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EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
LAPSO DE ESCRITA
RECTIFICAÇÃO
LAPSO MANIFESTO
DECISÃO
Sumário
(elaborado pela Relatora, nos termos do artigo 663, n.º 7, do Código de Processo Civil, doravante apenas CPC) I. O princípio da intangibilidade da decisão, consagrado no artigo 613º, n.º 1, do CPC, não é absoluto, conforme resulta do n.º 2 desse normativo, uma vez que é lícito ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos 614º a 616º do CPC; II. Os erros materiais da decisão, a que se alude no artigo 614º, n.º 1, do CPC, ocorrem quando há divergência entre a vontade declarada e a vontade real do juiz, ou seja, no caso em que o juiz tenha escrito uma coisa diferente daquela que queria, de facto, escrever; III. Esses erros materiais da decisão, passíveis de retificação nos termos do artigo 614º, n.º 1, CPC, são aqueles que ressaltam de forma clara e ostensiva do teor da própria decisão; IV. Não decorrendo da decisão proferida a existência de um erro ou lapso evidente, não pode a mesma ser retificada, dado tal importar uma alteração substancial do conteúdo da decisão. V. O despacho que proceda à alteração substancial do conteúdo de decisão anterior transitada em julgado deve ser revogado.
Texto Integral
Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa os Juízes Desembargadores abaixo identificados:
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I. Relatório:
AA (…) intentou ação executiva para pagamento de quantia certa contra BB (…).
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Em 12.10.2021, a Exequente requereu a cumulação sucessiva da execução pelo valor de 5.472,02 €, a qual foi admitida por despacho proferido em 11.11.2021.
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Na sequência desse requerimento, em 07.03.2022, o Executado deduziu oposição à execução mediante embargos (apenso C), os quais foram liminarmente recebidos.
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No âmbito da execução, conforme resulta do “Auto de Penhora” datado de 19.04.2022, foi efetuada a penhora da fração autónoma designada pela letra R, destinada a habitação, correspondente ao 4º andar A do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito (…), descrita na Conservatória do Registo Predial e Comercial da Amadora sob o n.º (…) da freguesia de Alfragide.
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Em 21.04.2022, o Executado deduziu incidente de prestação espontânea de caução (apenso D), formulando o seguinte pedido:
“Nestes termos e nos melhores de direito, que V.ª Ex.ª doutamente suprirá, requer-se que seja admitida a prestação espontânea de caução pelo Executado, mediante depósito em dinheiro, no valor de € 6.128,96 (seis mil, cento e vinte e oito euros e noventa e seis cêntimos), e consequentemente seja suspensa a execução, bem como ordenado o levantamento da penhora registado sobre o imóvel do Executado, constante do auto de penhora elaborado pela Senhora Agente de Execução em 19/04/2022.”
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Nesse incidente, em 09.06.2022, foi proferida a seguinte decisão:
“BB (…), veio, por apenso à acção executiva para pagamento de quantia certa instaurada por AA (…), deduzir incidente de prestação espontânea de caução, visando a suspensão da instância executiva à qual deduziu oposição, através de depósito autónomo, no valor da quantia exequenda, correspondente à quantia exequenda, juros de mora e custas prováveis. A exequente, notificada para o efeito, deduziu oposição, impugnando o valor que o executado pretende caucionar. * O Tribunal é competente. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias; ambas gozam de legitimidade. Não há excepções ou outras questões de que cumpra conhecer. * Nos termos do disposto no artigo 733.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil, o recebimento dos embargos de executado só suspende o prosseguimento do processo de execução quando o embargante prestar caução. No caso sub judice, o executado pretende oferecer como caução um depósito de dinheiro, no montante correspondente à quantia exequenda, juros de mora e custas prováveis, conforme indicado pela Sra. Agente de Execução. A caução é um meio de assegurar ou garantir o cumprimento de uma obrigação, e, no caso em apreço, visa suspender a execução, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 733.º do Código de Processo Civil. Enquanto tal, esse depósito, accionado se necessário, garantirá à exequente, a satisfação do seu crédito, deixando de haver justo receio da sua perda. Por outro lado, a forma de prestar a caução é idónea, nos termos do disposto no artigo 623.º n.º 1, do Código Civil. * Decisão: Pelo exposto, julgo o presente incidente procedente e, em consequência, julgo idónea a prestação de caução por parte do executado BB (…), mediante depósito em dinheiro, no valor de 6.019,22€, a prestar no prazo de 10 dias. Custas a cargo do requerente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC (art. 7.º, n.º 4 do Regulamento das Custas Judiciais). Registe e notifique.”
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O Executado procedeu ao depósito autónomo do valor 6.019,22, perante o que, em 23.06.2022, foi proferido o seguinte despacho:
“Julgo validamente prestada a caução. * Conclua nos autos de execução.”
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Em 27.06.2022 foi proferido no processo de execução o seguinte despacho:
“Tendo o executado requerido a prestação de caução e tal incidente sido julgado procedente e a caução validamente prestada, assim como foi admitida liminarmente a oposição à execução, determino a suspensão da presente execução, até ao termo dos autos de oposição à execução, de harmonia com o disposto no art. 733.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil. Dê conhecimento à Sra. Agente de Execução, a fim de diligenciar pelo levantamento da penhora em causa.”
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Desse despacho foi remetida notificação à Exequente e ao Executado em 28.06.2022.
