INDEMNIZAÇÃO
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
RESOLUÇÃO DO CONTRATO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
ILICITUDE
COVID 19
Sumário

I - A existência de indemnização por dano não patrimonial no âmbito da responsabilidade contratual é posição maioritariamente adoptada na doutrina e pacificamente perfilhada na jurisprudência ;
II- No âmbito da responsabilidade contratual (tal como na responsabilidade extracontratual), um dos pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo do devedor consiste na ilicitude, resultando esta, no específico âmbito da responsabilidade contratual, da relação de desconformidade entre a conduta devida pelo devedor e o comportamento por si adoptado ;
III – num quadro de pandemia, em que se traduziu a Covid 19, a circunstância da senhoria Ré, que havia outorgado contrato de arrendamento de quarto individual à inquilina Autora, possuir um sistema imunitário comprometido ou suprimido, ser portadora de vírus infectocontagioso, e ter sido submetida, aproximadamente dez meses antes, a cirurgia de histerectomia total com ooforectomia bilateral, da qual procurava recuperar plenamente, não logra, nem sustenta, um juízo excludente da ilicitude presente na sua conduta em expulsar a arrendatária do locado, em virtude desta se encontrar infectada pelo vírus SARS-CoV-2 (Covid 19) ;
IV - Concretizando, tal quadro quanto ao estado de saúde da Ré não traduz nem justifica um juízo de conformidade no comportamento por si adoptado, relativamente ao comportamento que se lhe exigia e era devido, não justificando, nem tornando aceitável que tenha expulsado a Autora inquilina da casa, relativamente á qual lhe havia concedido o gozo de um dos quartos, com acesso a todas as divisões da casa (sala, cozinha e WC), mediante o pagamento de determinada contrapartida pecuniária mensal ;
V – todavia, a mesma factualidade não é inócua na determinação do quantum indemnizatório, por referência ao quadro factual tradutor do dano não patrimonial sofrido pela Autora ;
VI – efectivamente, se é certo que o provado quadro de saúde da Ré, devedora à data dos factos, não tinha a capacidade/potencialidade de sustentar um juízo excludente da ilicitude presente na conduta, não terá, todavia, deixado de condicionar, certamente, a conduta adoptada, com necessários reflexos no grau de culpa imputável e reconhecível, fazendo-o diminuir e mitigar ;
VII - Ou seja, a Ré, perante aquele quadro de fragilidade imunitária e procura de um total restabelecimento da cirurgia a que havia sido submetida dez meses antes, viu-se necessariamente condicionada por uma menor liberdade na determinação da conduta que veio a adoptar, o que tem necessários reflexos no grau de culpa exigível e reconhecível (a que não terá sido igualmente alheia a incerteza e pouco conhecimento que, na altura, existia acerca do vírus em equação), devendo-se introduzir tal condicionamento na aferição dos critérios determinantes do quantum indemnizatório, que têm por necessária directriz a equidade.
Sumário elaborado pelo Relator – cf., nº. 7 do artº. 663º, do Cód. de Processo Civil

Texto Integral

ACORDAM os JUÍZES DESEMBARGADORES da 2ª SECÇÃO da RELAÇÃO de LISBOA o seguinte [1]:
               
I - RELATÓRIO
1 – J......................................., residente na Rua ……………….., em Lisboa, intentou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra S......................................., residente na Rua ………………………., em Lisboa, deduzindo petitório no sentido:
a) De ser declarada ilegal a resolução do contrato de arrendamento operada pela Ré e, consequentemente, ser esta condenada a pagar-lhe a quantia de 4.680,00 € (quatro mil seiscentos e oitenta euros) a título indemnizatório por tal resolução ilegal ;
b) Da Ré ser condenada a pagar-lhe a indemnização de 2.500,00 € (dois mil e quinhentos euros), a título de danos não patrimoniais.
Para tanto, alegou, em resumo, o seguinte:
- em 21/02/2018, a Ré deu de arrendamento à A. que aceitou, um dos quartos da fracção T3 do prédio urbano sito na Rua ……………………………, em Lisboa, com acesso à sala, cozinha e wc pelo preço de € 260/mês, acrescido de € 100,00, pelo prazo de um ano, sucessivamente renovado ;
- tendo a A. passado a residir nesse quarto desde aquela data ;
- no dia 02/09/2020 veio a testar positivo para COVid-19 e, tendo comunicado essa circunstância à Ré, a mesma expulsou a A. da casa, ordenando-lhe que saísse da habitação imediatamente e, que procurasse outra casa quando ficasse tratada ;
- tendo a A. sofrido vários danos psicológicos, que identifica, na medida em que foi forçada a ter que se deslocar para a HI Lisboa - Pousada da Juventude ;
- em transporte especial de ambulância, com a sirene ligada, que procedeu à evacuação da mesma ;
- tendo a Ré feito cessar o contrato de arrendamento entre ambas celebrado de forma ilegal, o qual deverá ser sancionado mediante a condenação no pagamento de indemnização fixada em montante não inferior a € 4.680,00, valor correspondente a 18 meses de renda, reputado adequado para sancionar o comportamento da Ré ;
- bem como deverá ser condenada pelo sofrimento, medo, humilhação, tristeza, desilusão e abandono que lhe causou, em indemnização por danos morais em valor não inferior a € 2.500,00.
2 – Devidamente citada, veio a Ré contestar e reconvir, alegando, em súmula, o seguinte:
- apenas sugeriu à A. que procurasse um local para ficar, enquanto estivesse em período de confinamento, uma vez que a Ré havia sido submetida a uma cirurgia e, após esta tinha contraído um vírus, encontrando-se à data em que a A. veio a testar positivo para Cvid-19, numa situação de convalescença, sendo doente de risco ;
- nunca despejou a A., limitando-se àquela sugestão e, apenas pelo período necessário de confinamento, não sendo assim devida qualquer indemnização à A. ;
- não soube, porque não foi informada pela A., se a sua saída da casa era temporária ou definitiva e, até ao dia de hoje, a A. não comunicou à Ré acerca da sua intenção de denunciar o contrato de arrendamento entre ambas celebrado ;
- pelo que, mantém-se, por isso, o contrato em vigor ;
- e, encontrando-se a A. em incumprimento no que respeita ao pagamento das rendas vencidas desde Outubro de 2020 até à presente data, num total de 15 rendas, nos termos do artigo 1083.º n.º 3 do C. Civil, requer a resolução do contrato de arrendamento dos autos ;
- reconvindo no sentido de que pela A. são devidas as rendas no valor global de € 5.400,00, acrescida dos juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.
Conclui, peticionando que seja:
- julgada improcedente a acção intentada pela A., por não provada, absolvendo a Ré do pedido;
- julgado procedente, por provado, o pedido reconvencional deduzido pela Ré, condenando a A. a pagar-lhe o montante de € 5.400,00 a título de rendas vencidas e não pagas, acrescida de juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento e;
- seja declarado resolvido o contrato de arrendamento dos autos, nos termos do n.º 3 do artigo 1083.º do Cód. Civil.
3 – A Autora/Reconvinda veio apresentar resposta á contestação/reconvenção, impugnando a factualidade nesta deduzida e alegando que a Ré litiga com má fé, dado que deduz pretensão cuja falta de fundamento não ignora, estando a fazer uso reprovável do processo para obter através deste um direito que a lei não lhe confere. Efectivamente, aduz, a Ré bem sabe que despejou a A., sem qualquer aviso prévio e flagrante violação da lei do arrendamento.
Conclui, pedindo que a reconvenção seja julgada totalmente improcedente, por não provada e, seja o pedido de condenação como litigante de má fé julgado provado e procedente e, consequentemente, seja a Ré condenada em multa em valor a determinar pelo Tribunal e indemnização a pagar à A., em valor não inferior a € 2.500,00.
4 – Designada data para a realização da audiência prévia, veio esta a realizar-se conforme acta de 29/06/2022 – cf., fls. 73 a 78 -, no âmbito da qual:
§ admitiu-se a reconvenção deduzida pela Ré ;
§ fixou-se o valor da causa ;
§ proferiu-se saneador stricto sensu ;
§ identificou-se o objecto do litígio, enunciando-se como questões controvertidas apreciar e decidir:
- Da verificação ou não de incumprimento por parte da Ré de contrato de arrendamento celebrado entre A. e Ré que teve por objeto quarto na fração T3 do prédio sito na Rua ……………………….. e, consequências daí emergentes,
- Da verificação ou não de incumprimento por parte da A. desse mesmo contrato de arrendamento e, consequências daí emergentes, e
- Da eventual litigância de má fé por parte da Ré.
§ Consignou-se a factualidade considerada assente ;
§ Elencaram-se os temas da prova, devendo-se apurar:
1 – Se A. e Ré elaboraram algum plano de contingência em casa, os termos do mesmo e, como decorreu na prática esse plano,
2 – Como se processou o período de isolamento da A. com a Ré e, a forma de comunicação adotada pelas mesmas durante esse período,
3 – A conduta adaptada pela Ré, na sequência do referido em AH),
4 – O que ocorreu após o referido em 3), incluindo a forma como se processou a saída referida em AI) e, os prejuízos daí decorrentes para a A., sua natureza, dimensão e eventuais montantes,
5 – As condições físicas da Ré à data do referido em AH) e, demais circunstância inerentes, e
6 – Se a A. pagou alguma quantia nos termos referidos em F) à Ré, após a saída referida em AI).
§ Foram apreciados os requerimentos probatórios ;
§ Designou-se data para a realização de audiência final.
