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INSOLVÊNCIA DOLOSA
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRA-CONTRATUAL
PRESCRIÇÃO
DEFESA
PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO
PRINCÍPIO DA CONCENTRAÇÃO DA DEFESA
Sumário
(elaborado nos termos do disposto no artigo 663º, nº 7, CPC): I – O conhecimento do mérito da causa no despacho saneador, nos termos do disposto no artigo 595º, nº 1, alínea b), CPC apenas deve ocorrer se inexistirem factos controvertidos relevantes para as várias soluções plausíveis da questão de direito. II – Imputando a autora aos réus uma conduta subsumível ao crime de insolvência dolosa, p. e p. no artigo 227º do Código Penal, e encontrando-se a respetiva factualidade controvertida, é prematuro o conhecimento da exceção de prescrição no despacho saneador, porquanto haverá que decidir, após instrução da causa, qual o prazo prescricional a ponderar, designadamente se o de 3 anos previsto no nº 1 do artigo 498º ou o de 5 anos previsto no nº 3 daquela norma. III – A ineptidão da petição inicial, constituindo nulidade de conhecimento oficioso, nos termos do disposto nos artigos 183º e 196º, CPC, não se mostra abrangida pelo princípio da concentração da defesa na contestação, consagrado no artigo 573º, CPC, podendo ser arguida após aquele articulado. IV – O crédito invocado na petição, fundado na prática de facto ilícito imputado pela autora aos réus, concretizado em ação complexa que, em parte, ocorreu após a declaração de insolvência, e que visou defraudar os seus credores, entre eles a autora, impedindo-os de receber os valores dos créditos ali reconhecidos, constitui crédito diverso do reconhecido em processo de insolvência com base no fornecimento de bens ou serviços.
Texto Integral
Acordam os juízes da 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Lisboa que compõem este coletivo:
I - RELATÓRIO
1.1– A autora, “Frutas C...-Comércio de Frutas, Ldª”, identificada nos autos, instaurou no Juízo Central Cível de Loures, em 28-05-2020, a presente ação declarativa comum contra os réus, também identificados nos autos, A, B, C e D Unipessoal Ldª”.
No essencial, alegou a autora:
- Ter fornecido à sociedade “E, Unipessoal Ldª” (da qual o 1º e a 2ª ré eram gerentes de facto e de direito e a 3ª ré - mãe da 2ª - apenas gerente de direito), artigos do seu comércio no valor de € 51.632,41;
- Tais fornecimentos ocorreram entre 08-03-2014 e 01-08-2014;
- Em face da dívida gerada por tal fornecimento e do receio de perda de garantia patrimonial do seu crédito, a autora instaurou procedimento cautelar de arresto em 24-03-2016, que terminou por transação pela qual o 1º e a 2º réus assumiram pessoal e solidariamente a dívida aí em causa, aceitando um acordo de pagamento mensal que deixou de ser cumprido, desde 22-11-2016;
- No dia 07-03-2017, a sociedade “E Unipessoal, Ldª” foi declarada insolvente, tendo sido reconhecido o crédito da autora no valor de € 61.938,90 no respetivo processo de insolvência que correu termos no Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira;
- Após a sociedade “E Unipessoal, Ldª” se ter apresentado à insolvência, foi constituída a ré “D”, da qual a 3ª ré formalmente é sócia gerente, embora se encontre reformada por invalidez;
- A ré “D” tem a sua sede no local onde laborava a “E Unipessoal Ldª”, tendo o mesmo objeto e operando no mesmo ramo de atividade desta;
- Com a criação da sociedade “D”, a 3ª ré agiu em conluio com o 1º e 2º réus, que também foram entretanto declarados insolventes, visando a continuação da atividade da “E”, livre de dívidas, aproveitando a sua estrutura ao nível dos trabalhadores, bens e clientela;
- Os réus promoveram a constituição da nova sociedade, para a qual transferiram parte dos bens da “E”, descapitalizando-a e deixando reduzido o seu património, sem acautelarem a satisfação dos créditos dos respetivos credores;
- Com tal atuação, os réus incorrem em responsabilidade delitual, violando os deveres de cuidado e lealdade consagrados no artigo 64º, CSC, de forma culposa, tornando insuficiente o património da sociedade devedora para o pagamento do crédito da autora, agindo com abuso de direito, de forma contrária à boa fé, aos bons costumes e excedendo a finalidade económica ou social da sociedade “E”, incorrendo na obrigação de indemnizar a autora;
- Subsidiariamente, considerou a autora que a condenação dos réus sempre poderá fundamentar-se no instituto da desconsideração da personalidade jurídica, dado que foi a atuação abusiva dos réus que tornou insuficiente o património da “E” para a satisfação do seu crédito.
Assim, concluiu a autora formulando, a título principal, o pedido de condenação dos réus no pagamento da quantia de € 61.938,90 a título de responsabilidade civil por factos ilícitos, acrescidos de juros de mora, à taxa comercial, desde a citação e até efetivo e integral pagamento;
Subsidiariamente, solicitou a autora a condenação dos réus no pagamento do mesmo valor de € 61.938,90, por meio do mecanismo de desconsideração da personalidade jurídica.
1.2 – Citados, os réus apresentaram contestação, em 08-07-2020, na qual:
- Arguiram a ilegitimidade passiva e a falta de interesse direto em contradizer das rés “D Unipessoal, Ldª” e C, dado não terem tido intervenção na transação celebrada no processo de arresto que fundamenta o crédito invocado pela autora;
- Invocaram a ilegitimidade passiva dos réus A e B, visto que, tendo sido declarados insolventes, deveriam ser representados, para todos os efeitos de caráter patrimonial, pelo respetivo administrador de insolvência;
- Consideraram ocorrer a inutilidade superveniente da lide, dado que a declaração de insolvência da ré “E, Ldª” sempre determinaria que quaisquer direitos de crédito relativamente a ambos e anteriormente constituídos fossem feitos valer de harmonia com as regras do CIRE, designadamente no âmbito de reclamação de créditos, reconhecimento esse, aliás, que ali ocorreu;
- Alegaram que tendo sido concedida aos réus A e B a exoneração do passivo restante, nos respetivos processos de insolvência, liminarmente deferido, respetivamente em 13-06-2017 e 08-10-2018, ocorre a impossibilidade e inutilidade da presente lide;
- Encontrando-se pendente incidente de qualificação da insolvência da sociedade “E, Ldª”, cuja decisão acarraterá a apreciação do mesmo pedido feito pela autora nestes autos, bem como dos mesmos factos aqui invocados, existe erro no recurso à presente ação por existir procedimento especial para o efeito no CIRE, além de que opera também a exceção dilatória de litispendência;
- Arguiram ainda a prescrição do crédito invocado pela autora por decurso do prazo de 3 anos previsto no artigo 498º, nº 1, CC, dado que a autora interveio em 10-04-2017 no apenso de qualificação da insolvência da “E - Unipessoal, Ldª”, invocando os mesmos factos que invoca nesta ação;
- Apresentaram defesa por impugnação, concluindo não se verificarem os pressupostos de responsabilidade civil invocados, nem da desconsideração da personalidade coletiva;
Concluíram os réus pugnando pela procedência das exceções invocadas, com as consequências legais, ou, caso assim não se entenda, pela improcedência da ação, peticionando ainda a condenação da autora, como litigante de má fé, em multa e indemnização, por tentar cobrar o seu crédito à margem das regras próprias do processo de insolvência, procurando assim obter uma vantagem ilegal em relação aos demais credores, instaurando a presente ação quando ainda se encontra pendente incidente de qualificação de insolvência
1.3 – Por intermédio do requerimento de 10-09-2020 (referência 36428865), a autora exerceu contraditório relativamente às exceções invocadas na contestação considerando, no essencial, que:
- Todos os réus dispõem de legitimidade passiva e interesse em contradizer, atenta a configuração por si conferida à relação material controvertida (responsabilidade civil por factos ilícitos ou mecanismo de desconsideração da personalidade coletiva);
- Os processos de insolvência dos réus A e B foram encerrados, respetivamente, em 26-09-2017 e 10-10-2018, pelo que, desde então a representação dos insolventes pelo administrador de insolvência circunscreve-se aos bens integrantes da massa insolvente, nada obstando à instauração de novas ações pelos seus credores;
- O crédito em discussão nestes autos, decorrente a título principal da responsabilidade civil por factos ilícitos, não se encontra abrangido pelo mecanismo da exoneração do passivo restante;
- Não operam as exceções de litispendência ou de caso julgado relativamente ao incidente de qualificação da insolvência, por não existir identidade das partes e dos pedidos;
- A autora só teve conhecimento do facto danoso em discussão nestes autos no momento da apresentação da petição inicial nestes autos, pelo que não opera a exceção de prescrição;
- A conduta processual da autora não se reconduz a litigância de má fé
1.4 – Foram as partes notificadas para esclarecerem se se opunham à dispensa de audiência prévia (despacho de 26-03-2021 – referência1478885534), apenas a autora tendo declarado não se opor a tal dispensa na condição de ser concedida às partes o prazo de 10 dias para reclamarem dos despachos previstos nas alíneas a) a d) do nº 1, do artigo 591º, CPC e para alterarem os meios de prova indicados nos articulados (referência 38421533).
1.5 – Foi de seguida proferido despacho, no qual se exarou, além do mais, o seguinte (proferido em 30-05-2021, com a referência 148509385):
“Como resulta da leitura da petição inicial, a autora circunstancia os presentes autos, por um lado, no facto de ter um crédito, no montante de € 61.938,90, reconhecido, sobre a sociedade “E, Unipessoal, L.da”, a qual foi declarada insolvente e, por outro, no facto de não ter sido ressarcida deste crédito uma vez que os réus atuaram por forma a prejudicar os credores daquela sociedade, transferindo para a sociedade ora ré todos os bens e trabalhadores, «ficando as dívidas para trás», num «verdadeiro fresh start». E o valor que peticiona a final corresponde integralmente ao valor pelo qual é credora da referida sociedade “E”. Assim, e antes de se poder apreciar as exceções deduzidas e supra mencionadas, importa apurar se a autora já foi, e em quanto, ressarcida desta dívida, quer no âmbito da reclamação de créditos dos processos de insolvência n.ºs 819/17.3T8VFX e 790/17.1T8VFX, quer no âmbito do incidente de qualificação da insolvência da sociedade “E Unipessoal, L.da”, que sob o n.º /17.4T8VFX, corre termos no Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira, J 1, deste Tribunal. Nestes termos, oficie aos referidos processos, solicitando que, em dez dias, informem se já houve algum pagamento à autora no âmbito daqueles processos e, em caso afirmativo, o seu quantum. Caso a resposta seja negativa, solicite desde já informação sobre: a. o estado processual daqueles autos (abrangendo não só as reclamações de créditos e o incidente mencionado mas, também, os processos principais) e b. qual o teor da última decisão proferida em cada um dos processos, com informação sobre se houve trânsito em julgado das mesmas”.
1.6 – Obtida parte das informações solicitadas, foi ainda determinado insistir por informação sobre o estado do processo de qualificação de insolvência nº …/17.4T8CVFX, bem como a remessa de cópias dos articulados aí apresentados e das decisões aí proferidas (despacho de 06-12-2021 – referência 150444466).
Ulteriormente, foi expressamente solicitada informação sobre a prolação de sentença nos referidos autos com nota do respetivo trânsito em julgado (despacho de 20-04-2022 – referência 152436636).
1.7 – Por requerimento de 19-04-2023 (referência 45348014), os réus pugnaram pela prolação de saneador-sentença, ponderando quer as exceções arguidas na contestação, quer a ineptidão da petição inicial suscitada em tal requerimento.
Tal vício, na perspetiva dos réus decorre de:
- Não terem sido especificados os atos dos gerentes que violam disposições legais ou contratuais destinadas a proteger os credores ou que consubstanciam uma utilização ilícita da personalidade coletiva;
- Falta de alegação de factos que evidenciem um nexo de causalidade entre tal atuação e a afetação do património social, em detrimento dos credores.
1.8 – Falecida na pendência da causa a ré C, foi suspensa a instância em 13-06-2023 (despacho com a referência 157194835, no qual foi relegada para momento ulterior a apreciação do requerimento mencionado no ponto anterior), e, de seguida, proferida sentença que julgou habilitados como seus sucessores F, B e G (decisão de 23-10-2023 – referência 158483129).
