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EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
APRESENTAÇÃO TARDIA À INSOLVÊNCIA
Sumário
I - Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste (exoneração do passivo restante), nos termos das disposições do capítulo I do Título XII do CIRE (artº 235º). II - A enumeração dos casos de indeferimento liminar previstos no nº 1 do artº 238º do CIRE é taxativa. III - Porque se trata de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do devedor à exoneração do passivo restante, o respetivo ónus de prova recai sobre o administrador da insolvência e/ou sobre os credores da insolvência, nos termos do art. 342º, nº 2 do CC. IV - Para que ocorra o fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração relativo a devedor não sujeito à obrigação de apresentação à insolvência, o art. 238º, nº 1, al. d), do CIRE, exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: i) não ter o devedor requerido a sua insolvência dentro dos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência; ii) ter resultado dessa falta ou atraso prejuízo para os credores; iii) o devedor saber, ou não poder ignorar sem culpa grave, que não existia qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica. V- A apresentação tardia à insolvência não implica, por si só, a presunção de prejuízo para os credores, o qual carece de demonstração concreta e efetiva, e o mero acumular de juros, por via do decurso do tempo em caso de apresentação tardia à insolvência, não consubstancia por si só um prejuízo dos credores, sendo antes necessário que exista um concreto prejuízo patrimonial, aferido casuisticamente, consubstanciado, por exemplo, em diminuição do acervo patrimonial, oneração do património, aumento do passivo.
Texto Integral
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães
RELATÓRIO
Por sentença de 3.5.2023 (ref. Citius 184685088), foi declarada a insolvência de AA, na sequência da sua apresentação à insolvência ocorrida em 19.4.2023.
No requerimento de apresentação à insolvência o insolvente pediu a exoneração do passivo restante.
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Em 14.6.2023, o Sr. Administrador da Insolvência (doravante AI) apresentou o relatório a que alude o art. 155º do CIRE (requerimento ref. Citius 14714156), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, no qual concluiu “pelo indeferimento do pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo devedor nos termos do disposto nas alíneas d) e e) do nº 1 do artigo 238º do CIRE.”
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O insolvente pronunciou-se sobre a posição do AI, nos termos do requerimento de 16.10.2023 (ref. Citius 15185396), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, considerando que o pedido deve ser liminarmente admitido.
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Em 19.4.2024 foi proferido despacho (ref. Citius 190002965), cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, com base na seguinte fundamentação jurídica:
“Dispõe o art. 238º do CIRE que o pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
a) For apresentado fora de prazo; b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza; c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência; d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspectiva séria de melhoria da sua situação económica; e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º; f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data; g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência. 2 - O despacho de indeferimento liminar é proferido após a audição dos credores e do administrador da insolvência na assembleia de apreciação do relatório, excepto se este for apresentado fora do prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos referidos no número anterior. O pedido de exoneração do passivo restante foi apresentado antes da assembleia de apreciação do relatório. Como refere o senhor AI, desde há mais de 10 anos que o devedor apresenta dificuldades financeiras, pois desde 2011 que deixou de pagar o crédito habitação que havia outorgado para aquisição da casa de morada de família, e em 2013 passa a incumprir o crédito automóvel que havia celebrado junto do “Banco 1..., S.A.”. No ano de 2015, com a citação do processo de execução nº 1795/14.... e com o início da penhora salarial que se verificou, pelo menos, até ao início deste processo de insolvência, num momento em que também já tinha conhecimento do processo de execução nº 282/14...., viu o devedor esgotadas todas as expectativas de melhoria financeira. No entanto, apenas em Janeiro de 2023 se apresenta o devedor à insolvência. Estamos perante um atraso do devedor na sua apresentação à insolvência, verificando-se ainda a total inexistência de sérias expectativas de melhoria da sua situação financeira. Urge verificar se de tal atraso resultou algum prejuízo para os seus credores. O devedor constituiu novas dívidas num momento em que já se encontrava em situação de insolvência (ver factos provados nos pontos 11 e 12), o que constituiu prejuízo para os credores mais antigos, porquanto, vêem estes diminuída a possibilidade de serem ressarcidos dos seus créditos. Em adição, com as penhoras de vencimento verificadas no âmbito dos processos de execução nº 282/14.... e 2435/15...., e ao existir entrega de valores aos exequentes no âmbito desses processos, pode-se considerar que houve o benefício desses credores face aos restantes, pois caso o devedor se tivesse apresentado em tempo útil ao Tribunal, requerendo a sua declaração de insolvência, tal activo, em sede de insolvência, teria sido afecto a todos os credores na proporção dos seus créditos. Assim, concordamos com o senhor AI de que estão preenchidos todos os pressupostos previstos na alínea d) do nº 1 do artigo 238º do CIRE por violação do seu dever de apresentação à insolvência, pelo que se indefere liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo devedor.”