5 – Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento, conforme actas de fls. 85 a 88, com observância do formalismo legal.
6 - Posteriormente, em 08/01/2023, foi proferida sentença – cf., fls. 89 a 100 -, traduzindo-se a Decisão nos seguintes termos:
III - DECISÃO:
Nestes termos, julga-se:
A) A acção parcialmente procedente, por provada e, em consequência, decide-se declarar ilegal a resolução operada pela Ré do contrato de arrendamento celebrado entre A. e Ré que teve por objeto quarto na fração T3 do prédio sito na Rua …………………………… e, condenar a Ré a pagar à A. a quantia global de € 4.660,00 (quatro mil, seiscentos e sessenta euros), a título de indemnização pelos danos não patrimoniais, absolvendo-se, no mais, a Ré do pedido deduzido pela A. e, absolvendo-se a Ré do pedido de condenação como litigante de má fé deduzido pela A.; e
B) A reconvenção totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolve-se a A. do pedido reconvencional deduzido pela Ré.
Custas pela A. e pela Ré, na proporção do respectivo decaimento, quanto à acção, nelas se incluindo as custas de parte da A. e da Ré respectivamente e, custas a cargo da Ré, no que se reporta à reconvenção, nelas se incluindo as custas de parte da A. – cfr. artigo 527.º do C. P. C.
Registe e Notifique”.
7 – Inconformada com o decidido, a Ré interpôs recurso de apelação, em 20/02/2023, por referência à sentença prolatada.
Apresentou, em conformidade, a Recorrente as seguintes CONCLUSÕES:
“I. Para uma correcta decisão da causa, impunha-se ao Douto Tribunal pronunciar-se sobre as condições físicas da ora recorrente à data dos factos que aqui se discute, uma vez que que na audiência prévia se decidiu que este seria objecto de instrução nos presentes autos e que consta dos temas da prova enunciados na audiência prévia.
II. Após a produção de prova, quer documental, quer testemunhal, impõe-se que se dê como provado que a recorrente é pessoa imunosuprimida e que, á data dos factos, se encontrava em período de convalescença– sublinhado nosso.
III. Quer seja pela prova documental junta aos autos (Doc. 1 e 2 juntos com a Contestação), quer pelos depoimentos das testemunhas X........................, D......................., A............P..........., M...........R...........é cristalino que a ora Recorrente sofre de uma doença prolongada e que se encontrava ainda em convalescença de uma operação de histerotomia e contração de um vírus infetocontagioso ainda no hospital fruto do seu sistema imunitário se encontrar profundamente abalado.
IV. A ora Recorrente encontrava-se assustada com o panorama pandémico que se atravessava e, após ser confrontada com tal situação até decidiu ir para o seu gabinete dormir e isolar-se da ora Recorrida de forma a minimizar o período de exposição, pois, mesmo com um plano de contingência a probabilidade de contaminação era grande, uma vez que a Autora frequentava W.c e cozinha.
V. As testemunhas da Ré fizeram prova disso mesmo, nomeadamente, a testemunha X........................ perguntado em instâncias da patrona oficiosa da Recorrente sobre o que sabia na altura dos factos, relevou automaticamente que sabia que: “(...) E que ela estava a dormir no gabinete
Indagada sobre se haveria algum facto que fosse justificativo para que a ora Recorrente não pudesse permanecer na habitação e estaria a dormir no gabinete, a testemunha prontamente explanou: “A P……………….. estava em convalescença de uma doença (...) tinha sido operada à pouco tempo a uma (impercetível) e tem uma fragilidade imunitária muito grande.” – vide minuto 03:05 da gravação do seu depoimento (20221206104542_20202468_2871115).
VI. Tal qualmente, a testemunha D....................... asseverou ao minuto 03:09 que “A fase da pandemia era algo que a assustava (...)”, porque “Ela estava a recuperar de uma cirurgia e entretanto ela apanhou um vírus e ela foi completamente abaixo (...) e ficou cheia de medo (...) Tudo o que era doenças, tudo o que afectasse o estado de saúde dela ela ficava muito receosa (...)” – in 20221206114313_20202468_2871115.
VII. Também a testemunha A............P........... – médica de profissão – aclarou ainda melhor a situação de saúde da Recorrente ao explicar que: “Estava muito assustada (...) estava muito debilitada fisicamente e psicologicamente (...) tinha falado com a médica de família e que tinha que falar com esta pessoa porque a P…………… não estava em condições de estar no mesmo sítio por causa da convalescença dela (...) estava no gabinete (...) P……….. estava imunosuprimida (...)” – in minuto 04 segundo 07 da gravação do testemunho da mesma (20221206111615_20202468_2871115).
Mais esclareceu ao minuto 10 segundo 46 que: “(...) prestado sendo médica apoio à P........... (...) ela no ano anterior a 2020 passou por um período muito difícil de saúde por causa de endometrioses, caiu muito o sistema imunitário seja emocional seja físico, ela em 2019 fez uma cirurgia de histerectomia e pelo sistema imunitário não estar bem ela adquiriu um vírus (imperceptivel) que pode não ser mórbido mas no caso dela foi muito complicado pelo estado (...) por isso ela tinha muito medo de contrair Covid.
VIII. Igualmente, a testemunha M...........R...........afirma que tinha perfeito conhecimento do estado de saúde da sua antiga senhoria, esclarecendo o Tribunal que: “Tenho, sim. A P........... teve uma cirurgia e relativamente a isso contraiu um vírus em 2020 mais ou menos, derivado ao facto de termos vivido juntas durante quatro anos houve também outras situações que me passaram que nós prestamos apoio uma à outra (...) há um histórico de pronto uma questão de saúde que se prolonga ao longo do tempo (...) Devido à cirurgia normalmente são recuperações prologadas portanto ela não estava na sua melhor condição, ela estava a recuperar de uma cirurgia e de uma infecção de uma doença infetocontagiosa.
E quando questionada sobre se saberia se a ora Recorrente tinha expectativa que a Recorrida quando tivesse recuperada da doença voltasse a casa, a mesma afirma: “sim aquilo foi uma situação pelo que eu entendi momentânea derivado à J........... estar com Covid e que em nada me pareceu que a P........... fosse deixar de viver com a J........... e nada na conversa me indicou que ela não tinha interesse em viver com a J............” – minuto 02 segundo 36 do seu testemunho (20221206114313_20202468_2871115).
IX. Por conseguinte, em instâncias de declarações de parte da A. a mesma também confirma tal intento da Recorrente quando deixa escapar que numa conversa com a mesma esta:
Ela falou-me de locais de acolhimento e eu disse como é que se vai para esses locais de acolhimento (...)”- no minuto 18 segundo 37 das suas declarações in 20221206115632_20202468_2871115.
X. Assim é mais que notório que a Recorrente somente considerava a situação temporária uma vez que, nem sequer lhe pediu as chaves do imóvel ou trocou qualquer fechadura.
XI. Se R., ora Recorrente, quisesse expulsar a A. não teria saído antes de lhe dar tempo para ela fazer o isolamento noutro local.
XII. Até a irmã da A. anuiu ao facto quando indagada pela patrona oficiosa da Recorrente se “(...) entrou com a sua chave, com a chave da Autora?”, responde: “não fui eu que abri a porta foi a minha irmã.” – minuto 39 segundo 20 do seu depoimento.
Afirmou que a irmã teria saído faz um mês e que a chave nunca teria sido pedida pela Recorrente.
XIII. Mui respeitosamente, apesar da Meritíssima Juiz do tribunal a quo exacerbar que somente queria saber e iria valorar o conhecimento directo dos factos, utilizando expressões como: “o que viu com os seus olhinhos”, “o que presenciou” ou o que “teve conhecimento directo”; acaba por subvalorizar como assente os depoimentos das testemunhas da A. que foram baseados somente em conversas com a A. telefónicas!
XIV. A própria irmã da A. afirma que a única coisa que presenciou foi: “Com os meus olhinhos só (...) O que eu presenciei com os meus olhos (...) foi quando a J..........., quando fomos a casa da Ré tirar os pertences da J........... aí estive próxima dela, antes só telefonicamente devido às condições de saúde dela que ela estava a passar” – ao minuto 03 segundo 23 do seu depoimento (20221206104542_20202468_2871115).
XV. Seguidamente após relatar uma conversa que a Autora teria tido com a ora Recorrente, a Meritíssima Juiz indaga frontalmente se “A Senhora assistiu a isto ou isso foi o que a sua irmã que lhe contou?”; ao que respondeu: “Não Senhora Doutora Juiz, de facto, não assisti” – ao minuto 17 segundo 41.
XVI. A conclusão de que a Ré queria por fim ao arrendamento por esta situação, não faz sentido quando, todas as testemunhas e as próprias partes referiram que elas tinham uma boa relação até àquela data e que não havia problemas entre as duas, inclusive a irmã da mesma no seu testemunho explana que: “Era uma relação normal que se... a J........... estava muito entusiasmada antes de ir para casa da Dona P........... porque tinha conversado ao telefone e partilhariam das mesmas ideias, da mesma forma de ver a vida e tinha uma ideia algo idílica da Dona P..........., tinham uma convivência normal (...) com o tempo houve uma relativa aproximação em tempo de pandemia porque me apercebi e fiquei grata por isso que a P........... dava boleia à J........... para irem ambas às compras ao supermercado (...) de respeito e de cordialidade (...)” – ao minuto 34 segundo 39 do seu depoimento.