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Em 08.07.2022, a Exequente apresentou o seguinte requerimento:
“AA (…), Exequente nos autos referenciados supra, (…), notificada do douto despacho de V. Exa. que, em face da apresentação de Caução por parte do Executado, decide pela suspensão da Execução e pelo levantamento da penhora, vem junto de V. Exa. apresentar reclamação do douto despacho, na parte em que ordena o levantamento da penhora, o que faz nos termos e fundamentos seguintes: A Exequente apresentou contestação à Oposição à penhora deduzida pelo Executado BB (…), no Apenso E, opondo-se ao levantamento da penhora sobre o bem imóvel. Pese embora a suspensão da execução seja uma consequência da prestação de caução, à qual a Exequente não se opõe, entende que a penhora deve ser mantida, tendo presente que já deu entrada nova cumulação à execução, receando a Exequente que o valor da caução prestada se revele insuficiente para cobrir a totalidade dos valores peticionados e demais encargos, incluindo os juros compulsórios e despesas com o processo. Nesta conformidade, entende a Exequente que deve manter-se a penhora que incide sobre a fração Autónoma designada pela letra “R”, correspondente ao 4º andar, letra A do prédio sito (…), descrito na Conservatória sob o nº (…) da freguesia de Alfragide, concelho de Amadora, e inscrita na respetiva matriz predial urbana sob o artigo (…) da mesma freguesia. Tanto mais que o Executado mantém o incumprimento reiterado das obrigações que assumiu contratualmente para com a Exequente, gerando novas dívidas que esta só terá possibilidade de ver salvaguardadas e pagas por via coerciva, nomeadamente por via da presente execução, recorrendo à sucessiva cumulação de execuções prevista no Artº 709º e 711º do Código de Processo Civil. Ora, permitir que, na sequência do levantamento da penhora, o Executado possa vender o imóvel sem acautelar devidamente o pagamento da totalidade dos créditos que a Exequente detém sobre o mesmo, lesa os interesses da Exequente e põe em causa o escopo da própria execução e penhora, resultando em prejuízo sério para a Exequente. Em face do exposto, requer a V. Exa. que ordene a manutenção da penhora sobre o imóvel até que o Executado pague a totalidade da dívida exequenda peticionada na presente execução e sucessivas cumulações. Confiada no mui douto suprimento de V. Exa.”
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Em 26.09.2022, perante esse requerimento, foi proferido o seguinte despacho:
“Reclamação de fls. 227-228: Compulsados os autos, verifica-se que o despacho que declarou suspensa a instância, por via da prestação de caução por parte do executado, padece de um lapso na parte em que se determinou o levantamento da penhora, porquanto tal levantamento não foi ordenado na sentença que julgou procedente a prestação de caução. Assim sendo, rectifica-se tal despacho, declarando-se não escrita a parte em que se ordena o levantamento da penhora (artigos 613.º, n.º 2 e 614.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil). Notifique e comunique.”
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Não se conformando com esse despacho, o Executado dele veio interpor recurso, formulando as seguintes conclusões:
“A. O presente recurso vem interposto do despacho proferido em 26/09/2022, com a ref.ª 418933976, que, na sequência da reclamação deduzida pela Exequente, procedeu à rectificação do despacho proferido em 27/06/2022, com a ref.ª 416996420, declarando não escrita a parte em que se ordena o levantamento da penhora. B. Não se conforma o Recorrente com o despacho aqui em apreço, porquanto a retificação operada pelo despacho recorrido consubstancia uma verdadeira alteração do sentido da decisão, que apenas podia ser modificada por via de recurso, uma vez que já se encontrava esgotado o poder jurisdicional do Mm.º Juiz a quo. C. Na verdade, ao modificar a decisão proferida em 27/06/2022, mesmo que impulsionado por requerimento apresentado pela Exequente, o Mmo. Juiz a quo violou o princípio da extinção do poder jurisdicional, ínsito no art. 613.º, n.º 1, CPC. D. Veja-se, neste sentido, o douto Ac. TRL, proferido 09/03/2021 (Proc. n.º 23822/17.9T8LSB-H.L1-7): «[d]e acordo com o princípio do esgotamento do poder jurisdicional (art. 613.º do Código de Processo Civil), proferida a decisão fica extinto o poder jurisdicional relativamente às questões sobre incidiu a decisão, ficando preterido que o juiz – por iniciativa própria ou mediante requerimento da parte- altere ou modifique a decisão proferida, sob pena da inexistência da segunda decisão» (sublinhado e realces nossos – disponível em www.dgsi.pt). E. E pese embora no despacho recorrido tenha sido invocado um alegado erro material, que constitui uma excepção ao princípio da extinção do poder jurisdicional (art. 613.º, n.º 2, CPC), processualmente consentida por via do disposto no art. 614.º, n.º 1, CPC, crê-se que a modificação operada pelo despacho recorrido não rectifica qualquer erro material, consubstanciando antes uma verdadeira alteração de fundo à decisão prolatada em 26/09/2022, que só poderia ocorrer por via de recurso. F. Estatui o art. 614.º, n.º 1, CPC, que «[s]e a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.» G. Ora, ensina-nos o Juiz Conselheiro António Abrantes Geraldes, Prof. Paulo Pimenta e Juiz Desembargador Luís Pires de Sousa, que «[o] regime é justificadamente mais branco quando estão em causa meros erros materiais, erros de cálculo ou inexatidões que, em geral, são devidos a lapsos manifestos. O erro material só pode ser retificado se for ostensivo, evidente e devido a lapso manifesto: é preciso que, ao ler o texto, se veja que há erro e logo se entenda o que se queria dizer» (realces nossos – ob. cit., p. 761). H. Neste mesmo sentido vai o douto Ac. STJ, proferido a 10/02/2022, Proc. n.º 529/17.1T8AVV-A.