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O insolvente não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:
“1. O despacho ora recorrido foi proferido sem ter em conta a realidade e sem que o Tribunal, como era seu dever, indagasse por essa mesma realidade. 2. O Tribunal limitou-se a seguir aquilo que foi dito pelo Senhor Administrador de Insolvência no seu relatório, sem ter em conta a realidade do Insolvente. 3. O pedido de exoneração do passivo restante consubstancia o exercício de um poder potestativo por parte do Insolvente, cabendo aos credores e ao Administrador de Insolvência o ónus da prova quanto aos factos impeditivos daquele direito potestativo, factos esses elencados nas alíneas do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE. 4. O Senhor Administrador de Insolvência, no seu relatório, nenhuma prova fez nesse sentido, limitando-se a produzir conclusivos e não apresentando factos que consigam sustentar tais juízos. 5. Tendo os credores sido notificado para o efeito, nunca se pronunciaram acerca do pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo Insolvente, ao mesmo, portanto, não se opondo. 6. O Tribunal, no despacho ora recorrido, limita-se a reproduzir os mesmos juízos conclusivos apresentados pelo Senhor Administrador no relatório, concluindo que “concordamos com o senhor AI de que estão preenchidos todos os pressupostos previstos na alínea d) do nº 1 do artigo 238º do CIRE por violação do seu dever de apresentação à insolvência, pelo que se indefere liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo devedor”. 7. A Senhora Juíza, no despacho recorrido, afirma que a conduta do Insolvente é subsumível à situação prevista da al. d) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE. 8. Ou seja, conclui que o Insolvente não cumpriu o seu dever de apresentação à insolvência. 9. Apesar de assim concluir, certo é que não fundamenta com factos essa conclusão. 10. Percorrendo o despacho do qual ora se recorre, certo é que no mesmo não se encontra fundamentada em factos: não são fixados factos a partir dos quais se possa extrair tal conclusão. 11. No despacho ora posto em causa, remete-se apenas para o afirmado pelo senhor Administrador de Insolvência que, diga-se, de entre outras afirmações, foi capaz de, ao arrepio de qualquer sentido de respeito ou consideração pelo Insolvente, foi capaz de basear o seu parecer em considerações acerca das qualidades subjetivas do Insolvente. 12. Não cabe ao senhor Administrador de Insolvência, tecer considerações acerca de qualidades pessoais do Insolvente. 13. Também ao Tribunal não cabe embarcar em tais considerações, ao menos sem fundamentar as razões pelas quais legalmente ou, se por aí encontrasse fundamento – que não encontra – as poderá valorar para efeitos de indeferimento de um pedido de exoneração do passivo restante por si apresentado. 14. Conclui a Senhora Juíza que o Insolvente não cumpriu o seu dever de apresentação à insolvência, mas, e de novo com o respeito que lhe é devido, sem sequer indicar o segmento da norma invocada para motivar a decisão, que aqui é posta em causa. 15. Tal despacho padece, assim, de nítida falta de fundamentação. 16. Tal omissão do dever de fundamentação cerceia naturalmente e de forma ilegal o direito de defesa e o contraditório ao Insolvente. 17. Nessa parte o despacho ora recorrido é nulo, por força da al. b) do n.º 1 do art.º 668.º do CPC, o que desde já se invoca. 18. O Tribunal recorrido não identificou o segmento normativo que o motivou a indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante. 19. Certo é que o Insolvente não tinha o dever de se apresentar à insolvência porque é pessoa singular não titular de qualquer empresa à data em que alegadamente – critério definido pelo senhor AI –. 20. Tenha-se em atenção que a decisão recorrida também não o fixa. 21. Bem assim, elegeu o senhor AI “um” momento a partir do qual o Insolvente se deveria ter apresentado à insolvência, se que se tenha dado ao cuidado de justificar – e muito menos de provar – o porquê da sua conclusão. 22. Terá de se concluir que não houve incumprimento do dever de requerer a insolvência no prazo de sessenta dias, porque o Insolvente não estava adstrito a esse dever, nem no prazo de seis meses. 23. Mesmo que existisse esse dever, também não aparece fundamentado no despacho o momento em que começou a correr esse prazo. 24. O Tribunal tinha o dever de fundamentar claramente o momento em que entendia que teria iniciado a contagem do prazo. 25. Ao não o fazer, omitindo o seu dever de fundamentação da decisão, cerceia, mais uma vez, o direito de defesa e o contraditório ao Insolvente, reiterando-se a nulidade do despacho por falta de fundamentação. 26. Mesmo que o Insolvente tivesse requerido mais cedo (embora o despacho recorrido não menciona quando é que deveria ter sido!!!), isso não beneficiaria ou prejudicaria os credores. 27. Ao contrário do que o senhor AI, com repercussão direta no despacho referido, quanto mais não seja por remissão, esse facto não iria alterar o curso dos acontecimentos. 