XVII. Revelando que numa conversa com a ora Recorrente ao telefone após a mesma tentar entrar em contacto com a irmã da Recorrida: “… eu quero isto resolvido, eu já dormi no meu gabinete (...) porque eu sou uma doente de risco. A minha amiga que é médica já me disse ela tem que sair.” – ao minuto 18 segundo 17 do seu depoimento.
XVIII. A própria irmã da A. afirma que “Se eu não tivesse um filho pequenino eu teria vindo”, referindo-se a ter deslocado para auxiliar a A. na altura dos factos e ao facto de poder ficar infectada e poder contagiar o filho – ao minuto 21 segundo 39 do seu depoimento.
XIX. Mas condena-se a Ré por esta ter medo de ficar contagiada num período em que a sua saúde se encontrava débil???!
XX. Tendo a mesma admitido no final do seu depoimento que a Ré disse que haveria alojamento para pessoas infectadas para isolamento, indagada pela Juiz do tribunal a quo.
XXI. É evidente, atendendo à experiência do homem médio, á relação de amizade que Autora e Ré mantinham, assim como ao comportamento da Ré em deixar a Autora com as chaves durante mais de um mês, não fazem sentido com tal interpretação.
XXII. Pelo exposto, deve conclui-se que quem incumpriu o contrato de arrendamento dos autos foi a Ré que deixou de pagar a renda sem ter resolvido o contrato nos termos legalmente admissíveis, carecendo de fundamento o pedido da Autora no que respeita à devolução da caução e da renda referente a Setembro de 2020 e indemnização por danos não patrimoniais.
XXIII. Aliás, em consequência do supra exposto, a Autora encontra-se em incumprimento no que respeita ao pagamento das rendas vencidas desde Outubro de 2020 até à presente data, sendo sua credora a Ré”.
Conclui pela procedência do recurso, devendo:
- Ser absolvida de pagar à Autora indemnização pelos danos não patrimoniais ;
- Ser a Autora condenada a pagar-lhe as rendas vencidas e não pagas, acrescidas de juros vencidos e vincendos até efectivo e integral pagamento.
8 – A Apelada/Recorrida Autora, apresentou, em 16/10/2023, contra-alegações, nas quais formulou pedido de não provimento do recurso, com consequente manutenção da sentença prolatada.
9 – O recurso foi admitido por despacho datado de 18/04/2023 – cf., fls. 116 -, como apelação, a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
10 – Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar, valorar, ajuizar e decidir.
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II – ÂMBITO DO RECURSO DE APELAÇÃO
Prescrevem os nºs. 1 e 2, do artº. 639º do Cód. de Processo Civil, estatuindo acerca do ónus de alegar e formular conclusões, que:
1 – o recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão.
2 – Versando o recurso sobre matéria de direito, as conclusões devem indicar:
a) As normas jurídicas violadas ;
b) O sentido com que, no entender do recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas ;
c) Invocando-se erro na determinação da norma aplicável, a norma jurídica que, no entendimento do recorrente, devia ter sido aplicada”.
Por sua vez, na esteira do prescrito no nº. 4 do artº. 635º do mesmo diploma, o qual dispõe que “nas conclusões da alegação, pode o recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso”, é pelas conclusões da alegação da recorrente Apelante que se define o objecto e se delimita o âmbito do recurso, sem prejuízo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer oficiosamente, apenas estando este tribunal adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para conhecimento do objecto do recurso, ou seja, são as Conclusões a delimitar a esfera de actuação do tribunal ad quem.
Pelo que, no sopesar das conclusões expostas, a apreciação a efectuar na presente sede determina o conhecimento das seguintes questões:
1. DA EVENTUAL PERTINÊNCIA DA MODIFICABILIDADE DA DECISÃO PROFERIDA SOBRE A MATÉRIA DE FACTO, nos quadros do artº. 662º, do Cód. de Processo Civil, o que determina a aferição:
I) Da omissão do Tribunal em pronunciar-se sobre as condições físicas da Recorrente/Ré à data dos factos, o que constava dos temas da prova.
Consequentemente, deve dar-se como provado que:
A Recorrente é pessoa imunosuprimida e que, à data dos factos, encontrava-se em período de convalescença” ;
II) Do facto 37 provado e da pretensão que passe a figurar como não provado ;
o que implica a REAPRECIAÇÃO DA PROVA, inclusive da GRAVADA ;
2. Seguidamente, aferir acerca da SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS (inicialmente ou fruto das alterações infra em apreciação), o que implica apreciação do ENQUADRAMENTO JURÍDICO DA CAUSA.
Na apreciação deste, conhecer-se-á, fundamentalmente, acerca:
· Da inexistência de resolução contratual por parte da Ré ;
· Do incumprimento do contrato de arrendamento por parte da Autora, que deixou de pagar a renda (rendas vencidas desde Outubro/2020 “até à data”) sem que o tenha resolvido ;
· Da inexistência de qualquer oposição à renovação ou denúncia, mantendo-se o contrato em vigor.
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III – FUNDAMENTAÇÃO
A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Na sentença recorrida/apelada, foi considerado como PROVADO o seguinte (assinala-se com * o facto objecto de impugnação e encontram-se a negrito os factos aditados, conforme decisão infra):
1. A A., psicóloga de formação e exerce a função de gestora de ciência de profissão, é natural de Chaves.
2. Exerce a sua profissão na cidade de Lisboa e aí reside há quase de 6 anos, sempre tendo habitado em casa arrendada.
3. A A. não tem quaisquer familiares em Lisboa, apenas alguns amigos e conhecidos.
4. Os pais da A. residem em Chaves e a sua única irmã reside em Coimbra.
5. A Ré, natural dos Açores, é dona da fração T3 em Rua ………………. e, tem o seu gabinete de formação e explicações na Rua …………………….1600-653 Lisboa.
6. Em 21.02.2018, por acordo escrito, a Ré deu o gozo à A, que aceitou um dos quartos do prédio referido em 5), com acesso a todas as divisões da casa: sala, cozinha e wc pelo preço de 260,00€/mês, acrescido de 100,00€, nos termos de fls. 14 verso a 16 verso dos autos que se dá por reproduzido.
7. O acordo referido em 6) foi celebrado pelo prazo de um ano e sucessivamente renovado.
8. A Ré, pelo menos desde a data da celebração do acordo referido em 6), residia e reside na referida fração.
9. A. e Ré, para além da relação de arrendatária e senhoria, em face da conivência diária, acabaram por estabelecer uma relação de confiança, respeito e de amizade.
10. Em dezembro de 2019, surgiu o novo coronavírus (SARS-CoV-2), identificado em Wuhan na China, que causou a COVID-19.
11. A propagação do referido em 10) levou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a declarar uma situação de pandemia global.
12. No verão de 2020, a A. escolheu gozar férias entre 24 e 28 do mês de agosto, percorrendo localidades entre o litoral e o interior do país.
13. A A. passou os dias referidos em 12) com duas amigas, a S…………C……… e a M…………… M…………...
14. No dia 27.08.2020, a S………… apresentou sintomas compatíveis com os descritos para a Covid 19, razão pela qual abandonou a viagem e regressou para Chaves.
15. No dia 28.08.2020, pelas 22.30h, a A. e M...........M.........foram avisadas pela S........... que tinha testado positivo.
16. À data referida em 15), a A. já se encontrava em Chaves.
17. Na noite referida em 15), a A. ligou para a Saúde 24, tenho-lhe sido dito para aguardar pelo contacto do Delegado de saúde do Norte.
18. No dia 29/08, a A. foi contactada pelo delegado de saúde pública de Chaves, Dr. …, que lhe passou declaração de isolamento profilático e autorizou o regresso a casa, em Lisboa.
19. A A. comunicou à Ré a situação em que se encontrava e, perguntou-lhe se se opunha a que fizesse o isolamento profilático lá em casa e, a Ré concordou.
20. A A., no dia 30.08.2020, deslocou-se para casa, em Lisboa.
21. No dia 31.08.2020, a A. suspeitou à hora do almoço que não tinha paladar e olfato.
22. A meio da tarde do dia referido em 21), a A. começou a ter dor de costas e cansaço no corpo.
23. A A. contactou a saúde 24, sendo-lhe dito que iria ser contactada pelo Delegado de saúde de Lisboa e, ligou para o Dr. …, Delegado de saúde do Norte, que lhe disse que seria contactada pelos Colegas de Lisboa.
24. No dia referido em 21), a A. informou a Ré que aguardava contacto da médica de família para ir fazer o teste.
25. No dia 01.09.2020, a A. foi contactada pela sua médica de família, Dra. …, do Centro de saúde de Sete Rios, em Lisboa, que lhe questionou sobre os meus sintomas.
26. A A. queixou-se de espirros, ausência de paladar, ausência de olfato, cansaço, dor de costas, garganta “arranhada” e dor de cabeça, mas sem febre, tosse ou dificuldade respiratória.
27. A médica de família da A. prescreveu-lhe a receita e, enviou via telemóvel para ir fazer o teste à Covid-19.
28. A A. foi fazer o teste referido em 27), o que ocorreu por volta 13h00.
29. Durante a noite referida em 25), a A. recebeu o resultado por email cujo resultado foi positivo.
30. No dia 02.09.2020, a A. comunicou o resultado positivo à Ré.
31. A Ré questionou a A. sobre o que pretendia fazer, ao que esta respondeu que iria permanecer em isolamento e, manter os mesmos cuidados já antes estabelecidos entre ambas.