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt), ao referir que «[O]s erros materiais da decisão, a que se alude no art.º 614º/1 do CPC, têm lugar quando há divergência entre a vontade declarada e a vontade real do juiz, ou seja, no caso em que o juiz tenha escrito uma coisa diferente daquela que queria, de facto, escrever. // Tal divergência deve ressaltar, de forma clara e ostensiva, do teor da própria decisão, só desta, do seu contexto ou estrutura, sendo possível aferir se ocorreu ou não esse erro. Ou seja, é o próprio texto da decisão que há-de permitir ver e perceber que a vontade declarada não corresponde à vontade real do juiz que proferiu a decisão. // Há que não confundir o erro material da decisão com o erro de julgamento: naquele, (…)» I. Face ao exposto, crê-se não existir qualquer erro material no despacho proferido em 27/06/2022 susceptível de ser rectificado através do despacho de que ora se recorre. Senão vejamos: J. No despacho proferido em 27/06/2022, foi decidido que «Tendo o executado requerido a prestação de caução e tal incidente sido julgado procedente e a caução validamente prestada, assim como foi admitida liminarmente a oposição à execução, determino a suspensão da presente execução, até ao termo dos autos de oposição à execução, de harmonia com o disposto no art. 733.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil. // Dê conhecimento à Sra. Agente de Execução, a fim de diligenciar pelo levantamento da penhora em causa» (realces nossos) K. Nessa sequência, a Exequente apresentou um requerimento, peticionando pela manutenção da penhora e, por despacho proferido a 26/09/2022 (o despacho aqui em crise), veio o Tribunal a quo a determinar que: «Compulsados os autos, verifica-se que o despacho que declarou suspensa a instância, por via da prestação de caução por parte do executado, padece de um lapso na parte em que se determinou o levantamento da penhora, porquanto tal levantamento não foi ordenado na sentença que julgou procedente a prestação de caução. Assim sendo, rectifica-se tal despacho, declarando-se não escrita a parte em que se ordena o levantamento da penhora (artigos 613.º, n.º 2 e 614.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil). Notifique e comunique». (realces e sublinhados nossos) L. Escalpelizando o teor do despacho proferido em 27/06/2022, resulta de forma evidente que foi determinada a suspensão da instância, em resultado da decisão prolatada em sede de incidente de prestação de caução e, por inerência – consequência lógica –, foi igualmente determinado que a Senhora Agente de Execução diligenciasse pelo levantamento da penhora. M. E, pese embora não tenha sido utilizada pelo Mmo. Juiz a quo a expressão “ordene-se” o levantamento da penhora, a verdade é que, em rigor, é dada uma ordem expressa à Senhora Agente de Execução no sentido de diligenciar pelo levantamento da penhora. N. Foi esse o manifesto entendimento da Senhora Agente de Execução, que, em conformidade, diligenciou pelo cancelamento da penhora que incidia sobre o imóvel a fração autónoma correspondente à letra R, descrita na 2.ª Conservatória do Registo Predial da Amadora sob o art.º (…). O. Acresce que não se poderá considerar, como parece resultar do despacho recorrido, que no despacho proferido em 27/06/2022 o Mmo. Juiz a quo se tenha limitado dar conhecimento da decisão proferida no âmbito do Apenso D, ou tão-pouco se tenha limitado a determinar que fosse dado cumprimento ao que nela foi decidido. P. Pois que, na verdade, o Mmo. Juiz expressamente ordenou que se declarasse suspensa à instância e que a Sr.ª Agente de Execução diligenciasse pelo levantamento da penhora. Q. Assim, salvo o devido respeito, ordenar à Sr.ª Agente de Execução que proceda ao levantamento de uma penhora que incide sobre um imóvel não pode ser considerado um lapso de escrita que permita fazer uma correcção a pedido ou ex officio, quatro meses depois de ser proferida a decisão de levantamento da penhora. R. Decisão essa que foi cumprida pela Senhor Agente de Execução, como se disse, não só por não ser uma decisão-surpresa, que inclusivamente já fora sujeita ao cumprimento do princípio do contraditório, mas igualmente por se encontrar consentânea com as normas legais. S. Ademais, se o Mmo. Juiz a quo não tivesse decido a questão do levantamento da penhora, que foi reiteradamente colocada à sua apreciação pelo aqui Recorrente, no despacho proferido em 27/06/2022, o Recorrente teria recorrido da decisão proferida no Apenso D, invocando a sua nulidade por omissão de pronúncia, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), CPC, já que o Mmo. Juiz a quo estava obrigado a conhecer deste pedido, nos termos e para os efeitos do n.º 2 do art. 608.º CPC. T. Por conseguinte, dúvidas inexistem de que a decisão prolatada em 27/06/2022 não padece de qualquer lapso de escrita ou erro material susceptível de ser rectificado por via do mecanismo previsto no art. 614.º CPC. U. Do que, na realidade, se tratou foi de o tribunal recorrido ter feito interpretações diversas do art. 616.º em dois momentos distintos, que o levaram a decidir, primeiro num sentido e, mais tarde, em sentido oposto. V. Acresce que, não estando a Exequente satisfeita com o sentido da decisão, deveria ter lançado mão dos meios processuais de impugnação, mormente o recurso, e não a dedução de “reclamação de ato”, como fez. W. Portanto, além do esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal a quo, nos termos imperativos do art. 613.º, n.os 1 e 3, CPC, em face da ausência de recurso, o mencionado despacho de 27/06/2022 acabou por transitar em julgado, impedindo qualquer nova apreciação da questão no âmbito do levantamento da penhora que incidia sobre o imóvel do ora Recorrente. X. O que equivale a dizer que o referido despacho tem força obrigatória dentro do processo, ou seja, constitui caso julgado formal, nos termos do art. 620.