28. O Insolvente sempre procurou, ciente de que teria de cumprir todas as suas obrigações, trabalhar e conseguir meio de sustento para – que remédio legal – proporcionar os descontos impostos no âmbito das penhoras alcançadas nos processos executivos que contra si decorriam. 29. E se assim o procurou, assim o alcançou. 30. Foi completamente inócuo para os seus credores o facto de o insolvente não ter requerido antes a sua insolvência. Se o tivesse feito, isso em nada alteraria a situação. 31. Mais – e não menos importante – o prejuízo dos credores não decorre automaticamente do decurso do tempo e do vencimento de juros. É necessário que sejam invocados danos e os mesmos sejam provados no processo. 32. O que não resulta da matéria dada por provada no despacho ora recorrido. 33. Sendo certo que a prova dos prejuízos cabia aos credores e não foi feita (Cf. Acórdão da Relação de Coimbra, de 23.02.2010, proc. 1793/09.5TBFIG-E.C1 (Relator Desembargador Alberto Ruço). 34. Não estão preenchidos os requisitos da alínea d) do artigo 238.º do CIRE. 35. Sendo que estando em causa uma pessoa singular não titular de uma empresa, como é o caso do Insolvente, o pedido de exoneração do passivo restante só pode ser objeto de indeferimento liminar com fundamento da al. d) do n.º 1 do art.º 238.º do CIRE se estiverem verificados, cumulativamente, três requisitos: a) ter o devedor deixado de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da insolvência; b) ter causado, com o atraso, prejuízo aos credores; c) sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva série de melhoria da sua situação económica. 36. Não foi feita prova de qualquer desses requisitos.”
Terminou pedindo que seja revogado o despacho recorrido e, consequentemente, seja deferido o pedido de exoneração do passivo restante.
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente em separado, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
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O tribunal a quo pronunciou-se sobre a invocada nulidade da decisão, considerando que a mesma não se verifica (despacho de 25.6.2024, ref. Citius 191287073).
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Por despacho de 8.9.2024 (ref. Citius 192119592), foi fixado à causa o valor de € 30 000,00.
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Foram colhidos os vistos legais.
OBJETO DO RECURSO
Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.
Neste enquadramento, as questões relevantes a decidir, elencadas por ordem de precedência lógico-jurídica, são as seguintes:
I - saber se a decisão padece de nulidade por falta de fundamentação;
II - saber se estão reunidos os pressupostos legais previstos no art. 238º, nº 1, al. d), do CIRE, para que o pedido de exoneração do passivo restante seja liminarmente indeferido.
FUNDAMENTAÇÃO
FUNDAMENTOS DE FACTO
Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:
1. O devedor foi casado sob o regime da comunhão de adquiridos com “BB” entre ../../1993 e ../../2012, data em que esta relação terminou por divórcio.
2. O devedor reside de favor em casa dos seus pais.
3. O devedor desempenha uma atividade remunerada junto da sociedade “EMP01..., S.A.”, N.I.P.C. ...90, exercendo as funções de Mecânico Montador e auferindo uma remuneração bruta mensal equivalente ao salário mínimo nacional.
4. Em 2011 entrou o devedor em incumprimento com o “Banco 2..., S.A.”;
5. Pelo que foi demandado no âmbito do processo de execução nº 1795/14.... do qual foi citado em 22 de Outubro de 2015 e no âmbito do processo de execução nº 282/14.... foi citado em 10 de Novembro de 2014;
6. Em Dezembro de 2013 entra o devedor em incumprimento com o “Banco 1..., S.A.”, tendo sido demandado no âmbito do processo de execução nº 2435/15.... do qual foi citado em 7 de Janeiro de 2016;
7. Desde Novembro de 2015 que se encontra penhorado o vencimento mensal auferido pelo devedor;
8. Desde 2016 que o devedor se encontra em incumprimento com a Fazenda Nacional;
9. Entre 2016 e 2018 o devedor acumulou um passivo superior a Euros 1.500,00 junto da Fazenda Nacional referente a IMI, IRS e coimas;
10. No final de 2017, foi vendida, por leilão electrónico, a casa de morada de família do devedor – fracção autónoma designada pelas letras ..., que faz parte integrante do prédio urbano descrito sob o nº ...99 da freguesia ..., concelho ... e inscrita na respectiva matriz sob o artigo ...95º;
11. Em Maio de 2020, o devedor outorga um novo contrato de crédito, este para aquisição veículo automóvel da marca ..., modelo ... (...03) ..., com a matrícula ..-TQ-.., pelo valor de Euros 19.500,00;
12. Apenas este veículo integra a esfera patrimonial do devedor, no entanto goza o “Banco 3..., S.A.” de uma reserva de propriedade a favor do mesmo, pelo que nenhum bem existe que possa ser apreendido a favor da massa insolvente,
13. De acordo com as reclamações de créditos, o passivo do devedor é superior a Euros 55.000,00.
FUNDAMENTOS DE DIREITO
Cumpre apreciar e decidir.
