ter a seguinte redacção: “8. A sociedade arguida nunca teve qualquer tipo de intenção de proceder ao pagamento dos ditos serviços, tanto mais que a sede da empresa foi indicada como se localizando no n.º ...8 da Rua ..., número esse inexistente na referida artéria, com o propósito de evitar e obstar a qualquer diligência judicial, designadamente ações judiciais de cobrança coerciva dos serviços contratados.”

E contra esta conclusão não se acene com os argumentos apresentados pela agora recorrente quando aponta para os documentos juntos aos autos na fase de Instrução a 09.06.2023 (fls. 274 e ss.) – um print do Google Maps (fls. 276) e duas fotografias (fls. 277 e 278) -, pois que dos mesmos nada é possível, em rigor, extrair, mormente no sentido do invocado: que o prédio onde se encontra sediada a sociedade arguida existe e se encontra perfeitamente habitável e com plenas condições de receber serviços. Com efeito, o aludido print, pese embora evidenciando um “pin” (supostamente) correspondente à morada pesquisada – Rua ... -, é suficientemente genérico, não logrando assim esclarecer o que quer que seja a este propósito, tanto mais que se desconhece a que localidade se reporta a pesquisa efectuada. E as fotografias juntas, de forma igual, nada nos dizem: por um lado, desconhece-se quando e onde foram captadas; por outro lado, pese embora na fotografia de fls. 278 se consiga ver que o imóvel aí retratado ostenta um número de porta, o mesmo não é de todo visível, sendo que bastava fotografá-lo de um outro ângulo para que dúvidas não restassem, nomeadamente se se trata (ou não) do pretendido n.º ...8 da Rua ....

Sublinhe-se que este nosso reparo não esquece, porque não pode, os princípios da presunção da inocência e do acusatório, dos quais resulta que sobre os arguidos não impede qualquer ónus da contra-prova da factualidade que aos mesmos é assacada, cabendo à acusação (leia-se, Ministério Público) fazer prova dos factos imputados àqueles. Contudo, juntando os arguidos meios de prova, estes deverão ser escrutinados e criticamente analisados a par de todos os demais. Considerando então as informações policiais acima aludidas, dúvidas não nos restam que a morada que se mostra registada na Certidão Comercial da sociedade arguida como sendo a sua sede, bem assim aquela que foi aposta nas facturas emitidas – “Rua ..., apartado ..., ... ...” – não existe.

E o que dizer quanto à falta de intenção prévia da sociedade arguida de não proceder ao pagamento dos serviços de transporte prestados pela “B...”, factualidade esta julgada provada pelo tribunal a quo nos pontos 8. a 11. e enjeitada pela recorrente?

Como bem se refere na sentença em crise, tais factos provados [onde se inclui ainda o vertido no ponto 7.], integram o elemento subjectivo, não sendo apreensíveis de forma directa, tanto mais que o arguido (pessoa singular) não prestou declarações sobre os factos objecto dos autos, pelo que há que lançar mão das regras de experiência comum e da normalidade, conjugados com os elementos exteriores versados nos factos do foro objectivo julgados provados.

E destes últimos, o que resulta? [Tão somente] que ambas as sociedades identificadas nos autos estabeleceram uma relação comercial e que os serviços de transporte prestados pela assistente não foram pagos pela arguida, nem na data de vencimento das respectivas facturas nem posteriormente, não mais tendo sido possível à assistente contactar com aquela (através do(s) respectivo(s) legal(ais) representante(s) ou outro(s) que agisse(m) em nome e no interessa da sociedade arguida). Ora, questionamos nós, não é este um cenário (infelizmente) tão comum a tantos negócios que correm mal? O devedor, vendo-se “cercado” pelos seus credores, sabendo que não dispõe de liquidez/património suficiente de fazer face aos pagamentos das dívidas pendentes, furta-se aos contactos que aqueles encetam com vista a saldar as dívidas que tanto prejuízo lhes causam ao giro comercial? Desta feita, e quanto a nós, olhando apenas para este acervo factual, não é este indiciador bastante de tal falta de intenção prévia de não proceder ao pagamento e, dessa feita, obter um enriquecimento ilegítimo.

No entanto, conjugando-o com a demais realidade imputada e julgada provada - inexistência da sede da arguida no local onde a mesma indicava como sendo tal, tanto na Certidão do Registo Comercial como nas facturas emitidas -, tal quadro mostra-se capaz e adequada para do mesmo se extrair tal prévia intenção. Com efeito, não se pode ignorar o que resulta, a este propósito, da Certidão do Registo Comercial da sociedade arguida: a sede, antes da transmissão de quotas por banda de FF para o aqui arguido - facto esse registado a 21.11.2019 (Menção de depósito ..38) -, bem assim antes do registo da gerência da mesma por banda do aqui arguido AA (Insc.6, AP....78), era na Av. ..., passando posteriormente a ser na Rua ..., ...). Ora, considerando o teor da aludida informação policial - o n.º ...8 é inexistente na aludida artéria -, tal evidencia uma clara vontade e intenção da sociedade arguida de não vir a ser encontrada, mormente pelos respectivos credores.

E se é certo que tal alteração da sede foi registada meses antes dos factos objecto dos autos, mais precisamente na data de 09.12.2020 (cfr. Insc.7, AP....3 da aludida Certidão), em nada afasta o juízo a fazer quanto à existência de tal prévia intenção, antes a reforça: a sociedade arguida, após a data de 9.12.2020, nunca quis, em bom rigor, vir a ser localizada por quem quer que com a mesma viesse a contratar, mormente a aqui assistente, razão pela qual cuidou de alterar a sede para uma morada que sabia (não podia desconhecer) que não existia.

A par, a contratação da assistente para a realização de vários serviços de transporte, num total de cinco, num curto espaço de tempo - entre 23.07.2020 e 25.08.2020 -, todos eles antes da data de vencimento da primeira das facturas - 30.08.2020 -, como resulta do ponto 4. da factualidade julgada prova (e não impugnada por nenhum dos recorrentes), evidencia uma “urgência” por banda da sociedade arguida de se locupletar à custa de património alheio que vai para além de um mero incumprimento contratual, pois que ao assim contratar com a sociedade assistente criou na esfera desta a aparente ilusão de que se encontrava a laborar na sede indicada e bem assim um falso desígnio de que iria cumprir com o contratado, procedendo ao pagamento dos referidos serviços quando, de antemão, não o pretendia fazer, sendo também esta a razão para posteriormente se furtar ao contacto com a firma denunciante, nunca tendo apresentado qualquer justificação para o verificado incumprimento (isto sem prejuízo do que acima deixámos lavrado).

Ainda uma última nota quanto à factualidade imputada à sociedade arguida: em obediência ao princípio in dubio pro reo, afastou-se o arguido AA do cometimento dos factos objecto dos autos, ainda que figurando este como gerente da pessoa colectiva em causa no respectivo Registo Comercial, pois que se julgaram não provados os factos que lhe eram imputados.

No entanto, não se olvidando que a arguida pessoa colectiva age, não por si, como realidade jurídica que é, mas por intermédio de pessoas físicas, impunha-se que se descortinasse alcançar quem - pessoa física -, em nome e no interesse daquela actuou e cometeu os factos objecto dos autos. Resulta da resenha feita que tal actuação, em tempos, poderá ter sido levada a cabo por um tal DD, ou pelo menos, por pessoa que se identificou como tendo tal nome. Sucede que se desconhece quem seja ou se a pessoa que se apresentou como tal, o é, na realidade. Mas ainda que se viesse a apurar a verdadeira identidade de tal pessoa (equacionando-se para o efeito o reenvio parcial dos autos para reabertura da audiência), considerando que o mesmo não é sujeito processual nos presentes autos, nunca tendo sido constituído arguido nos autos, inibido ficaria o tribunal de alterar a factualidade objecto dos factos, concluindo pelo cometimento dos factos objecto dos autos pelo aludido DD (ou outra pessoa que se pudesse vir a apurar ter actuado em nome e no interesse da arguida pessoa colectiva).

Pelo exposto, outra solução não nos resta, que não a de julgar [apenas] provado que pessoa não concretamente apurada (mas que não o aqui arguido AA) agiu, nos moldes que infra se descreverão, em nome e no interesse da arguida pessoa colectiva.


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Insurge-se ainda a recorrente contra a factualidade vertida no ponto 13. dos factos provados, advogando que a mesma deveria passar a ter a seguinte redacção: “Em sede de declaração de IRC apresentado no ano de 2019, quanto ao período de 01.01.2018 e 31.12.2018, a sociedade arguida apresentou um prejuízo no valor de 16.193,26 €”, atendendo ao que surge evidenciado no suporte documental junto aos autos – a respectiva declaração fiscal. Vejamos se assim é.

No seguimento do promovido pelo MP em sede de audiência de julgamento, foi remetido aos autos pelos serviços fiscais, a 02.02.2024 (ref.ª Citius n.º 9385148) a declaração de rendimentos – IRC – da sociedade arguida referente ao apontado período temporal (fls. 331 v.º a 334), bem assim aos períodos fiscais de 01.01.2019 a 31.12.2019 (fls. 334 v.º a 339) e de 01.01.2020 a 31.12.2020 (fls. 340 a 345). Da primeira das referidas declarações resulta que a arguida declarou como resultado líquido do período em causa o valor negativo de 16.193,26 € (campo 708), a que acresce o valor positivo de 5.769,77 € (campo 728), donde se alcançou o valor negativo de 10.423,49 € correspondente ao prejuízo para efeitos fiscais (cfr. campo n.º 777). Por tal, no apuramento da matéria colectável inexiste declarado qualquer valor a título de lucro tributável, mas apenas um prejuízo fiscal no apontado valor de 10.423,49 €.

O lucro tributável no valor de 21.722,92 € mencionado no ponto 13. dos factos provados na sentença recorrida surge declarado na segunda declaração fiscal apontada, esta referente, como vimos, ao período temporal de 01.01.2019 a 31.12.2019.

Nesta conformidade, e porque se verifica erro de julgamento, impõe-se revogar a matéria de facto julgada provada no ponto 13.. No entanto, não no sentido do pugnado pela recorrente, mas passando este a ter a seguinte redacção: “13. Em sede de declaração de IRC apresentado no ano de 2019, quanto ao período de 01.01.2018 a 31.12.2018, a sociedade arguida apresentou um prejuízo para efeitos fiscais no valor de 10.423,49€.”


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Face ao exposto, e concedendo provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e parcial provimento ao interposto pela arguida “A..., Unipessoal, L.da”, importa que se altere a sentença recorrida na parte atinente ao julgamento da matéria de facto, passando a Fundamentação de Facto a ter a seguinte redacção:

Factos Provados

[1. A sociedade “B... - SOCIEDADE UNIPESSOAL LDA.”, com sede em ..., dedica-se aos transportes e o seu gerente é BB.]

2. A sociedade arguida “A..., UNIPESSOAL LDA”, dedica-se aos transportes rodoviários de mercadorias e na respectiva Certidão do Registo Comercial consta como gerente da mesma o arguido AA e como sede o n.º ...8 da Rua ..., em ....

3. Durante o ano de 2020, foi publicado na plataforma digital “C... GmbH”, pessoa não concretamente identificada, agindo em nome, por conta, no interesse e em representação da arguida “A..., UNIPESSOAL LDA”, publicitou cargas que necessitavam de ser transportadas, já com a ideia de não pagar de antemão.

[4. Assim, a ofendida “B... - SOCIEDADE UNIPESSOAL LDA.” prestou vários serviços de transporte de cargas para a sociedade arguida, conforme indicação detalhada constante de fls. 174 e 175 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.[mantendo-se a descrição feita na sentença recorrida de cada uma facturas em causa nos autos]

5. Não foi efetuado a pagamento de qualquer quantia.]

6. A conduta descrita em 3., 4. e 5. causou à sociedade assistente um prejuízo de, pelo menos, 8.917,50 €.

7. A pessoa supra referida em 3., agindo em nome e no interesse da sociedade arguida sabia e quis adoptar tal comportamento, bem sabendo que causava prejuízo à denunciante e com a específica intenção de obter para a sociedade arguida, um enriquecimento ilegítimo no valor de 8.917,50 €, correspondente ao preço do valor dos transportes de cargas efetuados e não pagos.

8. A pessoa supra referida em 3., agindo em nome e no interesse da sociedade arguida, nunca teve qualquer tipo de intenção de proceder ao pagamento dos ditos serviços, tanto mais que a sede foi indicada como se localizando no referido n.º ...8 da Rua ..., número esse inexistente na referida artéria, com o propósito de evitar e obstar a qualquer diligência judicial, designadamente ações judiciais de cobrança coerciva dos serviços contratados.