º CPC. Y. Neste sentido, veja-se o douto Ac. TRC de 20.10.2015: “O trânsito em julgado, conforme decorre claramente do art.º 628.º do CPC, ocorre quando uma decisão é já insusceptível de impugnação por meio de reclamação ou através de recurso ordinário. Verificada tal insusceptibilidade, forma-se caso julgado, que se traduz, portanto, na impossibilidade da decisão proferida ser substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu. Do caso julgado decorrem dois efeitos essenciais, a saber: a impossibilidade de qualquer tribunal, incluindo o que proferiu a decisão, voltar a emitir pronúncia sobre a questão decidida - efeito negativo (…).” Z. Deste modo, segundo o disposto no art. 620.º, n.º 1, CPC, o citado despacho de 27/06/2022 não pode ser revogado – mais de quatro meses depois! – por um despacho do mesmo Tribunal a quo. AA. E nem se diga que o referido despacho proferido em 27/06/2022, que determinou que fosse dado conhecimento à Senhora Agente de Execução da prestação de caução e suspensão da execução até ao termo dos autos de oposição à execução, a fim de que esta diligenciasse pelo levantamento da penhora em causa, era irrecorrível, uma vez que este não pode ser considerado um despacho de mero expediente ou um despacho que decide sobre matérias confiadas ao prudente arbítrio do julgador, que lhe permita a “livre escolha quer da oportunidade da sua prática, quer da solução a dar ao caso concreto” (Rodrigues Bastos, Notas ao CPC, vol. II, p. 217). BB. Em suma, a decisão definitiva de levantamento da penhora que consta do despacho proferido em 27/06/2022 constitui caso julgado formal nos sobreditos termos, impedindo qualquer nova apreciação. CC. Não obstante, o pedido formulado pela Exequente no sentido de ser mantida a penhora sobre o imóvel do Executado não podia manifestamente ser acolhida. DD. Conforme flui do despacho prolatado a 27/06/2022, consignou-se que, julgada procedente e idónea a caução prestada, a execução ficaria suspensa até ao termo dos autos de embargos de executado, tendo sido ordenado o levantamento da penhora. EE. Tal decisão cumpre todas as disposições legais aplicáveis, o mesmo não sucedendo com a decisão inesperada e inédita sob recurso, razão pela qual não poderá manter-se. FF. A decisão proferida em 27/06/2022 vem corresponder à tese que fazia escola, encabeçada por Anselmo de Castro, no sentido de, para além de ser atribuída à caução a função de mera garantia da dívida exequenda, também ser admissível que as penhoras realizadas podiam ser substituídas por caução, sendo levantadas pela sua prestação, ao encontro do que sem limitações acontece na substituição do arresto por caução adequada (art. 368.º, n.º 3, ex vi 376.º, n.º 1, conhecida a instrumentalidade do mesmo em relação à penhora. GG. Na realidade, não deve ser esquecido que a penhora constitui uma efectiva agressão a um património alheio (do devedor), desde logo com repercussões no direito constitucional de propriedade, compreendendo-se assim que no processo executivo se deva ter presente o princípio da proporcionalidade, no sentido de apenas serem objecto de penhora os bens necessários ao pagamento da dívida exequenda e das despesas presumidas, não devendo a penhora abranger bens em excesso, sem prejuízo do disposto no n.º 3, do art. 751.º CPC, inaplicável aos autos, com vista ao necessário equilíbrio dos interesses contrapostos. HH. Configurando-se legalmente admissível a pretendida substituição, desde logo em termos de harmonização do sistema, diga-se que o raciocínio plasmado na decisão sob recurso contraria frontalmente tal entendimento, porquanto, como bem se depreende, tendo o pedido de suspensão sido deferido, não seria compreensível a manutenção da penhora sobre o imóvel à data propriedade do executado. II. Deste modo, não estando em causa a idoneidade da caução prestada, que foi julgada procedente, garantindo a realização efectiva do direito de crédito da exequente deste concreto processo e não de outro – como pretende fazer crer a Exequente ao alegar a apresentação de sucessivas cumulações – não se vislumbra razão para a manutenção da penhora. JJ. E isto porque tal caução se assumiu como idónea e garantia os fins da execução, já que o seu valor era suficiente para assegurar o pagamento da dívida exequenda e das despesas prováveis da execução (que se presumem, para este efeito, correspondentes ao valor de 10% do valor da execução), constantes do auto de penhora rectificado, lavrado em 21/04/2022. KK. Por conseguinte, inexistindo quaisquer dúvidas quanto à idoneidade da caução prestada, garantindo esta a realização efectiva do direito de crédito da Exequente, excedendo o montante oferecido o valor total em dívida, segundo o auto de penhora rectificado lavrado pela Sra. Agente de Execução em 21/04/2021, nada obstava à substituição da penhora do imóvel pela caução apresentada. LL. O contrário, como decidido no despacho recorrido, ofende o princípio do menor sacrifício do executado, na necessária ponderação da proporcionalidade e adequação, que devem pautar a realização e manutenção da penhora. MM. Neste exacto sentido, veja-se o Ac. TRL de 23-03-2021 (Proc. n.º 5435/20.0T8LSB-B.L1-7), que, num caso semelhante ao dos presentes autos, ordenou o levantamento da penhora por ter sido prestada caução idónea e sustentou que «[a] actividade desenvolvida no âmbito da acção executiva deve pautar-se pelo princípio da proporcionalidade, do qual decorre que na execução não devem ser impostos ao executado, maiores encargos do que aqueles que se mostrem indispensáveis ao respectivo fim, isto é, a obtenção da satisfação do direito do credor» (disponível em www.dgsi.pt). NN. Desta forma, as conclusões do Recorrente devem ser julgadas procedentes, não podendo manter-se a decisão sob recurso, mas ser revogada e substituída por outra, que determine a manutenção do levantamento da penhora.”