I - Nulidade da decisão por falta de fundamentação
O recorrente invoca a nulidade da sentença, por falta de fundamentação, por violação do disposto no art. 668º, nº 1, al. b), do CPC.
A invocação deste normativo decorre seguramente de lapso, pois o art. 668º do CPC vigente não rege sobre a nulidade da sentença, mas sim sobre a reforma do acórdão.
A norma invocada pelo recorrente reporta-se ao anterior CPC, já revogado, o qual previa no art. 668º as causas de nulidade da sentença, correspondendo tal normativo ao art. 615º do CPC vigente, tendo a questão da nulidade invocada de ser apreciada à luz do mesmo.
Dispõe o art. 615º, nº 1, do CPC, (diploma ao qual se referem todas as normas subsequentemente citadas sem menção de diferente origem) que é nula a sentença quando:
a) Não contenha a assinatura do juiz;
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.
As nulidades da decisão são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra citado.
Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da decisão.
As nulidades da decisão, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cf. Acórdão desta Relação de 4.10.2018, Relatora Eugénia Cunha, in www.dgsi.pt).
O vício da sentença decorrente da não especificação dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão, abreviadamente designado como vício de falta de fundamentação, e previsto na al. b), encontra-se diretamente relacionado com a obrigação de o juiz fundamentar as suas decisões que não sejam de mero expediente, obrigação essa que lhe é imposta pelos arts. 154º e 607º, nºs 3 e 4, do CPC, e pelo art. 205º, nº 1, da CRP.
A exigência de fundamentação exerce a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da justiça, inerente ao ato jurisdicional (José Lebre de Freitas, in A Ação Declarativa Comum À Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª edição, pág. 317).
Impõe-se ao juiz não só que explicite o que decidiu, mas também que indique os motivos que determinaram tal decisão, esclarecendo porque assim decidiu.
Na verdade, só sabendo os concretos fundamentos que justificaram a prolação da decisão as partes terão a possibilidade real e efetiva de proceder à sua impugnação e suscitar a sua sindicância por um tribunal superior. E o tribunal superior só pode sindicar a decisão se conhecer os fundamentos de facto e de direito que subjazem à decisão proferida.
Todavia, é entendimento pacífico e consolidado, quer da doutrina, quer da jurisprudência, que só a falta absoluta da indicação dos fundamentos de facto ou de direito será geradora da nulidade em causa, não ocorrendo tal vício nas situações de mera deficiência, insuficiência ou mediocridade de fundamentação.
Assim, como já afirmava o Prof. Alberto dos Reis, (in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 140) “há que distinguir cuidadosamente a falta absoluta de motivação da motivação deficiente, medíocre ou errada. O que a lei considera nulidade é a falta absoluta de motivação; a insuficiência ou mediocridade da motivação é espécie diferente, afecta o valor doutrinal da sentença, sujeitando-a ao risco de ser revogada ou alterada em recurso, mas não produz nulidade. Por falta absoluta de motivação deve entender-se a ausência total de fundamentos de direito e de facto. Se a sentença especificar os fundamentos de direito, mas não especificar os fundamentos de facto, ou vice-versa, verifica-se a nulidade”.
Em idêntico sentido, referem Antunes Varela e outros (in Manual de Processo Civil, 2ª edição, p. 687) que, “para que a sentença careça de fundamentação, não basta que a justificação da decisão seja deficiente e incompleta, não convincente; é preciso que haja falta absoluta, embora esta se possa referir só aos fundamentos de facto ou só aos fundamentos de direito”.
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Ora, lendo a decisão recorrida, verifica-se que a mesma não padece de falta absoluta de especificação dos fundamentos de facto e de direito pois contém o elenco dos factos provados e a fundamentação de direito, conforme supra se encontra transcrito.
A bondade e o acerto ou desacerto da decisão jurídica proferida do ponto de vista do seu mérito é matéria que se prende unicamente com a existência de erro de julgamento, mas que não é geradora do vício de nulidade da decisão.
Assim, a sentença não padece do vício de nulidade previsto na al. b), do nº 1, do art. 615º.
Consequentemente, improcede esta questão recursória.