9. Da mesma forma, após a celebração dos contratos e prestação dos serviços, a sociedade arguida sempre se furtou ao contacto com a sociedade assistente, nunca tendo dado qualquer justificação para o não pagamento.

10. A sociedade arguida, por intermédio da pessoa referida em 3., actuou com intenção prévia de não pagar os serviços em causa.

11. A sociedade arguida, por intermédio da pessoa referida em 3., bem sabia que o seu comportamento era proibido e punido por lei.

Das condições socioeconómicas da sociedade arguida:

[12. Por sentença proferida a 11.07.2023 e transitada em julgado, foi a sociedade arguida declarada insolvente.]

13. Em sede de declaração de IRC apresentado no ano de 2019, quanto ao período de 01.01.2018 a 31.12.2018, a sociedade arguida apresentou um prejuízo para efeitos fiscais no valor de 10.423,49 €.

[Das condições socioeconómicas do arguido:

14. O arguido é divorciado, vive sozinho, em casa propriedade de um amigo e não entrega qualquer quantia monetária por conta de aí residir.

15. O arguido beneficia da prestação social de rendimento social de inserção, no valor de €202,00, desde o ano de 2018.

16. O arguido realiza pequenos trabalhos na agricultura e aufere em média a quantia mensal de €300,00.

17. O arguido tem seis filhos, três dos quais menores de idade e não entrega qualquer prestação de alimentos a favor dos mesmos.

18. O arguido é doente oncológico.

19. O arguido tem o 6.º ano de escolaridade.

Mais se provou que:

20. A sociedade arguida “A..., Unipessoal, Lda.” não tem antecedentes criminais averbados no seu certificado do registo criminal.

21. O arguido AA tem averbado no seu certificado do registo criminal as seguintes condenações: (…).]

Factos não provados

i. Sem prejuízo do descrito em 8. dos factos provados, a sociedade arguida indicou como sendo a sua sede um imóvel abandonado.

ii. Sem prejuízo do descrito em 2. dos factos provados, à data dos factos descritos nos factos provados, era o aqui arguido AA quem exercia a gerência da sociedade arguida.

iii. Foi o aqui arguido AA quem actuou conforme o descrito em 3. dos factos julgados provados.

iv. Foi a conduta do aqui arguido AA que causou à sociedade assistente o prejuízo referido em 6. os factos provados.

v. Foi o arguido AA quem actuou em nome e no interesse da sociedade arguida, sabendo e querendo adotar o comportamento descrito em 3., 4. e 5. dos factos provados, bem sabendo que dessa forma causava prejuízo à denunciante e com a específica intenção de obter, para si, um enriquecimento ilegítimo no valor de 8.917,50€, correspondente ao preço do valor dos transportes de cargas efetuados e não pagos.

vi. O arguido AA nunca teve qualquer tipo de intenção de proceder ao pagamento dos ditos serviços, sem prejuízo do descrito em 8. dos factos provados.

vii. Após a celebração dos contratos e prestação dos serviços, o arguido AA, e sem prejuízo do descrito em 9. dos factos provados, sempre se furtou ao contacto com a sociedade assistente, nunca tendo dado qualquer justificação para o não pagamento.

viii. Sem prejuízo do descrito em 10. e 11. dos factos provados, o arguido AA actuou com intenção prévia de não pagar os serviços em causa, bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei.


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Porém, e antes de prosseguirmos na apreciação das demais questões objecto do recurso, importa que se deixe devidamente assinalado o seguinte: pese embora a alteração vinda de fazer, mormente a assinalada a negrito nos pontos 8. e 13. dos factos provados, bem assim a referência a pessoa não concretamente identificada que actuou em nome e no interesse da arguida pessoa colectiva, não estamos perante uma situação de alteração substancial dos factos, pois que a nova redacção dada a tais pontos de facto, pese embora diversa daquela patente na sentença recorrida e, bem assim, nas pretensões recursivas dos arguidos recorrentes, não tem como efeito a (eventual) imputação a estes de ilícitos penais diversos, permanecendo assim a mesma moldura penal abstracta.

Em segundo lugar, também não se verifica qualquer alteração não substancial dos factos, na medida em que os agora julgados provados, com redacção diversa da constante na sentença recorrida e nas Conclusões de recurso apresentadas, repete-se, não desvirtuam a realidade fáctica que nos presentes autos se mostra em causa. Dito de outro modo, os factos provados agora descritos nos pontos 8. e 13. dos factos julgados provados, bem assim a referência a pessoa não concretamente identificada que actuou em nome e no interesse da arguida pessoa colectiva, repete-se, não modificam o quadro factual descrito, nem na sentença recorrida nem nas pretensões recursivas, em outro manifestamente diferente quanto ao comportamento (eventualmente) ilícito imputado aos recorrentes (ou seja, a sociedade recorrente não ter sede no local indicado como tal, por inexistência do n.º ...8 na artéria identificada não difere, em substracto, do estado de abandono do imóvel onde a mesma se situaria – no n.º ...8 dessa mesma artéria -, de acordo com o julgado provado pelo tribunal a quo), nem tem a virtualidade de causar qualquer impacto negativo na estratégia de defesa dos arguidos recorrentes, o mesmo sucedendo quanto à rectificação do valor declarado no assinalado ano fiscal em sede de IRC a título de lucro tributável, eliminando a existência deste, antes confirmando a alegada existência de prejuízo, pese embora em montante menor ao alegado.

Por tal, e pese embora as alterações vindas de fazer ao julgamento da matéria de facto, a verdade é que em causa não está uma alteração substancial, nem não substancial dos factos, quando em confronto quer com a sentença recorrida, quer com as pretensões recursivas apresentadas, razão pela qual não há que proceder a qualquer comunicação nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 358º, 359º e 424º, n.º 3 do CPP.


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Importa ainda que, sob um outro ângulo, se indiquem as razões pelas quais se manteve o julgamento positivo da factualidade imputada à sociedade arguida atinente tanto ao elemento objectivo como ao subjectivo do crime em causa, pese embora o julgamento negativo quanto ao imputado cometimento dos factos por banda do aqui arguido, pessoa que à data dos factos se encontrava registada na Certidão do Registo Comercial daquela como exercendo a respectiva gerência. Dito de outra forma: quais as razões que nos permitiram manter o julgamento feito pela primeira instância da factualidade acima elencada imputada à arguida, apesar de não ter sido possível nos autos identificar quem, em concreto, tendo poder de liderança na organização da mesma (não esquecer que se trata de uma sociedade Unipessoal), actuou em seu nome e no seu interesse.

Isto, porque não se desconhece na doutrina quem defenda que por não ter sido possível imputar o cometimento dos factos objecto dos autos a uma concreta pessoa física, de igual forma não se poderia imputar à sociedade arguida o cometido dos mesmos, pois que a responsabilidade criminal dos entes colectivos carece sempre de assentar na imputação do facto típico de conexão a uma pessoa singular, com posição de liderança, pois só esta pode comprometer a colectividade.

Assim o postulam Jorge dos Reis Bravo (“Direito Penal de Entes Colectivos – Ensaio Sobre a Punibilidade de Pessoas Colectivas e Entidades Equiparadas”, Coimbra, Coimbra Editora, 2008., pág. 191), Teresa Quintela de Brito (“Fundamento da Responsabilidade Criminal de Entes Colectivos: Articulação com a Responsabilidade Individual” in Direito Penal Económico e Financeiro: conferências do Curso Pós-Graduado de Aperfeiçoamento, Maria Fernanda Palma, Augusto Silva Dias, Paulo de Sousa Mendes (coord.), Coimbra, Coimbra Editora, 1.ª ed. Agosto, 2012, Pág. 206) e Isabel Marques da Silva (“Responsabilidade Fiscal Penal Cumulativa – das sociedades e dos seus administradores e representantes”, Universidade Católica, Lisboa, 2000, pág. 49 e ss.), sendo secundados por Indalécio Rodrigues de Sousa (“Critérios da Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas: A problemática da (não) identificação do Agente do Crime”, Dissertação apresentada à FDUC, conducente ao grau de Mestre, Coimbra 2016, in https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/34768/1/Crit%C3%A9rios%20da%20Responsabilidade%20Penal%20das%20Pessoas%20Coletivas.pdf)

Em sentido contrário, surge-nos Germano Marques da Silva, in “Responsabilidade Penal das Pessoas Colectivas, Alterações ao Código Penal Introduzidas pela Lei N.º 59/2007, de 4 de Setembro” in Revista do CEJ, N.º 8 (Especial), Jornadas sobre a Revisão do Código Penal, 1.º Semestre, 2008, pág. 86-87 ([1]). Aqui pode ler-se: “O sistema jurídico português exclui a imputação de factos à pessoa jurídica quando não for possível imputar a infracção a quem na pessoa colectiva ocupe uma posição de liderança. A lei exige expressamente que os crimes sejam cometidos por pessoas que ocupem posição de liderança na pessoa colectiva ou por pessoa que aja sob a autoridade daquelas em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem e, por isso, se não for possível imputar o crime a um órgão, a um representante ou a pessoa que tenha autoridade para exercer o controlo da actividade da pessoa colectiva falta um pressuposto essencial para a imputação.

Importa, porém, considerar os casos em que o tribunal pode comprovar que o acto foi praticado por um órgão, representante ou pessoa com autoridade para exercer o controlo, sem o que não poderia ocorrer nos termos concretos que foram realizados, mas não seja possível individualizar de entre aqueles quem foi o agente do acto. Cremos que esta dificuldade não impede a responsabilização da pessoa colectiva, desde que seja possível decidir que o acto só podia ter sido praticado em razão da actuação, mediata ou imediata, por acção ou por omissão culposas de um órgão, representante ou pessoa com autoridade para exercer o controlo. É o que pensamos ser o sentido útil da parte final do n.º 7 do art. 11º.” (fim de citação)

Também a Recomendação R 18 do Conselho da Europa de 1988, como sublinha este autor, sugere que a responsabilidade da empresa possa ser estabelecida mesmo se não for possível identificar a pessoa física que praticou ou omitiu os factos constitutivos da infracção.

Neste seguimento, defende Germano Marques da Silva, ob. cit., que pode existir responsabilidade do agente individual sem responsabilidade do ente colectivo e bem assim pode existir responsabilidade do ente colectivo sem responsabilidade de agente individual. “O que parece e é conforme à dogmática penal, é que a lei exige a culpa da própria pessoa colectiva como pressuposto da sua responsabilização, do mesmo modo que exige a culpa do agente singular para a sua própria. (…) não há responsabilidade penal sem culpa própria e, por isso, quer a pessoa física, quer a pessoa colectiva só responderão pela própria culpa. Podem ou não responder cumulativamente, mas sempre por culpa própria.”

E tratando a questão da culpa da pessoa colectiva, mais adiante na ob. cit., pág. 91 e ss., afirma que nos casos em que quem actua são a(s) pessoa(s) que exercem o controlo da actividade, praticando o acto em nome da pessoa colectiva (e por isso como sendo da própria pessoa colectiva), exige-se que “o acto não seja praticado em benefício do agente ou de terceiros alheios à pessoa colectiva, ou seja, que o acto seja praticado em razão da prossecução dos fins sociais da pessoa colectiva. (…)” E prossegue: “(…) ser o facto praticado em nome e no interesse colectivo não é elemento constitutivo do tipo de crime, mas condição da imputação (…). Esta exigência como que delimita negativamente os casos em que a vontade (…) das pessoas que exercem funções de liderança não se confunde necessariamente com a vontade própria da pessoa colectiva. Assim, a legislação reconhece e aplica a teoria da vontade própria da pessoa colectiva dirigida para o cometimento do acto criminoso, criando critérios subjectivos e objectivos para a sua aferição. (…). A prossecução do interesse colectivo é o móbil do crime. (…) Para responsabilizar criminalmente a pessoa colectiva é, pois, necessário que possa atribuir-se-lhe a culpa pelo facto típico penal que objectivamente lhe é imputado. É necessário reter a ideia de que a pessoa colectiva possui uma vontade própria e que a sua responsabilização penal necessita da verificação da sua própria culpa, não bastando a culpa de terceiro (…)”

Acompanha este mesmo entendimento, Mário Pedro Meireles, “A responsabilidade penal das pessoas colectivas ou entidades equiparadas na recente alteração ao Código penal ditada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro: Algumas notas”, in Revista Julgar, n.º 5, 2008, pág. 130, nota de rodapé 17, aludindo ao autor Silvina Bacigalupo, “La responsabilidade penal de las personas Jurídicas, Bosch, 1998, págs. 72 a 82, quando este salienta que a pessoa jurídica é uma “configuração natural”, uma realidade prévia ao Direito, é um ser vivo que tem uma vontade especial, existindo na pessoa jurídica mais do que a mera vontade individual, pelo que tal distinção é fundamental para que se ultrapasse o dogma segundo o qual só há a possibilidade de comissão de um delito por parte da pessoa jurídica (associação), uma vez que a punição da pessoa jurídica (associação) é a punição do seu representante. E na ob. cit., pág. 131, afirma Mário Pedro Meireles: “Devemos, numa última nota a este respeito, ter em consideração que pode ser muitíssimo difícil (…) detectar quem concretamente agiu em nome e por conta da pessoa colectiva (…) o que não deve, nem pode impedir a condenação desta, desde logo tendo em consideração que a própria razão de ser da responsabilidade penal das pessoas colectivas assenta em juízos de necessidade de política criminal (…), além de que tal é a razão de ser do próprio n.º 7 do artigo 11º do CP, ao afirmar a responsabilidade das pessoas colectivas não depende da responsabilização dos respectivos agentes.”