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi corretamente admitido.
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Colhidos os vistos legais cumpre decidir.
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II. Questões a Decidir:
Sendo o âmbito dos recursos delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente – art.ºs 635º, n.º 4 e 639º, n.ºs 1 e 2 do CPC –, ressalvadas as questões do conhecimento oficioso que ainda não tenham sido conhecidas com trânsito em julgado, as questões que se colocam à apreciação deste Tribunal consistem em saber:
- Se a modificação operada pelo despacho recorrido não retifica qualquer erro material, consubstanciando antes uma verdadeira alteração do sentido da decisão contida no despacho proferido em 27/06/2022; e, assim sendo, se se encontra esgotado o poder jurisdicional do Sr. Juiz a quo quanto ao segmento desse despacho objeto de modificação;
- Se o despacho proferido em 27/06/2022 transitou em julgado;
- Se a manutenção da penhora, atenta a caução prestada, carece de fundamento.
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III. Fundamentação de Facto:
Os factos a considerar são os que constam do antecedente relatório.
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III. Mérito do Recurso:
A primeira questão que se coloca no presente recurso consiste em saber se a modificação operada pelo despacho recorrido não retifica qualquer erro material, consubstanciando antes uma verdadeira alteração do sentido da decisão contida no despacho proferido em 27/06/2022; e, assim sendo, se se encontra esgotado o poder jurisdicional do Sr. Juiz a quo quanto ao segmento desse despacho objeto de modificação.
Comecemos por recordar o contexto em que foi proferido o despacho objeto de recurso:
- Em 12.10.2021, a Exequente/Apelada requereu a cumulação sucessiva da execução pelo valor de 5.472,02 €, a qual foi admitida por despacho proferido em 11.11.2021.
- Na sequência, em 07.03.2022, o Executado/Apelante deduziu oposição à execução mediante embargos, os quais foram liminarmente recebidos.
- No âmbito da execução, conforme resulta do “Auto de Penhora” datado de 19.04.2022, foi efetuada a penhora da fração autónoma designada pela letra R, descrita na Conservatória do Registo Predial e Comercial da Amadora sob o n.º (…) da freguesia de Alfragide.
- Em 21.04.2022, o Executado deduziu incidente de prestação espontânea de caução, formulando o seguinte pedido:
“Nestes termos e nos melhores de direito, que V.ª Ex.ª doutamente suprirá, requer-se que seja admitida a prestação espontânea de caução pelo Executado, mediante depósito em dinheiro, no valor de € 6.128,96 (seis mil, cento e vinte e oito euros e noventa e seis cêntimos), e consequentemente seja suspensa a execução, bem como ordenado o levantamento da penhora registado sobre o imóvel do Executado, constante do auto de penhora elaborado pela Senhora Agente de Execução em 19/04/2022.”
- Nesse incidente, em 09.06.2022, foi proferida a seguinte decisão:
“BB (…), veio, por apenso à acção executiva para pagamento de quantia certa instaurada por AA (…), deduzir incidente de prestação espontânea de caução, visando a suspensão da instância executiva à qual deduziu oposição, através de depósito autónomo, no valor da quantia exequenda, correspondente à quantia exequenda, juros de mora e custas prováveis. A exequente, notificada para o efeito, deduziu oposição, impugnando o valor que o executado pretende caucionar. * O Tribunal é competente. As partes têm personalidade e capacidade judiciárias; ambas gozam de legitimidade. Não há excepções ou outras questões de que cumpra conhecer. * Nos termos do disposto no artigo 733.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil, o recebimento dos embargos de executado só suspende o prosseguimento do processo de execução quando o embargante prestar caução. No caso sub judice, o executado pretende oferecer como caução um depósito de dinheiro, no montante correspondente à quantia exequenda, juros de mora e custas prováveis, conforme indicado pela Sra. Agente de Execução. A caução é um meio de assegurar ou garantir o cumprimento de uma obrigação, e, no caso em apreço, visa suspender a execução, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art. 733.º do Código de Processo Civil. Enquanto tal, esse depósito, accionado se necessário, garantirá à exequente, a satisfação do seu crédito, deixando de haver justo receio da sua perda. Por outro lado, a forma de prestar a caução é idónea, nos termos do disposto no artigo 623.º n.º 1, do Código Civil. * Decisão: Pelo exposto, julgo o presente incidente procedente e, em consequência, julgo idónea a prestação de caução por parte do executado BB (…), mediante depósito em dinheiro, no valor de 6.019,22€, a prestar no prazo de 10 dias. Custas a cargo do requerente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC (art. 7.º, n.º 4 do Regulamento das Custas Judiciais). Registe e notifique.”