1.9 – Em 04-01-2024, foi proferido despacho saneador-sentença, no qual foram julgadas improcedentes as exceções de ilegitimidade, de ausência de interesse em agir dos réus, de litispendência e de existência de causa prejudicial, e indeferida a arguida inutilidade superveniente da lide.
Em tal decisão, foi conhecida e julgada procedente a exceção perentória de prescrição deduzida pelos réus e indeferido o pedido de condenação da autora como litigante de má fé.
2 – Não se conformando com a decisão proferida, a autora “Frutas C... – Comércio de Frutas, Ldª” da mesma interpôs recurso de apelação, pugnando pela sua revogação, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões, que se transcrevem: “I. O presente recurso tem como objeto a matéria de Direito da decisão proferida nos presentes autos, que julgou prescrito o direito da Autora, aqui Apelante/Recorrente, de intentar a ação cuja sentença se coloca em crivo. II. Quanto à matéria de direito, mal andou o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, desde logo porque o prazo de prescrição aplicável ao caso concreto é de 5 (cinco) anos e não de 3 (Três), nos termos do n.º 2 do artigo 174.º do Código das Sociedades Comerciais. III. Ainda que por esta via não o fosse, o prazo permaneceria de 5 (cinco) anos, porquanto a Autora, aqui Apelante/Recorrente, enuncia uma realidade fáctica que, pelo menos em abstrato, configura a prática do crime de Insolvência Dolosa, nos termos e para os efeitos dos artigos 498.º n.º 3 do Código Civil com o disposto no artigo 174.º n.os 2 e 5 do Código das Sociedades Comerciais, quando por via dos artigos 227.º n.º1 ex vi 227.º n.º 3, ambos do Código Penal, conjugados com o disposto no artigo 118.º n.º1 c), também este do Código Penal. IV. Ainda que assim não fosse, mal andou o Tribunal a quo ao entender que a aqui Recorrente tomou conhecimento de determinado facto, na altura em [que o] alega em sede de Incidente de Qualificação de Insolvência, algo que não se concebe, só poderá começar a correr, quando muito, a 26/04/2022 (data do trânsito em julgado da sentença prolatada no âmbito do proc. 746/17.4T8VFX-A), com a comprovação dos factos, pelo que sempre se teria de concluir por «não prescrito», V. A eventual interpretação do artigo 498.º n.º 1, do CPC no sentido de os factos sujeitos a comprovação judicial serem do conhecimento do aqui Recorrente em momento anterior ao trânsito em julgado de Sentença que os dê como “provados” sempre seria inconstitucional, por violação do disposto no artigo 12.º e o artigo 20.º, ambos da Constituição da República Portuguesa, devendo ser interpretada no sentido oposto. VI. Ainda que não entendesse de acordo com as conclusões supra, sempre se teria de concluir por «não prescrito» o direito de a Autora intentar a ação em crivo, dado que, mesmo que o prazo de prescrição fosse de 3 (Três) anos, o que não é, sempre terá de ser contabilizada a suspensão dos prazos de prescrição que teve efeito por força do regime excecional do art. 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 março de 2020 (com a redação dada pela Lei n.º 4-A/2020, de 06 de abril de 2020) que decretou medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARSCoV- 2 e pela doença COVID-19. VII. Assim, ao decidir como decidiu – i. e., julgando prescrito o direito da Autora – o Tribunal a quo violou o disposto no n.º 2 e n.º 5 do artigo 174.º do Código das Sociedades Comerciais, o disposto no artigo 498.º n.º 1 e 3 do Código Civil, quando por via dos artigos 227.º n.º1 ex vi 227.º n.º 3, ambos do Código Penal, conjugados com o disposto no artigo 118.º n.º1 c), também este do Código Penal, o disposto nos artigos 12.º e 20.º, ambos da Constituição da República Portuguesa e o disposto no artigo 7.º, n.º 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 março de 2020 (com a redação dada pela Lei n.º 4-A/2020, de 06 de abril de 2020), preceitos estes que deveriam ter sido interpretados no sentido de que afirmar que o direito de a Autora intentar a presente ação não se encontrava prescrito. VIII. Pelo que, revogando a decisão revidenda e substituindo-se por outra do seguinte modo: «concedendo-se a apelação e revogando-se a decisão revidenda, substituindo-se por outra que julgue improcedente a invocada exceção de prescrição, prosseguindo os autos os seus ulteriores termos. VV. Exas. suprirão, concedendo-se a apelação e revogando-se a decisão revidenda, substituindo- se por outra que julgue improcedente a invocada exceção de prescrição, prosseguindo os autos os seus ulteriores termos (…)».
3. Os réus apresentaram contra-alegações, com pedido subsidiário de ampliação do âmbito do recurso, pugnando pela manutenção do decidido no que se reporta à exceção de prescrição.
Assim, para a hipótese de o tribunal entender não se encontrar prescrito o direito invocado pela autora/recorrente, requereram os réus subsidiariamente, ao abrigo do disposto no artigo 636º, nº 1, CPC, a ampliação do objeto do recurso, para conhecimento das exceções que invocaram.
No âmbito do recurso subsidiário, os réus apresentaram as seguintes conclusões:
“DA INEPTIDÃO DA PETIÇÃO INICIAL 38. A Recorrente não indicou que atos do(s) gerente(s) da sociedade são suscetíveis de consubstanciar: - a alegada inobservância culposa das disposições legais ou contratuais destinadas à proteção dos credores; ou uma utilização ilícita ou abusiva da personalidade coletiva; nem - os factos determinantes de um nexo de causalidade entre a atuação e a alegada afetação do património social, em detrimento dos seus credores. 39. A sentença proferida no incidente de qualificação da insolvência da sociedade E Unipessoal, Lda. não dispensava a Recorrente de invocar, específica e concretamente, os factos que constituem o fundamento da presente ação. 40. A mencionada sentença proferida no incidente de qualificação da insolvência da sociedade El, Unipessoal, Lda. não tem valor extraprocessual (cfr., no mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 29/09/2022, acima transcrito parcialmente). 41. Por outro lado, conforme alegado, pelos réus, por requerimento de 19/04/2023, à semelhança da ora Recorrente Frutas C... - Comércio de Frutas Lda., uma outra credora da sociedade insolvente El, Unipessoal, Lda. (no caso, a credora Frutas N… & Filhos, Lda.), representada pelo mesmo mandatário da ora Recorrente, intentou na mesma altura da presente ação, uma ação em tudo semelhante à presente (com a mesma causa de pedir e com o mesmo pedido) também contra os mesmos réus, a qual correu termos no Juiz … do Juízo Local Cível de Loures, sob o n.º /20.0T8LRS. 42. As petições iniciais apresentadas na referida ação e na presente ação são em tudo similares, e, no caso da referida ação, o Tribunal proferiu, em 12/04/2021, despacho saneador-sentença (transitado em julgado), nos termos do qual julgou verificada a nulidade de todo o processado, por ineptidão da petição inicial, na modalidade de falta da causa de pedir, e, em consequência, absolveu os ora Réus da instância (cfr. despacho saneador-sentença junto aos autos como Doc. n.º 1 do requerimento dos réus de 19/04/2023, constante dos autos). 43. Em linha com o princípio constitucional do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, a Lei estabelece que o Tribunal deve decidir todas as questões que as partes submetam à sua apreciação (cfr. art.º 2.º, n.º 1 e art.º 608.º, n.º 2, ambos do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE e art.º 20 da Constituição da República Portuguesa). 44. A ineptidão da petição inicial consubstancia uma exceção dilatória de conhecimento oficioso, nos termos do disposto no artigo 578.º, n.º 1 do CPC, pelo que deveria ter o Tribunal “a quo” conhecido e apreciado a exceção de ineptidão da petição inicial, invocada pelos réus (cfr. contestação dos réus de 07/07/2020 e requerimento dos réus de 19/04/2023, ambos constantes dos autos) e, em consequência, julgado verificada a nulidade de todo o processado, por ineptidão da petição inicial, na modalidade de falta da causa de pedir, absolvendo todos os réus da instância (cfr. 186.º, n.º 1 e 2, alínea a), arts. 202.º, 278.º, n.º 1, alínea b), 576.º, n.º 1 e 2, 577.º, alínea b) e 578.º, todos do C.P.C.). 45. Não tendo o Tribunal “a quo” conhecido, nem apreciado a referida exceção dilatória de conhecimento oficioso, argui-se, a título subsidiário, a nulidade da sentença recorrida nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC. DA ILEGITMIDADE PASSIVA DA RÉ D, UNIPESSOAL, LDA. E DA RÉ C 46. O acordo alcançado em sede de providência cautelar, cujo incumprimento subjaz à presente ação, foi celebrado, apenas e tão só, entre a Recorrente, a sociedade E Unipessoal Lda., o Réu A e a Ré B (cfr. acordo constante do auto de arresto junto aos autos pela Recorrente como Doc. n.º 4 da sua petição inicial). 47. A Ré D, Unipessoal, Lda. e a Ré C, então sócia gerente daquela (entretanto falecida e sucedida nestes autos pelos seus herdeiros) nunca intervieram no âmbito do referido acordo em qualquer qualidade ou a qualquer título, sob qualquer natureza ou forma, assim como, também, nunca intervieram no âmbito do acordo de fornecimento que tinha sido celebrado, em 2014, entre a Recorrente e a sociedade E Unipessoal Lda. e que sustentou a providência cautelar (tanto que, à data, a Ré D, Unipessoal, Lda. nem sequer ainda tinha sido constituída), 48. De onde resulta que tanto a Ré D, Unipessoal, Lda. como a Ré C são completamente alheias ao crédito que fundamenta a presente ação, não reunindo nenhum dos mais elementares requisitos de legitimidade processual e substantiva para assumirem a qualidade de Rés / devedoras. 49. Não tendo sido julgada procedente a exceção dilatória de ilegitimidade das partes e, em concreto, a ilegitimidade passiva da Ré D, Unipessoal, Lda. e da Ré C (entretanto falecida e aqui sucedida pelos seus herdeiros), o Tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 577.º, alínea e) do CPC, que deveria ter sido interpretado no sentido da procedência da referida exceção, obstando ao conhecimento do mérito da causa e dando lugar à absolvição da instância das referidas Rés (incluindo os herdeiros da Ré falecida que entretanto lhe sucederam nestes autos), nos termos dos artigos 578.º, 278.º, n.º 1, alíneas d) e e) e 576.º, n.º 2 do CPC. DA AUSÊNCIA DE INTERESSE DIRETO EM CONTRADIZER POR PARTE DA RÉ D, UNIPESSOAL, LDA. E POR PARTE DA RÉ C 50. Da falta de legitimidade passiva da Ré D, Unipessoal, Lda. e da Ré C resulta, também, a ausência de interesse direto em contradizer (cfr. art.º 30.º, n.º 1 e 2 do CPC). 51. Mostrando-se a Ré D, Unipessoal, Lda. e a Ré C alheias ao crédito que fundamenta a presente ação, não se vislumbra, por parte das referidas Rés, interesse direto em contradizer a presente ação, dado que a decisão que venha a ser proferida nos presentes autos nunca poderá incidir e regular a sua situação concreta. 52. Não tendo sido julgada procedente a exceção dilatória inominada de ausência de interesse direto em contradizer por parte da Ré D, Unipessoal, Lda. e da Ré C (entretanto falecida e aqui sucedida pelos seus herdeiros), o Tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 576.º, n.º 2 do CPC, que deveria ter sido interpretado no sentido da procedência da referida exceção, obstando ao conhecimento do mérito da causa e dando lugar à absolvição da instância das referidas Rés (incluindo os herdeiros da Ré falecida que entretanto lhe sucederam nestes autos), nos termos dos artigos 578.º, 278.º, n.º 1, alínea e) e e) e 576, n.º 2 do CPC. DA ILEGITMIDADE PASSIVA DO RÉU A E DA RÉ B 53. À data da instauração da presente ação, o Réu A e a Ré B tinham sido declarados insolventes. 54. Estabelece a Lei que o administrador de insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência (cfr. art.º 81.º, n.º 4 do CIRE). 55. O pedido da Recorrente comporta efeitos patrimoniais na esfera jurídica dos insolventes, pelo que, em vez de ter sido intentada contra os referidos réus, a presente ação deveria ter sido intentada contra o administrador de insolvência designado em cada um dos correspondentes processos de insolvência em sua representação (cfr. art.º 81.º, n.º 4 do CIRE). 