Também o Tribunal Constitucional (quanto a uma pretensa violação da proibição do ne bis in idem, embora em sede de Direito Penal secundário), teve já a oportunidade de se pronunciar no sentido da não inconstitucionalidade deste entendimento, uma vez que sublinha a existência de dois títulos de imputação objectiva e subjectiva distintos, cada um deles corporizado por pessoas que são real e juridicamente distintas, cada uma delas dotada de personalidade jurídica autónoma e que se não confunde. Assim, o Acórdão do TC n.º 171/2014, de 18.02.2014, Proc. n.ºs 1125 e 1126/2013, embora o aresto seminal, quanto a este ponto, seja o Ac. n.º 213/95, de 20.04.1995, Proc. n.º 479/93, todos in www.tribunalconstitucional.pt: “(…) quando se conclua, em sede político-criminal, pela conveniência ou imperiosa necessidade de responsabilização das pessoas colectivas em direito penal secundário, não se vê razão dogmática de princípio a impedir que elas se considerem agentes possíveis dos tipos-de-ilícitos respectivos.” e “[o] artigo 12.º, n.º 2, da Constituição, reconhece expressamente às pessoas colectivas capacidade de gozo de direitos e submissão aos deveres «compatíveis com a sua natureza», superando assim uma concepção de direitos fundamentais exclusivamente centrada nos indivíduos.”.

E não podendo deixar de aderir a estes últimos fundamentos ([2]), por nos parecerem, salvo o devido respeito por opinião contrária, os mais consentâneos com a letra e o espírito da lei (leia-se artigo 11º, n.º 7 do CP) ([3]), tendo resultado provado que a sociedade arguida se dedica aos transportes rodoviários de mercadorias (vide ponto 2. da fundamentação de facto), facilmente se alcança que foi precisamente no desenvolvimento do respectivo objecto social e para o seu próprio interesse, que a sociedade arguida, por intermédio de pessoa não concretamente apurada que actuou em seu nome e no seu interesse, contratou com a sociedade assistente, também esta dedicada aos transportes de mercadorias, conforme se encontra provado no ponto 4.. Com efeito, outro fito não se lograria alcançar da relação negocial estabelecida entre as duas sociedades identificadas nos autos. Por outro lado, o não pagamento à assistente por banda da sociedade arguida, o esquivar-se a qualquer contacto, tendo previamente diligenciado por alterar a morada da sua própria sede para local que não podia ignorar não existir, como já acima fizemos referência, permitiu-nos, sem qualquer dúvida, afirmar a culpa da sociedade arguida.


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Passemos agora à apreciação da quarta questão objecto do recurso: a Sentença recorrida fez um incorrecto enquadramento jurídico dos factos?

Advoga a arguida sociedade que o que em causa está nos autos é mera questão de incumprimento contratual, sem relevo penal, porquanto não existe qualquer prova da “astúcia” da sociedade arguida recorrente nem da elaboração prévia de qualquer plano com a intenção do não pagamento dos serviços que iriam ser prestados pela assistente. Não se verificando os elementos objectivos do crime de burla imputado, impõe-se, assim, a absolvição da sociedade arguida (cfr. ponto EE a II das Conclusões apresentadas).

Pode ler-se na sentença recorrida o que a propósito da qualificação jurídica dos factos se deixou lavrado:

“Do crime de burla qualificada:

Estatui o n.º 1 do artigo 217.º do Código Penal, que “quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de atos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa”.

Por seu turno, estabelece o n.º 1 do artigo 218.º do Código Penal, que “quem praticar o facto previsto no n.º 1 do artigo anterior é punido, se o prejuízo patrimonial for de valor elevado, com pena de prisão até cinco anos ou com pena de multa até 600 dias”.

Dispondo o n.º 2 do citado preceito legal, no que ao caso interessa, que “a pena é a de prisão de dois a oito anos se:

a) O prejuízo patrimonial for consideravelmente elevado;

b) O agente fizer da burla modo de vida;

c) O agente se aproveitar de situação de especial vulnerabilidade da vítima, em razão de idade, deficiência ou doença.”

São elementos objetivos deste tipo de ilícito criminal: (1.º) A intenção de obter para si ou para terceiro, um enriquecimento ilegítimo; (2.º) que o agente astuciosamente induza em erro ou engano outrem sobre os factos; (3.º) que, através desses meios, determine essa pessoa à prática de atos que causem a esta ou a outra pessoa prejuízo patrimonial.

Para a verificação do crime de burla, há que considerar, num primeiro momento, a verificação de uma conduta astuciosa que induza diretamente ou mantenha em erro ou engano outrem e, num segundo momento, deverá verificar-se um enriquecimento ilegítimo de que resulte prejuízo patrimonial do sujeito passivo ou de terceiro, como efeito daquela conduta.

A burla é um crime de dano que só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efetivo no património do sujeito passivo da infração ou de terceiro.

Trata-se de um ilícito de execução vinculada, em que a lesão do bem jurídico tem de ocorrer como consequência de uma muito particular forma de comportamento. Consubstancia, assim, um crime material ou de resultado, em que a consumação passa por um duplo nexo de imputação objetiva: entre a conduta enganosa do agente e a prática, pelo burlado, de atos tendentes a uma diminuição do património (próprio ou alheio) e, depois, entre os últimos e a efetiva verificação do prejuízo patrimonial (cfr. Almeida Costa, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, tomo II, pág. 293). Para que o crime de burla se verifique é necessário que o agente, com intenção de obter para si ou para terceiro um enriquecimento ilegítimo, induza em erro ou engano outrem sobre factos que astuciosamente provocou, conseguindo por via da criação desse erro ou do engendrar desse engano, que esse outrem pratique factos que lhe causem, ou causem a outrem, prejuízo patrimonial (cfr., entre outros, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Maio de 1998, citado por Simas Santos e Leal-Henriques, in Código Penal Anotado, 2º Volume, 3ª Edição, pág. 878).

De facto, importa que o ofendido pelo crime tenha sido induzido em erro ou engano, provocado pelo agente, por via de astúcia. Sem astúcia a conduta do agente é atípica. E esta resulta de uma habilidade para enganar alguém, a subtileza para defraudar, podendo resultar de uma atividade sagazmente urdida para conduzir ao erro ou engano de alguém – tudo dependendo da maior ou menor ingenuidade do enganado, do seu maior ou menor grau de inteligência ou outra disposição psicológica – ou pode resultar de uma não atividade do agente, de igual forma ardilosamente provocada - cfr. Carlos Alegre, in Crimes Contra o Património, Cadernos do Ministério Público, 1988, pág. 109.

No que concerne ao elemento subjetivo, a burla constitui um crime doloso que se pode manifestar em qualquer uma das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal. Exige-se ainda que o agente tenha a “intenção” de conseguir um enriquecimento próprio ou alheio, sendo, no entanto, de salientar que, apesar de se exigir que o agente atue com tal intenção, a consumação do crime não depende da concretização do enriquecimento, verificando-se logo que ocorra o prejuízo patrimonial da vítima.

Da subsunção do caso,

Resultou provado que a sociedade “B... - SOCIEDADE UNIPESSOAL LDA.”, com sede em ..., dedica-se aos transportes e o seu gerente é AA.

A sociedade arguida “A..., UNIPESSOAL LDA”, gerida pelo arguido AA, com sede, neste concelho e comarca, dedica-se aos transportes rodoviários de mercadorias.

Durante o ano de 2020, o arguido AA, no nome e no interesse da arguida “A..., UNIPESSOAL LDA”, publicitou, na plataforma digital “C... GmbH”, cargas que necessitavam de ser transportadas, já com a ideia de não pagar de antemão.

Assim, a ofendida “B... - SOCIEDADE UNIPESSOAL LDA.” prestou vários serviços de transporte de cargas para a sociedade arguida, conforme indicação detalhada constante de fls. 174 e 175 dos autos, cujo teor aqui se dá por reproduzido.

Não foi efetuado a pagamento de qualquer quantia.

A conduta do arguido causou à ofendida um prejuízo de, pelo menos, 8.917,50 €.

Pelo que, atuou o arguido, por si e enquanto legal representante da sociedade, de forma astuciosa, nomeadamente através de engano, na medida em que logrou que a sociedade ofendida prestasse os serviços de transporte sem que fizesse o respetivo pagamento de tais serviços que beneficiou, no valor de €8.917,50, sendo que à data da contratação sabia que não iria proceder ao pagamento dos mesmos.

O arguido, em nome e no interesse da arguida sociedade, sabia e quis adotar tal comportamento, bem sabendo que causava prejuízo à denunciante e com a específica intenção de obter, para si, um enriquecimento ilegítimo no valor de 8.917,50€, correspondente ao preço do valor dos transportes de cargas efetuados e não pagos.

O arguido, agindo por si e em representação da sociedade arguida, nunca teve qualquer tipo de intenção de proceder ao pagamento dos ditos serviços, tanto mais que a sede da empresa foi indicada como se localizando num imóvel abandonado, com o propósito de evitar e obstar a qualquer diligência judicial, designadamente ações judiciais de cobrança coerciva dos serviços contratados.

Da mesma forma, após a celebração dos contratos e prestação dos serviços, sempre se furtou ao contacto com a firma denunciante, nunca tendo dado qualquer justificação para o não pagamento.

Atuando com intenção prévia de não pagar os serviços em causa.

Bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei. Assim, atuou o arguido consciente da ilicitude dos factos praticados. Com a intenção de causar prejuízo e de o conseguir obter um enriquecimento ilegítimo, e com dolo direto nos termos dos artigos 13.º e 14.º, n.º 1 do Código Penal.

Não existem causas de exclusão da ilicitude ou da culpa.

Pelo exposto, o arguido AA praticou, em autoria imediata, na forma consuma e com dolo direto, 1 (um) crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 13.º; 14.º, n.º 1; 26.º, 1.ª parte; 217.º e 218.º, n.º 1, com referência ao artigo 202.º, alínea a), todos do Código Penal.

Quanto à sociedade arguida:

Dispõe o artigo 11.º do Código Penal que:

“1 - Salvo o disposto no número seguinte e nos casos especialmente previstos na lei, só as pessoas singulares são suscetíveis de responsabilidade criminal.

2 - As pessoas coletivas e entidades equiparadas, com exceção do Estado, de pessoas coletivas no exercício de prerrogativas de poder público e de organizações de direito internacional público, são responsáveis pelos crimes previstos nos artigos 144.º-B, 150.º, 152.º-A, 152.º-B, 156.º, 159.º e 160.º, nos artigos 163.º a 166.º sendo a vítima menor, e nos artigos 168.º, 169.º, 171.º a 177.º, 203.º a 206.º, 209.º a 223.º, 225.º, 226.º, 231.º, 232.º, 240.º, 256.º, 258.º, 262.º a 283.º, 285.º, 299.º, 335.º, 348.º, 353.º, 359.º, 363.º, 367.º, 368.º-A e 372.º a 377.º, quando cometidos:

a) Em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto por pessoas que nelas ocupem uma posição de liderança; ou

b) Por quem aja em seu nome ou por sua conta e no seu interesse direto ou indireto, sob a autoridade das pessoas referidas na alínea anterior, em virtude de uma violação dos deveres de vigilância ou controlo que lhes incumbem.

3 - (Revogado.)

4 - Entende-se que ocupam uma posição de liderança os órgãos e representantes da pessoa coletiva e quem nela tiver autoridade para exercer o controlo da sua atividade, incluindo os membros não executivos do órgão de administração e os membros do órgão de fiscalização.