32. No dia 03.09.2020, a A. saiu da casa referida em 6).
33. Na sequência do referido em 9), A. e Ré celebraram acordo de seguro de saúde conjunto, a A. tinha os números de telefone pessoais dos pais da Ré e, esta tinha os dos pais da A., para o caso de ser necessário, A. e Ré iam juntas às compras de supermercado, saíam à noite, faziam jantares de amigos, a A. conhecia os amigos da Ré e, conviviam em jantares ou saídas, A. e Ré participavam das festas de aniversário uma da outra e, ofereciam presentes uma à outra.
34. Na sequência do referido em 9), A. e Ré passaram a páscoa junta, aquando do confinamento de 2020, quando a Ré ia de férias para os Açores, por períodos de cerca de 2 semanas, confiava a casa à A., que lhe regava as plantas, quando A. e Ré estavam doentes auxiliavam-se e, a Ré sentia-se à vontade para sem aviso prévio trazer os pais para passarem temporadas na habitação.
35. Na sequência do referido em 20), A e Ré elaboraram plano de contingência em casa: como a habitação tem duas casas de banho, a A. ficou com o WC próximo do seu quarto (anuíram que cada vez que esta usasse a desinfetaria e a A. assim fez sempre), a A. só se dirigia à cozinha para aquecer comida que já tinha pré-confecionada, tinha fruta à parte e os restantes alimentos, tinha loiça, esponja, pano amarelo, detergente da loiça e detergente com lixívia e dois panos de cozinha à parte para seu uso exclusivo, a A. separou o seu lixo do lixo da Ré e, foi colocar no contentor, a A. sempre que saiu do quarto estava de máscara, usava luvas e desinfetava tudo o que utilizava, apenas saía do quarto para comer e ir ao WC.
36. Durante o período de isolamento, a A. nunca se cruzou com a Ré em casa e, A. e Ré comunicavam por mensagem e/ou uma de cada lado da porta do quarto.
37. Na sequência do referido em 31), a Ré expulsou a A. de casa, ordenado que saísse da habitação imediatamente. *
38. A A. ficou em pânico, mas não saiu de casa.
39. Durante estado de exaltação da Ré, a A. telefonou para a irmã, que pode ouvir a dar ordem referida em 37).
40. A A. sentiu-se em pânico, desamparada, abandonada, desolada e humilhada.
41. Encontrando-se a A. infectada tinha a obrigação de permanecer isolada e, ainda que tivesse obtivesse autorização para se deslocar pelas autoridades, não tinha para onde ir.
42. A A. tentou encontrar alternativa para sair da casa.
43. A irmã da A. encetou diversos contactos com vista a tentar encontrar alojamento para esta em Coimbra.
44. A A. sentiu medo, solidão, incompreensão e desespero.
45. Valeu à A. o apoio da irmã.
46. No dia referido em 32), os bombeiros tocaram à campainha de casa da A. e, disseram que estavam ali para a evacuar e, a A. desceu.
47. À porta da casa da A. estavam ambulância de sirene ligada e à sua espera os bombeiros para a levarem.
48. Os vizinhos do prédio puderam ver o aparato que ali se gerou e, segundo mencionaram à A. necessário, pois tinham de marchar sinalizados.
49. Os bombeiros que tinham conhecimento da situação da A., transportaram-na para a … – Pousada de Juventude, sita na Rua … Lisboa.
50. Na pousada referida em 49), a A, estava num lugar estranho, impessoal, encontrando-se doente, mergulhada numa tristeza, sentiu-se humilhada, envergonhada, desprezada, triste e amedrontada, desprotegida embora ali tenha sido bem acolhida, chorava e tentava reagir, porém, a mágoa de ter sido despejada, sobrepôs-se muitas vezes à sua capacidade de se manter equilibrada.
51. A A. permaneceu durante cerca de pelos menos três semanas na pousada referida em 49).
52. Quando terminou o período de isolamento, a A. deslocou-se à fracção da Ré para levar os seus pertences e, ficou alojada em casa de uma amiga até conseguir encontrar casa para arrendar.
53. Constatou que a Ré lhe deitou fora parte da comida confecionada que estava no congelador, que deveria dar umas dez refeições.
54. Da Ré nunca a A. recebeu qualquer contacto ou lhe foi perguntado se precisava de alguma coisa.
55. A A. já tinha pago a renda do mês de Setembro.
56. A Ré não restituiu à A. a renda e despesas do mês de Setembro e a caução paga no início do acordo referido em 6).
57. No verão de 2020, a Ré apresentava-se como pessoa com o sistema imunitário comprometido ou suprimido, tendo sido diagnosticada como portadora de vírus infectocontagioso. ;
58. Tendo sido submetida, em Novembro de 2019, a cirurgia de histerectomia total com ooforectomia bilateral, da qual procurava recuperar plenamente.
Na mesma sentença, foi CONSIDERADA NÃO PROVADA a seguinte factualidade:
1. Na sequência do referido em 24) dos factos provados, a Ré de imediato sugeriu à A. que se dirigisse às urgências para ser internada e, a A. disse que não estava assim tão mal, que tinha sintomas ligeiros e, que estava a seguir as indicações do sistema nacional de saúde.
2. Na sequência do referido em 31) dos factos provados, a Ré começou a elevar a voz e, a dizer que a A. era uma irresponsável, que agora ela tinha de entrar em isolamento, porque ela esta a ter sintomas tramados.
3. A A. tentou explicar à Ré que não tinha culpa de esta infectada, explicando-lhe que poderia acontecer com qualquer pessoa.
4. A A. falou com o Delegado de Saúde Púbica de Sete Rios, Dr. …, acerca da partilha de casa com a Ré e do plano de contingência que tinham elaborado, o qual referiu que o risco de ela ser infectada era muito baixo.
5. No dia 03.08.2020, a A. informou a Ré da conversa que tinha tido com o médico e, que lhe tinha dado o contacto de telefone dela para esta a contactar.
6. A Ré exaltada começou a gritar com a A. chamou-lhe mentirosa, baixa, afirmou que não tinha valores, que tinha estado positivo, que não tinha dito nada e, ordenou-lhe que procurasse outra casa quando ficasse tratada.
7. A irmã da A. que reside com um filho com 5 anos de idade, sugeriu à A. que ligasse para a médica de família e, a A. assim o fez, sem sucesso.
8. A A. ligou para a linha de saúde 24 e foi então atendida por uma enfermeira que, em face do estado de choro, desespero e medo da A., lhe disse para se acalmar, porém, não podia sair de casa, sugerindo-lhe que participasse esta situação às autoridades policiais.
9. A A. falou com a irmã, que a aconselhou a falar novamente com a Ré e explicar-lhe as indicações que recebeu da linha de saúde 24.
10. A Ré foi peremptória: “Tens que sair de imediato”.
11. A A. ligou para a PSP de Telheiras e contou o sucedido.
12. As autoridades policiais, que ouviram a Ré a vociferar em tom exaltado e alto, perguntaram à A. se tinha acordo de arrendamento ao que esta respondeu afirmativamente.
13. Deram-lhe ordem expressa para permanecer em casa e, informaram que iam mandar um carro patrulha a casa.
14. A A. disse à Ré que as autoridades se iriam deslocar ali a casa, porém, esta disse que ia isolar-se de imediato no seu local de trabalho e, saiu.
15. A A. informou as autoridades que a Ré saíra para o seu local de trabalho, pelo que deu a respeciva morada à polícia para eles passarem lá e, explicarem que não podia mandar a A. para a rua.
16. A A. recebeu o contacto do Centro de Saúde do Lumiar, feito pela Sr.ª Enf.ª ... para saber como se encontrava e, se precisava de alguma medicação ou supermercado.
17. A A., desesperada, desatou a chorar, explicou a situação em que se encontrava e a referida Enf.ª ... disse que ia reportar o caso às autoridades de saúde pública e, à junta de freguesia para tentar encontrar um alojamento alternativo.
18. Perante a impossibilidade de conseguir o referido em 43) dos factos provados, a irmã da A. propôs-se a alojar-se com o filho em qualquer sítio e a deixar a sua casa livre para aquela.
19. Para o efeito, carecia de autorização da autoridade de saúde pública e de disponibilidade dos bombeiros para transportar a A. em segurança de Lisboa para Coimbra.
20. A A. tentou obter autorização para se deslocar para Coimbra e, para o efeito contactou o Centro de Saúde de Sete Rios, mas sem sucesso.
21. Voltou a ligar para a Sra. Enf.ª ..., mas enganou-se no número e ligou novamente para a policia de Telheiras, pelo que falou com um agente que a reconheceu, pois tinha-a atendido na circunstância referida em 11), que a propósito da deslocação para Coimbra, lhe explicou que carecia de transporte especial com autorização da autoridade de saúde pública.
22. De seguida, a A. contactou a Sra. Enf.ª ... que lhe disse que já tinha feito a denúncia do seu caso para a autoridade de saúde pública, polícia, câmara municipal de Lisboa e segurança social, tendo-lhe assegurado que seria contactada a este respeito, pois deveria ser viável alojar-se numa pousada em Lisboa.
23. A A. questionou se seria viável deslocar-se para Coimbra para casa da irmã, contudo, atenta a especial complexidade do transporte, ónus da deslocação e tudo o que isso representava do ponto de vista financeiro para a irmã que seria se alojar num hotel, a A. pediu ajuda para encontrar alternativa de alojamento.
24. A A. foi contactada pelo Dr. … a inteirar-se do que se estava a passar.
25. A A. contou o sucedido e o clínico de imediato agilizou o processo para os bombeiros a irem buscar a casa para se instalar na pousada.
