COMPRA E VENDA
LAREIRA
EXPLOSÃO
DEFEITO
RESPONSABILIDADE CIVIL
PRODUTOR
Sumário

(da exclusiva responsabilidade da Relatora)
I. Existindo defeito do produto por não oferecer a segurança com que legitimamente se pode contar, o produtor responde pelos danos decorrentes de tal defeito.
 II. Não se pode contudo restringir a figura do produtor ao fabricante do produto, pois conforme resulta do art.2º do DL 383/89 de 6/11, para este efeito, produtor é não só o fabricante do produto (ainda que só de uma parte componente ou de matéria-prima) mas também quem se apresente como tal pela aposição no produto do seu nome, marca ou outro sinal distintivo; e ainda aquele que, na Comunidade Económica Europeia e no exercício da sua atividade comercial, importe do exterior da mesma produtos para venda, aluguer, locação financeira ou outra qualquer forma de distribuição, ou qualquer fornecedor de produto cujo produtor comunitário ou importador não esteja identificado, salvo se, notificado por escrito, comunicar ao lesado no prazo de três meses, igualmente por escrito, a identidade de um ou outro, ou a de algum fornecedor precedente.
III. A Recorrida foi quem vendeu o produto (lareira) aos recorrentes e quem lhes transmitiu as respetivas instruções de segurança (Manual e Instruções de Segurança), as quais foram juntas aos autos com a contestação e dadas como reproduzidas na matéria de facto provada.
IV. Tais instruções contêm o logotipo da recorrida (não contendo qualquer referência a outra qualquer entidade), que assim sendo se apresenta como produtora do bem nos termos e para os efeitos do art.º 2º nº1 do DL 383/89 de 6/11, sendo certo que em momento algum do processo identificou qualquer outro produtor.
V. Não pode a recorrida eximir-se à responsabilidade decorrente do defeito da lareira, ainda que tal defeito se reporte a deficiências/ omissões das respetivas instruções de segurança, por se enquadrar na noção de produtora instituída pelo DL 383/89 de 6/11.

Texto Integral

Acordam neste Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO
AA e BB intentaram ação declarativa de condenação com processo comum contra CC, Lda pedindo a condenação deste no pagamento de danos patrimoniais na quantia de €38.572,17 e de danos não patrimoniais no valor de €70.000, ambas acrescidas de juros de mora.
Para tanto alegam que compraram uma lareira à R., a qual era de exposição, mas que lhes foi assegurado que funcionava bem. A lareira que funcionava com bioetanol foi colocada pela R. em dezembro de 2018. Foi colocada a funcionar nos dias 20, 21, 23 e 24 de dezembro, tendo a R. advertido que não podia ser colocado qualquer brinquedo dentro da mesma. No dia 24 de dezembro, estando os AA com o seu filho e família a comemorar o natal, e após a lareira se apagar, com total extinção da chama, o A. foi reabastecer de combustível quando uma bola de fogo salta para a sua face e provoca uma explosão na casa que ficou totalmente destruída. A mãe da A., doente oncológica, teve de interromper os tratamentos em virtude de uma pneumonia, a irmã da A. ficou com uma queimadura de grau 3, e ficou internada no hospital, e os AA e o seu filho, durante dias não conseguiram dormir com o sucedido, tendo ficado sempre com o sentimento de angustia e aflição, e acabado por passar o natal numa ambulância e no hospital.
Conclui assim pela responsabilidade da R. pelos danos causados, nos valores que peticionam, posto que agiram de modo correto e que a lareira não tinha um dispositivo de corte automático de fornecimento de combustível.
Legalmente citado a R. contestou negando qualquer responsabilidade no sucedido, referindo que a lareira era de exposição mas os AA pretenderam levá-la, e que com o envio da fatura enviou o manual de instruções onde consta que antes de reabastecer deve aguardar-se cinco minutos para o queimador arrefecer e que o mesmo nunca pode ter a chama acesa quando é reacendido. Tal consta das instruções e foi explicado aos AA pelo que postula que a causa do incêndio só pode ter sido uma de duas: ou a chama não estava completamente extinta ou o queimador não estava totalmente apagado, já que a mesma foi bem instalada. Conclui assim pela ausência de responsabilidade da sua parte, e pela condenação dos AA como litigantes de má fé.
Teve lugar despacho saneador e procedeu-se à realização de perícia à lareira a qual consta dos autos.
Procedeu-se a audiência de discussão e julgamento, com observância do legal formalismo.
Seguidamente foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
"Por todo o exposto o tribunal julga a presente ação improcedente e em consequência absolve a R. do pedido.
Custas a cargo dos AA Registe e notifique."
Inconformados, os Autores intentaram recurso de apelação, em cujas alegações apresentaram as seguintes conclusões:
"Conclusões:
1.ª No passado dia 13 de Setembro de 2019 os ora Recorrentes instauraram contra a Recorrida uma Acção Declarativa de Condenação, sob a Forma de Processo Comum peticionando o pagamento de indemnização por danos causados por incêndio deflagrado em lareira de bioetanol vendido pela Recorrida.
2.ª O incêndio ocorreu na noite de 24 de Dezembro de 2018 e destruiu completamente a casa habitada pelos Recorrentes e bem assim todos os seus bens que ali se encontravam.
3.ª Entendeu o Tribunal "a quo" que face à prova produzida em sede de Audiência e Discussão de Julgamento a Recorrida não teria qualquer responsabilidade pelo ressarcimento de tais danos.
4.ª Entende o Tribunal a quo que a acção interposta contra a Recorrida haveria de o ter sido contra o produtor da referida lareira pois que "a R. poderia ser responsável por um defeito de funcionamento na lareira (podendo o consumidor, ora AA demandar a R. ou o produtor) ou pela inadequada instalação. Mas nenhuma destas situações ocorreu. Donde, pelo facto de as instruções serem inadequadas, incompletas, e poderem conduzir a falta de segurança como sucedeu apenas o produtor pode ser responsabilizado. Devia, pois, a ação ter sido intentada contra o fabricante da lareira e não contra o vendedor.", pois que não se trata de um produto defeituoso e por esse motivo entendeu que a Recorrida não tem qualquer responsabilidade pelos danos causados pela lareira.