5 - Para efeitos de responsabilidade criminal consideram-se entidades equiparadas a pessoas coletivas as sociedades civis e as associações de facto.

6 - A responsabilidade das pessoas coletivas e entidades equiparadas é excluída quando o agente tiver atuado contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.

7 - A responsabilidade das pessoas coletivas e entidades equiparadas não exclui a responsabilidade individual dos respetivos agentes nem depende da responsabilização destes.

8 - A cisão e a fusão não determinam a extinção da responsabilidade criminal da pessoa coletiva ou entidade equiparada, respondendo pela prática do crime:

a) A pessoa coletiva ou entidade equiparada em que a fusão se tiver efetivado; e

b) As pessoas coletivas ou entidades equiparadas que resultaram da cisão.

9 - Sem prejuízo do direito de regresso, as pessoas que ocupem uma posição de liderança são subsidiariamente responsáveis pelo pagamento das multas e indemnizações em que a pessoa coletiva ou entidade equiparada for condenada, relativamente aos crimes:

a) Praticados no período de exercício do seu cargo, sem a sua oposição expressa;

b) Praticados anteriormente, quando tiver sido por culpa sua que o património da pessoa coletiva ou entidade equiparada se tornou insuficiente para o respetivo pagamento; ou

c) Praticados anteriormente, quando a decisão definitiva de as aplicar tiver sido notificada durante o período de exercício do seu cargo e lhes seja imputável a falta de pagamento.

10 - Sendo várias as pessoas responsáveis nos termos do número anterior, é solidária a sua responsabilidade.

11 - Se as multas ou indemnizações forem aplicadas a uma entidade sem personalidade jurídica, responde por elas o património comum e, na sua falta ou insuficiência, solidariamente, o património de cada um dos associados” (sublinhado nosso).

Constata-se que o crime em causa integra o elenco de crimes enunciados no artigo 11.º, n.º 2 do Código Penal e, nestes termos, é a sociedade suscetível de ser condenada por tal crime.

Por outro lado, o agente do crime, enquanto pessoa singular, é AA, gerente da sociedade arguida, que agiu em seu nome e interesse, e que detém autoridade para exercer o controlo da sociedade (11.º, n.º 2, alínea a) e n.º 4 do Código Penal).

Pelo exposto, é a sociedade arguida “A..., Unipessoal, Lda.” Penalmente responsável pela prática de 1 (um) crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 11.º, n.ºs 2, alínea a) e n.º 4; 217.º, n.º 1 e 218.º, n.º 1, com referência ao artigo 202.º, alínea a), todos do Código Penal.”

(fim de transcrição)

Começamos por dizer que expurgámos da transcrição vinda de fazer os fundamentos aí vertidos pelo tribunal a quo na parte reportada à subsunção jurídica quanto ao arguido AA, pois que, considerando o novo julgamento da matéria de facto acima feito por banda deste Tribunal de Recurso, facilmente se alcança que importará retirá-lo da equação a fazer. Com efeito, da resenha factual agora alcançada, resulta, sem necessidade de grandes construções, que a conduta do arguido não preenche nem os elementos objectivos nem subjectivos do crime pelo qual vinha pronunciado, impondo-se, antes, a sua absolvição, revogando-se, nesta medida, a sentença recorrida, concedendo-se, nesta parte, provimento ao recurso interposto pelo arguido AA.

Já quanto à sociedade arguida, não podemos deixar de considerar que se mostra correcta a subsunção jurídica feita.

Apraz-nos, no entanto, em complemento ao que ficou registado na Sentença recorrida, e acima transcrita, sublinhar em que se traduz cada um dos vários elementos caracterizadores do crime de burla:

- a astúcia corresponde à habilidade para enganar, ao estratagema, ardil, maquinação, não bastando para tal uma qualquer mentira: terá que haver uma actuação sofisticada, um artifício ou mentira envolta num enredo que dê substracto à realidade apresentada. A astúcia caracteriza-se pelo seu recorte objectivo, que haverá que ser que haverá de ser reconstituído a partir de actos materiais que a revelem e não por referência a estados de espírito ao nível da motivação do agente, isto é, não basta que a atitude psicológica do agente seja astuciosa, é necessário antes que seja a conduta exterior deste que revele um quid de astúcia. Por outro lado, para que um facto seja astucioso não basta qualquer mentira. É necessário um “especial requinte fraudulento” ou de uma “mentira qualificada”. Neste sentido, Fernanda Palma e Rui Pereira concluem que “é este o entendimento que garante a plena observância do princípio da legalidade, uma vez que “astúcia” significa, como se viu, “manha” ou “ardil” (“O crime de Burla no Código Penal de 1982-95”, in RFDUL, Vol. XXXV, Lex, 1994, pág. 322).

- erro ou engano: para a burla ser punível, será também necessário que a vítima tenha sido induzida em erro ou engano. Mas não basta qualquer engano: é necessário que ele tenha sido provocado astuciosamente pelo agente. Ora, quer o erro, quer o engano, traduzem uma ideia de falsa representação da realidade, que levam o burlado a representar mentalmente os factos que lhe são apresentados por forma diversa da que eles tomam, agindo o enganado, por se encontrar falsamente convencido da realidade.

- prática de actos pela vítima do engano: outro dos elementos objectivos previstos para a perfeição da burla, é a prática de actos pela vítima, que haverão de ser aqueles que o agente nela determinou. Este tipo de ilícito não se consuma pois, com a prática de actos pelo agente, é também necessário que a vítima colabore, participe e pratique os actos predefinidos pelo burlão, sendo o enganado, o “protagonista da sua desgraça” e sem o que, o crime ficará no estádio da tentativa.

- prejuízo patrimonial: o objecto do crime é o património do lesado, sendo este património que o agente agride com a sua conduta. A burla é um crime de dano e contra o património, porque à sua realização típica, é essencial o conceito de prejuízo patrimonial. O bem jurídico tutelado é o património em geral, no seu sentido económico-jurídico, incluindo a soma dos valores económicos e jurídicos protegidos, entendendo-se a determinação do valor do prejuízo do burlado pelo valor do dano provocado no momento da prática do facto. Não havendo prejuízo, poderá haver burla, mas só na forma tentada.

- conduta dolosa: o crime de burla apenas pode ser cometido dolosamente e em qualquer das modalidades de dolo (artigo13º do C. Penal). Faltando uma previsão da punibilidade da negligência, o crime de burla é necessariamente doloso. O dolo abarcará todos os elementos da actividade do burlão: a actividade astuciosa, a indução da vítima em erro ou engano, a determinação desta à prática de actos e o prejuízo patrimonial causado.

Ora, do comportamento da sociedade arguida julgado provado resulta que se encontram preenchidos tanto os elementos objectivos, como os subjectivos do crime de burla em apreço, tendo por visada a sociedade assistente. Com efeito, a conduta julgada (agora) provada nos pontos 8. e 9., ao invés do pretendido pela recorrente, não pode deixar de consubstanciar o exigido ardil/astúcia/o meio enganoso tendente a induzir a sociedade assistente em erro ([errado] convencimento de que os serviços de transporte por si efectuados, no cumprimento das obrigações para si emergentes da relação contratual estabelecida com a sociedade arguida, no âmbito e dentro do objecto social de cada uma das sociedades, iriam ser efectivamente pagos), erro esse que a levou a praticar actos – a realização dos apontados contratados serviços de transporte -, do que resultaram os apontados prejuízos patrimoniais correspondentes à soma dos valores acordados em que importou cada um dos transportes efectuados.

A sociedade arguida (actuando através de pessoa não concretamente determinada que agiu em seu nome e no seu interesse), criando toda uma aparência de ser uma sociedade comercial inserida no mercado - com sede no n.º ...8 da Rua ... e contactável pelos contactos publicitados na plataforma digital “C...” -, criou na sociedade assistente a crença de que assumiria e cumpriria as obrigações contratuais emergentes, para si, dos contratos de transporte celebrados, in casu, as obrigações de pagar os respectivos preços acordados - sendo certo que, como resultou provado, nunca aquela sociedade teve tal intenção -, tendo sido a descrita e circunstanciada actuação da arguida que foi determinante para que a sociedade assistente realizasse os solicitados serviços de transporte - de forma a “causar a si própria” prejuízo patrimonial, como causou. Considerando as quantias monetárias em questão, num total de 8.917,50 € (valor este superior a 50 UC´s (artigo 202º, al. a) do CP)), não pode a sociedade arguida deixar de ser condenada pelo cometimento do crime de burla qualificada, p.p. pelos artigos 217º e 218º, n.º 1, al. a), ambos do CP.


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Um último ponto importa ainda considerar.

Advoga a recorrente que o presente caso não extravasa o mero incumprimento contratual, com tutela civil, pelo que não há lugar à intervenção do direito penal, consabido que é este a ultima ratio.

Com efeito, o ramo do direito que o legislador entendeu dever intervir em último lugar para a resolução dos conflitos é o direito penal. Significa isto que só quando a lesão de bens jurídicos assume uma gravidade justificativa da intervenção do sistema jurídico e da justiça na limitação da liberdade individual, é que é chamado a intervir o direito penal. O Estado deverá assim reger-se pelo princípio da não intervenção ou da intervenção mínima, utilizando a lei penal e as reacções penais apenas quando tal se revele estritamente necessário e a utilização de outras medidas ou sistemas se revelem manifestamente insuficientes para a resolução dos litígios e para a prossecução das finalidades de política criminal de prevenção geral e especial.

Ensina-nos, a este propósito, Figueiredo Dias, in “As consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág. 84: “O artigo18º, n.º 12 da CRP, por seu lado, deve porventura reputar-se o preceito político-criminalmente mais relevante de todo o texto constitucional: vinculando a uma estreita analogia material entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal dos bens jurídico-penais, e subordinando toda a intervenção penal a um estrito princípio da necessidade, ele obriga, por um lado, a toda a descriminalização possível; proíbe, por outro lado, qualquer criminalização dispensável, o que vale por dizer que não impõe, em via de princípio, qualquer criminalização em função exclusiva de um certo bem jurídico; e sugere, ainda por outro lado, que só razões de prevenção nomeadamente de prevenção geral de integração, podem justificar a aplicação de reacções criminais."

Este mesmo autor, desta feita in “Direito Penal – Parte Geral”, Tomo I, Coimbra Ed, 2ª edição, 2007, pág. 132, escreve: “a realidade do crime [...] não resulta apenas do seu conceito, ainda que material, mas depende também da construção social daquela realidade; ele é em parte produto da sua definição social, operada em último termo pelas instâncias formais (legislador, polícia, ministério público, juiz) e mesmo informais (família, escolas, igrejas, clubes, vizinho) de controlo social. Numa palavra: a realidade do crime não deriva exclusivamente da qualidade “ontológica” ou “ôntica” de certos comportamentos, mas da combinação de determinadas qualidades materiais do comportamento com o processo de reacção social àquele, conducente à estigmatização dos agentes respectivos como criminosos ou delinquentes”.

Nesta linha de raciocínio, e numa situação como a dos autos, em que em causa está a imputação ao agente pessoa colectiva de um crime de burla, para que o facto atinja o limiar da dignidade penal importa ponderar se a conduta daquela vai para além de um mero incumprimento contratual, tratando-se, nas palavras de Manuel da Costa Andrade, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, pág. 211 (ainda que em comentário ao artigo 212º que tipifica o crime de dano): “(...) de um momento não escrito do tipo, que dá expressão aos princípios de proporcionalidade, dignidade penal e subsidiariedade, segundo os quais o direito penal apenas deve intervir contra factos de inequívoca danosidade social.”

Como encontrar então esse limiar, essa linha divisória abaixo da qual a censura penal perde sentido? O legislador português não instituiu qualquer limite, o que coloca problemas relativamente ao exercício de um juízo de (in)adequação social em relação à ofensa ao bem jurídico. Essa definição foi deixada à jurisprudência.

E o entendimento que tem vindo a ser feito, e que não pode deixar de ser por nós subscrito, vai na linha dos seguintes Acórdãos que, a título de exemplo citamos, os quais, pela clareza das palavras, pouco ou nada mais exigem da nossa parte.

Decidiu-se, então no Ac. Rel. Lisboa de 07.07.2005, Proc. n.º 4942/05, 5º secção, Relator Juiz Desembargador Vieira Lamim, cujo sumário está consultável em https://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_mostra_doc.php?nid=3217&codarea=57:

“I – Numa relação contratual pode verificar-se uma situação de incumprimento contratual, não significando, porém, que exista ilícito criminal, prevendo a legislação cível mecanismos próprios para a sua resolução, nomeadamente através do cumprimento coercivo, ou de indemnização ao contraente cumpridor.