II - Verificação dos pressupostos legais previstos no art. 238º, nº 1, al. d), do CIRE, relativos ao indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante
A exoneração do passivo restante encontra-se prevista nos arts. 235º a 248º, do CIRE (ao qual pertencem todos as normas que venham a ser citadas sem indicação de diferente proveniência), estatuindo o art. 235º, como princípio geral, que se o devedor for uma pessoa singular pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste, nos termos das disposições do capítulo I do Título XII.
Trata-se de uma figura que tem como objetivo primordial conceder uma “segunda oportunidade” ao devedor singular que caia em situação de insolvência de recomeçar vida nova no fim do período de 3 anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, permitindo que este se liberte do passivo que possui e que não consiga pagar no âmbito daquele processo (cf. Acórdãos do STJ de 21/10/2010 e 19/04/2012, in www.dgsi.pt).
Conforme é referido relativamente à figura jurídica da exoneração do passivo restante no nº 45 do preâmbulo do DL nº 53/04, de 18.3, que aprovou o C.I.R.E., o “Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. (...) O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste. (...) A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.”
A exoneração do passivo restante inspira-se, pois, no chamado modelo de fresh start amplamente difundido nos Estados Unidos e acolhido no código da insolvência alemão visando permitir ao devedor pessoa singular libertar-se do peso das dívidas que não podem ser satisfeitas através da liquidação do seu património e recomeçar de novo a sua vida.
Subjacente a este instituto está a ideia de um equilíbrio entre os interesses dos credores na satisfação dos seus créditos e o interesse do devedor, de redenção para uma nova vida, o que passa por sacrifícios para ambas as partes (Ac. do Tribunal da Relação de Guimarães, de 14.1.2016, in www.dgsi.pt).
Nas palavras de Catarina Serra, (in O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 3ª edição, pp. 102 e 103) trata-se de um instituto “tributário da ideia de fresh start”, sendo o seu objectivo final “a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, «aprendida a lição», este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua actividade económica”.
A concessão da exoneração passa por dois momentos fundamentais caracterizados basicamente por duas decisões: o chamado despacho inicial e a decisão final da exoneração.
Não havendo razões para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o juiz proferirá despacho inicial, determinando que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido ao fiduciário destinando-se ao pagamento das custas do processo de insolvência ainda em dívida, ao reembolso ao Cofre Geral dos Tribunais das remunerações e despesas do administrador da insolvência e do próprio fiduciário que por aquele tenham sido suportadas, ao pagamento da remuneração vencida do fiduciário e despesas efetuadas e, por fim, à distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência, conforme resulta das disposições conjugadas dos arts. 239º e 241º.
No final do período da cessão, caso não tenha ocorrido a cessação antecipada, será proferida decisão sobre a concessão, ou não, da exoneração.
Os fundamentos da recusa da exoneração são os mesmos que vigoram para a cessação antecipada da exoneração, conforme estabelecido no art. 244º, nº 2.
Por isso, “o juiz não dispõe de um poder discricionário de conceder ou não a exoneração. Ao contrário, deve atribuí-la se não ocorrer nenhum motivo que possa justificar a cessação antecipada e recusá-la no caso contrário” (Carvalho Fernandes e João Labareda in CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 870).
Sendo a exoneração concedida, ocorrerá a extinção de todos os créditos que ainda subsistam à data em que for concedida, sem exceção dos que não tenham sido reclamados e verificados, não ficando abrangidos pela extinção unicamente os créditos elencados no art. 245º, nº 2.
Ora, como se refere no Acórdão desta Relação de Guimarães, de 5.3.2020, Relator José Alberto Moreira Dias (in www.dgsi.pt) “porque o instituto em causa pressupõe uma colisão de direitos constitucionalmente protegidos e a concordância prática entre eles, procurando-se, em primeira linha, salvaguardar os interesses do devedor insolvente e, bem assim os dos seus credores (estes, a título secundário), é indiscutível que o instituto da exoneração não consubstancia, sequer pode consubstanciar, “um brinde ao incumpridor”, pelo que o perdão das dívidas não pode ser concedido ao insolvente, pessoa singular, sem critérios mínimos de razoabilidade, sob pena de se incorrer em inconstitucionalidade material e se banalizar o próprio instituto, ao qual todos recorreriam, sem qualquer sentido de responsabilidade e sacrifício, pois que não foi manifesto propósito do legislador que a exoneração tivesse como escopo a desresponsabilização do devedor, sequer que o processo judicial possa ser uma porta aberta para atingir semelhante desiderato.”