56. Assumindo o administrador de insolvência a representação do insolvente, tanto o Réu A, como a Ré B não reuniam os requisitos de legitimidade processual e substantiva para assumirem a qualidade de Réus / devedores. 57. Não tendo sido julgada procedente a exceção dilatória de ilegitimidade das partes e, em concreto, de ilegitimidade passiva do Réu A e da Ré B, o Tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 577.º, alínea e) do CPC, que deveria ter sido interpretado no sentido da procedência da referida exceção, obstando ao conhecimento do mérito da causa, dando lugar à absolvição da instância dos referidos Réus, nos termos dos artigos 578.º, 278.º, n.º 1, alíneas d) e e) e 576.º, n.º 2 do CPC. DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA DO RÉU A E DÀ RÉ B 58. O pretenso crédito da Recorrente, que fundamenta a presente ação, não consubstancia nenhum crédito “novo”, ou seja, posterior à declaração de insolvência dos Réus A e B, mas antes um crédito pré-existente à data da respetiva declaração de insolvência. 59. Tanto que o crédito da Recorrente foi reconhecido, quer no processo de insolvência do Réu A (pelo valor de € 55.000,00), quer no processo de insolvência da Ré B (pelo valor de € 55.662,46) (cfr. lista de credores reconhecidos em cada um dos respetivos processos, juntas, respetivamente como Doc. n.º 3 e 4 da contestação dos réus de 07/07/2020, constante dos autos). 60. A declaração de insolvência veda aos credores da insolvência (no caso, a Recorrente) a instauração de novas ações que visem o reconhecimento do mesmo crédito e/ou a condenação dos insolventes no respetivo pagamento, mesmo depois de encerrado o processo de insolvência (cfr. art.º 90.º do CIRE) (cfr. o acórdão de uniformização de jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, em 25/02/2014, acima transcrito parcialmente e cfr., ainda, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19/05/2014, acima transcrito parcialmente). 61. A declaração de insolvência do Réu A e da Ré B acarretou, assim, a inutilidade superveniente da presente lide uma vez que o reconhecimento e/ou exercício de quaisquer direitos de crédito em relação aos insolventes deveria sempre subordinar-se às regras legais estabelecidas no CIRE, devendo, para o efeito, fazer-se uso dos mecanismos nele previstos, designadamente da reclamação de créditos (cfr. art.º 128.º do CIRE) e da verificação ulterior de créditos (cfr. art.º 146.º do CIRE) (cfr., no mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 06/07/2017, acima transcrito parcialmente). 62. Mesmo na hipótese, que não se concede, de uma decisão definitiva nos presentes autos que reconhecesse o alegado crédito da Recorrente, a mesma não a dispensaria de o ter reclamado no processo de insolvência do Réu A e da Ré B, porquanto a verificação de créditos tem por objeto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, incluindo os que tenham sido reconhecidos por decisão definitiva (cfr. art.º 128.º, n.º 5 do CIRE), 63. Além de que sempre estaria vedado à Recorrente a instauração ou o prosseguimento de qualquer ação executiva contra os Réus insolventes, porquanto, aquando da instauração da presente ação, as ações executivas encontravam-se suspensas contra o Réu A e contra a Ré B, primeiramente, por força da respetiva declaração de insolvência (cfr. art.º 88.º, n.º 1 do CIRE) e, depois – após o encerramento do processo de insolvência –, por força da aplicação do regime legal do procedimento da exoneração do passivo restante (cfr. art.º 239.º, n.º 5 do CIRE), que tinha sido liminarmente deferido em ambos os processos de insolvência, respetivamente em 13/06/2017 e em 08/10/2018 (cfr. despachos iniciais sobre a exoneração do passivo restante, juntos como Docs. n.º 5 e 6 da contestação dos réus de 07/07/2020, constante dos autos). 64. Não tendo sido julgada procedente a exceção dilatória inominada de ausência de interesse em agir por parte da Recorrente em resultado da inutilidade da presente lide, o Tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 576.º, n.º 2 do CPC, que deveria ter sido interpretado no sentido da procedência da referida exceção, declarando a extinção da instância nos termos do artigo 277.º, alínea e) do CPC, obstando ao conhecimento do mérito da causa e dando lugar à absolvição da instância do Réu A e da Ré B, nos termos dos artigos 578.º, 278.º, n.º 1, alínea e) e 576, n.º 2 do CPC). DO PROCEDIMENTO DE EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE DO RÉU A E DA RÉ B 65. A presente ação foi instaurada em 2020, ou seja, enquanto vigorava o período de cessão inerente ao procedimento da exoneração do passivo restante do Réu A e da Ré B – vigência esta que impedia a instauração de ações contra os mesmos. 66. O direito de indemnização no valor de € 61.938,90 peticionado, pela Recorrente, na presente ação radica única e diretamente no incumprimento de um acordo alcançado em sede de diligência de arresto que teve lugar no dia 21/06/2016, homologado por sentença – acordo, este, que teve por objeto o pretenso crédito da Recorrente decorrente do fornecimento, no âmbito da sua atividade comercial e durante o ano de 2014, de artigos do seu comércio à sociedade E Unipessoal Lda. (cfr. ponto 4 da petição inicial da Recorrente, constante dos autos). 67. O crédito da Recorrente, que fundamenta a presente ação, foi reconhecido quer no processo de insolvência do Réu A, quer no processo da Ré B (cfr. lista de credores reconhecidos em cada um dos respetivos processos, juntas como Doc. n.º 3 e 4 da contestação dos réus de 07/07/2020, constante dos autos). 68. O crédito da Recorrente também foi reconhecido no âmbito do processo de insolvência da sociedade E, Unipessoal, Lda. pelo valor de € 61.938,90 (cfr. lista de credores reconhecidos e respetiva sentença de verificação de créditos, juntas, respetivamente, como Docs. n.º 9 e 10 da contestação dos réus de 07/07/2020, constante dos autos). 69. A exoneração do passivo restante foi, entretanto, definitivamente concedida aos referidos réus, o que importou a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistiam, entre os quais, o crédito da Recorrente (cfr. art.º 245.º, n.º 1 do CIRE), pelo que o prosseguimento da presente ação instaurada pela Recorrente carece de utilidade. 70. Com a presente ação, a Recorrente pretendeu apenas contornar o facto de não ter conseguido obter o ressarcimento do seu crédito em nenhum dos aludidos processos de insolvência, por falta de património. 71. Não tendo sido julgada procedente a exceção dilatória inominada de ausência de interesse em agir por parte da Recorrente em resultado da inutilidade da presente lide, o Tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 576.º, n.º 2 do CPC, que deveria ter sido interpretado no sentido da procedência da referida exceção, declarando a extinção da instância nos termos do artigo 277.º, alínea e) do CPC, obstando ao conhecimento do mérito da causa e dando lugar à absolvição da instância do Réu A e da Ré B, nos termos dos artigos 578.º, 278.º, n.º 1, alínea e) e 576, n.º 2 do CPC). DO INCIDENTE DE QUALIFICAÇÃO DA INSOLVÊNCIA DA SOCIEDADE E, UNIPESSOAL, LDA. 72. Na altura da instauração da presente ação, encontrava-se pendente um incidente de qualificação de insolvência da sociedade E Unipessoal Lda. (cfr. ponto 31 e seguintes da petição inicial da Recorrente, constante dos autos), tendo a Recorrente requerido no aludido incidente, entre outros, a condenação dos referidos Réus a indemnizar os credores nos montantes não satisfeitos. 73. O incidente de qualificação de insolvência foi a sede própria para a discussão da existência ou não de uma atuação, dolosa ou com culpa grave, da sociedade devedora ou dos seus gerentes (de direito ou de facto) que tenha criado ou agravado a situação de insolvência. 74. Existindo um procedimento especial previsto no CIRE para apreciação de factos ilícitos praticados por gerentes de sociedades insolventes (cfr. art.º 188.º e seguintes do CIRE), verifica-se erro no recurso por parte da Recorrente ao presente processo civil comum. 75. Não tendo sido julgada procedente a exceção dilatória inominada de erro no recurso à presente ação, o Tribunal “a quo” violou o disposto no artigo 576.º, n.º 2 do CPC, que deveria ter sido interpretado no sentido da procedência da referida exceção, obstando ao conhecimento do mérito da causa e dando lugar à absolvição da instância de todos os réus, nos termos dos artigos 578.º, 278.º, n.º 1, alínea e) e 576, n.º 2 do CPC. 76. Por sua vez, a insolvência da sociedade El Unipessoal Lda. acabou por ser, entretanto, qualificada como culposa, tendo os Réus A e B sido afetados pela qualificação da insolvência e condenados a indemnizar os credores da sociedade El, Unipessoal, Lda., entre os quais, a ora Recorrente por referência ao valor dos créditos reconhecidos no processo de insolvência da referida sociedade (cfr. autos). 77. A Recorrente já obteve, assim, a condenação dos réus no pagamento de uma indemnização que tem por referência o valor do seu crédito sobre a insolvência (a mesma indemnização peticionada nos presentes autos). 78. A prossecução da presente ação levaria a que este douto Tribunal fosse colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir a decisão que foi, entretanto, proferida no mencionado incidente (cfr. art.º 580.º, n.º 2 do CPC). 79. Não sendo despiciendo referir que uma hipotética condenação dos réus nos presentes autos conduziria a uma duplicidade ilegal de condenações e a um consequente enriquecimento sem causa da Recorrente a receber duas vezes (!) o valor do seu crédito. 80. Na altura em que a presente ação foi instaurada, havia litispendência (cfr. art.º 581.º do CPC) – situação que, entretanto, se converteu em caso julgado – o que, de uma ou de outra maneira, consubstancia uma exceção dilatória, nos termos do artigo 577.º, alínea i) do CPC, de conhecimento oficioso, pelo que não tendo sido julgada esta exceção procedente, o Tribunal “a quo” violou a referida norma, que deveria ter sido interpretada no sentido da respetiva procedência, obstando ao conhecimento do mérito da causa e dando lugar à absolvição da instância de todos os réus, nos termos dos artigos 578.º, 278.º, n.º 1, alíneas e) e 576.º, n.º 2 do CPC). DA CONDENAÇÃO DA AUTORA (ORA RECORRENTE) EM LITIGÂNCIA DE MÁ-FÉ 81. A atuação da Recorrente consubstancia litigância de má-fé passível de condenação em multa e de condenação numa indemnização aos réus (cfr. art.º 417.º, n.º 1 e 2 e art.º 542.º, n.º 1, ambos do CPC), na medida em que a Recorrente deduziu pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar; alterou a verdade dos factos e omitiu factos relevantes para a decisão da causa; e fez do processo e dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, de impedir a descoberta da verdade e de entorpecer a ação da justiça (cfr. art.º 542.º, n.º 2, al. a), b) e d) do CPC). 82. A conduta da Recorrente foi claramente dolosa, pois tinha amplo conhecimento de todos os processos de insolvência dos referidos réus, tanto que neles interviu e inclusivamente foi quem deduziu o incidente de qualificação da insolvência da sociedade E, Unipessoal, Lda., requerendo aí a condenação solidária daqueles réus no pagamento do crédito da Recorrente. 83. Mais sabia a Recorrente que o Réu A e a Ré B estavam obrigados a entregar ao respetivo fiduciário todo o remanescente do seu rendimento indisponível e cujo valor se destinaria, entre outros, ao pagamento dos credores da insolvência, entre os quais a Recorrente (cfr. art.º 241.º, n.º 1, al. d) do CIRE), 84. Ainda assim não se coibiu de vir, à margem do processo de insolvência e das regras que regem o procedimento de exoneração do passivo restante, procurar obter a satisfação do seu crédito em detrimento de todos os demais credores, fazendo do processo e dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal (cfr art.º 542.º, 2, al. d) do CPC). 85. Pretende-se, ainda, que este douto Tribunal, a título subsidiário, conheça e aprecie os fundamentos em que os ora Recorridos (parte vencedora) decaíram no que diz respeito à condenação da Recorrente em multa e numa indemnização aos réus, conforme à correta interpretação das disposições conjugadas dos artigos 542.º, n.º 1 e 2, al. a), b) e d) e art.º 543.º do CPC (…).”