5.ª Não obstante, a verdade é que quem partilhou as regras de segurança da lareira, ie, manual de instruções, que ocasionou o dano foi a Recorrida, sendo certo que tais regras de segurança têm aposto o logótipo da Recorrida.
6.ª Não só o manual de instruções foi entregue pela Recorrida, como ainda as regras de segurança foram explicadas pela Recorrida.
7.ª Os Recorrentes desconhecem em absoluto quem seja o produtor da lareira, porque nunca tal informação é veiculada pela Recorrida, impossível seria concretizar um pedido de indemnização contra quem se desconhece, de acordo com as regras gerais do direito.
8.ª Por outro lado, se o Tribunal a quo entende que os Recorrentes poderiam responsabilizar o produtor por ser este quem cria as regras de segurança para utilização da lareira em causa, fácil seria considerar que sendo a Recorrida a criar tais regras de segurança seja esta a responsável pelos danos causados pela lareira, pois que em momento algum do processo a Recorrida refere que não criou as normas de segurança.
9.ª Entende o Tribunal a quo que (1) as condições que constam do manual de instruções e não as que deveriam constar, (2) cumpre notar que os AA foram diligentes. Fizeram exatamente o que consta das instruções de segurança, a fls. 66v a 68. E o que consta das mesmas?! Muito pouco ou quase nada. Refere que a chama deve estar apagada e esperar cerca de cinco minutos para o queimador arrefecer.
Ora, as instruções deviam dizer para fechar a portinhola antes de reacender. É certo que afirmam que para apagar a chama deve ser fechado o manipulo de fecho metálico. Mas nunca dizem que tal deve ser feito antes de reacender.
(3) Na verdade, é o manual de instruções que está incorreto. A lareira é comercializada com essas instruções mas tudo quanto o relatório pericial indica que deve ser feito para evitar a explosão, e que aponta como causa da mesma não consta das instruções. Esperar mais tempo para o queimador arrefecer (posto que se os índices de radiação de calor forem elevados pode despoletar uma explosão), ou ter a certeza que a chama está apagada, embora não seja visível, o que só sucede fechando a portinhola e aguardando uns minutos.
As instruções nunca o referem. Uma chama apagada não equivale a não se ver uma chama. E não é exigível que quem tem a lareira vá espreitar para o interior da mesma (pondo a cabeça num local quente) para se assegurar que inexiste chama. Devia, pois, a dita portinhola, ou fecho de metal, constar das instruções de segurança como sendo necessário ser corrido e aguardar-se o arrefecimento."
10.ª Perante esta factualidade exposta pelo Tribunal a quo, não se entende como não foi a Recorrida condenada no pagamento da indemnização peticionada porquanto resulta provado que foi a Recorrida quem entregou o manual de instruções aos Recorrentes e que lhes explicou as normas de segurança constantes de um "manual de instruções que está incorrecto" (sic).
11.ª Tribunal a quo entende ainda que a acção haveria de proceder pois que os Recorrentes "alegaram ainda que não tinha qualquer mecanismo que permitisse o corte automático de combustível. Mas tinha."
12.ª Sucede que a lareira dos autos não tem qualquer mecanismo automático de corte de combustível, e aliás, quanto a este a sentença também se pronuncia dizendo "É certo que afirmam que para apagar a chama deve ser fechado o manipulo de fecho metálico. Mas nunca dizem que tal deve ser feito antes de reacender.", pelo que a sentença recorrida andou mal neste particular
13.ª Na senda perfilhada pelo douto Tribunal a quo no que concerne ao direito do consumidor, sempre seria necessário percorrer o conceito de produto seguro, chamando aqui à colação o disposto no artigo 3°, als. a), b), c) e j), do Decreto-Lei n.º 69/2005, em que se concretizam algumas definições que ajudam a integrar este conceito, nomeadamente «Produto seguro» qualquer bem que, em condições de utilização normais ou razoavelmente previsíveis, incluindo a duração, se aplicável a instalação ou entrada em serviço e a necessidade de conservação, não apresente quaisquer riscos ou apresente apenas riscos reduzidos compatíveis com a sua utilização e considerados conciliáveis com um elevado nível de protecção da saúde e segurança dos consumidores (...)
14.ª Nos termos do artigo 4.- do Decreto-Lei n.º 383/89, n.º 1 - Um produto é defeituoso quando não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar, tendo em atenção todas as circunstâncias, designadamente a sua apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita e o momento da sua entrada em circulação."
15.ª Produto defeituoso é aquele que não apresenta a segurança com que legitimamente se pode contar. O que significa que essa segurança tem de ser a legitimamente esperada, e, por outro lado, que ela varia também em função de múltiplas e heterogéneas circunstâncias, como é o exemplo das referidas no relatório de peritagem, ie, a temperatura da sala onde se encontra a lareira instalada, realidade que nunca constou das medidas de segurança da lareira ou sequer foi referido aquando da sua venda ou instalação.
16.ª Deverão ser tidos em conta comportamentos razoavelmente previsíveis relacionados com o seu uso incorreto, desvios ou abusos, principalmente, quando esses produtos se destinam a um público inexperiente, cuja probabilidade de existir um uso incorreto é mais elevada.
17.ª Não obstante, e como resulta provado dos autos a Recorrida, aquando da venda e instalação da lareira que provocou os danos sub judice informou que a mesma era segura e que os Recorrentes deveriam apenas aguardar pelo menos 5 minutos antes de reacender a dita lareira.
18.ª A falta de segurança integra uma vertente objetiva consubstanciada na aptidão do bem para causar danos e outra subjetiva reflectida nas expetativas legitimas do consumidor, sendo em função desses aspetos que se há-de concluir se um produto é seguro ou, pelo contrário, é defeituoso (id não seguro).
19.ª Pelo que limitar-se a responsabilização de falta de segurança ao produtor, é negar ao consumidor a indemnização a que tem direito.
20.ª Efectivamente, quem vendeu a lareira aos Recorrentes foi a Recorrida; quem instalou a lareira foi a Recorrida; quem explicou as medidas de segurança aos Recorrentes foi a Recorrida.