- O Executado procedeu ao depósito autónomo do valor 6.019,22 €, perante o que, em 23.06.2022, foi proferido o seguinte despacho:
“Julgo validamente prestada a caução. * Conclua nos autos de execução.”
- E, em 27.06.2022 foi proferido no processo de execução o seguinte despacho:
“Tendo o executado requerido a prestação de caução e tal incidente sido julgado procedente e a caução validamente prestada, assim como foi admitida liminarmente a oposição à execução, determino a suspensão da presente execução, até ao termo dos autos de oposição à execução, de harmonia com o disposto no art. 733.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Civil. Dê conhecimento à Sra. Agente de Execução, a fim de diligenciar pelo levantamento da penhora em causa” – sublinhado nosso.
- Desse despacho foi remetida notificação à Exequente e ao Executado em 28.06.2022.
- Perante esse despacho, em 08.07.2022, a Exequente apresentou o seguinte requerimento:
“AA (…), Exequente nos autos referenciados supra, (…), notificada do douto despacho de V. Exa. que, em face da apresentação de Caução por parte do Executado, decide pela suspensão da Execução e pelo levantamento da penhora, vem junto de V. Exa. apresentar reclamação do douto despacho, na parte em que ordena o levantamento da penhora, o que faz nos termos e fundamentos seguintes: A Exequente apresentou contestação à Oposição à penhora deduzida pelo Executado BB (…), no Apenso E, opondo-se ao levantamento da penhora sobre o bem imóvel. Pese embora a suspensão da execução seja uma consequência da prestação de caução, à qual a Exequente não se opõe, entende que a penhora deve ser mantida, tendo presente que já deu entrada nova cumulação à execução, receando a Exequente que o valor da caução prestada se revele insuficiente para cobrir a totalidade dos valores peticionados e demais encargos, incluindo os juros compulsórios e despesas com o processo. Nesta conformidade, entende a Exequente que deve manter-se a penhora que incide sobre a fração Autónoma designada pela letra “R”, (…), descrito na Conservatória sob o nº (…) da freguesia de Alfragide, concelho de Amadora (…). Tanto mais que o Executado mantém o incumprimento reiterado das obrigações que assumiu contratualmente para com a Exequente, gerando novas dívidas que esta só terá possibilidade de ver salvaguardadas e pagas por via coerciva, nomeadamente por via da presente execução, recorrendo à sucessiva cumulação de execuções prevista no Artº 709º e 711º do Código de Processo Civil. Ora, permitir que, na sequência do levantamento da penhora, o Executado possa vender o imóvel sem acautelar devidamente o pagamento da totalidade dos créditos que a Exequente detém sobre o mesmo, lesa os interesses da Exequente e põe em causa o escopo da própria execução e penhora, resultando em prejuízo sério para a Exequente. Em face do exposto, requer a V. Exa. que ordene a manutenção da penhora sobre o imóvel até que o Executado pague a totalidade da dívida exequenda peticionada na presente execução e sucessivas cumulações. Confiada no mui douto suprimento de V. Exa.”
- Face a esse requerimento, em 26.09.2022 foi proferido o seguinte despacho, objeto do presente recurso:
“Reclamação de fls. 227-228: Compulsados os autos, verifica-se que o despacho que declarou suspensa a instância, por via da prestação de caução por parte do executado, padece de um lapso na parte em que se determinou o levantamento da penhora, porquanto tal levantamento não foi ordenado na sentença que julgou procedente a prestação de caução. Assim sendo, rectifica-se tal despacho, declarando-se não escrita a parte em que se ordena o levantamento da penhora (artigos 613.º, n.º 2 e 614.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil). Notifique e comunique.”
É deste último despacho que o Executado/Apelante recorre.
Vejamos.
Nos termos do artigo 613º, n.º 1, do CPC, “proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.”
Esta norma é aplicável aos despachos, com as necessárias adaptações, por força do estatuído no nº 3 do mesmo normativo, sendo ainda aplicável ao processo executivo, de acordo com o princípio geral de aplicação subsidiária das disposições reguladoras do processo de declaração constante do artigo 551º, n.º 1, do CPC.
O âmbito do princípio consagrado no artigo 613º, n.º 1, do CPC, como refere Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, vol. V, Coimbra Editora, 1984, pág. 126, é o de que “O juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível. Ainda que logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção que errou, não pode emendar o suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível”.
Proferida a sentença, a mesma torna-se imodificável.
Esta imodificabilidade da sentença é apenas dirigida ao próprio juiz da causa, caso não tenha transitado em julgado, por ser ainda suscetível de recurso ordinário.
Da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem, assim, dois efeitos: um negativo, representado pela insusceptibilidade de o próprio tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar; e um positivo, traduzido na vinculação do tribunal à decisão por ele proferida - Cf. Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil”, Lex, 2ª edição, pág. 572.