Por isso, prossegue aquele Acórdão dizendo que o devedor “terá de passar por uma espécie de período de prova (período de cessão), durante o qual parte dos seus rendimentos é afetada ao pagamento das dívidas remanescentes, isto é, que permanecem por pagar uma vez feita a liquidação da massa insolvente, e durante o qual o insolvente ficará sujeito a um conjunto de obrigações. Apenas findo esse período, e tendo ficado demonstrado que o devedor merece (earns) a exoneração, deverá ser-lhe concedido o benefício. Deste modo, atenta a colisão de direitos de credores e devedor que se assiste no instituto da exoneração, a filosofia e a ratio que lhe está subjacente e porque a exoneração é rigorosamente uma nova causa de extinção das obrigações, extraordinária ou avulsa relativamente às causas de extinção das obrigações previstas no CC (arts. 837º a 874º do CC), para que a exoneração do passivo restante seja concedida é necessário que antes do processo de insolvência, durante este e, bem assim até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado da decisão que lhe confira a exoneração (art. 246º do CIRE), o devedor singular justifique ser merecedor de uma segunda oportunidade, que lhe permita “começar de novo”.
A exoneração do passivo apresenta-se como “uma medida que não pode ser vista como um recurso normal que a lei coloca ao dispor dos devedores para se desresponsabilizarem; mas antes uma medida que o devedor pelo seu comportamento anterior e ao longo do período da exoneração fez por merecer e justificar; ou, ao menos, é uma medida que não pode ir ao arrepio do comportamento do devedor. Ou seja, a exoneração “apenas deve ser concedida a um devedor que tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, reveladores de que a pessoa em causa se afigura merecedora de uma nova oportunidade” (Acórdão da Relação de Coimbra, de 7.9.2021, P 3/21.1T8CBR-B.C1 in www.dgsi.pt).
As causas de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante encontram-se elencadas de forma taxativa no art. 238º, nº 1, ou seja, só as situações aí designadas, e não quaisquer outras, podem justificar que o pedido de exoneração do passivo restante seja indeferido in limine.
Essas causas de indeferimento liminar do pedido de exoneração podem reconduzir-se a três grupos distintos: um primeiro grupo, que respeita a comportamentos do devedor relativos à situação de insolvência e que para ela contribuíram de algum modo ou a agravaram (als. b), d) e e)); um segundo grupo, que compreende situações ligadas ao passado do insolvente (als. c) e f)) e, finalmente, o terceiro grupo, a que se reporta a al. g), que configura condutas adotadas pelo devedor que consubstanciam a violação de deveres que lhe são impostos no decurso do processo de insolvência (cf. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3ª ed., págs. 854 e 855).
É entendimento senão absolutamente pacífico, pelo menos largamente dominante, na jurisprudência[1] que os fundamentos de indeferimento liminar previstos no art. 238.º, nº 1 têm natureza impeditiva do direito à exoneração do passivo restante, o que significa que sobre o devedor/insolvente não impende o ónus processual de alegar e provar a inexistência de tais fundamentos, antes competindo aos credores e/ou ao administrador da insolvência o ónus de prova da sua verificação (art. 342º, nºs 1 e 2, do CC).
A decisão recorrida considerou verificado o fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante previsto no art. 238º, nº 1, al. d), decisão da qual o recorrente discorda por entender que não se encontra sujeito ao dever de apresentação à insolvência previsto na 1ª parte da norma e que não se verificam os requisitos previstos na 2ª parte da mesma.
No que ao caso sub judice interessa, dispõe o art. 238º, nº 1, al. d) que:
1 - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se:
d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica;
No caso, de acordo com a factualidade dada como provada, o devedor é uma pessoa singular, não constando que seja titular de uma empresa, pelo que o mesmo se encontra legalmente excetuado do dever de apresentação à insolvência, por força do disposto no art. 18º, nº 2, al. b).
Fica assim excluída a verificação da 1ª parte da al. d).
Quanto à 2ª parte da mesma alínea, aplicável ao devedor que não está sujeito ao dever de apresentação à insolvência, a mesma contém três requisitos, de natureza cumulativa, a saber:
i) não apresentação do devedor nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência;
ii) causando prejuízo para os credores com essa não apresentação;
iii) e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
No que respeita à situação de insolvência, de acordo com o disposto no art. 3º, nº 1, a mesma existe a partir do momento em que o devedor, pessoa singular, se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.
A este propósito, a jurisprudência e a doutrina têm sustentado que essa impossibilidade de incumprimento não tem obrigatoriamente que abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas, bastando a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, de uma forma objetiva, comprovem ou revelem a incapacidade do devedor de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos, ou seja, a situação de insolvência alude à esfera patrimonial do devedor e consiste na incapacidade do seu património para cumprir a generalidade das obrigações já vencidas.
Assim, Maria do Rosário Epifânio (in Manual de Direito da Insolvência, 7ª Edição, Almedina, pág. 27) afirma que “a impossibilidade de cumprimento relevante para efeitos de insolvência não tem que dizer respeito a todas as obrigações do devedor. Pode até tratar-se de uma só ou de poucas dívidas, exigindo-se apenas que a(s) dívida(s) pelo seu montante e pelo seu significado no âmbito do passivo do devedor seja(m) reveladora(s) da impossibilidade de cumprimento da generalidade das suas obrigações.”