21.ª Equivale isto a dizer que na relação material controvertida os Recorrentes desconhecem in totum quem seja tal produtor pois que nunca de tal foram informados.
22.ª Aliás, mesmo quando após o incêndio indagaram junto da Recorrida se a mesma teria algum tipo de seguro que pudesse ser accionado, não existiu qualquer resposta o que é desde logo revelador de que a Recorrida não pretendia dar a conhecer qualquer detalhe sobre a problemática gerada pela lareira.
23.ª E suma, os Recorrentes, na relação comercial que existiu e foi estabelecida, apenas conhecem a Recorrida como responsável pelos danos causados pela lareira.
24.ª O artigo 89 da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho incumbe o fornecedor de informar o consumidor de forma clara, objectiva e adequada, nomeadamente, as características principais dos bens ou serviços (nº 1 a)).
25.ª Ora, como resulta dos autos, as informações prestadas pelo Recorrida (fornecedora do bem) são quase nenhumas. Circunstancialismos esse que demonstra que mais uma vez andou mal o Tribunal "o quo", apesar do devido respeito, na interpretação do direito e da prova produzida e consequente aplicação ao caso dos autos.
26.ª Face aos factos supra expostos não devem restar dúvidas à Vossa mui distinta apreciação e, em resultado do mesmo, deve («dever-ser») ser dada uma resposta positiva ao presente caso sub judice de acordo e em respeito à validade do ius;
27.ª Se o Tribunal a quo entende que a falta de informação sobre medidas de segurança e modo de funcionamento da lareira é fundamento para indemnização, então, atendendo a que foi a Recorrida quem prestou tais informações, foi a recorrida quem procedeu à instalação da lareira e foi a recorrida quem forneceu o manual de instruções que inclusivamente tem o logótipo desta, deve a Recorrida ser condenada no pagamento da indemnização peticionada.
Assim nestes termos e nos melhores de Direito aplicáveis, e sempre com o mui douto suprimento de Vossas Excelências, dever ser dado provimento ao presente recurso e em consequência ser revogada a decisão recorrida, concluindo-se como no petitório.
Fazendo-se desse modo a já acostumada e sã Justiça!"
A Ré contra-alegou, concluindo nos seguintes termos:
"CONCLUSÕES:
A. Os Autores/Recorrentes interpõe recurso da decisão da primeira instância, pedindo que esta seja revogada e substituída por outra que dê provimento ao pedido por si formulado.
B. Os Recorrentes fundamentam o seu pedido, essencialmente, nas questões:
a. Quem partilhou as regras de segurança da lareira, e o respetivo manual de instruções, que ocasionou o dano foi a Ré/Recorrida (doravante Recorrida), sendo que tais regras de segurança têm aposto o logótipo da Recorrida;
b. O manual de instruções foi entregue pela Recorrida, e as regras de segurança foram explicadas aos Recorrentes pela Recorrida;
c. Os Recorrentes desconhecem em absoluto quem seja o produtor da lareira;
d. Em momento algum do processo a Recorrida refere que não criou as normas de segurança;
e. A Recorrida, aquando da venda e instalação da lareira que provocou os danos sub judice informou que a mesma era segura e que os Recorrentes deveriam apenas aguardar pelo menos cinco minutos antes de reacender a dita lareira; f. Quem vendeu a lareira aos Recorrentes foi a Recorrida; quem instalou a lareira foi a Recorrida; quem explicou as medidas de segurança aos Recorrentes foi a Recorrida.
g. Os Recorrentes, na relação comercial que existiu e foi estabelecida, apenas conhecem a Recorrida como responsável pelos danos causados pela lareira;
h. Se o Tribunal a quo entende que a falta de informação sobre medidas de segurança e modo de funcionamento da lareira é fundamento para indemnização, então, atendendo a que foi a Recorrida quem prestou tais informações, quem procedeu à instalação da lareira, e quem forneceu o manual de instruções que inclusivamente tem o logótipo desta, deverá a Recorrida ser condenada no pagamento da indemnização peticionada.
C. Ora, nunca foi matéria controvertida que a Recorrida é apenas comerciante do produto em causa (a lareira) e não a sua fabricante.
D. Não sendo a produtora da lareira, a Recorrida não "inventou" as medidas se segurança nem escreveu o manual de instruções dos produtos que comercializa, uma vez que nem o poderia fazer, não tendo direto conhecimento de como os referidos produtos são fabricados.
E. A Recorrida limita-se a vender um produto que é fabricado por outrem e a reproduzir as regras de segurança que lhe são transmitidas pelo produtor.
F. O desconhecimento do produtor por parte dos Recorrentes não releva para os efeitos de imputar à Recorrida responsabilidade pelos danos causados pela lareira em causa.
G. A Recorrida vendeu aos Recorrentes um produto funcional, sem defeitos, tendo a sua instalação sido levada a cabo corretamente.
H. O acidente ocorrido deveu-se a um erro de utilização do produto por parte dos Recorrentes.
I. Ainda que admitindo que o manual de instruções se encontra omisso relativamente às normas de segurança que podiam ter prevenido o ocorrido, tal omissão não pode ser imputada à Recorrida, pois, reitera-se, esta apenas se limita a transmitir aos seus clientes a informação que lhe foi passada pelo fabricante/produtor da lareira em causa.
J. Assim, e como defende (e bem) o Tribunal a Quo: "O art.º 12º da lei de defesa do consumidor (Lei nº 24/96, de 31 de Julho, com as suas diversas alterações) estatui que: 1- O consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos. 2- O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos de produtos que coloque no mercado, nos termos da lei.
Há assim uma responsabilidade objetiva do produtor, independentemente da culpa desde que o produto seja defeituoso.".
K. Resulta também dos artigos 6.º e 7.º do DL n.º 84/2021, de 18 de Outubro, aplicados in casu, que a lareira não pode ser considerada como "coisa defeituosa" para efeitos de responsabilidade do vendedor e ao abrigo da lei do consumidor, uma vez que a mesma não sofre de qualquer vicio que a desvalorize, nem impede a realização do fim a que se destina, e tem as qualidades asseguradas pelo vendedor (a aqui Recorrida) e necessárias para a realização do fim a que se destina.