Saliente-se que isso não obsta a que o juiz mantenha ainda o exercício do poder jurisdicional para resolver os incidentes e questões que surjam no desenvolvimento posterior do processo, contanto que não se repercutam na sentença que proferiu.
A razão do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, por uma razão de ordem pragmática, reside na necessidade de assegurar a estabilidade das decisões dos tribunais.
No entanto, o princípio da intangibilidade da decisão, consagrado no artigo 613º do CPC, não é absoluto, conforme resulta do n.º 2 desse normativo, uma vez que é lícito ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos 614º a 616º do CPC.
Este desvio ao princípio da intangibilidade da decisão encontra justificação na circunstância de a vontade declarada na decisão não corresponder à vontade do juiz, por não fazer sentido “que subsista vontade diversa daquela que o juiz teve em mente incorporar na sentença ou despacho” – Cf. Acórdão da RC de 20/10/2015, relatado por Maria Domingas Simões, proferido no processo n.º 231514/11.3YIPRT.C1, disponível em www.dgsi.pt.
A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão.
Na sequência do que acima se deixou dito a propósito do âmbito do princípio da intangibilidade da decisão proferida, é ainda possível ao juiz que proferiu a sentença (ou despacho) retificar erros materiais, nos temos previstos no art.º 614º, n.º 1 do CPC, o qual determina que “Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.”
Já de acordo com o art.º 616º, do CPC, a parte pode requerer no tribunal que proferiu a sentença, a sua reforma quanto a custas e multa (n.ºs 1, e 3), sendo que, apenas quando não cabe recurso da sentença, pode qualquer das partes requerer a reforma da sentença, desde que verificados os seguintes pressupostos: a), quando, por manifesto lapso do juiz, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos; b) quando, por manifesto lapso do juiz, constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida (nº 2, als. a), e b)).
Tendo presente este regime legal, temos por seguro que o requerimento da Exequente através do qual a mesma refere vir “apresentar reclamação do douto despacho, na parte em que ordena o levantamento da penhora”, não configura um pedido de reforma do despacho proferido no processo executivo em 27.06.2022 (o qual não admite reclamação), sendo que o mesmo sempre seria inadmissível, porquanto esse despacho era passível de recurso.
O certo é que o despacho objeto de recurso também não se pronuncia sobre o teor do mesmo, optando, simplesmente, por retificar o dito despacho de 27.06.2022, “declarando-se não escrita a parte em que se ordena o levantamento da penhora (artigos 613.º, n.º 2 e 614.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Civil)”, o que justifica referindo que o mesmo “padece de um lapso na parte em que se determinou o levantamento da penhora, porquanto tal levantamento não foi ordenado na sentença que julgou procedente a prestação de caução.”
Mas será que estamos efetivamente perante um mero erro material ou lapso manifesto?
Sobre essa matéria debruçou-se o Acórdão do STJ de 10.02.2022, relatado por Fernando Baptista, processo n.º 529/17.1T8AVV-A.G1.S1, disponível em www.dgsi.pt e citado pelo Apelante nas suas conclusões recursivas.
Nesse Acórdão, depois de se reproduzir o teor do art.º 614º, n.º 1, do CPC, escreveu-se o seguinte: “Ou seja, admite a lei sejam corrigidos erros materiais da decisão, situação que ocorre quando há divergência entre a vontade declarada e a vontade real do juiz, ou seja, no caso em que o juiz tenha escrito uma coisa diferente daquela que queria, de facto, escrever. Impõe-se, então, perguntar: quando pode afirmar-se a ocorrência dessa divergência entre a vontade declarada e a vontade real do julgador? Este, afinal, o cerne do presente recurso. Ora, cremos que tal divergência só pode dar-se como verificada caso a mesma ressalte da própria decisão, no contexto ou estrutura da mesma. Note-se que os erros materiais da decisão nada têm a ver com erros de julgamento. Isso mesmo já ensinava ALBERTO DOS REIS, em anotação ao artigo 667.º do C.P.C. de 1939: «Importa distinguir cuidadosamente, o erro material do erro de julgamento. O erro material dá-se quando o juiz escreveu coisa diversa da que queria escrever, quando o teor da sentença ou despacho não coincide com o que o juiz tinha em mente exarar, quando, em suma, a vontade declarada diverge da vontade real. O juiz queria escrever «absolvo» e por lapso, inconsideração, distracção, escreveu precisamente o contrário: condeno. O erro de julgamento é espécie completamente diferente. O juiz disse o que queria dizer; mas decidiu mal, decidiu contra lei expressa ou contra os factos apurados. Está errado o julgamento. Ainda que o juiz logo se convença de que errou, não pode socorrer-se do art. 667.° para emendar o erro.». Assim, o erro material da decisão, passível de rectificação, nos termos do artº 614º, nº 1, CPC, é aquele que ressalta de forma clara e ostensiva do teor da própria decisão. Só do contexto desta é possível aferir se ocorreu ou não esse erro. (…) Como se disse no Ac. do STJ de 16.12.2021, relatado pelo aqui relator, as regras da interpretação dos negócios jurídicos (ut arts. 236º ss CC) são aplicáveis à interpretação das sentenças enquanto actos jurídicos, aplicando-se-lhes o disposto no artº 295º do CC. E ali observámos, também, citando MENEZES CORDEIRO, que a letra da sentença é elemento essencial na interpretação a fazer - referindo igualmente este Autor que uma sentença judicial (precisamente por via do estatuído naquele artº 295º) deve ser interpretada à luz do artº 236º” do Cód. Civil. Assim, sendo, como efectivamente são, as decisões judiciais actos formais, amplamente regulamentados pela lei de processo, tem de se lhes aplicar a regra fundamental segundo a qual não pode a sentença valer com um sentido que não tenha no documento que a corporiza um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (princípio estabelecido para os negócios formais no art. 238º do CC e que, valendo para a interpretação dos actos normativos – art. 9º, nº 2, – tem, por razões de certeza e segurança jurídica, de valer também para a fixação do sentido do comando jurídico concreto ínsito na decisão judicial). No entanto, como também tem sido observado, não se tratando de um verdadeiro negócio jurídico, a decisão judicial não traduz uma declaração pessoal de vontade do julgador, antes exprimindo “uma injunção aplicativa do direito, a vontade da lei”, no caso concreto, correspondendo ao “resultado de uma operação intelectual que consiste no apuramento de uma situação de facto e na aplicação do direito a essa situação.”