4. Foi admitido o recurso, bem como a sua ampliação, como apelação, com subida imediata e nos próprios autos e efeito devolutivo.
5. Remetidos os autos a este tribunal em 08-07-2024, constatando-se que a exceção de ineptidão da petição inicial não fora conhecida na decisão recorrida e perspetivando-se o seu conhecimento por este Tribunal da Relação, foi determinada a notificação de ambas as partes para se pronunciarem nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 665º, nº 3, CPC.
A autora salientou que apenas a procedência do recurso por si interposto justifica o conhecimento da exceção de ineptidão da petição inicial, ao mesmo nada opondo, salientando que a sua arguição não foi efetuada separadamente como impõe o artigo 572º, alínea c), CPC e que não se verifica ressalvando, para o caso de entendimento contrário, o facto de os réus terem interpretado convenientemente tal articulado, o que sempre determinaria a sua improcedência, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 186º, CPC.
Os réus reiteraram que a autora não invocou cabalmente os factos que constituem a causa de pedir, identificando ação na qual foi apresentada petição inicial similar, instaurada por outra credora da “E Unipessoal, Ldª” em que, por decisão já transitada em julgado, foi julgada verificada a nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, concluindo que também nos presentes autos opera tal exceção.
6. Inscrito o recurso em tabela, foram colhidos os vistos legais, cumprindo apreciar e decidir.
II – QUESTÕES A DECIDIR
O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação, ressalvadas as matérias de conhecimento oficioso pelo tribunal, bem como as questões suscitadas em ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, nos termos do disposto nos artigos 608, nº 2, parte final, ex vi artigo 663º, nº 2, 635º, nº 4, 636º e 639º, nº 1, CPC.
Assim, no recurso principal, a questão a decidir identifica-se com o conhecimento da prescrição do direito invocado pela autora.
No recurso subordinado, deduzido pelos réus apenas para a hipótese de procedência do recurso principal, as questões a decidir são as seguintes:
- Exceção dilatória de ineptidão da petição inicial;
- Exceção dilatória de ilegitimidade passiva da Ré D, Unipessoal, Lda. e da Ré C;
- Exceção dilatória inominada de ausência de interesse direto em contradizer da Ré D, Unipessoal, Lda. e da Ré C;
- Exceção dilatória de ilegitimidade passiva do Réu A e da Ré B;
- Exceção dilatória inominada de ausência de interesse em agir decorrente de inutilidade da lide relativamente aos réus A e B, por força da sua declaração de insolvência;
- Exceção dilatória inominada de ausência de interesse em agir decorrente de inutilidade da lide em relação aos réus A e B, por força do respetivo procedimento de exoneração do passivo restante;
- Exceção dilatória inominada de erro no recurso à presente ação;
- Exceção dilatória de litispendência/ caso julgado;
- Litigância de má fé da autora.
A - Da prescrição
Debate-se nos autos, desde logo, a questão do prazo de prescrição a ponderar, designadamente se deve ser considerado o de três anos inerente à responsabilidade civil extracontratual (cfr. artigo 498º, nº 1, Código Civil), como defenderam os réus, bem como a decisão recorrida, ou prazo mais longo (de cinco anos) por o facto ilícito constituir crime, nos termos do nº 3 do artigo 498º, Código Civil, como defende a autora.
A prescrição, consubstanciando uma exceção perentória inominada, desencadeadora da absolvição do réu do pedido (cfr. artigo 576º, nºs 1 e 3, CPC), constitui uma particular forma de extinção dos direitos, mediante o simples decurso de um lapso temporal. Assim, “se o titular de um direito o não exercer durante certo tempo fixado na lei, extingue-se esse direito. Diz-se, nestes casos, que o direito prescreveu (ou caducou)” - Mota Pinto[1]. A prescrição inscreve-se, assim, na problemática da repercussão do tempo nas relações jurídicas, devendo ser invocada por aquele a quem aproveita – cfr. artigos 296º e ss e 303º, Código Civil – iniciando o seu curso “quando o direito puder ser exercido; se, porém o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição” – cfr. artigo 306º, nº 1, Código Civil.
Ponderando a causa de pedir invocada a título principal pela autora, dúvidas não restam de que imputa aos réus a prática de factos ilícitos, no domínio da responsabilidade civil extracontratual.
Efetivamente, embora alegando um inicial incumprimento contratual, decorrente da falta de pagamento de bens fornecidos, incumprimento esse assumido em transação celebrada em procedimento cautelar de arresto, a autora estruturou a causa de pedir tendo por base a imputação aos réus de um facto, ilícito, culposo, gerador de danos causalmente ligados à conduta daqueles.
Sob a epígrafe “Prescrição”, dispõe o artigo 498º, CC:
“1. O direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso. 2. Prescreve igualmente no prazo de três anos, a contar do cumprimento, o direito de regresso entre os responsáveis. 3. Se o facto ilícito constituir crime para o qual a lei estabeleça prescrição sujeita a prazo mais longo, é este o prazo aplicável (…)”.
No despacho saneador-sentença, considerando-se que os autos continham todos os elementos para decidir a exceção de prescrição, foi proferida a seguinte decisão, que se reproduz: “Mais excecionaram os réus a prescrição do alegado direito de indemnização da autora, nos termos do disposto 498.º, n.º 1, do Código Civil. Para tanto alegaram, por um lado, que a sociedade ré “D Unipessoal, L.da” foi constituída em 22.09.2016, a insolvência da sociedade “E Unipessoal L.da” foi declarada em 07.03.2017 e as insolvências do réu A e da ré B foram declaradas, respetivamente, em 06.04.2017 e em 31.03.2017; por outro, que a autora interveio, pela primeira vez, no processo de insolvência da sociedade “E Unipessoal Lda em 23.03.2017, no processo de insolvência do réu A em 13.04.2017 e deduziu contra a sociedade “E Unipessoal Lda” incidente de qualificação de insolvência em 10.04.2017, tendo nesse requerimento «invocado, essencialmente, os mesmos fundamentos que invoca na petição inicial que deu origem à presente ação», podendo concluir-se que, pelo menos em 10.04.2017, «a autora já tinha amplo conhecimento de todos os factos que constituem a causa de pedir na presente ação e que sustentam a pretensa responsabilidade civil delitual de todos os réus» podendo, desde esta data, exercer o seu alegado direito de indemnização. Concluiu que o direito da autora se encontra prescrito nos termos do artigo 498.º, n.º 1 do Código Civil. A autora respondeu que «só teve conhecimento da prática efetiva desses factos e consciência da possibilidade legal do ressarcimento aquando a instauração da referida petição inicial» e que «o facto danoso não está na criação por si da sociedade comercial aqui Ré ou na intervenção da Autora nos processos de insolvência dos Réus, mas sim, em todo o tempo de atuação comercial que a mesma desempenhou e ainda desempenha nos dias de hoje», concluindo por pedir a improcedência desta exceção. Apreciando e decidindo. A prescrição traduz-se na perda ou extinção de um direito disponível ou que a Lei não declare estar isento de prescrição verificada pelo seu não exercício durante certo lapso de tempo – cf. artigo 298.º, n.º 1, do Código Civil. Nos termos do disposto no artigo 304.º, n.º 1, do mesmo diploma legal, tem o beneficiário [da prescrição] a faculdade de recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do direito prescrito. Por seu turno, dispõe o artigo 306.º do Código Civil que o prazo da prescrição começa a correr quando o direito puder ser exercido; se, porém, o beneficiário da prescrição só estiver obrigado a cumprir decorrido certo tempo sobre a interpelação, só findo esse tempo se inicia o prazo da prescrição. O artigo 309.º do mesmo diploma estabelece o prazo ordinário da prescrição em vinte anos. Por fim, dispõe o artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil que o direito de indemnização prescreve no prazo de três anos, a contar da data em que o lesado teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos, sem prejuízo da prescrição ordinária se tiver decorrido o respetivo prazo a contar do facto danoso. Analisemos se se mostram preenchidos os pressupostos para a verificação da prescrição alegada. Adianta-se desde já que, no entender deste Tribunal, se mostram preenchidos os pressupostos de verificação da prescrição do direito da autora a ser indemnizada, tendo em conta a conjugação do disposto nos artigos 498.º, n.º 1 e 306.º, n.º 1, ambos do Código Civil. Com efeito, o prazo de prescrição de três anos, referido no artigo 498.º, n.º 1, do Código Civil (aplicável ao caso em apreço, atento o enquadramento jurídico apresentado pela autora, de responsabilidade civil delitual e comportamento abusivo), começa a correr a contar da data em que o lesado [autora] teve conhecimento do direito que lhe compete, embora com desconhecimento da pessoa do responsável e da extensão integral dos danos. Ou seja, o prazo de três anos começa a contar a partir da data em que a autora tomou conhecimento do facto gerador da responsabilidade civil. Alegam os réus que esse conhecimento existia, pelo menos, à data em que a autora deduziu contra a sociedade “E Unipessoal L.da” incidente de qualificação de insolvência em 10.04.2017, posto que nesse requerimento já alegam os factos que alegam na petição inicial dos presentes autos. Com efeito, e como resulta do teor do documento n.º 11 junto com a contestação, consta-se que a ora autora invocou os seguintes factos em sede de incidente de qualificação de insolvência, em 10.04.2017: a. «(…) se é verdade que a sede da sociedade é na Rua Estado da India n.º…º esq. 2685-003 Sacavém Prior Velho contudo a mesmo nunca lá laborou» (artigo 2.º); b. «(…) esta diligência ocorreu nas efetivas instalações da sociedade insolventes sitas em Rua A. Armazém …. – Quinta São João das Areias, 2685 – Prior Velho» (artigo 9.º); c. «(…) em 22-09-2016 foi constituída uma nova sociedade de nome D, Unipessoal Lda. NIF 514125314 com sede nas instalações descritas no ponto 9) – ponto 2 destes factos (artigo 13.º); d. «O ramo de atividade é o mesmo da sociedade insolvente» (artigo 14.º); e. «Mas desta vez como a sociedade já não podia estar em nome dos aqui requeridos, figura na mesma a mãe da requerida, C» (artigo 15.º); f. «Pelo que, é notório que os aqui requeridos bem sabiam que não iriam honrar o seu compromisso» (artigo 16.º); g. «Tendo transferido para esta sociedade a sua clientela e o seu património e a sua mão de obra» (artigo 17.º); h. «Prosseguindo por conseguinte os requeridos a sua atividade limpa de passivo» (artigo 18.º); i. «Aliás se dúvidas restassem observe-se que no dia 21-02-2017 ocorreu uma diligência de penhora de bens móveis nas instalações sitas na morada descrita no ponto 9)» – ponto 2 destes factos - «no processo que sob o nº …/16.5T8LRS corre termos no T.J.C. LISBOA NORTE - Instância Central Secção de Execução de Loures» (artigo 19.º); j. «Tendo-se apurado que, não obstante ter sido exibido um contrato de arrendamento em que figura como inquilina a sociedade descrita no ponto 13), tudo era igual» (artigo 20.º); k. «Existindo sinais que lá funciona a sociedade insolvente, nomeadamente caixas e demais material» (artigo 21.º) e l. «Se dúvidas existissem no que respeita à ligação estreita entre estas duas sociedades atente-se que quem subscreve o contrato em nome da inquilina é a requerida B» (artigo 22.º). E, como refere a autora, no artigo 50.º da sua petição inicial, a mesma sustenta o seu pedido de responsabilidade delitual dos réus (tal como o pedido subsidiário) nos «factos descritos nos pontos 14 a 47 da presente petição inicial». Ora, o alegado nos artigos 14.º e 27.º era do conhecimento da autora em data anterior à data da dedução do incidente de qualificação de insolvência. Por seu turno, o alegado nos artigos 15.º, 16.º, 19.º, 20.º, 21.º, 23.º, 26.º, 42.º, 43.º e 47.º consubstancia-se em juízos conclusivos ou irrelevantes para sustentar os pedidos formulados na presente ação. E o alegado nos artigos 31.º e 32.º refere-se ao Relatório do Administrador de Insolvência e ao Parecer do Ministério Público, sendo que os artigos 33.º a 41.º dizem respeito à conduta da ora segunda ré no âmbito das diligências e contactos entre esta e o Administrador Judicial. Donde se conclui que a matéria relevante para a autora sustentar os seus pedidos consta dos artigos 17.º, 18.º, 22.º, 24.º, 25.º, 28.º, 29.º, 30.º, 44.º, 45.º e 46.º da petição inicial. Que, como resulta dos pontos de facto alegados no âmbito do incidente de qualificação de insolvência, já eram do conhecimento da autora em 10 de abril de 2017. Tendo a presente ação dado entrada em Tribunal no dia 28 de maio de 2020, resulta evidente que o direito da autora se encontrava, a esta data, prescrito. Pelo exposto, conclui-se que se mostram verificados os pressupostos da prescrição do direito alegado pela autora, julgando-se procedente a exceção perentória de prescrição deduzida pelos réus.”