II – Contudo, por vezes, um normal contrato é usado como instrumento para induzir em erro o outro contraente, determinando este à prática de actos que lhe causem prejuízo e permitam ao agente um enriquecimento ilegítimo, nestes casos, o agente ao concluir o contrato com outrem tem já a intenção de não cumprir, sendo o contrato um elemento da mise-en-scéne que conduz ao erro ou engano do ofendido.

III – Deste modo, para que numa relação contratual se verifiquem os requisitos do crime de burla é essencial que o propósito de enganar preceda a celebração do contrato ou concorra no momento de celebração do contrato, determinando a vontade da outra parte.

IV – Ao contrário, o dolo no incumprimento das obrigações tem carácter subsequente e surge posteriormente à conclusão de um negócio lícito contraído de boa fé, revelando-se na fase de cumprimento ou execução do acordado.

V – Assim, a linha divisória entre a burla e o incumprimento contratual está no momento da aparição da vontade de incumprimento: se o ânimo de não cumprir existe “ab initio” haverá burla, se surge posteriormente, só pode haver incumprimento contratual.” (fim de citação)

Neste mesmo sentido, o Ac. Rel. Lisboa de 13.11.2019, Proc. n.º 9650/18.8T9LSB.L1-3, Relatora Juíza Desembargadora Cristina Almeida e Sousa, consultável em https://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/954e682573e7e0eb802584c0004c4bba?OpenDocument, o qual conta com o seguinte sumário:

“Certos comportamentos assumidos no decurso de um processo negocial conducente à celebração de um contrato e recondutíveis à culpa in contrahendo, nos termos regulados no artigo 227º ou integradores de certos vícios da vontade, especialmente, do erro motivado por dolo, previsto no artigo 253º, ambos do Código Civil, são em tudo semelhantes ao erro ou engano astuciosamente criado pelo agente, no crime de burla, sendo que os negócios jurídicos onerosos, bilaterais e sinalagmáticos, como a empreitada ou a compra e venda, têm, pela sua natureza e efeitos jurídicos, especial aptidão para servirem de instrumento desse específico modo de execução do crime de burla.

Isto sucederá sempre que, nos contratos, por comparação com o incumprimento civil, apareça caracterizado o ilícito penal, estribado na intenção de uma das partes, sempre, necessariamente, antecedente ou, pelo menos, contemporânea às negociações que antecedem a formação do negócio em concreto, de jamais vir a realizar a sua prestação obrigacional ou ciente da sua impossibilidade de o fazer, tanto no acto da celebração, como na data do vencimento da sua obrigação contratual, criando, pois, uma falsa aparência de negócio jurídico que mais não é do que um acto de apropriação ilícita e, além disso, com o único objectivo de se aproveitar do cumprimento da contraprestação, estando ciente de que irá causar ao outro contraente um prejuízo patrimonial, querendo esse resultado e esperando obter, à custa desse cumprimento pela outra parte no negócio, uma vantagem patrimonial a que sabe não ter direito.

De acordo com os princípios da proporcionalidade, da protecção residual e do carácter fragmentário do direito penal, por um lado e com o princípio da autonomia privada do direito civil, por outro, embora se reconheça que os contratos civis podem, eles próprios, por si só, constituir o embuste ou o artifício típicos da burla, a tutela jurídico-penal deve ficar reservada às situações que, pela sua densificação enganosa ou grau de maquinação e mentira, quando comparadas com aquele erro que é, consabidamente, próprio dos usos do comércio, são de tal modo reprováveis, do ponto de vista ético-jurídico, que não podem senão ser enquadráveis no tipo de burla.

A meros incumprimentos contratuais não pode ser atribuída tutela penal, sob pena de o direito penal ser convertido em instrumento de resolução de conflitos de interpretação de cláusulas contratuais, ou de divergências sobre o modo de execução dos contratos, ou de cobrança de dívidas deles emergentes, desvirtuando-se a sua natureza de direito do bem jurídico e de protecção da paz social, bem assim os princípios da intervenção mínima, da subsidiariedade e da fragmentariedade que lhe são característicos.” (fim de citação)

Posto isto, e olhando uma vez mais para o acervo factual coligido positivamente nos autos, outra conclusão não se pode alcançar que não a seguinte: a conduta da sociedade arguida (que actuou, repete-se, através de pessoa não concretamente determinada, que agiu no nome e interesse daquela) extravasa uma situação de mero incumprimento contratual, caindo já nas malhas do crime de burla, tal qual o mesmo se encontra tipificado nos citados preceitos legais. Com efeito, resultou provado - vide pontos 3., 8., 10. e 11. -, que aquando da publicitação na plataforma digital de cargas que necessitavam de ser transportadas, a sociedade arguida tinha já de antemão a ideia de não pagar os serviços que lhe viessem a ser prestados, o que veio, efectivamente a suceder, tendo actuado ainda com a intenção de obter um enriquecimento correspondente ao valor dos serviços obtidos, sabendo que ao mesmo não tinha direito e que toda a sua conduta era punida e proibida por lei.

E repetimos: os contornos da acção da sociedade arguida desenhados nos pontos 8. e 9. dos factos provados, configuram, eles próprios, um artifício (típico do crime em apreço) para a celebração dos aludidos contratos de transporte, que pela sua densificação enganosa - quando comparado com o erro próprio dos usos de comércio -, se afigura como penalmente reprovável e evidencia uma postura de má-fé e de forte censurabilidade social, [tanto mais que (supostamente) não existe a possibilidade de ressarcimento dos prejuízos causados].

Nesses termos, entende-se que a conduta descrita levada a cabo pela arguida pessoa colectiva (agindo através de pessoa física não concretamente determinada, que actuou em seu nome e seu interesse) afiguram-se idóneas a preencher os elementos objetivos e subjetivos da imputada incriminação, razão pela qual se impõe a sua condenação nos termos em que o foi pelo tribunal a quo.


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Quinta questão objecto do Recurso: medida concreta da pena aplicada à arguida/ recorrente pessoa colectiva.

É a seguinte a fundamentação constante da Sentença recorrida na parte atinente à determinação da medida concreta da pena aplicada à arguida pessoa colectiva:

Das consequências jurídicas do crime (escolha e determinação da pena):

Cumpre determinar a pena concreta a aplicar nos presentes autos.

Da determinação da pena concreta:

Nos termos do artigo 40º do Código Penal, (n.º 1) A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; (n.º 2) Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

Quer isto dizer que, na determinação da pena a aplicar ao arguido, em primeiro lugar funcionam as exigências de prevenção geral e, num último momento, as exigências de prevenção especial, isto é, Primordialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. Por outro lado, a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa. (DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal Português - Consequência Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 3ª Reimpressão, p.227).

A culpa, tal como consta do n.º 2 do artigo 40º do Código Penal, serve de fundamento e de limite máximo inultrapassável da pena.

Atuando, por fim, as exigências de prevenção especial de ressocialização, sendo que são elas que, neste último momento, fixam a medida concreta da pena, devendo esta, na medida do possível, evitar a quebra da inserção social do agente e servir a sua reintegração na comunidade, só deste modo e por esta via se alcançando uma eficácia óptima de protecção dos bens jurídicos. (DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal Português - Consequência Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 3ª Reimpressão, p.231).

O crime de burla qualifica em causa é punido com uma pena de prisão de 1 (um) mês a 5 (cinco) anos ou com pena de multa de 10 (dez) a 360 (trezentos e sessenta) dias – cfr. artigos 41.º, n.º 1; 47.º, n.º 1; 217.º e 218.º, n.º 1 do Código Penal.

Refere ainda o artigo 70º do Código Penal, “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. Isto é, a pena de prisão apenas tem lugar se as exigências de prevenção geral e especial não forem salvaguardadas suficientemente pelas penas não detentivas da liberdade”.

Nesta disposição legal estabelece-se – em consagração do basilar princípio constitucional de que a pena de prisão constitui a ultima ratio da política criminal – um comando normativo de revalência pela pena não privativa da liberdade sempre que esta forneça de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

Resulta das disposições contidas no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades da aplicação das penas se buscam quer na proteção dos bens jurídicos, tutelando, num sentido prospetivo, as expectativas da comunidade na manutenção da validade e da vigência da norma desrespeitada, quer na reintegração do agente na sociedade.

Assim, a preferência pela aplicação de uma pena não privativa da liberdade há-de fundamentar-se nas necessidades concretas de prevenção especial, maxime a ressocialização do arguido, e nas necessidades de prevenção geral ou de garantia para a comunidade, da validade e vigência da norma violada.

Das exigências de prevenção geral:

A punição do crime de burla visa proteger, o património dos cidadãos e, bem assim, a paz dos negócios e comércio. Sendo, como tal, elevadas as necessidades de prevenção geral sentidas no presente caso.

(…)

Nos termos do artigo 40º e 71º do Código Penal, a determinação concreta da pena a aplicar é determinada em função das exigências de prevenção e da culpa do agente.

Refere o artigo 71º do Código Penal, “1 - A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. (…)

No que diz respeito ao juízo sobre a culpa, o Tribunal não se pode furtar “a uma compreensão da personalidade do delinquente, a fim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a sua conformação em face da personalidade suposta pela ordem jurídico-penal. A medida desta desconformação constituirá a medida da censura pessoal que ao delinquente deve ser feita e, assim, o critério essencial da medida da pena” (cfr. Professor Jorge Figueiredo Dias, in “Liberdade, Culpa, Direito Penal”, pág. 184).

Remete-se inteiramente para as considerações supra tecidas quanto às exigências de prevenção geral e especial.

Acrescenta-se quanto à sociedade arguida, no que concerne às exigências de prevenção especial, que a mesma não possui qualquer antecedente criminal e que pese atualmente se encontra insolvente.

Da intensidade do dolo:

Cumpre referir que o arguido, atuou com o grau mais elevado de dolo – dolo direto – artigo 14.º, n.º 1 do Código Penal, o que milita contra as mesmas.

Do grau de ilicitude dos factos:

O grau de ilicitude dos factos é médio/alto, considerando que se mostra o habitual neste tipo de crimes, mas que provocaram um dano patrimonial no valor de €8.917,50, que é considerado elevado.

Da conduta posterior dos arguidos:

O arguido não confessou os factos, não foi demonstrado arrependimento e não resulta dos factos qualquer tentativa de reparação ou efetiva reparação dos danos, pelo que nada há a sopesar quanto aos arguidos.

(…)

Pelo exposto, o Tribunal considera justo e adequado fixar:

(…)

 À sociedade arguida “A... Unipessoal, Lda.” a pena de 280 (duzentos e oitenta) dias,

à taxa diária de €100,00 (cem euros), o que perfaz a quantia global de €28.000,00 (vinte e oito

mil euros).”

(fim de transcrição).

A título de introito, deixamos desde já registado que aderimos à jurisprudência maioritária ([4]) que considera que a declaração de insolvência de uma sociedade embora provoque a sua dissolução, não provoca a sua extinção, nem a extinção do procedimento criminal contra ela instaurado, sendo que ela não pode considerar-se extinta enquanto não se mostrar efetuado o registo do encerramento da liquidação (como resulta do artigo 234.º, n.º 4, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas). Este entendimento é o que resulta, ademais, do disposto no artigo do 127º, n.º 2 do CP, que estipula: “Em caso de pessoa coletiva ou equiparada, o respetivo património responde pelas multas e indemnizações em que aquela for condenada”. O que significa que a multa deverá ser tida em conta no processo de liquidação de uma sociedade declarada insolvente e que, portanto, até ao fim dessa liquidação uma eventual condenação em multa não deixará de ter sentido e utilidade (assim o recente Ac. Rel. Porto de 25.01.2023, Proc. n.º 542/22.7T8PFR.P1, Relator Juiz Desembargador Vaz Pato, in www.dgsi.pt). ([5])

“Com efeito, pese embora a declaração de falência, resta um espesso “substrato” da sociedade em causa, circunstância que, à saciedade, impede que se defenda que da pessoa jurídica, nada mais resta, tal como de pode afirmar da pessoa do ser humano após a morte. (…) Por força do disposto no artigo 141°, n.º 1, e), artigo 146°, n.º 2 e artigo160°, n.º 2 todos do Código das Sociedades Comerciais (CSC), se é certo que as sociedades comerciais se dissolvem pela declaração de falência, o certo é que, ao invés das pessoas singulares cuja personalidade cessa com a morte – artigo 68º, n.º 1 do Código Civil (CC) – aquelas mantêm a personalidade jurídica na fase da sua liquidação, considerando-se apenas extintas pelo encerramento dessa liquidação. E, (…) podem, nesse interim, ser objecto de vicissitudes várias, entre elas o reatamento da actividade nas condições previstas na lei. Nem se diga (…) que decisão contrária à impugnada não tem qualquer efeito. As penas previstas para as sociedades comerciais são, naturalmente, de natureza não pessoal, em geral, sanções pecuniárias. Como tal, quando existam, podem e devem ser levadas em conta, no momento da liquidação, assim atingindo o objectivo para que foram previstas, o que reforça a demonstração de que a falência da sociedade não pode para o efeito em causa, ser equiparada à morte da pessoa singular, já que, em relação a esta, pena alguma pode surtir efeito após esse evento fatal do ser humano. Por outro lado, improcede o argumento invocado pelo tribunal recorrido, segundo o qual “a eventual condenação da arguida pelo crime imputado não teria qualquer consequência a nível da sua actividade”, pois, inter alia, a real possibilidade supra referida de retoma dessa mesma actividade não obstante a declaração de falência, aliada aos eventuais futuros efeitos da condenação penal, nomeadamente para efeitos de reincidência e (ou) sucessão de crimes e suas consequências jurídicas, mostram justamente o contrário.” (assim se escreveu no citado Ac. STJ de 12.10.2006, onde, ademais se remeteu na sua fundamentação para o AUJ n.º 5/2004, de 2.06, publicado no DR I-A de 21/6 que fixou a seguinte jurisprudência: “A extinção, por fusão, de uma sociedade comercial, com os efeitos do artigo 112.º, alíneas a) e b), do Código das Sociedades Comerciais, não extingue o procedimento por contra-ordenação praticada anteriormente à fusão, nem a coima que lhe tenha sido aplicada.”).