Revertendo para a concreta situação dos autos, cremos não estar perante um erro material suscetível de retificação.
De facto, tendo presente o contexto em que o despacho objeto de retificação foi proferido, não resulta do seu teor que tenha existido qualquer divergência entre o que o Sr. Juiz a quo escreveu e aquilo que pretendia escrever.
Veja-se que no requerimento em que deduziu o incidente de prestação espontânea de caução o Executado/Apelante peticionou, expressamente, “que seja admitida a prestação espontânea de caução pelo Executado, mediante depósito em dinheiro, no valor de € 6.128,96 (seis mil, cento e vinte e oito euros e noventa e seis cêntimos), e consequentemente seja suspensa a execução, bem como ordenado o levantamento da penhora registado sobre o imóvel do Executado, constante do auto de penhora elaborado pela Senhora Agente de Execução em 19/04/2022” – sublinhado nosso.
No dispositivo da decisão proferida nesse incidente apenas consta: “Pelo exposto, julgo o presente incidente procedente e, em consequência, julgo idónea a prestação de caução por parte do executado BB (…), mediante depósito em dinheiro, no valor de 6.019,22€, a prestar no prazo de 10 dias. (…).”
Nada é dito, nessa sentença, nem quanto à suspensão da execução nem quanto ao levantamento da penhora. E compreende-se que assim seja porque nesse momento ainda não havia sido prestada a caução oferecida, pelo que nenhum desses efeitos podia, nesse momento, ser determinado.
Uma vez prestada a mesma, foi então proferido despacho que a julgou validamente prestada e determinou a abertura de conclusão nos autos de execução.
Aberta conclusão nesses autos, foi proferido nos mesmos o despacho de 27.06.2022, no qual foram pelo Sr. Juiz a quo extraídas as consequências da prestação de caução, e que se mostram em conformidade com o que havia sido peticionado pelo Executado/Apelante no incidente de prestação espontânea de caução: a suspensão da execução e o levantamento da penhora.
Neste enquadramento, não se vislumbra que tenha existido qualquer divergência entre aquilo que o Sr. Juiz a quo escreveu e aquilo que pretendia escrever.
Atento o contexto em que o despacho em causa foi proferido não se retira, do seu teor, a existência de qualquer lapso manifesto passível de retificação.
Muito menos colhe o argumento contido do despacho objeto de recurso de que o levantamento da penhora “não foi ordenado na sentença que julgou procedente a prestação de caução.” Nessa sentença, como vimos, nem foi ordenado o levantamento da penhora nem a suspensão da execução.
Atento tudo quanto foi exposto, concordamos com o Executado/Apelante.
A modificação operada pelo despacho recorrido não retifica qualquer erro material, consubstanciando antes uma verdadeira alteração do sentido da decisão contida no despacho proferido em 27/06/2022, pelo que, quanto ao segmento desse despacho objeto de modificação, encontrava-se esgotado o poder jurisdicional do Sr. Juiz a quo.
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Avancemos para a segunda questão suscitada no presente recurso e que consiste em determinar se o despacho proferido em 27/06/2022 transitou em julgado.
Conforme acima referimos, desse despacho foi remetida notificação à Exequente e ao Executado em 28.06.2022.
O despacho objeto de recurso foi proferido em 26.09.2022.
Ora, na medida em que o despacho proferido em 27.06.2022 não foi objeto de recurso e não era, como vimos, suscetível de reclamação, não temos dúvidas de que o mesmo transitou em julgado, sendo que o despacho objeto de recurso foi proferido após esse trânsito em julgado.
Tal como determina o art.º 628º do CPC, “A decisão considera-se transitada em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação.”
Assim, o despacho recorrido, ao modificar esse despacho, não pode deixar de ser revogado, pois foi proferido com ofensa de caso julgado.
Em tais circunstâncias, resta-nos concluir desde já pela total procedência do recurso, ficando em consequência prejudicada a apreciação das demais questões que no mesmo foram colocadas.
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V. Decisão:
Pelo exposto, acordam os Juízes Desembargadores que compõem o coletivo desta 2ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa abaixo identificados em julgar procedente o recurso e, em consequência, em revogar o despacho recorrido, proferido no processo executivo em 26.09.2022.
Custas pela Exequente/Apelada, sem prejuízo da proteção jurídica de que beneficia.
Registe.
Notifique.
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Lisboa, 24.10.2024
Susana Mesquita Gonçalves
Carlos Gabriel Castelo Branco
Laurinda Gemas