Interpretando a decisão recorrida, verifica-se que ali se considerou que os factos relevantes para sustentar o pedido que a autora deduziu contra os réus são os que foram alegados nos artigos 17.º, 18.º, 22.º, 24.º, 25.º, 28.º, 29.º, 30.º, 44.º, 45.º e 46.ºda petição inicial. Ora, como tais factos já haviam sido alegados pela autora no incidente de qualificação da insolvência em 10-04-2017, no momento da instauração da ação (28-05-2020), considerou o tribunal recorrido que se mostrava prescrito o direito em discussão nos autos, por decurso do prazo de 3 anos, previsto no artigo 498º, nº 1, CC.
Tal decisão não mereceu a concordância da autora por considerar que a factualidade na qual suportou a causa de pedir é subsumível ao crime de insolvência dolosa, defendendo que o prazo de prescrição a considerar é o de cinco anos, nos termos do disposto nos artigos 498, nº 3, CC, 174º, nºs 2 e 4 CSC, 227º, nºs 1 e nº 3, e 118º, nº 1, alínea c), do Código Penal. Para o caso de assim não se entender, na tese da recorrente sempre haveria que ponderar o regime da suspensão de prazos decorrente do regime excecional criado pela Lei 1-A/2020, de 19-03, para vigorar na época da pandemia de COVID.
Apreciando a questão suscitada, verifica-se que o tribunal recorrido não ponderou a aplicação do prazo prescricional mais longo, previsto no nº 3 do artigo 498º, CC, não tendo equacionado a circunstância de os factos que sustentam a causa de pedir serem suscetíveis de recondução prática de ilícito criminal.
Porém, afigura-se que tais factos, no momento em que foi proferido o despacho saneador, pelo menos em parte, encontravam-se ainda controvertidos, o que sempre impediria uma decisão conscienciosa e segura relativamente à exceção de prescrição.
Efetivamente, os réus, ao longo da respetiva contestação, impugnaram quer as condutas, quer a intenção que lhes foram imputadas pela autora, quanto à atuação concertada e em conluio, por forma a continuarem a atividade da “E”, livre de dívidas, descapitalizando-a, impedindo a satisfação dos seus créditos, aproveitando a sua estrutura ao nível dos trabalhadores, bens e clientela, para criarem outra sociedade (a ré “D, Unipessoal, Ldª”). Ou seja, os réus, na contestação, impugnaram os factos nos quais a autora alicerçou a sua causa de pedir, cumprindo o ónus de impugnação previsto nos artigos 571º e 572º, alínea b), CPC (como se alcança, desde logo, da análise dos artigos 10º e 11º deste articulado).
Ora, nos termos do disposto no artigo 595º, nº 1, alínea b), CPC o despacho saneador pode destinar-se a conhecer imediatamente do mérito da causa “(…) sempre que o estado do processo o permitir, sem necessidade de mais provas”.
Como referem Isabel Alexandre e Lebre de Freitas[2]:
“O juiz conhece do mérito da causa no despacho saneador, total ou parcialmente, quando para tal, isto é, para dar resposta ao pedido ou à parte do pedido correspondente, não haja necessidade de mais provas do que aquelas que já estão adquiridas no processo. Tal pode acontecer por inconcludência do pedido (…), procedência ou improcedência de exceção perentória (…) e procedência ou improcedência do pedido (…). Este conhecimento só deve ter lugar quando o processo contenha todos os elementos necessários para uma decisão conscienciosa, segundo as várias soluções plausíveis de direito, e não apenas a partilhada pelo juiz da causa (ac. TRL de 17-12-01, Fátima Galante, www.dgsi.pt.proc 9662/2006-6 (…)”.
No mesmo sentido, se pronunciou Paulo Ramos de Faria[3], referindo que:
“A antecipação do julgamento de mérito é caucionada pela inevitabilidade do julgado – irrelevância da demonstração dos factos controvertidos – e impõe-se pela sua utilidade processual. Ainda que o valor da causa exceda a alçada do tribunal, a realização da justa composição do litígio na fase intermédia da ação é aqui imposta pela drástica economia de atos proporcionada, prestando tributo ao princípio da economia processual e satisfazendo o dever de gestão processual.(…) A decisão de antecipar o julgamento da causa, assente na procedência de uma exceção perentória oposta, tem pressupostos paralelos. Quando esta antecipação permite obter ganhos de eficiência, sem comprometer a realização da justiça material, ela é imposta pela tutela do princípio da economia processual e pelo dever de boa gestão do processo”.
A propósito da antecipação do julgamento de mérito, Miguel Teixeira de Sousa[4] defende mesmo não ser aceitável que o tribunal dispense a apreciação da pretensão do autor por força da procedência da exceção invocada pelo réu para a ela se opor. Efetivamente, refere aquele autor:
“(…) No fundo, o que se questiona é se o tribunal pode conhecer de uma exceção perentória antes de conhecer do direito do autor que essa exceção visa impedir, modificar ou extinguir. Noutros termos: é possível uma decisão de procedência de uma exceção perentória -- e, portanto, uma decisão de absolvição do pedido (cf. art. 576.º, n.º 3, CPC) -- que deixa em aberto a existência do direito que esta exceção pretende impedir, modificar ou extinguir? (…) O que, no fundo, se entende é que o tribunal não pode criar o paradoxo de considerar procedente o pedido assente no facto impeditivo, modificativo ou extintivo antes de julgar procedente o pedido baseado no facto constitutivo a que aquele facto se opõe. Não é que o direito não conviva com alguns paradoxos (cf. Fletcher, Colum. L. Rev. 85 (1985), 1263 ss. e 1268 ss.); mas não é aceitável que o tribunal crie o paradoxo de dispensar a apreciação da pretensão do autor com base na procedência da exceção invocada pelo réu para se opor a essa mesma pretensão. (…)”
Ora, regressando ao caso em análise, é inequívoco que no atual estado dos autos (que não transitaram para a fase de julgamento), em face das posições assumidas por ambas as partes nos respetivos articulados, mostra-se controvertida a existência do alegado conluio entre os réus, relativo à sua atuação dolosa e concertada no sentido da criação de uma nova sociedade com o mesmo objeto da “E”, com os seus bens materiais e pessoais, e o propósito de impedir a satisfação dos seus créditos.
E, assim sendo, subsiste também a controvérsia quanto ao prazo prescricional a ponderar, precisamente porque poderá ser convocável o prazo de cinco anos, nos termos do disposto no artigo 118º, nº 1, alínea c) do Código Penal, por a conduta dos réus, nos termos em que foi configurada pela autora, ser suscetível de se reconduzir ao crime de insolvência dolosa, p. e p. no artigo 227º do Código Penal.
Efetivamente, dispõe aquela norma:
“1 - O devedor que com intenção de prejudicar os credores: a) Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património; b) Diminuir ficticiamente o seu ativo, dissimulando coisas ou animais, invocando dívidas supostas, reconhecendo créditos fictícios, incitando terceiros a apresentá-los, ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente por meio de contabilidade inexata, falso balanço, destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida; c) Criar ou agravar artificialmente prejuízos ou reduzir lucros; ou d) Para retardar falência, comprar mercadorias a crédito, com o fim de as vender ou utilizar em pagamento por preço sensivelmente inferior ao corrente; é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.”
E o certo é que a autora imputa aos réus determinadas condutas relacionadas com a diminuição do património ativo da “E” e sua transferência para a ré “D Unipessoal Ldª” o que, em abstrato, é suscetível de enquadrar tal comportamento no tipo-de-ilícito em questão. Ora, nessa hipótese, deverá ser ponderado o prazo de prescrição de cinco anos que se inicia com a declaração de insolvência, que funciona como uma condição de procedibilidade ou de punibilidade - neste sentido, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-10-2012.[5]
Assim, como resulta da decisão recorrida, a insolvência da “E-Unipessoal, Ldª” foi declarada em 07-03-3017 e a dos réus A e B datam, respetivamente, de 06-04-2017 e 31-03-2017. Consequentemente, à data da instauração da ação – 28-05-2020 – ainda não tinha decorrido o referido prazo de cinco anos.
Não pode, contudo, deixar de salientar-se que, neste momento, não é possível efetuar um juízo seguro quanto à eleição do prazo de prescrição de cinco anos, apesar de, conforme se mostra certificado nos autos, ter sido proferida decisão, transitada em julgado, que julgou procedente o incidente de insolvência dolosa, declarando afetados por tal qualificação os gerentes (aqui réus) B e A. Efetivamente, decorre do artigo 185º CIRE que: “(…) A insolvência é qualificada como culposa ou fortuita, mas a qualificação atribuída não é vinculativa para efeitos da decisão de causas penais, nem das ações a que se reporta o n.º 3 do artigo 82.º”
Tal norma evidencia que a decisão (absolutória ou condenatória) proferida em incidente de qualificação dolosa da insolvência não produz qualquer efeito em termos criminais, podendo o requerido naquele incidente ser condenado ou absolvido pela prática do crime de insolvência dolosa, independentemente do ali decidido.
Significa o acabado de expor que a decisão proferida, que não considerou o prazo prescricional de cinco anos inerente à responsabilização penal da conduta imputada pela autora aos réus, revela-se prematura, dado permanecerem controvertidos factos que poderão justificar o enquadramento penal das respetivas condutas, nos termos expostos. Ou seja, o conhecimento consciencioso e seguro da exceção de prescrição implicará a consideração como provados ou não provados dos factos supra enunciados, e da sua subsunção ou não à prática do crime de insolvência dolosa.
Neste sentido se vem pronunciando maioritariamente a jurisprudência, salientando-se o acórdão da Relação de Lisboa de 08-03-2022[6], onde se refere: “O conhecimento do mérito no despacho saneador apenas deve ter lugar se o processo possibilitar esse conhecimento, o que não ocorre se existirem factos controvertidos que possam ser relevantes, segundo outras soluções igualmente plausíveis da questão de direito, ou seja, não há que antecipar qualquer solução jurídica e desconsiderar factos que sejam relevantes segundo outros enquadramentos possíveis do objeto da ação”.
Também no acórdão da Relação de Guimarães de 21-11-2019[7] se refere: “- A fim de beneficiar do prazo mais longo de prescrição, nos termos do nº 3 do artigo 498º do Código Civil, deve o autor provar que o facto ilícito constitui efetivamente crime, não bastando a sua mera alegação; - A apreciação no despacho saneador, dessa exceção, pressupõe que a matéria de facto pertinente não esteja controvertida, ou seja, como prescreve o art. 595º, do Código de Processo Civil, que o estado do processo já o permita, sem necessidade de mais provas”.
No caso presente, não resultando apurados os factos alegados pela autora que permitam afirmar a prática pelos réus de um crime de insolvência dolosa, poderá ter-se por verificada a exceção de prescrição, por decurso do prazo prescricional de três anos. Porém, no atual estado dos autos, em face da matéria que se mantém controvertida, constitui solução jurídica plausível a consideração de um prazo de prescrição de cinco anos.
Acresce ainda que a autora deduziu pedido subsidiário, considerando que a quantia por si peticionada poderá ser devida por desconsideração da personalidade da personalidade jurídica coletiva. Ora, na hipótese de vir a ser apreciado tal pedido subsidiário, haverá ainda que questionar da aplicabilidade do prazo de prescrição ordinário, de 20 anos – cfr. artigo 309º CC.
Tal controvérsia apenas será dirimida após a produção da prova e a enunciação dos factos provados e não provados. Consequentemente, a decisão recorrida, no que à prescrição diz respeito, revela-se prematura, impondo-se a sua revogação, atenta a sua desconformidade com o disposto no artigo 595º, nº 1, alínea b), CPC, e a sua substituição por outra que relegue para final o conhecimento de tal exceção.