26. A A. foi pouco depois contactada pela Dra. …, psicóloga.
27. A psicóloga referida em 26) contactou a A. em virtude desta ter ligado para um número de telemóvel de ajuda para pessoas com Covid 19, que tinha aparecido mencionado num mail de 02.09.2020.
28. A psicóloga referida em 26) identificou-se e perguntou à A. como se encontrava, tendo esta começado a chorar, tendo-lhe contado o que estava a viver naquele momento.
29. A psicóloga referida em 26) ouviu a A. e, disse que não deveria passar por um despejo tão abrupto num momento tão delicado e, que podia ligar para ela sempre que quisesse.
30. Valeu à A. o apoio dos desconhecidos.
31. A A. não contou com os seus pais, pois atenta a idade e a saúde debilitada de ambos, não os podia preocupar.
32. O referido em 46) dos factos provados foi por volta das 17h00 e, a A. desceu com duas mochilas, máscara e luvas.
33. A A. foi contactada pela Protecção Civil de Lisboa através de … a saber se já tinha sido transportada, se estava bem e se precisava de alguma coisa.
34. Na pousada referida em 49) dos factos provados, a A. foi acolhida pela bombeira voluntária da recepção.
35. A A., embora sabendo que as autoridades sabiam onde se encontrava, não se sentia segura, não se sentia em casa.
36. A A. esteve noites e noites sem dormir.
37. Quando conseguia dormir, a A. tinha pesadelos e, muitas vezes acordava com os gritos da Ré a ordenar-lhe que saísse de casa.
38. A A. ainda hoje tem pesadelos em que acorda aflita a pensar que a Ré a está a mandar embora.
39. A A. permaneceu durante 23 dias na pousada referida em 49) dos factos provados.
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B - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
I) Da REAPRECIAÇÃO da PROVA, inclusive GRAVADA, decorrente da impugnação da matéria de facto
Prevendo acerca da modificabilidade da decisão de facto, consagra o artigo 662º do Cód. de Processo Civil os poderes vinculados da Relação, estatuindo que:
“1 - A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa.
2 - A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente:
a) Ordenar a renovação da produção da prova quando houver dúvidas sérias sobre a credibilidade do depoente ou sobre o sentido do seu depoimento;
b) Ordenar em caso de dúvida fundada sobre a prova realizada, a produção de novos meios de prova;
c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta;
d) Determinar que, não estando devidamente fundamentada a decisão proferida sobre algum facto essencial para o julgamento da causa, o tribunal de 1.ª instância a fundamente, tendo em conta os depoimentos gravados ou registados”.
Para que tal conhecimento se consuma, deve previamente o recorrente/apelante, que impugne a decisão relativa à matéria de facto, cumprir o ónus a seu cargo, plasmado no artigo 640º do mesmo diploma, o qual dispõe que:
“1 -Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;
b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
3 - O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 636.º”.
No caso sub judice, a prova produzida em audiência foi gravada, tendo a Recorrente/Apelante/Ré dado cumprimento ao preceituado no supra referido artigo 640º do Cód. de Processo Civil, nomeadamente através da indicação das passagens da gravação (ainda que de forma não totalmente precisa, pois apenas indicou o início exacto das passagens, e não igualmente o seu fim) e transcrição dos enxertos dos depoimentos identificados, pelo que o presente Tribunal pode proceder à sua reapreciação, uma vez que dispõe dos elementos de prova que serviram de base à decisão sobre o(s) facto(s) em causa.
Não se desconhece que “para negar a admissibilidade da modificação da decisão da matéria de facto, designadamente quando esta seja sustentada em meios de prova gravados, não pode servir de justificação o mero facto de existirem elementos não verbalizados (gestos, hesitações, posturas no depoimento, etc.) insusceptíveis de serem recolhidos pela gravação áudio ou vídeo. Também não encontra justificação a invocação, como factor impeditivo da reapreciação da prova oralmente produzida e da eventual modificação da decisão da matéria de facto, da necessidade de respeitar o princípio da livre apreciação pelo qual o tribunal de 1ª instância se guiou ou sequer as dificuldades de reapreciação de provas gravadas em face da falta de imediação”.
Pelo que, poderá e deverá a Relação “modificar a decisão da matéria de facto se e quando puder extrair dos meios de prova, com ponderação de todas as circunstâncias e sem ocultar também a livre apreciação da prova, um resultado diferente que seja racionalmente sustentado” [2].
Reconhece-se que o registo dos depoimentos, fundamentalmente em áudio, “nem sempre consegue traduzir tudo quanto pôde ser observado no tribunal a quo. Como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que porventura influenciaram o juiz da 1ª instância.
Na verdade, existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador”.
Efectivamente, e esta é uma fragilidade que urge assumir e reconhecer, “o sistema não garante de forma tão perfeita quanto a que é possível na 1ª instância a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo aos tribunais retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada informação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo”.
Todavia, tais dificuldades não devem justificar, por si só, a recusa da actividade judicativa conducente à reapreciação dos meios de prova, ainda que tais circunstâncias ou fragilidades devam ser necessariamente “ponderadas na ocasião em que a Relação procede à reapreciação dos meios de prova, evitando a introdução de alterações quando, fazendo actuar o princípio da livre apreciação das provas, não seja possível concluir, com a necessária segurança, pela existência de erro de apreciação relativamente aos concretos pontos de facto impugnados[3] (sublinhado nosso).
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 DA OMISSÃO do TRIBUNAL na PRONÚNCIA SOBRE as CONDIÇÕES FÍSICAS da RECORRENTE/RÉ à DATA dos FACTOS, o que FIGURAVA nos TEMAS da PROVA
Reclama a Apelante/Recorrente/Ré ter o Tribunal a quo olvidado pronunciar-se sobre factos que assumem especial relevância para a boa decisão da causa, e que faziam parte de um dos temas da prova enunciados em sede de audiência prévia, nomeadamente no que se reporta às “condições físicas da ora recorrente à data dos factos que aqui se discute”.
Pelo que, quer com base na prova documental, quer na prova testemunhal, impõe-se que se dê como provado que “a Recorrente é pessoa imunosuprimida e que, à data dos factos, se encontrava em período de convalescença”.
Assim, de acordo com a prova documental em que se traduzem os documentos nºs. 1 e 2, juntos com a contestação, bem como tendo por conta o declarado pelas testemunhas que referencia, impõe-se o aditamento daquele facto, a figurar como provado.
Apreciando:
Em sede de audiência prévia, na fixação dos temas da prova, ficou a constar, como ponto 5, o seguinte: “as condições físicas da Ré à data do referido em AH) e, demais circunstâncias inerentes”, sendo que o referido em AH) reporta-se à data de 02/09/2020, aí constando que “a Ré questionou a A. sobre o que pretendia fazer, ao que esta respondeu que iria permanecer em isolamento e manter os mesmos cuidados já antes estabelecidos entre ambas”.
Tal matéria relativa ao estado de saúde da Ré consta dos artigos 16º a 21º da contestação, objecto de impugnação no artº. 60º da resposta à contestação apresentada pela Autora.
Ora, compulsada a matéria factícia aposta na sentença apelada (provada e não provada), constata-se total omissão na figuração de tal matéria factual, sem que da mesma conste uma qualquer justificação para tal, para além da genérica consignação de que “não se teve em consideração qualquer outra factualidade alegada, dada a sua irrelevância para a decisão a proferir nestes autos”. O que, convenhamos, sempre se imporia, atenta a sua estatuição como tema da prova a apurar.
Impõe-se, assim, apurar se o facto ora pretendido aditar encontra respaldo na prova produzida, tendo-se nomeadamente em atenção o lastro probatório aduzido pela Impugnante Ré.
Procedeu-se á total audição da prova testemunhal indicada, a qual, relativamente á matéria factual questionada, pronunciou-se, basicamente, nos seguintes termos:
- a testemunha X ………………………C……….., nutricionista, e pessoa que afirmou conhecer a Ré, por ter sido explicadora do filho, tendo ficado amigas desde há 8/10 anos, não conhecendo a Autora, referenciou que a P........... estava em convalescença de uma doença infectocontagiosa, sendo que havia sido submetida a uma grande intervenção cirúrgica há pouco tempo.
Acrescentou que a mesma, já na altura dos factos, padecia de uma importante fragilidade imunitária, que se encontrava assustada com a pandemia e que “tinha toda a razão em estar assustada” ;
- a testemunha D....................... L……………., professora de matemática e amiga da Ré há mais de 20 anos, sendo que apenas esteve uma vez com a Autora, referenciou que aquela fechou-se durante a pandemia, pois tinha muito receio e cuidado, em virtude de anteriormente ter feito uma cirurgia, e ter apanhado um vírus, o que a deixou debilitada ;
- por sua vez, a testemunha A……………… P………….., médica de família, tendo sido inquilina da Ré desde Outubro de 2011 até 2013, tendo ficado amigas, e conhecendo a Autora apenas de vista, referiu que a P........... estava assustada com o Covid 19, pois havia estado anteriormente internada e encontrava-se debilitada.
Acrescentou que a mesma chegou a permanecer no gabinete de trabalho, em virtude de não poder estar no mesmo local da Autora, pois estava em convalescença e imunosuprimida. Especificou que no ano antecedente a mesma havia passado por um período difícil, que o sistema imunitário encontrava-se alterado e que havia adquirido um vírus que instalou um quadro complicado, inclusive em termos emocionais ;
- a testemunha M……………R…………………, que foi inquilina da Ré desde 2013, e durante 4 anos, mantendo proximidade e mútuo acompanhamento, afirmou não conhecer a Autora, mencionando que a P........... foi intervencionada cirurgicamente, tendo apanhado um vírus. Assim, devido a tal cirurgia e à doença infectocontagiosa de que era portadora, encontrava-se a recuperar, tendo-lhe a P........... contado que chegou a viver/dormir no gabinete de trabalho, onde tinha um colchão, durante o período em que a Autora estaria infectada.