L. Assim, considerando os dois diplomas mencionados, a Recorrida apenas poderia ser responsável por um defeito de funcionamento na lareira (podendo o consumidor, ora AA demandar a R. ou o produtor) ou pela inadequada instalação, sendo que da prova produzida resultou que nenhuma destas situações aconteceu.
M. O que aconteceu foi que, pelo facto de as instruções serem inadequadas, incompletas, e poderem conduzir a falta de segurança como sucedeu, apenas o produtor pode ser responsabilizado.
N. Nestes termos, devia a ação ter sido intentada contra o fabricante da lareira e não contra o vendedor (a aqui Recorrida).
O. Motivos pelos quais não assiste qualquer razão aos Recorrentes, devendo manter-se a decisão recorrida, na sua totalidade.
Termos em que e por tudo o mais que V. Exas. doutamente suprirão, deve o recurso ser julgado improcedente, confirmando-se na íntegra a decisão recorrida, fazendo-se assim a tão acostumada JUSTIÇA."
O recurso foi admitido como apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito devolutivo.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
II - OBJECTO DO RECURSO:
Segundo as conclusões formuladas nas alegações dos recorrentes, é a seguinte a questão a apreciar no âmbito do recurso:
Aferir se a sentença recorrida enferma de erro na análise da responsabilidade da
ré/recorrida pelos prejuízos sofridos pelos autores/recorrentes.
*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO:
O tribunal de 1§ instância considerou provada a seguinte factualidade:
"1. Os Autores são casados entre si, desde 28/09/2013;
2. Os Autores têm um filho, nascido em 30/05/2015;
3. Por contrato celebrado em 25/02/2015, os Autores tomaram em arrendamento o imóvel sito na Rua … -  l.º Dto., Lisboa, freguesia de Alcântara, concelho de Lisboa, inscrito na respectiva matriz sob o art.º 2208, e descrito na 6ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa com o nº 618;
4. A R. vendeu uma lareira de bioetanol, modelo cronos, de exposição, que foi instalada na casa dos AA supra referida, em data concretamente não apurada mas que se situa entre o dia 17 e o dia 19 de dezembro de 2019;
5. Os AA sabiam que a lareira era de exposição e pretenderam a mesma;
6. Os AA sabiam que para reabastecer de combustível a lareira, a chama tinha de estar apagada, e esperarem cerca de cinco minutos para reacender após o queimador ter sido apagado;
7. Tal consta das informações manual de instruções e segurança que a R. enviou aos AA e que consta de fls. 66v a 69 dos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido, e que estes leram;
8. A lareira foi corretamente instalada na casa dos AA, pelo legal representante da R., não tendo a instalação sido a origem da explosão;
9. No dia 24 de Dezembro de 2018, véspera de Natal, e na companhia do seu filho de três anos, sogros e pais (respetivamente), cunhados e irmã e marido (respetivamente) e sobrinha,
10. Ao reabastecer a lareira pela segunda vez nesse dia, e já momentos após o apagar da chama da lareira, a qual à vista desarmada afigurava-se apagada, o Autor ouviu um estalo e de imediato uma bola de fogo saltou em direção à sua face;
11. A lareira tinha extinguido a chama momentos antes, tendo inclusivamente o sogro e pai dos Autores, respetivamente, informado que "o lume estava apagado".
12. Assim, o Autor terminou a preparação do jantar do seu filho; deu o jantar ao seu filho e posteriormente tentou reabastecer o depósito;
13. Atendendo ao risco criado pela bola de fogo na cara do Autor, de imediato o Autor afastou-se tentando proteger a cara.
14. Contudo, dado que a bomba de sucção utilizada para o reabastecimento continuou ligada, atendendo ao risco real e imediato de que o Autor tentou proteger-se, o líquido combustível caiu no chão tendo a chama "agarrado" o líquido combustível utilizado para atestar a lareira em crise;
15. O locado incendiou-se, tendo a sala e hall de entrada ficado totalmente destruídos, e os quartos, casas-de-banho e cozinha, parcialmente destruídos;
16. Todos os bens pertencentes aos Autores ficaram totalmente destruídos ou inutilizados;
17. A irmã da Autora tentou ainda apagar o fogo que de imediato deflagrou no chão, mas o único resultado obtido foi queimadura de grau 2;
18. A mãe da Autora, doente oncológica desde Abril de 2018, teve de interromper os tratamentos entre 26 de Dezembro de 2018 e 16 de Janeiro de 2019, fruto de uma pneumonia diagnosticada em 9 de Janeiro de 2019, no decurso de tosse com expetoração que iniciou em 26 de Dezembro de 2018, sendo a pneumonia decorrente dos fumos inalados e de terem de sair do imóvel com a roupa que tinham vestida na noite de natal para fugir do fogo;
19. A noite de natal foi passada no hospital e ambulância, sendo que durante muito tempo os AA e o seu filho menor não dormiram e viveram momentos de angústia e perturbação durante os tempos seguintes;
20. O interior do imóvel ficou todo destruído, assim como a decoração e mobiliário, em valor concretamente não apurado, e que se cifra entre €2.964,76 e €38.572,17;
21. Nas lareiras como as dos AA existe uma portinhola que fechando impede a circulação de ar e faz extinguir a chama."
E considerou não provada a seguinte factualidade:
"De relevo para a decisão a causa ficaram por provar os demais factos e nomeadamente que:
1. Aos AA foi dito, como norma de segurança, apenas que deviam ter cuidado com os brinquedos poderem ser atirados para a lareira;
2. A lareira foi instalada incorretamente com inclinação para um dos lados da lareira;
3. A lareira foi utilizada nos dias 20, 21, 23 e 24 de Dezembro de 2018.
4. Durante a utilização da lareira, o consumo do combustível foi feito até o depósito da lareira estar totalmente vazio, tal como o sobredito técnico indicou aos Autores;
5. Desde a sua instalação, a lareira foi usada duas vezes por dia, sempre com reposição do combustível após total extinção da chama, o que pressupunha que o combustível anteriormente depositado estaria totalmente ardido;"
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO:
Na sentença recorrida julgou-se a ação improcedente, por se ter considerado que a R. poderia ser responsável por um defeito de funcionamento na lareira que vendeu aos AA (podendo o consumidor, ora AA, demandar a R. ou o produtor) ou pela sua inadequada instalação, mas que nenhuma destas situações ocorreu. E que pelo facto de as instruções de segurança constantes do manual de instruções serem inadequadas, incompletas, e poderem conduzir a falta de segurança, como sucedeu, apenas o produtor, e não o vendedor, pode ser responsabilizado.