Revela-se, pois, parcialmente procedente o recurso da autora.
Tal procedência determina o conhecimento das questões suscitadas em ampliação do recurso pelos réus, que foi deduzido a título subsidiário apenas para tal hipótese. B - Nulidade do saneador-sentença por omissão de conhecimento da exceção de ineptidão da petição inicial.
Arguiram os réus/recorrentes a nulidade da decisão recorrida, tendo por base a omissão de conhecimento da exceção de ineptidão da petição inicial, que consideraram ter alegado quer na contestação, quer em requerimento que dirigiram aos autos em 19-04-2023.
Na perspetiva dos recorrentes, o saneador/sentença recorrido omitiu a apreciação de questão que devia apreciar, verificando-se a causa de nulidade de sentença prevista na alínea d) do nº 1 do artigo 615º, CPC.
A propósito do vício ora em análise, tem vindo a referir-se que, com maior propriedade, tratar-se de um fundamento de anulabilidade da sentença, relacionado com os seus limites, ocorrendo quando o juiz não esgotou todas as questões que lhe incumbia conhecer – José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[8]. Na realidade, ao juiz incumbe o conhecimento de todas as questões “que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela decisão dada a outras” – cfr. artigo 608º, nº 2, CPC.
A defesa por exceção consiste na alegação de factos que obstam à apreciação do mérito da ação ou que, servindo de causa impeditiva, modificativa ou extintiva do direito invocado pelo autor, determinam a improcedência total ou parcial do pedido – cfr. artigo 571º, nº 2, CPC.
É sabido que a defesa por exceção gera para o contestante o ónus de “(…) c) Expor os factos essenciais em que se baseiam as exceções deduzidas, especificando-as separadamente, sob pena de os respetivos factos não se considerarem admitidos por acordo por falta de ,impugnação; (…)” – cfr. artigo 572º, alínea c), CPC. Mostra-se, pois, legalmente consagrada a necessidade de discriminação separada das exceções, sob pena de, em caso de falta de impugnação, não lhes ser associado o efeito cominatório previsto nos artigos 574, nº1 e 587º, nº 1, CPC.
Acresce que: “Depois da contestação, só podem ser deduzidas exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente” – cfr. artigo 573º, nº 2, CPC.
Ora, analisada a contestação verifica-se que os contestantes especificaram separadamente as exceções deduzidas, o que fizeram sob o ponto III daquele articulado, identificando-as sob as letras A a G. E o certo é que nesse capítulo que dedicaram à defesa por exceção, os contestantes não arguiram a ineptidão da petição inicial. Acresce que na parte remanescente do articulado, embora considerando não operarem os pressupostos da responsabilidade delitual (pugnando pela improcedência da ação), nunca alegaram a ineptidão da petição inicial. Ou seja, não o fizeram no local próprio (ponto III relativo à defesa por exceção), como não o fizeram ao longo de toda a contestação.
Porém, o mesmo não poderá ser afirmado relativamente ao requerimento que os réus apresentaram em 19-04-2023 (referência 45348014).
De facto, em tal requerimento, os réus aludem a uma ação instaurada por outro credor da “E”, com uma causa de pedir e pedido semelhantes aos dos presentes autos, na qual foi proferida decisão que julgou verificada a nulidade do processo por ineptidão da petição inicial. Em tal requerimento, os réus reproduzem parcialmente a referida decisão, peticionando a final: “(…) que seja proferido despacho saneador-sentença, nos termos do art.º 595.º, n.º 1, als. a) e b) do CPC (…)”.
Julgamos que tal requerimento corporiza suficientemente a arguição da exceção de ineptidão da petição inicial, que constitui um fundamento de nulidade daquela peça processual, de conhecimento oficioso, e que, consequentemente, não se mostra abrangida pelo princípio da concentração da defesa na contestação cfr. artigos 186º, nºs 1 e 2, nºs 1 e 2, alínea a), 196º e 573º, CPC.
Deve, pois, concluir-se que, embora em momento posterior ao da dedução da defesa, foi arguida a exceção de ineptidão da petição inicial, de forma válida e operante.
Porém, no despacho subsequente (proferido em 13-06-2023 – referência 157194835), o tribunal recorrido relegou a apreciação de tal requerimento para momento oportuno, apreciação essa que não chegou a ocorrer, dado que após a sentença de habilitação da falecida ré, foi proferido o saneador-sentença ora em apreciação.
Certo é que nada obsta a que se proceda à apreciação da exceção de ineptidão da petição inicial, em substituição do tribunal recorrido, nos termos do disposto no artigo 665º, tanto mais que, oportunamente, foi dado cumprimento ao disposto no nº 3 daquela norma.
Apreciando a ineptidão da petição inicial, salienta-se que o artigo 186º, nº 1, CPC fere com o vício da nulidade todo o processo “(…) quando for inepta a petição inicial”.
O fundamento de ineptidão apontado pelos réus à petição inicial é o constante da alínea a) do nº 2 daquela norma, dado que consideraram que falta ou é ininteligível a causa de pedir na qual a autora suportou o pedido deduzido. Efetivamente, consistindo a causa de pedir no facto constitutivo “da situação jurídica material que quer fazer valer”[9] é integrada “(…) pelo facto ou pelos factos concretos que preenchem a norma jurídica da qual o Autor faz derivar os direitos que, segundo ele, conduzirão à procedência do pedido” – Acórdão da Relação de Coimbra de 10-07-2019[10] - de harmonia com a teoria da substanciação, consagrada no nosso regime processual civil no artigo 581º, nº 4, CPC.
Regressando à petição inicial, constata-se que o pedido indemnizatório deduzido pela autora radica na seguinte factualidade por si alegada:
- A autora forneceu produtos do seu comércio à sociedade “E, Unipessoal Ldª”, no de € 51.632,41;
- Tendo por base tal crédito e o receio de perda de garantia patrimonial, a autora instaurou procedimento cautelar de arresto que culminou com transação pela qual o 1º e a 2º réus assumiram pessoal e solidariamente a dívida aí em causa;
- No processo de insolvência da sociedade “E, Unipessoal, Ldª” foi reconhecido o crédito da autora no valor de € 61.938,90;
- Após a sociedade “E, Unipessoal, Ldª” se ter apresentado à insolvência, foi constituída a ré “D”, sediada no local onde laborava a “E Unipessoal Ldª”, tendo o mesmo objeto e operando no mesmo ramo de atividade;
- Com a criação da sociedade “D”, a 3ª ré agiu em conluio com o 1º e 2º réus que se encontravam insolventes, visando a continuação da atividade da “E”, livre de dívidas, aproveitando a sua estrutura ao nível dos trabalhadores, bens e clientela;
- Os réus promoveram a constituição da nova sociedade, para a qual transferiram parte dos bens da “E”, descapitalizando-a e deixando reduzido o seu património, sem acautelarem a satisfação dos créditos dos respetivos credores.
Em face de tal factualidade, não pode concluir-se que a petição inicial enferme de falta de causa de pedir, dado que a autora imputa aos réus a prática de um facto ilícito, culposo e gerador de danos, em termos subsumíveis aos pressupostos da responsabilidade civil delitual.
Na realidade, interpretando tal articulado de harmonia com os cânones interpretativos vigentes para a declaração negocial, atribuindo-lhe o sentido que um declaratário normal atribuiria, nos termos do disposto no artigo 236º do Código Civil, ex vi artigo 295º do mesmo código, conclui-se que a autora atribui aos réus a prática de factos ilícitos, consubstanciados na constituição de outra sociedade para a qual transferiram o património da “E”, inviabilizando o pagamento do seu (e de outros) créditos.
Tal descrição, embora podendo padecer de imprecisão (veja-se que os atos de delapidação do património apontados aos sócios da “E-Unipessoal, Ldª” não se mostram concretizados) não padece do vício da ineptidão, no sentido da falta ou da ininteligibilidade da causa de pedir, nos termos do disposto no artigo 186º, nº 2, alínea a) CPC.
O certo é que a autora alegou que os gerentes da “E” delapidaram o seu património, quer por forma a prejudicar os seus credores, quer em moldes que consubstanciam uma utilização ilícita da personalidade coletiva. Na tese da autora, tal atuação esteve na origem da supressão do património da devedora, inviabilizando o pagamento dos seus créditos.
Em face do exposto, não pode apontar-se à petição inicial uma falta de alegação dos factos que integram o núcleo essencial da causa de pedir, a qual resulta inteligível da sua leitura e foi objeto de cabal compreensão pelos réus/contestantes, como resulta da contestação que deduziram.
Conclui-se, pois que a petição inicial contém os “factos essenciais” em que a autora fundamenta a sua pretensão, não padecendo do vício da nulidade, pelo que se indefere a respetiva arguição.
C – Ilegitimidade passiva da ré “D, Unipessoal, Ldª” e da ré C (dos seus sucessores em face da sentença de habilitação proferida nos autos) e ausência interesse direto dos referidos réus em contradizer
A propósito das exceções ora em apreciação, consignou-se na decisão recorrida:
“Ora, e considerando que a legitimidade se afere pela posição das partes na relação material controvertida tal como é configurada pela autora que, in casu, sustenta o seu pedido na responsabilidade dos réus por factos ilícitos e, subsidiariamente, na responsabilidade pessoal de cada um deles por força da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, tem de se concluir que todos os réus são partes legítimas nesta ação.”
Porém, consideraram os recorrentes que o acordo alcançado em sede de providência cautelar (relativo ao cumprimento de dívida também em debate nestes autos), foi celebrado, apenas e tão só, entre a autora, a sociedade “E Unipessoal Lda.”, o réu A e a ré B. A ré “D, Unipessoal, Lda” e a Ré C, então sócia gerente daquela (entretanto falecida, cujos herdeiros já foram habilitados nestes autos) nunca intervieram no âmbito do referido acordo, como também nunca intervieram no âmbito do acordo de fornecimento que tinha sido celebrado, em 2014, entre a autora e a sociedade E Unipessoal Lda. e que fundamentou a instauração da providência cautelar. Consequentemente, ambas são alheias ao crédito que fundamenta a presente ação, não reunindo os requisitos de legitimidade processual e substantiva para assumirem a qualidade de rés / devedoras - artigo 577.º, alínea e) 578.º, 278.º, n.º 1, alíneas d) e e) e 576.º, n.º 2 do CPC.
Mais consideraram os recorrentes que a decisão que vier a ser proferida nos presentes autos “nunca poderá incidir e regular a sua situação concreta”, impondo-se a absolvição da instância dos referidos réus por falta de interesse em agir, nos termos dos artigos 578.º, 278.º, n.º 1, alínea e) e e) e 576, n.º 2 do CPC.
Apreciando as questões suscitadas, interessa ter presente que com vista à resolução definitiva do litígio, e à produção do seu efeito útil normal, a ação deve reunir, quer no seu lado ativo, quer no seu lado passivo, os titulares da relação material em causa. Como resulta do artigo 26º, nº 1, do Código de Processo Civil, o autor é parte legítima quando tem interesse direto em demandar, sendo o réu parte legítima quando tem interesse direto em contradizer. A legitimidade constitui assim um pressuposto processual que se traduz «numa situação concreta das partes» em relação a um processo determinado – José João Batista[11]. Assim, e de acordo com o critério legal supra-mencionado, tal situação concreta deve ser aferida de acordo com o interesse direto que as partes têm no objeto do processo. Por outro lado, havendo dúvidas quanto à legitimidade das partes, haverá que lançar mão do critério consagrado no artigo 30º, nº 3, do Código de Processo Civil, segundo o qual “(...) são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida, tal como é configurada pelo autor».
O certo é que nos presentes autos, a autora configurou a relação material controvertida de forma clara, apontando a todos os réus a prática concertada e em conluio de vários atos que visaram delapidar o património da “E”, designadamente com a criação de uma nova sociedade para a qual transferiram o património daquela, inviabilizando a satisfação do crédito por si titulado.
Consequentemente, a causa de pedir radica não no acordo celebrado no procedimento cautelar de arresto, mas sim num determinado conjunto de ações (nas quais, na tese da autora, todos os réus participaram) que inviabilizaram a satisfação do seu crédito.