Por sua vez, no que concerne à referenciada prova de natureza documental – docs. nºs. 1 e 2, juntos com a contestação -, procedendo-se á sua devida análise e ponderação, resulta, no essencial o seguinte:
- Tendo sido internada em 12/11/2019 e tendo tido alta em 18/11/2019, a Ré, em 14/11/2019, foi submetida a cirurgia de histerectomia total com ooforectomia bilateral  ;
- Constando, ainda, na informação clínica da mesma “endometriose. Antecedentes de conização do colo uterino” ;
- Em 29/06/2020, a Ré, nas análises efectuadas, acusou positivo, no âmbito da Imunoserologia, nos seguintes marcadores:
i.SEROLOGIA DO VÍRUS EPSTEIN BARR
Anticorpo Anto-EBV (VCA) IgG
ii.SEROLOGIA DO CITOMEGALOVÍRUS
Ac. Anti-Citomegalovírus
Ac. Anti-CMV (IgG)
iii.Ac. Anti- Citomegalovírus
Ac. Anti-CMV (IgM).
Ora, da articulação de tal prova, urge aditar à matéria factual provada dois novos números, que figurarão como 57. e 58., com a seguinte redacção:
“57. No verão de 2020, a Ré apresentava-se como pessoa com o sistema imunitário comprometido ou suprimido, tendo sido diagnosticada como portadora de vírus infectocontagioso” ;
“58. Tendo sido submetida, em Novembro de 2019, a cirurgia de histerectomia total com ooforectomia bilateral, da qual procurava recuperar plenamente”.
DO FACTO 37. PROVADO e da PRETENSÃO que PASSE a FIGURAR COMO NÃO PROVADO
Fundada em prova que indica, reivindica, ainda, a Impugnante a alteração do facto provado 37., no sentido do mesmo passar a figurar como não provado.
Acrescenta ser notório que a ora Recorrente somente “considerava a situação temporária uma vez que, nem sequer lhe pediu as chaves do imóvel ou trocou qualquer fechadura”, pelo que seria “uma solução meramente temporária devido ao seu estado de saúde e período de convalescença”.
Refere, ainda, que caso “quisesse expulsar a A. não teria saído antes de lhe dar tempo para ela fazer o isolamento noutro local”.
Pelo que, a conclusão de que a Ré pretendia pôr “fim ao arrendamento por esta situação, não faz sentido quando todas as testemunhas e as próprias partes referiram que elas tinham uma boa relação até àquela data e que não havia problemas entre as duas (…)”.
Donde, “não se concede que o Tribunal a quo tenha dado como provado que a Ré tenha expulsado a Autora de casa”, interpretação que não faz sentido perante a experiência de um homem médio, atenta a “relação de amizade que Autora e Ré mantinham, assim como ao comportamento da Ré em deixar a Autora com as chaves durante mais de um mês”.
Pois, o que sucedeu foi o facto da Ré ter ficado “assustada com a possibilidade de ficar infectada atento o seu estado de saúde débil”, tendo tentado “encontrar uma solução para a situação em que se encontravam”.
Pelo que, conclui, deve antes entender-se que “quem incumpriu o contrato de arrendamento dos autos foi a Autora (e não a Ré, conforme erradamente consta) que deixou de pagar a renda sem ter resolvido o contrato nos termos legalmente admissíveis”.  
Na sentença apelada, a prova de tal facto mereceu a seguinte fundamentação/motivação:
“A convicção do Tribunal quanto aos factos provados, sedimentou-se:
(….)
- no depoimento da testemunha A……………..S……………, que conhece a A. por ser sua irmã e, que conhece a Ré da situação dos autos, quanto aos factos provados nos n.ºs 37 a 45.
Efetivamente, a testemunha em apreço, de uma forma muito espontânea, relatou que na sequência da A., sua irmã, ter estado positivo para Covid 19, a Ré a expulsou da sua casa, circunstância que a testemunha confirmou, na sequência de telefonema efectuado pela A. para a testemunha, em que a Ré se encontrava a gritar. Esta testemunha tentou arranjar soluções de habitação para a sua irmã, mas sem sucesso, descrevendo o estado de aflição e pânico em que a sua irmã, ora A., se encontrava, devido ao facto de a Ré querer que a A. saísse imediatamente da casa, com todos os sentimentos dados como provados.
Mais concretizou que na sequência de uma mensagem da Ré para a testemunha no sentido de que aguardava contacto, ligou à Ré que lhe disse que a A. tinha que sair de casa, porque a Ré era uma doente de risco, insinuando que a A. tinha feito de propósito para se contagiar, para contagiar a Ré e, que a Ré queria resolver a situação, que a A. tinha que sair até ao final do dia, que não queria a A. mais na casa.
Mais acrescentou que da parte da Ré não havia qualquer vontade de manter ao arrendamento com a A..
Acresce, ainda, referir, dado que é facto público, que à data dos factos, as pessoas infectas por covid – 19 tinham a obrigação de ficar em isolamento.
O depoimento da referida testemunha foi credível, pese embora a relação familiar que a liga à A., dada a forma espontânea e escorreita com que relatou os factos, visivelmente transtornada pelo facto de se encontrar em Coimbra e não conseguir ajudar mais a A. do que aquilo que reportou ter efectuado”.
Tal ponto factual tem a seguinte redacção:
37. Na sequência do referido em 31), a Ré expulsou a A. de casa, ordenado que saísse da habitação imediatamente”.
Constando do ponto 31. que, tendo a Autora acusado positivo para Covid 19, a Ré questionou-a “sobre o que pretendia fazer, ao que esta respondeu que iria permanecer em isolamento e manter os mesmos cuidados já antes estabelecidos entre ambas”.
Tendo-se procedido à total audição do depoimento da testemunha A...........L......P.....S......., irmã da Autora, confirma-se, em pleno, o teor do declarado e referenciado na motivação aposta na sentença sob sindicância.
Efectivamente, tal testemunha foi claríssima e contundente na menção de que a P........... expulsou literalmente a irmã, que esta teria que ir e que não voltaria, inexistindo qualquer intenção ou vontade na manutenção do contrato de arrendamento.
Na audição que efectuámos, corroboramos, igualmente, a aparente total idoneidade no declarado, apesar da relação familiar próxima para com a Autora, estando-se perante um depoimento que se afigurou isento e séria, totalmente merecedor de credibilidade.
Relativamente ao presente ponto factual, a identificada M………… F…………. R………….. aludiu pensar que a saída da Autora de casa da Ré seria uma situação temporária, devido à pandemia e da concreta situação da Autora, o que fundamentou nas conversas que foi mantendo apenas com a Ré (e só com esta), pois ficou com a sensação de que a Autora não iria deixar de viver com a Ré.
Por sua vez, a identificada testemunha A………….P………….. mencionou achar que a inquilina não era para sair de vez, mas sem lograr fundamentar tal sensação ou percepção.
Para sustentar a pretendida alteração, alude, ainda, a Impugnante estarmos perante uma situação temporária, pois, além do mais, não lhe pediu as chaves do imóvel, nem procedeu à troca da fechadura.
Ora, não nos impressiona minimamente o facto da Autora manter as chaves do locado, o que se ocorreu até que retirou, sensivelmente um mês depois da saída, os seus bens pessoais do imóvel.
Com efeito, se a Autora já havia inclusive pago a renda de Setembro e se mantinha os seus bens pessoais no local arrendado, afigura-se perfeitamente natural e normal que a Autora tenha mantido as chaves de acesso consigo e que a Ré não tenha logrado concretizar qualquer mudança da fechadura, pois sempre a Autora, decorrido o período de isolamento e convalescença, necessitaria de dali retirar os seus pertences. Tal como, aliás, veio a ocorrer, bem como o facto de terem deixado as chaves em local previamente indicado pela Ré proprietária.
Acresce, ainda, que o facto da Ré ter alegadamente saído anteriormente da sua habitação, de forma a ter permanecido no gabinete onde trabalhava, não significa, necessariamente, que não tenha procedido à expulsão da Autora, nos termos provados, pois, se assim ocorreu, também não seria percepcionável o motivo de regresso a casa e prática de conduta activa no sentido da Autor sair no imediato do locado.
Por fim, relativamente á alegada ausência de sentido de que a Ré pretendesse pôr fim ao arrendamento, em virtude de Autora e Ré, manterem, até àquele momento, uma boa relação, sem a ocorrência de mútuos problemas entre ambas, sempre se dirá que tal bom relacionamento anterior não é susceptível de evitar ulterior prática de tal conduta, que, aliás, mereceu alguma corroboração por parte da posterior conduta da Ré, ao nunca ter contactado com a Autora, nem sequer para lhe perguntar se precisava de alguma coisa – cf., o facto provado 54..
Donde, conclui-se pela inexistência de qualquer fundamento para a pretendida alteração factual do ponto em equação, o qual se deverá manter na elencagem provada.