Concretamente, refere-se na sentença, entre o mais, que:
"(...) Ora, cremos que podemos dar por seguro, até pela prova pericial realizada, que a lareira não tinha qualquer defeito de fabrico, nem qualquer incorreção na sua montagem. Estava, pois, como é anunciada a venda.
Postula a R. que os AA a utilizaram mal pois a explosão só pode ter ocorrido por terem reacendido a lareira quando a chama não estava totalmente extinta ou o queimador totalmente apagado.
O que se prova porém, neste tocante, é que à vista desarmada a chama estava apagada.
Ora, analisada toda a prova o tribunal concluiu que não existiu culpa por parte da R., já que a lareira que vende não tinha defeito, nem erro de colocação. Não existiu culpa por parte dos AA na sua utilização na medida em que apenas procederam ao reacendimento quando não havia chama visível e decorrido bem mais do que cinco minutos.
Donde a questão permanece. De quem é a responsabilidade do sucedido?
E cremos que seja de quem constrói lareiras sem que permitam que tais situações ocorreram sem que advirta dos cuidados que devem existir.
É que veja-se. Não se põe em causa a segurança das lareiras. Elas são vendidas e continuam a ser comercializadas no mercado, seja este modelo ou outro, mas continuam a existir lareiras de bioetanol como um produto seguro posto que é testado e sujeito a normas de segurança.
Postulam os AA que a lareira deveria dispor de um mecanismo de corte automático de combustível. Mas apurou-se que o tem. A lareira tem uma portinhola que após fechada impede a circulação de ar e nessa medida faz extinguir por completo a chama. No caso em apreço, ou os AA não a fecharam, ou após fecharem não aguardaram o tempo suficiente para o efeito. Porém nada é alegado quanto a esta.
O relatório pericial apresenta duas hipóteses possíveis para o sucedido: (fls. 139) O abastecimento de combustível quando ainda havia chama apesar de pouco visível, ou o abastecimento quando já não havia chama mas tinha ainda elevados índices de radiação de calor.
Tudo sopesado, entre a prova pericial, e o que se logrou demonstrar e o ónus probatório, temos por certo que os AA não lograram demonstrar a sua pretensão. Cabia-lhes provar que a lareira funcionava mal, tinha algum defeito que tivesse conduzido ao sucedido, que tinha sido mal instalada. Mas não o fizeram. Alegaram ainda que não tinha qualquer mecanismo que permitisse o corte automático de combustível. Mas tinha. E nessa medida, em termos jurídicos parece-nos claro que a pretensão dos AA tem de improceder.
Mas uma explicação impõe-se posto que o direito não consiste numa aplicação cega da lei. E essa explicação deriva do facto de estarmos em crer que o que sucedeu foi o facto de a explosão ter ocorrido porque ainda havia chama, embora não à vista desarmada (na parte de baixo da lareira pode haver chama e a mesma não ser visível) e esta ter demorado a extinguir-se, ou mesmo, de o queimador estar ainda excessivamente quente, tal como refere o relatório pericial.
No entanto, cumpre notar que os AA foram diligentes. Fizeram exatamente o que consta das instruções de segurança, a fls. 66v a 68. E o que consta das mesmas?! Muito pouco ou quase nada. Refere que a chama deve estar apagada e esperar cerca de cinco minutos para o queimador arrefecer.
Ora, as instruções deviam dizer para fechar a portinhola antes de reacender. É certo que afirmam que para apagar a chama deve ser fechado o manipulo de fecho metálico. Mas nunca dizem que tal deve ser feito antes de reacender.
Na verdade, é o manual de instruções que está incorreto. A lareira é comercializada com essas instruções, mas tudo quanto o relatório pericial indica que deve ser feito para evitar a explosão, e que aponta como causa da mesma não consta das instruções. Esperar mais tempo para o queimador arrefecer (posto que se os índices de radiação de calor forem elevados pode despoletar uma explosão), ou ter a certeza que a chama está apagada, embora não seja visível, o que só sucede fechando a portinhola e aguardando uns minutos.
As instruções nunca o referem. Uma chama apagada não equivale a não se ver uma chama. E não é exigível que quem tem a lareira vá espreitar para o interior da mesma (pondo a cabeça num local quente) para se assegurar que inexiste chama. Devia, pois, a dita portinhola, ou fecho de metal, constar das instruções de segurança como sendo necessário ser corrido e aguardar-se o arrefecimento.
Mas não sucede.
E a questão que se coloca é que a R. limita-se a vender um produto que não produz. É o produtor, fabricante que tem a responsabilidade de efetuar um produto seguro e assegurar- se que as normas de segurança possam ser observadas. Ou seja, no limite cremos que os AA, mesmo que tivessem reacendido a lareira com chama mas não visível, sempre poderiam pedir responsabilidades ao fabricante na medida em que as instruções nunca referem que devem fechar o mecanismo de segurança (a portinhola ou manipulo de fecho metálico) e que devem aguardar o total arrefecimento do queimador que consoante a temperatura da sala ou do tempo de uso da lareira pode ainda estar muito quente (na senda do relatório pericial). Mas não podem é pedir que a R. seja responsabilizada por um produto que apenas comercializa. (...)"
Os recorrentes refutam tal entendimento, com base, em síntese, nos seguintes argumentos (cf. conclusões do recurso):
- Quem partilhou/explicou as regras de segurança da lareira, e entregou o respetivo manual de instruções, que ocasionou o dano foi a Ré/Recorrida, sendo que tais regras de segurança têm aposto o logótipo da Recorrida;
- Os Recorrentes desconhecem em absoluto quem seja o produtor da lareira.
- Os Recorrentes, na relação comercial que existiu e foi estabelecida, apenas conhecem a Recorrida como responsável pelos danos causados pela lareira.