No mesmo alinhamento de ideias, refere Catarina Serra (in Lições da Insolvência, 2ª ed., págs. 55 e 56) que “para a insolvência não releva nem o número nem o valor pecuniário das obrigações vencidas (…) tanto está insolvente quem está impossibilitado de cumprir uma ou mais obrigações de montante elevado (o montante em causa é demasiado elevado para que o devedor possa cumprir) como quem está impossibilitado de cumprir uma ou mais obrigações de pequeno montante ou de montante insignificante (o montante é insignificante e ainda assim ele não consegue cumprir).”
Por sua vez, Alexandre de Soveral Martins (in Um Curso de Direito da Insolvência, Almedina, 3ª ed., pág. 62) refere que: “a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas não significa que se tenha de fazer a prova imediata de que o devedor está impossibilitado de cumprir todas e cada uma dessas obrigações. Basta a prova imediata que o devedor não consegue cumprir as obrigações vencidas que, por sua vez, permitam ao julgador presumir que o devedor também não tem possibilidade de cumprir as restantes”.
Consequentemente, e como sumariado no acórdão desta Relação de Guimarães, de 11.5.2023, (P 320/23.6T8GMR.G1 in www.dgsi.pt) podemos afirmar que “[v]erdadeiramente o que releva para o reconhecimento da insolvência é a insusceptibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos”.
Quanto à culpa, dada a omissão no CIRE do critério da sua apreciação, deverá aplicar-se, analogicamente, o critério do artigo 487º, nº 2, do Código Civil, segundo o qual a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
Recorrendo às palavras de Assunção Cristas (in Exoneração do passivo restante, Themis, Edição Especial, 2005, pág. 171) “a culpa grave corresponde à conduta do agente que só seria susceptível de ser realizada por pessoa especialmente negligente, actuando a maioria das pessoas de modo diverso”.
No fundo, trata-se de uma negligência grosseira, entendida esta como a “falta grave e indesculpável, que consiste na omissão dos deveres de cuidado, por não se ter usado daquela diligência que era exigida segundo as circunstâncias concretas, pelo que se exige um dever de prever um resultado como consequência duma conduta, em si ou na medida em que se omitem as cautelas e os cuidados adequados a evitá-lo” (acórdão da Relação de Guimarães, de 11.10.2018, Relatora Maria dos Anjos Nogueira, in www.dgsi.pt).
Aplicando estas premissas ao concreto caso sub judice, vejamos, então, se, à luz da factualidade dada como provada, a qual não foi objeto de impugnação, se encontram, ou não, verificados os três requisitos cumulativos da al. d) do nº 1 do art. 238º.
Provou-se que:
- Em 2011 o devedor entrou em incumprimento com o “Banco 2..., S.A.” e foi demandado no âmbito do processo de execução nº 1795/14.... no qual foi citado em 22 de outubro de 2015 e, no âmbito do processo de execução nº 282/14...., foi citado em 10 de novembro de 2014 (factos 4 e 5)
- Em dezembro de 2013 o devedor entrou em incumprimento com o “Banco 1..., S.A.”, tendo sido demandado no âmbito do processo de execução nº 2435/15.... no qual foi citado em 7 de janeiro de 2016 (facto 6);
- Desde novembro de 2015 que se encontra penhorado o vencimento mensal auferido pelo devedor;
- Desde 2016 que o devedor se encontra em incumprimento com a Fazenda Nacional tendo acumulado, entre 2016 e 2018, um passivo superior a Euros 1.500,00 referente a IMI, IRS e coimas (factos 8 e 9);
- No final de 2017, foi vendida, por leilão eletrónico, a casa de morada de família do devedor (facto 10).
Ora, desta factualidade resulta, em nosso entender, que as dificuldades económicas do devedor se iniciaram em 2011, data em que ocorreu o primeiro incumprimento com o Banco 2..., situação que se foi agravando, tendo, em 2013, ocorrido incumprimento com o Banco 1... e, em 2016, com a Fazenda Nacional.
O CIRE contém, no nº 1 do art. 20º, um conjunto de factos-índice que fazem presumir a situação de insolvência definida no art.º 3º.
Assim, de acordo com a alínea g), sub al. i), desse artigo, constitui facto-índice da situação de insolvência o incumprimento generalizado, nos últimos seis meses, de dívidas tributárias.
Deste modo, entende-se que, pelo menos desde 2016, ano em que ocorreu o incumprimento perante a Fazenda Nacional, o devedor se presume insolvente, por estar impossibilitado de cumprir as suas obrigações tributárias vencidas.