Em face de tal configuração, forçosa é afirmação da legitimidade de todos os réus, incluindo da ré “D, Unipessoal, Ldª” e dos sucessores da ré C.
E o mesmo deve ser afirmado relativamente ao interesse em agir dos referidos réus, que se refere à existência de uma utilidade efetiva na intervenção do tribunal, determinando que se negue tal intervenção da máquina judiciária nas situações em que não esteja em causa a tutela de um direito subjetivo ameaçado – Manuel de Andrade [12]. Ora, constituindo o interesse em agir um pressuposto de natureza processual que se identifica com a necessidade da tutela do direito de ação (ou de contradição), forçosa é a conclusão de que os referidos réus, demandados na ação pela pática de factos que se reconduzem à responsabilidade delitual, carecem de a contradizer, dado que a decisão a proferir poderá produzir impacto patrimonial (decorrente da sua eventual condenação no pagamento do valor indemnizatório peticionado) nas referidas esferas jurídicas.
Assim, sendo de afirmar quer a legitimidade, quer o interesse em agir dos referidos réus, improcedente se revela, nesta parte, o recurso.
D – Ilegitimidade passiva dos réus A e B
Na tese dos recorrentes, os referidos réus são partes ilegítimas dado que, tendo sido declarados insolventes, não reúnem os requisitos de legitimidade processual e substantiva para assumirem a qualidade de réus/devedores, devendo ser representados pelo administrador da insolvência para todos os efeitos de caráter patrimonial nos termos do disposto no artigo 81º, nº 4, CIRE. Consequentemente, devem ser julgados partes ilegítimas e absolvidos da instância, nos termos dos artigos 578º, 278º, nº 1, alíneas d) e e) e 576º, n.º 2 do CPC.
Defendeu a decisão recorrida não operar a arguida exceção, dada a configuração material da lide operada pela autora e o critério de legitimidade consagrado no artigo 30º, CPC.
Apreciando e decidindo a exceção ora em apreciação, para além do já referido a propósito da legitimidade, interessa atender ao disposto no artigo 81º, nº 4 CIRE, que dispõe:
“O administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência”.
Na realidade, a declaração de insolvência gera o efeito de privar o insolvente dos poderes de administração e de disposição dos bens que integram a massa insolvente, que passam a ser da competência do administrador da insolvência. Porém, como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-12-2019[13]: “Tal privação não consubstancia uma incapacidade judiciária do insolvente pois que a declaração da insolvência não implica uma perda da sua capacidade judiciária, mas uma substituição na sua representação processual (substituição legal automática do insolvente pelo administrador da insolvência) traduzida numa indisponibilidade relativa daquele delimitada: pelos bens que integram a massa insolvente; pela proteção do interesse dos credores.”
Sucede que os limites de tal substituição devem ser determinados tendo por referência os objetivos que serve, que se identificam com a proteção dos interesses dos credores (cujos créditos foram reconhecidos e graduados no processo de insolvência), pela afetação à satisfação dos seus créditos dos bens que integram a massa insolvente. Trata-se, pois, de uma representação que não deixa de se circunscrever aos efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência. Consequentemente, a substituição do insolvente pelo administrador da insolvência mostra-se circunscrita, desde logo, às matérias relacionadas com os créditos reconhecidos (ou a reconhecer) no processo de insolvência.
Ora, dos autos resulta que o crédito decorrente dos fornecimentos de produtos do seu comércio pela autora à “E” foi reconhecido no respetivo processo de insolvência.
Porém, tal crédito, que tem uma origem contratual e que, ulteriormente, constituiu o objeto de transação celebrada em procedimento cautelar de arresto, na tese da autora, é, na realidade, diverso do por si invocado nestes autos. Efetivamente, de harmonia com a alegação da autora, terá sido constituída posteriormente à declaração da insolvência da “E” uma outra sociedade (a ré “D”), para a qual foi transferido o património daquela. O certo é que a atuação que a autora imputa aos réus, sendo complexa, desenvolveu-se, pelo menos parcialmente, em momento posterior ao da declaração de insolvência da “E, Unipessoal, Ldª”, correspondendo (de harmonia com a alegação da autora) à prática de um conjunto de atos que visaram delapidar o seu património e, consequentemente, defraudar os seus credores.
Desta forma, assim configurada a causa de pedir, forçosa é a conclusão de que, em rigor, o crédito em discussão nestes autos é diverso daquele que foi reconhecido e graduado no processo de insolvência dos referidos réus, dado que assenta na responsabilidade civil extracontratual, e tem origem numa atuação complexa que apenas em parte se situa em momento anterior ao da declaração da insolvência.
Questão diversa é a eventual duplicação do pagamento do crédito reclamado pela autora no processo de insolvência, e que ali lhe foi reconhecido, e a do pagamento do crédito que lhe poderá vir a ser reconhecido nestes autos, na hipótese de procedência da causa. Julgamos que tal pagamento não poderá ocorrer em duplicado, sob pena de eventual enriquecimento indevido da credora, que ficará ressarcida quando receber o valor do crédito que lhe foi reconhecido no processo de insolvência ou o que lhe vier a ser reconhecido nestes autos.
O certo é que, em face do exposto, não pode concluir-se, em rigor, que nos presentes autos a relação material controvertida se refira a aspetos de natureza patrimonial que interessem à insolvência da “E”. Consequentemente, a representação dos réus A e B não radica no administrador da insolvência, mas sim nos próprios demandados.
Improcedente se revela, pois, a exceção de ilegitimidade passiva dos réus A e B.
E – Da inutilidade superveniente da presente lide por força da declaração de insolvência dos réus A e B
Consideraram os recorrentes que a declaração de insolvência do Réu A e da Ré B acarretou a inutilidade superveniente da presente lide, dado estar em causa um crédito pré-existente à data de tal declaração, que já se mostra reconhecido nos processos de insolvência de ambos. Assim, dado que o reconhecimento e/ou exercício de quaisquer direitos de crédito em relação aos insolventes deveria sempre subordinar-se às regras legais estabelecidas no CIRE, designadamente da reclamação de créditos e sua ulterior verificação nos termos do disposto nos artigos 128º e 126º CIRE, verifica-se a inutilidade superveniente da presente lide.
O saneador sentença, a tal propósito, proferiu a seguinte decisão que se transcreve:
“Ao contrário do alegado pelos réus, não está a ser peticionado pela autora um alegado crédito que «remonta a data anterior à declaração de insolvência destes réus». De facto, e como resulta da leitura da p. i., a autora deduziu, a título principal, um pedido de indemnização por alegado comportamento ilícito dos réus, que terá prejudicado a autora, que o enquadra no âmbito da responsabilidade civil extra-contratual. Em face deste enquadramento jurídico, julga-se que não tem aplicação à presente ação o disposto nos artigos 90.º, 128.º ou 146.º do CIRE, 1, ou o decidido no artigo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2014, de 8 de Maio de 2013, que consigna, no respetivo dispositivo, que «transitada em julgado a sentença que declara a insolvência, fica impossibilitada de alcançar o seu efeito útil normal a ação declarativa proposta pelo credor contra o devedor, destinada a obter o reconhecimento do crédito peticionado, pelo que cumpre decretar a extinção da instância, por inutilidade superveniente da lide, nos termos da alínea e) do art. 287.º do C.P.C.». Com efeito, da análise que se faz da causa de pedir e do pedido formulado na p. i., entende-se que este não pode ser configurado como um direito de crédito, de natureza patrimonial, a exercer contra a massa insolvente dos réus, mas sim como um meio de compensação (indemnização) por prejuízos decorrentes de um comportamento ilícito dos mesmos. Ou seja, o pedido formulado não tem, diretamente, por objeto o dinheiro em si mesmo considerado (cf. artigo 550.º do Código Civil); na verdade, in casu, o dinheiro intervém apenas como compensação de um prejuízo sofrido (cf. artigo 566.º do Código Civil). A indemnização é, por isso uma dívida de valor, não estando em causa nestes autos o reconhecimento de um crédito. O mesmo se diga em relação ao pedido subsidiário, sustentado na obrigação de indemnizar por conduta abusiva dos réus, fazendo-se uso do mecanismo do levantamento da personalidade jurídica da sociedade ré: a indemnização pedida a este título é, também, uma dívida de valor - o dinheiro intervém apenas como compensação de um prejuízo sofrido (cf. artigo 566.º do Código Civil). Por fim, os processos de insolvência da sociedade “E Unipessoal L.da”, e dos réus A e Bo encontram-se encerrados, não tendo sido feito pagamentos aos respetivos credores – cf. os três ofícios que deram entrada em juízo em 05.07.2021, relativos aos processos de insolvência n.ºs …/17.4T8VFX,…/17.3T8VFX e 790/17.1T8VFX. Nestes termos, indefere-se o pedido dos réus, de que sejam declarada a inutilidade superveniente da lide.” Como se refere no acórdão da Relação de Lisboa de 02-07-2019[14], ocorre a inutilidade ou a impossibilidade superveniente da lide quando: “por facto ocorrido na sua pendência, a pretensão do autor não se pode manter, por virtude do desaparecimento dos sujeitos ou do objeto do processo, ou encontra satisfação fora do esquema da providência requerida, situação em que não existe qualquer efeito útil na decisão a proferir por já não ser possível o pedido ter acolhimento ou o fim visado com a ação ter sido atingido por outro meio”.
Concordando com o afirmado na decisão recorrida, afigura-se que, em rigor, como já referido, atenta a configuração da relação material controvertida efetuada pela autora, o crédito em discussão nestes autos não corresponde integralmente àquele que foi reconhecido e graduado no processo de insolvência da devedora. Ter-se-á constituído em momento posterior, pelo que não poderia ali ter sido reclamado.
Por fim, mostrando-se certificado nos autos que se mostram encerrados os processos de insolvência dos réus A, B e “E, e que a autora ali não obteve pagamento dos créditos que reclamou e que lhe foram reconhecidos e graduados, não pode concluir-se pela inutilidade da presente lide.
Reitera-se, contudo, que caso a autora obtenha o pagamento total ou parcial do seu crédito no processo de insolvência, tal realidade se repercutirá ao nível do montante indemnizatório que peticiona nestes autos (que não poderá legitimamente receber em duplicado). Porém, o facto de, nos termos em que foram configurados, se tratar de créditos diferentes inviabiliza a consideração da inutilidade da presente lide.
Improcedente se revela, pois, a exceção de ausência de interesse em agir decorrente da inutilidade da presente lide relativamente aos réus A e B.
F – Da inutilidade da lide decorrente da exoneração do passivo restante concedida aos réus A e B
Alegam os réus que a presente ação foi instaurada em 2020, enquanto vigorava o procedimento de exoneração do passivo restante concedido aos réus A e B, o que impedia a instauração de ações contra os mesmos. Na tese dos réus/recorrentes, o crédito invocado nestes autos pela autora já se mostra reconhecido quer nas insolvências destes réus, quer na da ré “E, Unipessoal, Ldª. Sucede que a exoneração do passivo restante foi definitivamente concedida aos referidos réus, o que gerou a extinção de todos os créditos que ainda subsistiam, entre os quais o da autora, nos termos do disposto no artigo 245º, nº 1, CIRE. Consequentemente, com a instauração da presente ação, a autora pretendeu apenas contornar o facto de não ter conseguido obter o ressarcimento do seu crédito nos aludidos processos de insolvência, verificando-se a ausência de interesse em agir “em resultado da inutilidade da presente lide”.
Concluíram os réus/recorrentes impor-se a absolvição da instância dos réus A e B, nos termos do disposto nos artigos 576º, nº 2, 578º, 278º, nº 1, alínea e), CPC.
A questão ora em apreciação, na decisão recorrida, foi analisada em conjunto com a inutilidade da lide decorrente da declaração de insolvência, nos termos supra transcritos.
A propósito da exoneração do passivo restante, sob a epígrafe “Princípio geral”, dispõe o artigo 235º CIRE:
“Se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos do presente capítulo”.
Já da alínea e) do artigo 238º, CIRE resulta que a exoneração do passivo restante deve ser liminarmente indeferida quando, além do mais:
“Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º”.