Pelo exposto, no que concerne à deduzida impugnação da matéria factual, o juízo é de parcial procedência das conclusões recursórias, determinando:
A. O aditamento de dois novos pontos factuais, que figurarão sob os nºs. 57. e 58., com a seguinte redacção:
“57. No verão de 2020, a Ré apresentava-se como pessoa com o sistema imunitário comprometido ou suprimido, tendo sido diagnosticada como portadora de vírus infectocontagioso” ;
“58. Tendo sido submetida, em Novembro de 2019, a cirurgia de histerectomia total com ooforectomia bilateral, da qual procurava recuperar plenamente” ;
B. Indeferimento da requerida alteração para não provado do ponto factual 37. provado, que deverá manter-se na elencagem da factualidade provada.
II) DA VERIFICAÇÃO DE ERRO DE JULGAMENTO NA SUBSUNÇÃO JURÍDICA EXPOSTA NA DECISÃO RECORRIDA, TENDO EM CONSIDERAÇÃO OS FACTOS APURADOS
A sentença apelada ajuizou, em súmula, nos seguintes termos:
- Entre Autora e Ré foi celebrado um contrato de arrendamento urbano (os artigos 1022º e 1023º, ambos do Cód. Civil) ;
- Como formas de cessação do contrato de arrendamento para habitação figuram o acordo das partes, a resolução, a caducidade, a denúncia ou outras causas previstas na lei (o artº. 1079º, do Cód. Civil) ;
- Apesar da Ré ter alegado que apenas sugeriu à Autora que procurasse um local para ficar enquanto estivesse em período de confinamento, a verdade é que resultou provado que a Ré expulsou a Autora da sua casa, e que essa expulsão não se destinava apenas àquele período em que a Autora estivesse em confinamento, sendo sim a título definitivo ;
- Assim, todo o quadro factual permite afirmar, indubitavelmente, que a Ré nunca sequer conjecturou o regresso da Autora a casa ;
- Antes integrando a atitude da Ré uma manifestação de vontade no sentido de pôr termo unilateralmente ao contrato celebrado com a Autora ;
- Cumprindo, assim, concluir no sentido da Ré ter resolvido o contrato de arrendamento ;
- Ora, a resolução do contrato de arrendamento, com fundamento da circunstância da Autora estar infectada com Covid 19, não consubstancia uma forma de resolução válida e legal daquele contrato, nos termos do disposto no artº. 1083º, do Cód. Civil, o qual tem natureza imperativa (o artº. 1080º, do mesmo diploma) ;
- Pelo que, a resolução operada pela Ré é ilegal, assim sendo declarada conforme peticionado pela Autora ;
- Tal resolução infundada terá necessariamente que ser integrada como uma oposição à renovação do contrato de arrendamento em apreço, para a sua renovação, por parte da Ré ;
- E sem que esta tenha respeitado o pré-aviso fixado no artº. 1097º, nºs. 1, alín. b) e 2, do Cód. Civil, nomeadamente o prazo de 120 dias ;
- De acordo com o disposto nos artigos 798º e 799º, nº. 1, ambos do Cód. Civil, o incumprimento é imputável à Ré (devedora) ;
- Impendendo sobre esta a obrigatoriedade de indemnizar a Autora pelos prejuízos sofridos ;
- A Autora foi privada, de forma ilegal, do uso do quarto objecto de arrendamento, antes do termo do contrato de arrendamento celebrado com a Ré ;
- A privação do uso do quarto até ao termo do contrato de arrendamento, assim como todos os sentimentos negativos vivenciados pela Autora, integram danos não patrimoniais desta, na modalidade de danos emergentes ;
- Tendo-se em ponderação os concretos factores expostos, considera-se justo e adequado fixar o montante indemnizatório no valor de 4.660,00 €, a título de danos não patrimoniais ;
- Relativamente á reconvenção, tendo a Reconvinte/Ré procedido à resolução ilegal do contrato de arrendamento, por se ter concluído inexistir qualquer causa legalmente válida para o efeito, a reconvenção terá que ser julgada totalmente improcedente, com consequente absolvição da Reconvinda/Autora do pedido reconvencional.
Na apelação interposta pela Ré, a sua discórdia da sentença apelada, no que ao enquadramento jurídico concerne, baseia-se, fundamentalmente, no seguinte:
· Da inexistência de resolução contratual por parte da Ré ;
· Do incumprimento do contrato de arrendamento por parte da Autora, que deixou de pagar a renda (rendas vencidas desde Outubro/2020 “até à data”) sem que o tenha resolvido ;
· Da inexistência de qualquer oposição à renovação ou denúncia, mantendo-se o contrato em vigor.
Analisemos.
Relativamente à invocada inexistência de resolução contratual por parte da Ré, o fundamento do aduzido radica, necessariamente, na pretendida alteração da matéria factual provada, nomeadamente do ponto 37., no sentido de passar a figurar como não provada. O que, conforme constatámos, não logrou obter êxito.
Por outro lado, com excepção de tal imputação, a Recorrente não questiona o enquadramento jurídico efectuado na sentença, ou seja, o recurso ao instituto da resolução contratual. E, mantendo-se como provado ter a Ré senhoria expulsado a Autora inquilina do locado, ordenando-lhe que saísse imediatamente da habitação, tal atitude evidencia uma concreta vontade de colocar termo, de forma unilateral, ao contrato celebrado com a Autora, mediante declaração donde tal se depreende de forma necessária, o que é abarcável nos quadros da resolução contratual – cf., o nº. 1, do artº. 436º, do Cód. Civil.
E, assim sendo, não será pertinente aludir-se a qualquer incumprimento do contrato de arrendamento por parte da Autora, por alegada falta de pagamento das rendas supervenientemente vencidas, sem que tenha procedido à sua resolução, nem que tal contrato se encontre ainda em vigor, por alegada inexistência de qualquer oposição à renovação ou denúncia contratual.
O que ilegítima qualquer juízo de procedência do pedido reconvencional, determinante, neste segmento, de total falência das conclusões recursórias apresentadas.
Todavia, indaga-se, de que forma é que a factualidade ora aditada influi em tal enquadramento ?
Ou seja, quer nos fiquemos pela figura da resolução contratual, ainda que, prima facie, infundada e ilegal, quer entendamos tal factualidade como enquadradora de oposição à renovação do contrato de arrendamento, ainda que em incumprimento do prazo de pré-aviso legalmente fixado, logra tal factualidade alterar o juízo de incumprimento contratual reconhecido ?
E, na afirmativa, como causa justificativa do comportamento provado, ou seja, excludente da ilicitude presente no incumprimento, ou antes com necessários reflexos apenas no cômputo do quantum do dano ressarcível ?
Relembremos os factos aditados.
Provou-se que a Ré, no verão de 2020, apresentava-se como pessoa com o sistema imunitário comprometido ou suprimido, tendo sido diagnosticada como portadora de vírus infectocontagioso, e que havia sido submetida, em Novembro de 2019, a cirurgia de histerectomia total com ooforectomia bilateral, da qual procurava recuperar plenamente – cf., os aditados factos 57. e 58.
Ora, de que forma é que tal quadro influiu naquele comportamento provado ? De que forma o determinou e causou ?
Não está em causa, nem surge como controvertida, a existência de indemnização por dano não patrimonial no âmbito da responsabilidade contratual – cf., por todos, o douto Acórdão do STJ de 11/01/2024, Relator: Ferreira Lopes, Processo nº. 21419/21.8T8LSB.L1.S1, in www.dgsi.pt , no qual se consignou que “é certo que a localização do art. 496º do Civil, que prevê a indemnização por danos não patrimoniais nas disposições sobre responsabilidade civil extracontratual por actos ilícitos, levou alguns autores a restringirem a sua aplicabilidade à responsabilidade civil extracontratual. Trata-se de posição minoritária, pois que a larga maioria da doutrina e, julga-se que de forma pacífica a jurisprudência, admite a ressarcibilidade dos danos não patrimoniais na responsabilidade contratual (cfr. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7ª edição, pag.378 e ss., Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9ª edição, pag. 549 e ss, e na jurisprudência, entre muitos outros, os acórdãos do STJ 22.06.2005, P. 05B1526, de 19.02.2009, P. 08B821, consultáveis em www.dgsi.pt, e de 13.09.2011, CJ/STJ, III, pag. 30)”.
No âmbito da responsabilidade contratual (tal como na responsabilidade extracontratual), um dos pressupostos da obrigação de indemnizar a cargo do devedor consiste na ilicitude, ou seja, “para que recaia sobre o devedor a obrigação de indemnizar o prejuízo causado ao credor, é necessário que o não cumprimento (a falta de cumprimento) lhe seja imputável. Significa isto, como se depreende da simples leitura do artigo 798º, quer vários pressupostos se devem reunir para o efeito: o facto objectivo do não cumprimento, que tanto pode ser uma omissão, como uma acção (nos casos de prestação negativa); a ilicitude; a culpa; o prejuízo sofrido pelo credor; o nexo de causalidade entre o facto e o prejuízo”.
Assim, no específico âmbito da responsabilidade contratual, a ilicitude resulta “da relação de desconformidade entre a conduta devida (a prestação debitória) e o comportamento observado” – cf., Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 4ª Edição, Almedina, 1990, pág. 90.
Ora, aquela factualidade aditada não logra, nem sustenta, um juízo excludente da ilicitude presente na conduta da Ré, ou seja, que o provado comportamento desta se possa de alguma forma justificar ou compreender pelo facto de possuir um sistema imunitário comprometido ou suprimido, ser portadora de vírus infectocontagioso, e ter sido submetida, aproximadamente dez meses antes, a cirurgia de histerectomia total com ooforectomia bilateral, da qual procurava recuperar plenamente.