Posto isto, prossigamos.

Insurge-se a recorrente contra a Sentença recorrida na parte em que a condenou numa multa de 280 (duzentos e oitenta) dias, defendendo que a pena aplicada pelo tribunal a quo é exagerada e injusta, excede a medida da culpa e não tomou em consideração as atenuantes especiais e gerais, nomeadamente a ausência de antecedentes criminais e a sua actual situação de insolvência, a qual evidencia um diminuto risco de continuidade da actividade criminosa. Por tudo isto, a pena a fixar deve ser sempre inferior a 240 dias de multa, devendo ainda ser ponderada a aplicação de uma pena de substituição, mormente a pena de admoestação.

Relembremos os ensinamentos de Figueiredo Dias, in “Direito Penal, Parte Geral”, pág. 44 quando nos diz que os fins das penas são um objectivo comunitário claro e que “as respostas dadas ao longo de muitos séculos ao problema dos fins da pena – seja pela ciência do direito penal, seja pela teoria do Estado ou pela própria filosofia – reconduzem-se a duas (rectior, a três) teorias fundamentais: as teorias absolutas, de um lado, ligadas essencialmente às doutrinas da retribuição ou da expiação; as teorias relativas, de outro lado, que se analisam em dois grupos de doutrinas: as doutrinas da prevenção geral, de uma parte, as doutrinas da prevenção especial ou individual, de outra parte”. A pena surge como instrumento de retribuição, expiação, reparação ou compensação do mal do crime ou como instrumento de prevenção, como “instrumento político-criminal destinado a actuar (psiquicamente) sobre a generalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através da ameaça penal estatuída pela lei, da realidade da sua aplicação e da efectividade da sua execução … forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal.” (idem, págs. 50-51).

Não obstante as penas criminais a impor às pessoas colectivas sejam em alguns casos diversas das impostas ao cidadão comum, assumem-se, com nuances particularistas, como integradas no unificado objectivo penal dos fins das penas, como consequências jurídicas do crime.

Prevê então o artigo 90º-A do CP três categorias de penas aplicáveis às pessoas coletivas: as principais, as acessórias e as de substituição.

Quanto às penas principais, o legislador recorreu à introdução de uma cláusula geral no artigo 90º-A, nº 1, do Código Penal, de acordo com a qual “pelos crimes previstos no nº 2 do artigo 11º, são aplicáveis às pessoas coletivas e entidades equiparadas as penas principais de multa ou de dissolução” ([6]).

Olhemos então para a pena principal pela qual o tribunal a quo optou – a pena de multa, em detrimento da pena de dissolução -, importando salientar o que resulta da conjugação do disposto nos artigos 71º, n.º 1 e artigo 90º-B, n.º 4 ambos do CP quanto aos critérios para a determinação do quantum da mesma.

Estabelece o artigo 71º, n.º 1: “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

À data da prática dos factos, era a seguinte a redacção do n.º 4 citado artigo 90º-B: “A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71º.” Dita, actualmente, este último, após a entrada em vigor, a 21.03.2022, da Lei n.º 94/2001, de 21.12: “4. A pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no n.º 1 do artigo 71º, podendo ser considerada a circunstância de a pessoa coletiva ter adotado e executado, depois da comissão da infração e até à data da audiência de julgamento, um programa de cumprimento normativo com medidas de controlo e vigilância idóneas para prevenir crimes da mesma natureza ou para diminuir significativamente o risco da sua ocorrência.”

Nos termos do artigo 2º, n.º 1 do CP, as penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem, pelo que é retroativa a aplicação de lei que for posterior a esse momento. E no âmbito do Direito Penal a regra é sempre a da não aplicação retroativa da Lei, a não ser que seja mais favorável ao arguido. É o que retiramos do artigo 2º, n.ºs 1 e 4 do CP e do artigo 29º da CRP.

Com efeito, o Princípio da Confiança implica a previsibilidade da lei, ou seja, implica que ninguém possa ser surpreendido com uma alteração súbita que permita ao Estado estender o seu Jus puniendi. Este Princípio implica um mínimo de certeza e de segurança nos direitos e nas expetativas juridicamente criadas, ou seja, respeito pela garantia de efetivação dos direitos e liberdades fundamentais.

Do confronto então dos dois regimes legais, temos que se mostra mais favorável à arguida pessoa colectiva o que vigorava à data do cometimento do crime pelo qual vai condenada, porquanto este prescindia, para efeitos de determinação do número de dias da pena (principal) de multa a aplicar, e bem assim para a determinação das demais sanções (acessória e de substituição - vide artigos 90º-E, n.ºs 1, 2 e 5, al. b) e 90º-G, n.º 1, al. b), todos do CP ), de uma qualquer ponderação que viesse a ser feita da adopção e execução, ou não, pela pessoa colectiva arguida, de um “programa de cumprimento normativo” (doravante PCN) ([7]).

Assim, por força do princípio da não retroactividade da lei penal (ou ainda pelos fundamentos vertidos na nota de rodapé n.º 7, caso não se perfilhasse o entendimento vindo de alcançar), afasta-se a aplicação, no caso concreto, do regime estatuído pela citada Lei n.º 94/2021, de 21.12, no que tange à redacção que veio trazer ao n.º 4 do artigo 90º-B do CP, bem assim aos artigos 90º-E, n.ºs 1, 2 e 5, al. b) e 90º-G, n.º 1, al. b), todos do CP, importando aplicar, em concreto, o regime legal que em vigor se encontrava à data do cometimento dos factos pela pessoa colectiva arguida.

Desta feita, olhando para a culpa do agente e para as exigências de prevenção, tanto geral como especial, há que indagar se a pena de 280 dias de multa fixada pelo tribunal a quo se mostra excessiva, desproporcional e, por tal, como advoga a recorrente, violadora dos artigo 40º, 47º e 71º, todos do CP.

Nas Conclusões que apresentou, defendeu a recorrente que o tribunal a quo não considerou as atenuantes especiais e gerais da pessoa colectiva arguida, como sejam a “ausência de antecedentes criminais e a sua actual situação de insolvência”

Comecemos desde já por afastar a possibilidade de atenuação da pena pugnada. Se não, atentemos.

Dispõe o artigo 72º, n.º 1 do CP que “o tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto ou a culpa do agente ou a necessidade da pena”.

Por sua vez, o n.º 2 do mesmo artigo elenca exemplificativamente circunstâncias várias que, correlacionadas com os requisitos contidos no n.º 1, ainda do mesmo normativo, potenciam a atenuação especial da pena.

A via trilhada pelo legislador, ao elaborar as aludidas normas, foi a de elencar exemplificativamente circunstâncias atenuantes de especial valor, a fim de dar ao juiz critérios mais rigorosos de avaliação do que aqueles que seriam dados através de uma cláusula geral. Ou seja, sem criar obstáculo à necessária liberdade do juiz, põem-se à disposição deste princípios delimitadores mais sólidos e facilmente apreensíveis para que, em cada caso concreto, se decida pela aplicação ou não do instituto em causa.

Porém, há que evidenciar que as situações a que aludem as diversas alíneas do nº 2 do citado artigo 72º do Código Penal não têm, por si só, a virtualidade de conferir poder atenuativo especial, impondo-se o seu relacionamento com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena.

E conforme é entendimento unânime da doutrina e da jurisprudência, a atenuação especial da pena está reservada para os “casos extraordinários ou excecionais”, uma vez que para a generalidade dos casos a pena determina-se dentro da moldura penal do tipo de ilícito cometido pelo agente. Desta feita, a substituição da moldura penal do tipo de ilícito cometido pelo agente por uma moldura especialmente atenuada, só pode dar-se quando, no caso concreto, existam circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores que ainda não tenham operado e “que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena” – artigo 72º, n.º 1 do CP. Critério decisivo é que as circunstâncias concorrentes, pela sua especial intensidade, configurem um caso de gravidade, tão acentuadamente diminuída, seja ao nível da ilicitude ou da culpa, seja ao nível da necessidade da pena, que escapa à previsão do que o legislador definiu e que, por isso, seria injusto punir dentro da respetiva moldura penal, já prevenidamente muito ampla (assim, Ac. STJ de 06.10.2021, Proc. n.º 401/20.8PAVNF.S1, Relator Juiz Conselheiro Nuno Gonçalves, in http://www.gde.mj.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/53bb5249eef0bb8d80258768003bff72?OpenDocument, entre muitos outros).

Também ao nível dos Tribunais da Relação se decide no mesmo sentido, citando-se, a título meramente exemplificativo, o sumário publicado do Ac. Rel. Évora de 20.10.2020, Proc. n.º 241/19.7PBSTR.E1, Relator Juiz Conselheiro Berguete Coelho, in http://www.gde.mj.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/8572949355fed4c78025861c003bbd6d?OpenDocument: “1. A atenuação especial da pena tem que ver com circunstâncias excepcionais, que funcionam como “válvula de segurança” perante a multiplicidade e a diversidade de situações que a vida real revela e a que o legislador, apesar da preocupação de abarcá-las quanto possível, não consegue dar resposta suficientemente justa mediante a previsão abstracta das medidas das penas. 2. O seu carácter eminentemente excepcional não pode ser esquecido, sob pena das finalidades da punição se verem postergadas, pelo que não é suficiente um quadro em que as atenuantes sejam importantes, mas sim que estas sejam de molde a concluir-se que, só através da “correcção” à medida da pena, se obtém uma solução justa, sempre, contudo, sujeita à acentuada diminuição da ilicitude do facto e da culpa e das necessidades punitivas.”

Na doutrina, esclarece Figueiredo Dias, in “(…) As Consequências Jurídicas do Crime”, cit., págs. 302-307, a propósito do paralelismo entre o sistema (ou o «modelo») da atenuação especial do artigo 72.º e o sistema da determinação normal da pena previsto no artigo 71.º, que tal paralelismo é só aparente, pois enquanto no procedimento normal de determinação da pena são princípios regulativos os da culpa e da prevenção, na atenuação especial tudo se passa ao nível de uma acentuada diminuição da ilicitude ou da culpa, e, portanto em último termo, ao nível do relevo da culpa, pelo que seriam irrelevantes as exigências da prevenção, o que não ocorre face a alguns dos exemplos ilustrativos da situação especialmente atenuante contida na cláusula geral do n.º 1 do artigo 72º, ou seja, das situações aí descritas só significativas sob a perspectiva da necessidade da pena (e, por consequência, das exigências da prevenção). E concluiu este autor, in ob. cit., § 451: princípio regulativo da aplicação do regime da atenuação especial é a diminuição acentuada não apenas da ilicitude do facto ou da culpa do agente, mas também da necessidade da pena e, portanto, das exigências da prevenção. Daí - e continuamos a citar o mesmo autor – “estarmos perante um caso especial de determinação da pena, conducente à substituição da moldura penal prevista para o facto por outra menos severa, com redução de um terço no limite máximo da moldura prevista para o facto e várias hipóteses na fixação do limite mínimo”.