- Em momento algum do processo a Recorrida refere que não criou as normas de segurança;
- A Recorrida, aquando da venda e instalação da lareira que provocou os danos sub judice informou que a mesma era segura e que os Recorrentes deveriam apenas aguardar pelo menos cinco minutos antes de reacender a dita lareira;
- Quem vendeu a lareira aos Recorrentes foi a Recorrida; quem instalou a lareira foi a Recorrida; quem explicou as medidas de segurança aos Recorrentes foi a Recorrida.
- Se o Tribunal a quo entende que a falta de informação sobre medidas de segurança e modo de funcionamento da lareira é fundamento para indemnização, então, atendendo a que foi a Recorrida quem prestou tais informações, quem procedeu à instalação da lareira, e quem forneceu o manual de instruções que inclusivamente tem o logótipo desta, deverá a Recorrida ser condenada no pagamento da indemnização peticionada.
A recorrida discorda, entendendo, em síntese, que se limita a vender um produto que é fabricado por outrem e a reproduzir as regras de segurança que lhe são transmitidas pelo produtor.
Está, pois, em causa no recurso aferir se a recorrida pode ser responsabilizada em função das deficientes ou incompletas instruções de segurança fornecidas aos AA relativamente à lareira vendida pela recorrida e instalada em casa dos AA.
Para tanto importa recorrer, antes de mais, à Lei de Defesa do Consumidor (Lei 24/96 de 31/07).
Nos termos do art.º 3º al. a) de tal Lei, o consumidor tem direito à qualidade dos bens e serviços.
Esse direito à qualidade dos bens e serviços encontra-se expressamente regulado no art.º 4º, no qual se prescreve que: "Os bens e serviços destinados ao consumo devem ser aptos a satisfazer os fins a que se destinam e a produzir os efeitos que se lhes atribuem, segundo as normas legalmente estabelecidas, ou, na falta delas, de modo adequado às legítimas expectativas do consumidor."
Por sua vez, o artigo 12.º, com a epígrafe "Direito à reparação de danos" prescreve que:
"1 - O consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes do fornecimento de bens ou prestações de serviços defeituosos.
2 - O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos de produtos que coloque no mercado, nos termos da lei."
O D.L. 383/89 de 6/11, diploma que transpõe para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 85/374/CEE, do Conselho, de 25 de Julho de 1985, relativa à aproximação das disposições legislativas, regulamentares e administrativas dos Estados membros em matéria da responsabilidade decorrente de produtos defeituosos, tem no seu art.º 1º, com a epígrafe "Responsabilidade objectiva do produtor", norma idêntica à que consta no art.º 12 nº 2 da Lei de Defesa do Consumidor.
É o seguinte o teor do referido art.º 1º do D.L. 383/89: "O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação."
Acrescenta-se no art.º 2º, com a epígrafe" Produtor" que:
"1 - Produtor é o fabricante do produto acabado, de uma parte componente ou de matéria-prima, e ainda quem se apresente como tal pela aposição no produto do seu nome, marca ou outro sinal distintivo.
2 - Considera-se também produtor:
a) Aquele que, na Comunidade Económica Europeia e no exercício da sua actividade comercial, importe do exterior da mesma, produtos para venda, aluguer, locação financeira ou outra qualquer forma de distribuição;
b) Qualquer fornecedor de produto cujo produtor comunitário ou importador não esteja identificado, salvo se, notificado por escrito, comunicar ao lesado no prazo de três meses, igualmente por escrito, a identidade de um ou outro, ou a de algum fornecedor precedente."
E no art.º 3º nº 1 que: "Entende-se por produto qualquer coisa móvel, ainda que incorporada noutra coisa móvel ou imóvel."
Por sua vez, o art.º 4º, com a epigrafe "Defeito", consigna que:
"1 - Um produto é defeituoso quando não oferece a segurança com que legitimamente se pode contar, tendo em atenção todas as circunstâncias, designadamente a sua apresentação, a utilização que dele razoavelmente possa ser feita e o momento da sua entrada em circulação."
A propósito de tal noção de defeito, impõe-se também apelar ao disposto no DL 69/2005 de 17 de Março, que transpôs para a ordem jurídica nacional a Directiva n.º 2001/95/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 3 de Dezembro, relativa à segurança geral dos produtos.
Nesse diploma, mais especificamente no art.º 3º al. b), encontramos a definição de Produto Seguro como sendo: "qualquer bem que, em condições de utilização normais ou razoavelmente previsíveis, incluindo a duração, se aplicável a instalação ou entrada em serviço e a necessidade de conservação, não apresente quaisquer riscos ou apresente apenas riscos reduzidos compatíveis com a sua utilização e considerados conciliáveis com um elevado nível de protecção da saúde e segurança dos consumidores, tendo em conta, nomeadamente:
i) As características do produto, designadamente a sua composição;
ii) A apresentação, a embalagem, a rotulagem e as instruções de montagem, de utilização, de conservação e de eliminação, bem como eventuais advertências ou outra indicação de informação relativa ao produto;
iii) Os efeitos sobre outros produtos quando seja previsível a sua utilização conjunta;
iv) As categorias de consumidores que se encontrarem em condições de maior risco ao utilizar o produto, especialmente crianças e os idosos".
E de produto perigoso como "qualquer bem não abrangido pela definição de «produto seguro» a que se refere a alínea b)".
Da concatenação destas normas resulta que o defeito de um produto, por não oferecer a segurança com que legitimamente se pode contar, pode derivar da forma como o produto é colocado em circulação, designadamente da forma como é apresentado, e das instruções e avisos que o acompanhem.
E existindo defeito do produto por não oferecer a segurança com que legitimamente se pode contar, o produtor responde pelos danos decorrentes de tal defeito.
Não se pode contudo restringir a figura do produtor ao fabricante do produto, pois conforme resulta do art.º 2º do DL 383/89 supra indicado, para este efeito, produtor é não só o fabricante do produto (ainda que só de uma parte componente ou de matéria- prima) mas também quem se apresente como tal pela aposição no produto do seu nome, marca ou outro sinal distintivo; e ainda aquele que, na Comunidade Económica Europeia e no exercício da sua atividade comercial, importe do exterior da mesma produtos para venda, aluguer, locação financeira ou outra qualquer forma de distribuição, ou qualquer fornecedor de produto cujo produtor comunitário ou importador não esteja identificado, salvo se, notificado por escrito, comunicar ao lesado no prazo de três meses, igualmente por escrito, a identidade de um ou outro, ou a de algum fornecedor precedente.