Concretizando, tal quadro quanto ao estado de saúde da Ré não traduz nem justifica um juízo de conformidade no comportamento por si adoptado, relativamente ao comportamento que se lhe exigia e era devido.
Com efeito, aquele quadro tradutor de alguma fragilidade não justifica, nem torna aceitável, que tenha expulsado a Autora inquilina da casa, relativamente á qual lhe havia concedido o gozo de um dos quartos, com acesso a todas as divisões da casa (sala, cozinha e WC), mediante o pagamento de determinada contrapartida pecuniária mensal.
Mais, caso a mesma Ré entendesse (em juízo por si formulado) que existia incompatibilidade no facto de ambas ocuparem aquele mesmo espaço (apesar de todas as cautelas e cuidados que ambas já haviam estabelecido para que não existisse permanência conjunta nos mesmos espaços, para além dos cuidados de higiene na altura recomendados), na decorrência do seu estado e da doença de que padecia a Autora arrendatária, restar-lhe-ia procurar espaço alternativo de permanência, de forma a poder manter estrito cumprimento do contratualizado.
Todavia, cremos que a mesma factualidade não é inócua na determinação do quantum indemnizatório, por referência ao quadro factual tradutor do dano sofrido pela Autora.
Na sentença sob sindicância, relativamente à fixação do montante indemnizatório, raciocinou-se nos seguintes termos:
Ora, do exposto resulta que a A. foi privada, de forma ilegal, do uso do quarto objecto de arrendamento, antes do termo do contrato de arrendamento celebrado entre A. e Ré.
Pretende a A. o pagamento da quantia de € 4.680,00 de indemnização pela cessação ilegal do contrato de arrendamento e, € 2.500,00 a título de danos não patrimoniais.
Impõe-se, então, determinar quais os danos indemnizáveis e o respectivo montante.
Estabelece o artigo 562.º do Código Civil, como princípio geral, que quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação, sendo que a obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão, abrangendo não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão, nos termos dos artigos 563.º e 564.º do Código Civil.
Por seu turno, o artigo 566.º do Código Civil estabelece que a indemnização só será fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor.
Ora, a privação do uso do quarto até ao termo do contrato de arrendamento, assim como todos os sentimentos negativos vivenciados pela A., decorrentes da conduta supra descrita da A., integram danos não patrimoniais, na modalidade de danos emergentes.
Nesta sede, há que ter presente o disposto no artigo 496.º n.º 1 do Código Civil que estabelece que na fixação da indemnização deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, estabelecendo o n.º 3 do mesmo preceito legal que o montante de indemnização será fixado equitativamente pelo Tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º, isto é, o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso.
Igualmente se tem entendido que dever-se-á atender aos padrões de indemnização geralmente adoptados na jurisprudência.
Desde logo, é evidente que os prejuízos sofridos integram danos morais ou não patrimoniais que merecem a tutela do direito, dada a gravidade que os mesmos assumem, devendo haver lugar à fixação de indemnização a liquidar pela Ré à A..
Conforme referem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA “(…) o montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado segundo critério de equidade, atendendo, entre outras cousas, à situação económica das partes, à flutuação da moeda, tomando-se em conta na fixação todas as regras da boa prudência, da justa medida das coisas, do bom senso prático e da criteriosa ponderação das realidades da vida.” (Cfr. in “Código Civil Anotado, Volume I”, 3.ª Edição, página 474).
“O S.T.J., em acórdão de 23 de Outubro de 1979, reconhecendo a dificuldade da avaliação da compensação por danos não patrimoniais, aponta como critério a comparação de situações análogas aprovadas noutras decisões jurisprudenciais.”, sendo que “Em anotação a este arresto, Vaz Serra faz notar que este critério não é o único elemento a ter em conta, não sendo senão um dos que podem contribuir para uma equitativa avaliação da indemnização, devendo ter-se em conta além da natureza e da intensidade do dano, outras circunstâncias e, em especial, a situação patrimonial das partes e o grau de culpa do lesante.” (Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 14.04.2005, in www.dgsi.pt).
Refere MAYA DE LUCENA que “O grau de culpa do agente é determinante para se estabelecer a amplitude da respectiva indemnização, isto é, para efectuar o seu cálculo.” (Cfr. in “Danos Não Patrimoniais”, página 21). Por último, importa ter presente que “(…) a indemnização por danos não patrimoniais tem natureza mista: visa por um lado, reparar os danos sofridos pelo lesado, e, por outro, reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente.” (Cfr. Acórdão da Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 14.04.2005, in www.dgsi.pt; no mesmo sentido refere o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 11.01.1996, in www.dgsi.pt, que “(…) a indemnização em apreço não visa reconstituir a situação que existiria se não se tivesse verificado o evento, mas sim compensar de alguma forma o lesado pelas dores físicas ou morais sofridas e também sancionar a sua conduta.”).
Por outro lado, há que considerar os montantes fixados a nível jurisprudencial.
O grau de culpabilidade da Ré é elevado, atendendo ao que envolveu para a A. a expulsão da casa perpetuada pela Ré, que levou a que a A. ficasse entregue à sua sorte, desamparada, num contexto de doença motivada por um novo coronavírus em que pouco se sabia em termos científicos e médicos, obrigando a A. a transporte em ambulância rodeado de aparato dada a sinalização de urgência, a ter que sujeitar a estar em isolamento numa pousada, fora do seu ambiente habitacional normal, desprovida dos seus pertences, tudo revelador de uma postura da Ré demonstrativa de falta de consideração, empatia e solidariedade pelo seu semelhante.
Por outro lado e, no que se refere à situação económica da A., apenas se sabe que a mesma é gestora de ciências, desconhecendo-se o montante que a esse título aufere e, quanto à situação económica da Ré a mesma é desconhecida.
Peticiona a A. a quantia global de € 6.980,00 a título de danos não patrimoniais, a qual na perspectiva do Tribunal se afigura um pouco excessiva, tendo por referência o que já se deixou expresso, tendo em especial consideração o tempo de privação de uso do locado pela A. até à data em que o contrato de arrendamento terminaria, revelando-se justo e adequado fixar a quantia de € 4.660,00 (quatro mil seiscentos e sessenta euros) a este título.
A ser assim e, em face do exposto, considerando todos os circunstancialismos enunciados, revela-se justo e adequado fixar a quantia de € 4.660,00 (quatro mil, seiscentos e sessenta euros) a título de danos não patrimoniais”.
Sabe-se que a falta de cumprimento da obrigação só determina uma obrigação de indemnização se o credor sofra um concreto e efectivo prejuízo merecedor de ressarcimento.
O provado quadro de saúde da Ré devedora à data dos factos, não tendo a capacidade/potencialidade de sustentar um juízo excludente da ilicitude presente na conduta (nos termos já apreciados), não terá deixado de condicionar, certamente, a conduta adoptada, com necessários reflexos no grau de culpa imputável e reconhecível, fazendo-o diminuir e mitigar. Ou seja, a Ré, perante aquele quadro de fragilidade imunitária e procura de um total restabelecimento da cirurgia a que havia sido submetida dez meses antes, viu-se necessariamente condicionada por uma menor liberdade na determinação da conduta que veio a adoptar, o que tem necessários reflexos no grau de culpa exigível e reconhecível (a que não terá sido igualmente alheia a incerteza e pouco conhecimento que, na altura, existia acerca do vírus em equação).
Donde, introduzindo-se este condicionamento na aferição dos critérios determinantes do quantum indemnizatório, que têm por necessária directriz a equidade, decide-se pela redução do valor indemnizatório a título de danos não patrimoniais ao montante de 3.500,00 € (três mil e quinhentos euros).
O que determina, juízo de parcial procedência das conclusões recursórias, determinante do seguinte:
- alteração da sentença recorrida/apelada, no segmento determinador do montante indemnizatório a pagar pela Ré à Autora, a título de danos não patrimoniais, o qual se fixa no valor de 3.500,00 € (três mil e quinhentos euros) ;
- confirmar, no demais, a sentença apelada/recorrida.
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Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, quer as custas da acção, quer as do presente recurso, no que respeita ao pedido acional, são suportadas por Autora e Ré, na proporção do respectivo decaimento, sendo da total responsabilidade da Ré Reconvinte no que se reporta ao pedido reconvencional, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário a esta concedido.
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IV. DECISÃO
Destarte e por todo o exposto, acordam os Juízes desta 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa em:
I) Julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pela Apelante/Recorrente/Ré S......................................., em que figura como Apelada Recorrida/Autora J............................;
II) Em consequência, determina-se a alteração da sentença recorrida/apelada, no segmento tradutor do montante indemnizatório a pagar pela Ré à Autora, a título de danos não patrimoniais, o qual se fixa no valor de 3.500,00 € (três mil e quinhentos euros) ;
III) Confirmar, no demais, a sentença apelada/recorrida.
IV) Nos quadros do artº. 527º, nºs. 1 e 2, do Cód. de Processo Civil, quer as custas da acção, quer as do presente recurso, no que respeita ao pedido acional, são suportadas por Autora e Ré, na proporção do respectivo decaimento, sendo da total responsabilidade da Ré Reconvinte no que se reporta ao pedido reconvencional, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário a esta concedido.
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Lisboa, 24 de Outubro de 2024
Arlindo Crua - Relator
Carlos Gabriel Castelo Branco
Paulo Fernandes da Silva
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[1] A presente decisão é elaborada conforme a grafia anterior ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, salvaguardando-se, nas transcrições efectuadas, a grafia do texto original.
[2] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2017, 4ª Edição, Almedina, pág. 285.
[3] Idem, pág. 285 a 287.