Ora, como se referiu anteriormente, a autora imputa aos réus uma prática concertada e dolosa no sentido de inviabilizarem a satisfação do seu crédito (e os de outros credores). A comprovar-se tal alegação, o crédito em discussão nestes autos não se encontra abrangido pela eficácia da exoneração do passivo restante porque do mesmo se encontram excluídos os comportamentos culposos do devedor que determinem a criação ou o agravamento da situação de insolvência. Porém, caso a alegação da autora não resulte procedente, ou seja, não resultando demonstrado o crédito com o enquadramento que lhe conferiu nestes autos, o efeito da exoneração do passivo restante concedida aos réus A e B impede a renovação da discussão nestes autos.
Certo é que a factualidade em que se baseia a exceção encontra-se ainda controvertida, devendo ser relegada para final a decisão de determinar se o crédito em discussão se constituiu efetivamente, hipótese essa em que não poderá afirmar-se que o mesmo se identifique com o que foi objeto de discussão no âmbito da exoneração do passivo restante concedida aos réus A e B. Ao invés, não se apurando o crédito nos termos em que a autora o configurou nestes autos, a decisão proferida no âmbito da exoneração do passivo restante concedida aos referidos réus produzirá plenamente os seus efeitos, tornando exigível o crédito da autora reconhecido nos aludidos processos de insolvência.
No que se reporta ao pagamento de ambos os créditos, reitera-se que não poderá ocorrer em duplicado.
Em face do exposto, revoga-se, nesta parte, a decisão recorrida, relegando para momento ulterior o conhecimento da exceção invocada relativa à inutilidade da lide decorrente da exoneração do passivo restante concedida aos réus A e B.
G – Do erro na forma do processo
Na tese dos réus/recorrentes, existindo um procedimento especial no CIRE para apreciação de factos ilícitos praticados por gerentes de sociedades insolventes nos termos dos artigos 188º e ss CIRE, existe erro no recurso à presente ação.
O regime invocado pelos recorrentes como fundamento para o erro na forma processual radica na existência do incidente de qualificação de insolvência, que consideram esgotar os mecanismos de que a autora se poderia socorrer para fazer valer o seu direito.
Porém, julgamos não assistir razão aos recorrentes, porquanto nos termos já amplamente explanados, é diverso o crédito que se encontra em discussão nestes autos, correspondendo a uma atividade complexa, e com outros agentes, que se prolongou para além das declarações de insolvência dos réus.
Pelo exposto, nesta parte, improcedente se revela o recurso.
H – Da exceção de litispendência, ulteriormente convertida em caso julgado e existência de causa prejudicial
Alegam os réus que a insolvência da “E Unipessoal Ldª” foi qualificada como culposa, tendo sido considerados afetados por tal qualificação os réus A e B, pelo que a sua hipotética condenação nestes autos conduziria a uma duplicidade de condenações e a um consequente enriquecimento da autora, ao receber duas vezes o mesmo valor.
Concluíram os réus/recorrentes impor-se a absolvição da instância dos réus A e B, nos termos do disposto nos artigos 576º, nº 2, 578º, 278, nº 1, alínea e), 580º, nº 2, 581º, 577º, alínea i), CPC.
Relativamente às exceções ora em apreciação, foi a seguinte a decisão do tribunal recorrido:
“Estipula o artigo 580.º do Código de Processo Civil que as exceções de litispendência e caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a primeira causa já foi decidida por sentença que (já) não admite recurso ordinário, há lugar à exceção de caso julgado. Há repetição da causa quando, entre as mesmas partes, há uma nova ação com o mesmo objeto; ou seja, com o mesmo pedido fundado na mesma causa de pedir. Como dispõe o artigo 581.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, “repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir”, esclarecendo os n.ºs 2 a 4 do mesmo preceito legal que há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica; há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico.3 Da análise comparativa dos presentes autos com o apenso A (incidente de qualificação da insolvência da sociedade “E, Unipessoal, Lda.”) do processo que correu termos no J1 do Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira, sob o n.º …/17.4T8VFX, resulta que: a. a ora autora é igualmente requerente naquele incidente; contudo, está acompanhada de outra requerente e os requeridos naquele incidente são apenas dois dos réus dos presentes autos, não existindo, nesta parte, identidade de sujeitos processuais e b. não existe identidade no que respeita aos pedidos formulados: no referido apenso (incidente de qualificação da insolvência da sociedade “E, Unipessoal, Lda.”) pede-se a qualificação da insolvência daquela sociedade como culposa e aplicação do disposto no artigo 189.º do CIRE em relação aos requeridos e, nos presentes autos, pede-se indemnização por prejuízos causados à autora no âmbito da responsabilidade civil extra-contratual e, subsidiariamente, por conduta abusiva dos réus, pedindo-se que se faça uso do mecanismo do levantamento da personalidade jurídica da sociedade ré. Por conseguinte, não se verificam os pressupostos que conduzem a uma situação de litispendência ou caso julgado, pelo que se tem de concluir pela improcedência da exceção suscitada pelos réus. Do mesmo modo, e mostrando-se encerrados os processos de insolvência n.ºs …/17.4T8VFX, …/17.3T8VFX e …/17.1T8VFX (cf. os três ofícios que deram entrada em juízo em 05.07.2021) e transitada a sentença proferida no âmbito do incidente de qualificação da insolvência da sociedade “E, Unipessoal, Lda.” (cf. ofício que deu entrada em Juízo em 20.01.2023, relativo ao apenso do processo que correu termos no J1 do Juízo de Comércio de Vila Franca de Xira, sob o n.º …/17.4T8VFX), tem de se concluir que não está em causa uma causa prejudicial que possa determinar a suspensão dos presentes autos.”
A litispendência, e o caso julgado constituem exceções dilatórias que obstam a que o tribunal conheça do mérito da causa – cfr. artigos 576º, nºs 1 e 2 e 577º, i), CPC. Constituem exceções de conhecimento oficioso pelo tribunal e que pressupõem a repetição de uma causa – cfr. artigos 578º e 580º, nº 1, CPC. Nos termos desta última norma: “se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência”. Por outro lado: “Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra, quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir” - cfr. artigo 581º, nº 1, CPC.
Na realidade, existe litispendência quando o conflito em discussão nos autos constitui o objeto de outra ação judicial, ainda pendente, devendo tal exceção ser deduzida na que foi proposta em segundo lugar – cfr. artigo 582º, nº 1, CPC. Por outro lado, “considera-se proposta em segundo lugar a ação para a qual o réu foi citado posteriormente” ou, em caso de citação efetuada em ambas as ações no mesmo dia, haverá que atender à ordem de entrada das respetivas petições iniciais – cfr. artigo 582º, nºs 2 e 3, CPC.
Na base de ambas as exceções (litispendência e caso julgado) está a ideia de “(…) repetição, que surge quando os elementos definidores das duas ações são os mesmos. A exceção é feita valer na ação que (…) não deve prosseguir (…) além de um objetivo manifesto de economia processual, as exceções da litispendência e do caso julgado visam evitar que a causa seja julgada mais do que uma vez, o que brigaria com a força do caso julgado (…)quando ainda há mera litispendência, trata-se de evitar que duas decisões sejam proferidas ou que se tenha de aguardar o momento em que a decisão seja proferida e transite numa das causas para que a outra seja impedida de prosseguir” – Lebre de Freitas e Isabel Alexandre[15].
A noção de “repetição da causa” mostra-se consagrada no artigo 581º, CPC, que sob a epígrafe “Requisitos da litispendência e do caso julgado”, dispõe:
“1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. 2- Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica. 3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico. 4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido”.
A litispendência deve ser enquadrada no conceito de prejudicialidade, considerando-se que uma causa é prejudicial relativamente a outra quando “(…) o desfecho possível de uma das causas seja suscetível de fazer desaparecer o fundamento ou razão de ser da outra (…) não basta que o resultado possível de uma ação seja suscetível de conduzir à impossibilidade ou inutilidade de outra causa, mas torna-se necessário que exista uma precedência lógica entre o fim de uma ação e o da outra, o que deverá ser perseguido no ângulo de conexão das respetivas relações materiais controvertidas” - Manuel Tomé Soares Gomes[16].
Porém, em rigor, o crédito em discussão nestes autos não se equipara ao reclamado nos processos de insolvência, radicando na responsabilidade civil extracontratual. Consequentemente, embora exista coincidência de alguns dos sujeitos, a causa de pedir e o pedido são diversos.
Assim, não se verifica qualquer prejudicialidade entre causas.
Pelo exposto, sendo de manter a decisão recorrida, indefere-se o recurso.
I – Da litigância de má fé
O enquadramento legal da litigância de má fé encontra-se no artigo 542º do Código de Processo Civil, ocorrendo quando se possa imputar à parte uma litigância processual pautada pelo dolo ou pela culpa grave.
Certo é que pretendendo garantir-se um pleno acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, como é corolário de um Estado de Direito, a condenação como litigante de má fé exige a formulação de um juízo prudente e razoável, que em face das coordenadas do caso, permita concluir de forma segura que a parte litigou com dolo ou negligência grave – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-04-2018[17].
Ora, no caso concreto, o atual estado dos autos – que, nos termos expostos, deverão prosseguir os seus termos – impede a aferição da litigância de má fé da autora, devendo tal questão ser apreciada na decisão final a proferir ulteriormente.
Revelando-se parcialmente procedente o recurso da autora, dado que não foi julgada improcedente a exceção de prescrição como defendeu, tendo sido relegado o seu conhecimento para a decisão final, as custas serão suportadas por si e pelos réus na proporção dos respetivos decaimentos que se fixam em 30% para a primeira e 70% para os segundos – cfr. artigo 527º, nº 1, CPC.
As custas do recurso subordinado dos réus serão por eles suportadas e pela autora, na proporção do respetivo decaimento que se fixa em 80% para os primeiros e 20% para a segunda – cfr. artigo 527º, CPC.
*
III – DECISÃO
Acorda-se em:
- Conceder provimento parcial ao recurso da autora, revogando o saneador-sentença recorrido, que julgou procedente a exceção de prescrição, substituindo-o por outra decisão que relegue para o final o conhecimento de tal exceção e determine o prosseguimento dos autos.
- Conceder parcial provimento ao recurso subordinado interposto pelos réus, revogando a decisão recorrida relativa à inutilidade da lide decorrente da exoneração do passivo concedida aos réus A e B, relegando para a decisão final o seu conhecimento.
Custas do recurso interposto pela autora por esta e pelos réus, na proporção dos respetivos decaimentos, que se fixam em 30% para a primeira e 70 % para os segundos – cfr. artigo 527º, nº 1, CPC.
Custas do recurso subordinado interposto pelos réus e pela autora na proporção dos respetivos decaimentos, que se fixa em 80% para os réus e 20% para a autora – cfr. artigo 527º, nº 1, CPC.
D.N.
Lisboa, 24 de outubro de 2024
Rute Sobral
Vaz Gomes
Higina Castelo
_______________________________________________________ [1] “Teoria Geral do Direito Civil”, 3ª ed., p. 373. [2] Código de Processo Civil Anotado, Volume II, 3ª edição pág. 659 [3] “Relevância das (outras) soluções plausíveis da questão de direito”, Julgar on line outubro de 2019 [4]https://blogippc.blogspot.com/2015/04/conhecimento-de-exceções-perentórias.html, “Conhecimento de exceções perentórias no despacho saneador? Depende!...” [5] CJ 2012, T4, pág. 179 [6] Proferido no processo nº 5152/19.3T8LRS.L1-7, disponível em www.dgsi.pt [7] Proferido no processo nº 941/19.1T8BRG-A.G1, disponível em www.dgsi.pt [8] Código de Processo Civil Anotado, Volume 2ª, 3ª edição, pág. 735 [9]Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil anotado, Vol 1, 3ª edição, pag. 353. [10] Proferido no processo nº 5149/19.3YIPRT.C1, disponível em www.dgsi.pt [11] Processo Civil I, pág. 148. [12] Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 79 e ss [13] Proferido no processo nº 5324/07.3TVLSB-A.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt [14] Proferido no processo nº 566/19.1YRLSB.L1-7, disponível em www.dgsi.pt [15] Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª edição, pág. 590 [16] Da dinâmica geral do processo civil – Início, desenvolvimento, crises e formas de extinção da instância – Cadernos do Cej, Lisboa, 1994, pág. 40. [17] Proferido no processo nº 487/17.5T8PNF.S, disponível em www.dgsi.pt