Ora, no caso dos autos, verificamos que a Recorrida foi quem vendeu o produto (lareira) aos recorrentes e quem lhes transmitiu as respetivas instruções de segurança (Manual e Instruções de Segurança), as quais foram juntas aos autos com a contestação e dadas como reproduzidas na matéria de facto provada.
E tais instruções, tal como bem referem os recorrentes, contêm o logotipo da recorrida (não contendo qualquer referência a outra qualquer entidade), que assim sendo se apresenta como produtora do bem nos termos e para os efeitos do art.º 2º nº 1 do DL 383/89 de 6/11, sendo certo que em momento algum do processo identificou qualquer outro produtor, como também referem os recorrentes.
Assim sendo, não pode a recorrida eximir-se à responsabilidade decorrente do defeito da lareira, ainda que tal defeito se reporte a deficiências/ omissões das respetivas instruções de segurança, por se enquadrar na noção de produtora instituída pelo DL383/89 de 6/11.
Trata-se de uma responsabilidade objetiva, ou seja, que dispensa a culpa.
Continua, todavia, para os efeitos do art.º 1º do DL 383/89 supra indicado, o lesado a ter que demonstrar, para além do defeito do produto, os danos e o nexo de causalidade entre o defeito e os danos.
In casu, conforme resulta da matéria provada, os recorrentes, aquando do reabastecimento da lareira, observaram as instruções de segurança que lhes foram transmitidas pela recorrente e ainda assim saltou da lareira uma bola de fogo, o que demonstra a incompletude/incorreção das referidas instruções de segurança, na medida em que não se apurou qualquer especifico defeito de funcionamento/fabrico da lareira. Ou seja, no momento do seu reabastecimento, a lareira não ofereceu a segurança que legitimamente seria de esperar de tal produto em condições normais de utilização, condições que se prendem com a observância das instruções de segurança que foram transmitidas.
Veja-se que o relatório pericial de 26.11.2021 junto aos autos recomenda que durante o processo de promoção e venda dos produtos, e na elaboração de manuais de segurança dos mesmos se destaque o mais possível a necessidade de existir um hiato temporal entre reabastecimentos nunca inferior a 20 minutos, no sentido de um reforço dos avisos de segurança.
Do defeito inerente às instruções de segurança relativas à operação de reabastecimento da caldeira decorreram para os AA danos materiais e morais descritos nos pontos da matéria provada, existindo nexo de causalidade adequada entre a incompletude/incorreção das instruções de segurança e tais danos, na medida em que não existindo informação suficiente sobre todos os cuidados necessários a evitar situações como a que ocorreram, é adequado o nexo de causalidade entre a referida insuficiência de informação e os danos.
A este propósito do nexo de causalidade, e sobre situação equivalente, veja-se o Ac. do STJ de 14.03.2019 proferido no Processo 2411/10.4TBVIS.C1.S1, cujo sumário se passa a reproduzir:
"I - Elemento constitutivo da responsabilidade civil em geral é o nexo de causalidade entre o facto e o dano. No caso presente da responsabilidade do produtor, o nexo causal entre o defeito do produto e os danos vem enunciado expressamente no artigo 1º do DL 383/89, de 6 de Novembro, que prescreve: "O produtor é responsável, independentemente de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em circulação".
II - A fórmula usada no artigo 563º do Código Civil deve interpretar-se no sentido de que não basta que o evento tenha produzido (naturalística ou mecanicamente) certo efeito para que este, do ponto de vista jurídico, se possa considerar causado ou provocado por ele; para tanto, é necessário ainda que o evento danoso seja uma causa provável, como quem diz adequada desse efeito.
III - O autor, na acção de responsabilidade civil dirigida contra o produtor, com vista a obter ganho de causa, terá de alegar e provar os seus elementos constitutivos, a saber: os danos, os defeitos e o nexo causal entre estes e aqueles.
IV - Se, em relação aos danos e aos defeitos, a produção de prova cai no âmbito da normalidade, já a prova do nexo causal se apresenta, na maior parte das vezes, como sendo muito difícil: perante isso, as regras da experiência de vida, o id quod plerumque accidit e a teoria da causalidade adequada poderão permitir a preponderância da evidência, uma espécie de causalidade.
V - Constatando-se a existência de deficiências na rotulagem - desde logo, por não se encontrar redigida em língua portuguesa -, tal omissão há-de ter-se como causa adequada da omissão por parte da autora de comportamentos conformes à real perigosidade do produto, concluindo-se pela existência de nexo causal entre a informação deficitária constante do seu rótulo (aliada à falta de informação verbal aquando da venda por parte da Ré CC) e a projecção do produto sobre o corpo da autora aquando do manuseamento da embalagem por parte desta.
VI - Os defeitos de informação ou de instrução, resultantes do não cumprimento ou cumprimento imperfeito do dever de alertar, advertir ou instruir, são, pois, vícios extrínsecos, não ínsitos no produto, diferentemente dos defeitos de concepção e de fabrico que são vícios intrínsecos, inerentes à própria estrutura do produto (in re ipsa).
VII - Um produto que desrespeite alguma norma de segurança, nomeadamente por violação das regras de informação constantes da rotulagem, terá de presumir-se "defeituoso" para efeitos da responsabilidade objectiva do produtor.
VIII - Não existindo informação suficiente sobre a perigosidade do produto (a omissão das instruções em língua portuguesa tornam-na insuficiente, por dificultar a sua compreensão para o cidadão comum) e tendo o sinistro ocorrido "enquanto manuseava a embalagem do produto", é apropriado estabelecer um nexo de causalidade entre a falta de informação e os danos.
IX - A aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito". Por isso, se o STJ é chamado a pronunciar-se sobre o cálculo da indemnização que haja assentado decisivamente em juízos de equidade, não lhe compete a determinação exacta do valor pecuniário a arbitrar, mas tão-somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto."