Ainda que não se descure que o arguido é livre de não prestar declarações e, prestando-as, é igualmente livre de não confessar os factos e bem assim de não mostrar arrependimento pelo cometimento dos mesmos, no caso sub judice, a sociedade arguida, por intermédio do arguido AA, pessoa que figura na certidão do Registo Comercial daquela como sendo o seu gerente, optou por se remeter ao silêncio, inexistindo assim qualquer confissão quanto à prática dos factos, bem assim qualquer acto exterior que, de algum modo, pudesse integrar o conceito de arrependimento a que alude o artigo 72º, nº 2, al. c), do CP (onde se fala em “atos demonstrativos de arrependimento sincero do agente”), nomeadamente o ressarcimento dos danos causados à assistente.

Por outro lado, evidenciam-se, perante os factos provados, significativas necessidades de prevenção geral positiva ou de integração, perante uma atuação (de burla) danosa em montante superior a 8.900,00 € (oito mil e novecentos euros), lançando mão para o cometimento do crime de um meio cada vez mais em uso nos dias que correm: as plataformas digitais, sendo estas, como é consabido, potenciadoras do anonimato e da “despersonalização” dos seus actuantes. Com efeito, o uso de tais plataformas por parte dos agentes económicos exige comportamentos conforme o direito, não apenas de um ponto de vista civilista (no âmbito das relações contratuais), mas igualmente e sobretudo do ponto de vista do direito penal - atendendo aos bens jurídico-penalmente protegidos, mormente pelo tipo legal previsto no artigo 217º do CP. Donde, a pena a aplicar ao(s) agente(s) que viole(m) tais bens jurídico-penalmente protegidos haverá que transmitir à sociedade que comportamentos penalmente ilícitos e culposos merecem censura, não sendo toleráveis, uma vez que não são comunitariamente aceites, pois que contribuem para um inevitável crescimento de insegurança.

Por último se dirá que a “ausência de antecedentes criminais e a sua actual situação de insolvência”, ao contrário do advogado nas Conclusões de Recurso, não configuram quaisquer circunstâncias atenuantes, sejam elas especiais ou gerais. Com efeito, como sucede com as pessoas singulares, e desde há muito vem sendo enfatizado na jurisprudência dos Tribunais Superiores, a ausência de antecedentes criminais não pode ser considerado um “plus” a favor dos arguidos, antes uma “imposição” que vale para todos os cidadãos e pessoas colectivas, que decorre do respeito, por todos, das regras jurídico-penais em vigor numa sociedade democrática e num Estado de Direito.

Também a situação de insolvência da pessoa colectiva arguida, judicialmente declarada em data posterior ao cometimento dos factos, em nada diminui as exigências de prevenção especial. Se é certo que com a declaração de insolvência a pessoa colectiva arguida cessa a sua inter-comunicação com a comunidade jurídica, a dissolução, decorrente da declaração de insolvência, abre (tão somente) uma nova fase na vida da sociedade: a fase de liquidação e partilha. Mas a sociedade em liquidação é a mesma, mantendo, nomeadamente, a personalidade de que gozava antes de dissolvida - nº 2 do artigo 146º do CSC. Entendimento diverso esbarraria com o disposto no artigo do 127º, n.º 2 do CP: “Em caso de pessoa coletiva ou equiparada, o respetivo património responde pelas multas e indemnizações em que aquela for condenada”. O que significa que até ao fim dessa liquidação uma eventual condenação em multa não deixará de ter sentido e utilidade (neste sentido, veja-se o Ac. Rel. Guimarães de 26.09.2022, Proc. n.º 11/20.0T9EPS.G1, Relator Juiz Desembargador Júlio Pinto, in http://www.gde.mj.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/68ca1b02e64cd3f4802588da0035097c e o citado Ac. Rel. Porto de 25.01.2023)

Face ao exposto, no quadro do circunstancialismo global que a matéria de facto revela, não existem circunstâncias ligadas à culpa do agente ou à necessidade da pena, que importem a impossibilidade da adequação concreta da pena dentro da moldura normal estabelecida para o crime em análise, não se justificando, deste modo, a atenuação especial da pena, ao contrário da pretensão da arguida recorrente.


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A moldura abstracta da pena de multa é (assim) de 10 a 600 dias. A pena (principal) de multa em concreto fixada pelo tribunal a quo de 280 (duzentos e oitenta) dias não ultrapassa o meridiano da pena, ainda que do mesmo se aproxime. E verificam-se critérios que sustentem tal medida concreta?

Como já vimos, os critérios que pontificam a determinação da medida concreta da pena para as pessoas colectivas são três: prevenção geral, prevenção especial e culpa. Os mesmos que o legislador elegeu para a determinação da medida concreta da pena para as pessoas singulares. Importa, contudo, como chama a atenção Nuno Brandão, “O regime sancionatório das pessoas colectivas na revisão do Código Penal”, in Revista do CEJ, VIII, pág. 41 e ss., consultável também in https://www.fd.uc.pt/40anoscodigopenal/wp-content/uploads/2022/10/O-regime-sancionatorio-das-pessoas-coletivas-na-revisao-do-Codigo-Penal.pdf, fazer um esforço de densificação desses critérios, sobretudo em matéria de prevenção especial e da culpa. “Pela própria natureza das coisas, a perigosidade criminal das pessoas colectivas é distinta e manifesta-se de modo diferente da perigosidade criminal de uma pessoa física. Da mesma forma, a culpa associada à prática de um ilícito penal por uma pessoa colectiva, tem natureza diferente da que é própria da pessoa singular.” Sugere assim este autor, remetendo para a doutrina espanhola, que se deverão valorar os seguintes factores: gravidade do delito; actuação com dolo ou negligência; maior ou menor exigibilidade de fidelidade ao direito e motivos que levaram a pessoa colectiva a tomar a decisão ilícita (ob. cit., pág. 46).

Cremos assim ser de chamar novamente as considerações que acima se deixaram vertidas a propósito da não verificação das circunstâncias que poderiam determinar a atenuação especial da medida da pena, pois que já deixámos frisada a gravidade da conduta, traduzida no concreto dano causado à assistente, no concreto valor de 8.917,50 € (oito mil novecentos e dezassete euros e cinquenta cêntimos); as exigências de prevenção geral elevadas que se fazem sentir, atento os concretos moldes em que a conduta ilícita foi levada a cabo e dos meios de que se socorreu a arguida - esta, pessoa colectiva “com nome na praça”, valendo-se da impessoalidade e do anonimato que as plataformas digitais proporcionam, logrou convencer a assistente da sua boa fé e da vontade inerente a qualquer relação comercial de cumprir as obrigações decorrentes da mesma, quando, de antemão, como acima já fizemos referência, bem sabia que não queria actuar de acordo com tais cânones, ao invés -, sendo de lhe exigir um outro comportamento, em conformidade com o Direito vigente e os bens jurídico-penalmente protegidos; sendo assim a sua actuação culposa, consciente e com o propósito conseguido de, com o(s) artificio(s) fraudulento(s), causar o apontado dano.

A contrabalançar estas elevadas exigências de prevenção geral, temos por reduzidas (mas, reforça-se, não inexistentes) as exigências ao nível da prevenção especial, considerando que a arguida pessoa colectiva se encontra em fase de liquidação em virtude de ter sido judicialmente declarada insolvente e não conta com antecedentes criminais.

Por tudo o que deixámos exposto, não esquecendo ainda que na decisão recorrida foram apreciadas e ponderadas as regras na determinação da pena de multa e consideradas todas as circunstâncias que importava considerar, consideramos que a concreta pena de 280 dias de pena de multa, numa moldura abstracta de 10 a 600 dias se revela proporcional à globalidade dos factos que visa punir e às exigências de prevenção, sobretudo geral, que se fazem sentir, respeitando ainda, no nosso entender, o limite da culpa da arguida.

Com efeito, e salvo o devido respeito por diverso entendimento, a pena concreta fixada pelo tribunal a quo, próximo do meridiano da pena, pune de forma adequada e, por tal, proporcionada, a conduta da arguida pessoa colectiva. Não esquecendo as elevadas exigências de prevenção geral que no caso reclamam uma pena significativamente acima do mínimo legal, estamos em crer que a culpa da arguida atinge um patamar que não justifica uma pena concreta diversa daquela que foi determinada pelo tribunal a quo, não esquecendo, ademais, que não ultrapassa as exigências de prevenção especial se mostram, in casu, de pouca monta.

Para o que se acabou de expor, porque consideramos, e repetimos, ser proporcional o quantum concreto dos dias da pena de multa pena fixado pelo tribunal a quo, cremos ser de lançar mão do que se lavrou no Ac. Rel. Coimbra, Proc. nº 108/15.8JAGRD.C1, citado por Juiz Desembargador Luís Teixeira quando Relator no Ac. Rel. Coimbra de 07.04.2016, Proc. n.º 205/15.0PTCBR.C1, in www.dgsi.pt,: “Tida como boa a pena escolhida, para se proceder a qualquer alteração na sua duração terá o desajustamento que ser relevante, isto é, a pena terá que surgir como desproporcionada face à culpa e exigências de prevenção que se façam sentir: o quantum exacto de pena será objecto de alteração se tiver ocorrido violação das regras de quantificação – consideração de factores irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de factores relevantes, errada aplicação dos princípios gerais de determinação -, ou se a quantificação efectuada se revelar desproporcional. Desde que sejam observados os critérios de dosimetria concreta da pena, há a margem de actuação do julgador que é dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de censurar” ([8]).

Por tudo o exposto, entendemos que estas ponderações têm aqui inteira aplicação. Com efeito, e conforme já acentuado, porque na decisão recorrida foram observadas as regras na determinação da pena de multa e consideradas as circunstâncias que importava considerar, a pena de 280 dias de pena de multa, numa moldura abstracta de 10 a 600 dias, surge proporcional à globalidade dos factos que visa punir, respeitando, ademais, o limite da culpa da arguida, surgindo ainda justificada face às exigências especiais que em concreto se fazem sentir, bem assim as exigências de prevenção geral que se mostram especialmente prementes.

Impõe-se assim a manutenção da pena (principal) de multa, a cumprir pela arguida pessoa colectiva “A..., Unipessoal, L.da”, no que tange ao quantum do número de dias – 280 (duzentos e oitenta) dias.


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Última questão objecto do recurso: há lugar à aplicação da pena de substituição - Admoestação - prevista no artigo 90º-C do CP?

Brevemente se dirá que, à semelhança da estrutura sancionatória estabelecida para as pessoas físicas no CP, o legislador previu três categorias de penas aplicáveis às pessoas coletivas: as principais, as acessórias e as de substituição – vide artigo 90º-A e segs.. No tocante às penas de substituição, designadamente da pena (principal) de multa prevista no n.º 1 do citado artigo 90º-A, estão previstas a admoestação (artigo 90º-C) ([9]), a caução de boa conduta (artigo 90º-D) e a vigilância judiciária (artigo 90º-E).

Preceitua o n.º 1 do artigo 90º-C do CP: “Se à pessoa colectiva ou entidade equiparada dever ser aplicada pena de multa em medida não superior a 240 dias, pode o tribunal limitar-se a proferir uma admoestação, aplicando-se correspondentemente o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 60º”.

Por seu turno, dispõe o artigo 60º do CP: “2. A admoestação só tem lugar se o dano tiver sido reparado e o tribunal concluir que, por aquele meio, se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 3. Em regra, a admoestação não é aplicada se o agente, nos 3 anos anteriores ao facto, tiver sido condenado em qualquer pena, incluída a admoestação.”

Ora, sem necessidade de grandes lucubrações, não poderá conceder-se, nesta parte, provimento ao recurso, pois que, desde logo, a medida concreta da pena fixada – 280 (duzentos e oitenta) dias, o não permite (cfr. citado n.º 1 do artigo 90º-C).

E ainda que se tivesse atendido à pretensão recursiva deduzida pela sociedade arguida de ver a pena concreta reduzida para um quantum de 240 dias, o certo é que decorre da matéria de facto julgada provada e vertida nos pontos 5. e 9. da fundamentação de facto que a arguida não procedeu ao pagamento à assistente do montante em causa nos autos – 8.917,50 € -, correspondente ao prejuízo causado.

Não se mostrando, assim, reparado o dano, não haveria sequer que indagar se a pena de substituição em causa realizaria de forma adequada e suficiente as finalidade da punição, que, como já vimos, são aquelas que se mostram consagradas no artigo 40º, n.º 1 do CP: protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.