A obrigação de indemnização prevista no art.º 1º do DL383/89 deverá ser fixada de acordo com o disposto no art.º 562º do CC, que dispõe que "Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação."
"São ressarcíveis os danos resultantes de morte ou lesão pessoal e os danos em coisa diversa do produto defeituoso, desde que seja normalmente destinada ao uso ou consumo privado e o lesado lhe tenha dado principalmente este destino" – art.º 8º do DL383/89.
"Os danos causados em coisas a que se refere o artigo anterior só são indemnizáveis na medida em que excedam o valor de (euro) 500 ou 100.241$00" -art.º 9º do DL383/89.
Os Autores sofreram os danos materiais descritos nos pontos 15,16, e 20 da matéria provada, tendo o incêndio destruído totalmente a sala e hall de entrada do locado, e parcialmente os quartos, casa de banho e cozinha, sendo que todos os bens pertencentes aos Autores ficaram totalmente destruídos ou inutilizados. O interior do imóvel ficou todo destruído, assim como a decoração e mobiliário, em valor concretamente não apurado, e que se cifra entre €2.964,76 e €38.572,17.
Ora, atenta esta falta de concretização do valor correspondente aos bens destruídos, impõe-se, de acordo com o disposto no art.º 609 nº 2 do CPC, a condenação da Ré/recorrida no pagamento do valor que vier a ser liquidado, dentro dos limites mínimo e máximo já fixados (€2.964,76 e €38.572,17, respetivamente).
Ao valor apurado deverá ser deduzido o montante de €500,00 que o art.º 9º do DL 383/89 considera como dano não indemnizável.
Relativamente aos danos morais, provou-se (ponto 19) que a noite de natal foi passada no hospital e ambulância, sendo que durante muito tempo os AA e o seu filho menor não dormiram e viveram momentos de angústia e perturbação durante os tempos seguintes.
O Art.º 496º do Código Civil prevê a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, e os danos sofridos pelos AA são inequivocamente merecedores dessa tutela.
Por outro lado, os danos morais não podem deixar de estar compreendidos nos danos resultantes de lesão pessoal referidos no art.º 8º do DL 383/89, já que o artigo não alude a lesão corporal, mas antes a lesão pessoal, abrangendo, em nosso entendimento, os danos sofridos pela pessoa na sua integralidade.
Para fixar a indemnização devida por danos morais impõe-se o recurso à equidade tendo em atenção os danos causados, o grau de culpa, a situação económica do lesante e do lesado e as demais circunstâncias do facto - art.º 496º nº lenº4e art.º 494º do Código Civil.
No caso dos autos, desconhecem-se as condições económicas dos AA/recorrentes bem como a situação financeira da sociedade Ré/recorrida.
Impõe-se, todavia, relevar que a responsabilidade desta é uma responsabilidade meramente objetiva.
Assim sendo, entende-se fixar a indemnização por danos morais em €10.000,00 (dez mil Euros) para cada Autor, no total de €20.000,00 (vinte mil Euros). Os danos sofridos pelo filho menor não podem ser considerados porque ele não é parte no processo, pois os pais apenas intentaram a ação em nome próprio, e não também em representação do filho menor. Também os danos sofridos por outros familiares dos AA não podem aqui ser relevados, porquanto os mesmos não são partes na ação.
Em face de todo o exposto, há que revogar a decisão recorrida e condenar a Ré a pagar os AA, a titulo de danos patrimoniais, o valor que vier a ser liquidado, correspondente à destruição do interior do imóvel, da decoração e mobiliário, e que se cifra entre €2.964,76 e €38.572,17, ao qual deverá ser deduzido o montante de €500,00 previsto no art.º 9º do já citado DL 383/89, com juros de mora legais desde a sua liquidação até integral pagamento, e ainda o valor de €20.000,00 (vinte mil Euros), com juros de mora legais desde a citação até integral pagamento - art.º 805º nº 3 do CC.
Consequentemente, fica prejudicada a apreciação do alegado erro da sentença relativamente à existência de um mecanismo que permitisse o corte automático de combustível.
De todo o modo, sempre se diga os AA/recorrentes invocaram que a lareira dos autos não tem qualquer mecanismo automático de corte de combustível, mas isso não consta da matéria provada, sendo certo que os recorrentes não impugnaram a decisão sobre a matéria de facto. Acresce que também não alegaram, e consequentemente não provaram, em que medida tal mecanismo poderia concretamente influir na segurança da operação de reabastecimento da lareira.
O recurso procede parcialmente.
As custas deverão ser suportadas por recorrentes e recorrida, na proporção do decaimento, relativamente à parte líquida da condenação (parte referente aos danos morais); e provisoriamente, em parte iguais, relativamente à parte ilíquida da condenação (parte referente aos danos patrimoniais), por aplicação dos princípios contidos no art.º 527º do CPC. Neste sentido veja-se o Ac. do STJ de 10.09.2020 proferido no Processo 1934/16.6T8VCT.G1.S1, que, por sua vez remete para o acórdão da Relação do Porto de 29.07.1982 in CJ IV/82. Pág. 227; veja-se ainda a anot. 9 ao art.º 527º no CPC Anotado cujos autores são António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta, e Luís Filipe Pires de Sousa, vol I, 3º ed., Almedina.
* * *
V- DECISÃO:
Pelo exposto acordam as Juízes desta 89 seção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar parcialmente procedente a apelação, e em consequência, revogam a sentença recorrida e condenam a Ré a pagar aos AA:
- a titulo de danos patrimoniais, o valor que vier a ser liquidado, correspondente à destruição do interior do imóvel, da decoração e mobiliário, e que se cifra entre €2.964,76 e €38.572,17, deduzido do valor de €500,00 a que alude o art.º 9º do DL383/89 de 06.11, com juros de mora legais desde a sua liquidação até integral pagamento;
- a título de danos morais, o valor de €20.000,00, com juros de mora legais desde a citação até integral pagamento.
Custas por recorrentes e recorrida, na proporção do decaimento, relativamente à parte líquida da condenação; e provisoriamente, em parte iguais, relativamente à parte ilíquida da condenação.
Notifique.

Lisboa, 22.10.2024
Carla Matos
Carla Figueiredo
Carla Mendes