***

III - Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam por maioria, em conferência, os Juízes Desembargadores da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em:

1. Proceder à correcção de lapso de escrita constante da Sentença recorrida, ao abrigo do artigo 380º, n.º 2 do CPP: no item Motivação, a págs. 7, 4º parágrafo, onde aí se lê “O legal representante da sociedade arguida referiu que (…)”, deve ler-se: “O legal representante da sociedade assistente referiu que (…)”.

2. Não conceder provimento aos Recursos na parte em que foi invocada a verificação na Sentença recorrida do vício decisório previsto no artigo 410º, n.º 2, al. c) do CPP;

3. Na parte atinente à impugnação da matéria de facto ao abrigo do artigo 412º, n.º 3 e 4 do CPP, conceder total provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e parcial provimento ao recurso interposto pela arguida “A..., Unipessoal, L.da” e em conformidade alterar o julgamento da matéria de facto efectuado pelo tribunal recorrido nos moldes sopra expostos.

4. Em consequência, revogar a Sentença recorrida na parte em que condenou o arguido AA pelo cometimento do crime de burla qualificado, p.p. pelos artigos 217º e 218º, n.º 1, al. a), ambos do CP, absolvendo-o do cometimento de tal crime.

5. Não conceder provimento ao recurso interposto pela arguida “A... Unipessoal, L.da”, confirmando a Sentença recorrida na parte em que a condenou pelo cometimento de um crime de burla qualificada, p.p. pelos artigos 217º e 218º, n.º 1, al. a), ambos do CP.

6. Não conceder provimento ao recurso interposto pela arguida “A..., Unipessoal, L.da” na parte atinente à dosimetria da pena e em conformidade confirmar a Sentença recorrida na parte em que a condenou ao cumprimento de uma pena (principal) de multa de 280 (duzentos e oitenta) dias, prevista no artigo 90º-A, n.º 1 do CP,.

7. Consequentemente, não conceder provimento ao recurso interposto pela arguida “A..., Unipessoal, L.da” na parte atinente à pretendida substituição da pena de multa pela pena de admoestação prevista no artigo 90º-C, n.º 1 do CP


*

Sem custas - artigo 513º do CPP, a contrario.


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Tribunal da Relação do Porto, 16 de Outubro de 2024

(texto elaborado pela 1ª signatária em conformidade com o deliberado em conferência com os demais Juízes Desembargadores Adjuntos, sendo por todos revisto e assinado digitalmente)

A Juíza Desembargadora Relatora

CARLA CARECHO

O Juiz Desembargador 1º Adjunto

FRANCISCO MOTA RIBEIRO

O Juiz Desembargador 2º Adjunto

JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO

[(com voto de vencido que se segue):

Voto vencido:

QUANTO À SOCIEDADE ARGUIDA:

A responsabilidade criminal da pessoa coletiva exige sempre o nexo de imputação do facto a um agente da pessoa coletiva, que será aquele que nela exerce liderança ou um seu subordinado nas condições prescritas na lei (artigo 11º, n.º 2 alíneas a) e b) do Código Penal).

A existência de um nexo de imputação do acto ilícito típico (ou facto de conexão) a um elemento da sociedade com posição de liderança na organização constitui um pressuposto essencial para imputação do crime à pessoa colectiva e depende da "identificação funcional" do líder autor do facto concretamente acontecido (RL 11-12-2018 www.dgsi.pt), tal qual vinha estruturada a acusação/pronúncia.

O conceito de pessoa não concretamente apurada, dada a sua total indeterminação, não é suscetível de suprir a necessária identificação, com um mínimo de densidade factual, da pessoa física ou órgão responsável que em nome, por conta e no interesse da arguida publicitou as cargas que necessitavam de ser transportadas, já com a ideia de não as pagar de antemão, esgotando-se nesta ação a materialização da conduta ardilosa do agente da burla.

A expressão “pessoa não concretamente apurada”, quando essencial – como é o caso - à subsunção da imputação do facto ao ente coletivo, é uma referência genérica insuscetível de ser utilizada para iludir a insuficiência da prova quanto à pessoa de liderança que atuou em nome, por conta e no interesse da arguida, tudo por falta de indagação oficiosa do Tribunal a quo, a coberto do art.340º, do Código Processo Penal, com sacrifício das garantias de defesa e do direito ao contraditório da arguida (art.32º, da C.R.P.)..

Verifica-se um erro notório e contradição insanável na apreciação da prova – art.410º, nº2, al.a) e c), do Código Processo Penal, já que são várias as referências no texto da motivação da sentença ao individuo DD que inculcam a gerência de facto deste e não ao arguido AA.

Dispondo os inquiridos BB, CC e DD de dados bastantes para identificar DD e a GG e, assim, pelo menos tentar, a inquirição de ambos que se impunha oficiosamente para a descoberta da verdade, dispondo o legal representante da assistente (BB) de emails trocados com a sociedade arguida para a contratação dos transportes, ordenaria o reenvio parcial do processo nos termos do art.410º, nº2, al.a) e c), do Código Processo Penal, para, obtida essa prova, apurar quem efetivamente publicitou e contratou as cargas com a assistente, cumprindo-se depois o art.358º, do Código Processo Penal (alteração não substancial), se for caso disso.]

__________________

[1] No mesmo sentido, o mesmo autor, in “Responsabilidade penal das sociedades e dos seus administradores e representantes”, Editorial Verbo, 2009, pág. 274-275, defendendo que olhando para as várias teorias que se perfilam, as pessoas colectivas são capazes de acção e culpa.

[2] Assim também Ac. Rel. Évora de 26.06.2012, Proc. n.º 60/09.9TAVVC.E1, Relatora Juíza Desembargadora Ana Barata Brito, https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/32df9e916845e4a480257de10056f889?OpenDocument.

[3] Societas delinquere potest é assunção clara e inegável do actual ordenamento penal português – cfr. artigo 11º do CP -, princípio com tendência a aprofundar-se e a alargar-se no concreto judiciário.

[4] Neste sentido, entre outros, os Acórdãos (todos acessíveis em www.dgsi.pt).

- do STJ de 12.10.2006, Proc.º n.º 06P2930, Relator Juiz Conselheiro Pereira Madeira;

- da Relação de Coimbra de 22.10.2014, Proc.º n.º 50/08.4TATBU-A.C1, Relatora Juíza Desembargadora Cacilda Sena; de 27.01.2016, Proc.º n.º 141/13.4TATBU.C1, Relatora Juíza Desembargadora Isabel Valongo; de 18.01.2017, Proc. n.º 8698/15.9T8CBR.C1 e de 18.09.2019, Proc.º n.º 158/16.7T9PBL-A.C1, ambos relatados por Juiz Desembargador Jorge França;

- da Relação de Évora de 2.05.2006, Proc.º n.º 394/06-1, Relator Juiz Desembargador Pires da Graça) e de 26.09.2017, Proc.º n.º 862/15.7T9EVR.E1, Relator Juiz Desembargador José Proença da Costa;

- da Relação de Guimarães de 9.02.2009, Proc. n.º 2701/08-1, Relator Juiz Desembargador Cruz Bucho);

- desta Relação do Porto de 5.03.2003, Proc.º n.º 0210379, Relator Juiz Desembargador Fernando Batista; Ac. de 28.05.2003, Proc.º n.º 0310495 e Ac. de 10.03.2004, Proc.º n.º 0315960, ambos relatados por Juiz Desembargador Borges Martins; Ac. de 8.07.2004, Proc.º n.º 0441488, Relator Juiz Desembargador Agostinho Freitas; Ac. de 6.10.2004, Proc.º n.º 0413650, relator Juiz Desembargador André Silva; Ac. de 13.10.2004, Proc.º n.º 0414013, Relator Juiz Desembargador Fernando Monterroso; Ac. de 28.09.2005, Proc.º n.º 0510726, Relator Juiz Desembargador Alves Fernandes; Ac. de 21.12.2005, Proc.º n.º 0416352, Relator Juiz Desembargador Ângelo Morais Ac. de 9.05.2007, Proc.º n.º 0710903, Relator Juiz Desembargador António Eleutério; Ac. de 27.06.2007, Proc.º n.º 0742535, Relator Juiz Desembargador Ernesto Nascimento e de 12.09.2007, Proc.º n.º 0741140, Relator Juiz Desembargador Pinto Monteiro.

[5] No sentido de que existirá extinção da responsabilidade, com a extinção da personalidade jurídica, cfr. Jorge dos Reis Bravo, in “Direito Penal dos Entes Colectivos, Ensaio sobre a Punibilidade de Pessoas Colectivas e Entidades Equiparadas”, Coimbra Editora, 2008, pág. 375-378.
[6] Adoptou o legislador português a pena de multa como consequência mais consentânea para punir o comportamento criminal das pessoas colectivas e entidades equiparadas, dado não serem aprisionáveis per rerum natura (cfr. Manuel Lopes, “A natureza da pena de multa e a sua aplicabilidade às pessoas colectivas e entidades equiparadas, in “Revista Jurídica Portucalense”, n.º 33/Univ. Portucalense/Porto/2023, pág. 180, consultável in https://doi.org/10.34625/issn.2183-2705(33)2023.ic-08). Conclui este autor, no artigo em apreço, pela inexistência de dúvidas quanto ao facto da pena de multa prevista no n.º 1 do artigo 90º-A do CP ser uma pena criminal genuína, com todas as consequências inerentes às penas criminais, conexa com a revelação de desvalor ético-normativo e o encargo de observar as racionalidades punitivas.
[7] A este propósito, competiria questionar, como o faz André Lamas Leite, “O regime sancionatório criminal das pessoas colectivas e entes equiparados, em especial após a Lei n.º 94/2021, de 22 de Dezembro,”, in Repositório Aberto da Universidade do Porto”, pág. 101 e ss., https://repositorio-aberto.up.pt/bitstream/10216/141536/2/565122.pdf, o que é um PCN?
Pese embora o PCN se aplique a todas as categorias de sanções (principal, acessória e de substituição) - vide artigos 90º-A, n.ºs 4 a 6, 90º-B, n.º 4, 90º-E, n.ºs 1, 2 e 5, al. b) e 90º-G, n.º 1, al. b), todos do CP -, a Lei n.º 94/2021 não o definiu, assim “roçando a inconstitucionalidade material por falta de determinabilidade criminal a que alude o artigo 29º, n.º 3 da Constituição” (ibidem, pág. 121). Face a tal indefinição, sugere este autor: “A única forma de, antes de o legislador corrigir – como deve – o enorme lapso cometido e definir expressamente o que entende pelo dito programa, cremos ser de lançar mão do previsto no Decreto-Lei n.º 109-E/2021, de 9 de Dezembro, com entrada em vigor 180 dias após a sua publicação (artigo 29.º), ou seja, a 7/6/2022. Este diploma aprova o MENAC (Mecanismo Nacional Anticorrupção) e o RGPC (Regime Geral da Prevenção da Corrupção).” No entanto, e para o que nos importaria no caso em apreço, o artigo 5º do RGPC não se aplica ao crime de burla qualificada, p.p. pelo artigos 217º e 218º, n.º 1 do CP cometido pela pessoa colectiva arguida [nem tão pouco se aplica às pessoas colectivas privadas que tenham 49 ou menos trabalhadores]. Assim, e por força do artigo 1º, n.º 3 do CP, que consagra a proibição do recurso à analogia para efeitos de determinação da medida concreta da pena, nunca se poderia lançar mão dos artigos 2º, 3º e 5º, do RGPC para, no caso concreto, se determinar o que se deveria entender por PCN, no sentido de se poder, assim, exigir à pessoa colectiva arguida a execução/adopção de um tal programa. Este entendimento seria para o citado autor, “o mais conforme às exigências do princípio da legalidade criminal.” (ibidem, pág. 122-123).

[8] Esta fundamentação surge noutros Acs. Rel. Coimbra: de 18.03.2015, Proc. n.º 109/14.3GATBU.C1 e de 02.03.2016, Proc. nº 696/10.5PAPNI.C1, este último citado no aludido Ac. Rel. Coimbra de 07.04.2016, ambos in www.dgsi.pt.

[9] Sublinha-se no Ac. Rel. Évora de 10.05.2016, Proc. n.º 1966/13.6TAPTM.E1, Relator Juiz Desembargador João Amaro, in https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/-/0A95E647DBB7414280257FCB004EBBE2 que, ao contrário do que se extrai da disciplina prevista no artigo 60º, n.º 1 do CP, a admoestação, no que tange ao leque de sanções criminais a aplicar às pessoas colectivas condenadas pelo cometimento de factos ilícitos típicos elencados no artigo 11º do CP, não figura como pena principal, mas tão-só como pena de substituição da pena de multa.