Acresce a anterior impossibilidade de cumprimento das dívidas ao Banco 2... e ao Banco 1..., o que ocasionou a instauração de execuções, com penhora do vencimento e da casa de morada de família, tendo esta acabado por ser vendida em 2017.
Por conseguinte, o devedor deveria ter-se apresentado à insolvência nos seis meses seguintes, ou seja, até ../../2017, por reporte ao último dia do ano de 2016, uma vez que não se apurou a data concreta em que a situação de insolvência se verificou.
A apresentação à insolvência apenas teve lugar em 19.4.2023, ou seja, muito para além do prazo de seis meses, o que implica que se encontra verificado o primeiro requisito.
Relativamente ao 2º requisito, a jurisprudência maioritária tem entendido que a apresentação tardia à insolvência não implica, por si só, a presunção de prejuízo para os credores, o qual carece de demonstração concreta e efetiva, e que o mero acumular de juros, por via do decurso do tempo em caso de apresentação tardia à insolvência, não consubstancia por si só um prejuízo dos credores, sendo antes necessário que exista um concreto prejuízo patrimonial, aferido casuisticamente, consubstanciado, por exemplo, em diminuição do acervo patrimonial, oneração do património, aumento do passivo (neste sentido e a título exemplificativo, vejam-se os acórdãos do STJ, de 22.3.2011, P 570/10.5TBMGR-B.C1.S1; de 3.11.2011, P 85/10.1TBVCD-F.P1.S1; de 27.3.2014, P 331/13.0T2STC.E1.S1; de 21.3.2013, P 1728/11.5TJLSB-B.L1.S1; da Relação de Guimarães, de 30.3.2023, P 975/22.9T8VNF-E.G1; de 10.7.2023, P 6342/22.7T8VNF-C.G1; de 10.7.2023, P 3835/22.0T8VNF.G1; da Relação do Porto, de 21.10.2010, P 3916/10.2TBMAI-A.P1; de 19.5.2010, P 1634/09.3TBGDM-B.P1; de 7.4.2011, P 3271/10.0TBMAI-G.P1; de 3.6.2014, P 212/14.0TJVNF.P1; de 7.12.2017 P 195/12.0TBSJM.P1;de 12.4.2021, P 519/20.7T8STS-D.P1; da Relação de Lisboa, de 28.11.2013, P 9507/12.6TBCSC-C.L1-8; de 6.10.2011, P 275/10.7TBBBR-C.L1-8; da Relação de Évora, de 28.9.2017, P 954/12.4TBALR-G.E1; de 28.5.2015, P 528/10.4TBMMN-B.E1 todos acessíveis em www.dgsi.pt).
No caso em apreço, como já supra analisámos, a apresentação à insolvência ocorreu tardiamente. Após ../../2017, data em que deveria ter ocorrido a apresentação à insolvência, o devedor contraiu uma nova dívida e de valor elevado pois, em maio de 2020, outorgou um novo contrato de crédito para aquisição de veículo automóvel da marca ..., modelo ..., pelo valor de Euros 19.500,00 (facto 11).
Nesta altura, já não tinha qualquer ativo, pois a casa de morada de família já tinha sido vendida.
Este veículo não pode ser apreendido para a massa insolvente porquanto o Banco 3..., S.A goza de reserva de propriedade sobre o mesmo (facto 12).
O que implica que houve um aumento do passivo sem qualquer correspondente aumento do ativo.
Por outro lado, houve um outro acréscimo de passivo porquanto, entre 2016 e 2018, o devedor acumulou um passivo superior a Euros 1.500,00 junto da Fazenda Nacional referente a IMI, IRS e coimas (facto 9).
Perante o acréscimo de passivo, sem qualquer incremento do ativo, os credores anteriores ficam prejudicados, pois veem diminuída a possibilidade de serem ressarcidos dos seus créditos.
Por outro lado, a circunstância de o devedor não se ter apresentado à insolvência permitiu que as execuções singulares já instauradas e referidas nos factos 5 e 6 prosseguissem os seus termos e que as penhoras aí efetuadas e o produto das consequentes vendas apenas fossem afetos ao pagamento dos créditos dos aí exequentes, o que prejudica os demais credores pois se a insolvência tivesse sido decretada, na sequência da apresentação atempada, o ativo patrimonial do devedor teria sido afeto a todos os credores na proporção dos respetivos créditos.
Acresce que o prosseguimento das execuções - que não teria lugar se tivesse ocorrido a oportuna apresentação à insolvência - implicou ainda um aumento de despesas, encargos e custas judiciais em cada um desses processos; na medida em que esses valores saem precípuos do valor dos bens/direitos penhorados e vendidos, diminuiu nessa exata medida o valor a entregar aos credores.
Assim, entende-se que, no caso em apreço, ocorreu prejuízo para os credores por o devedor não se ter apresentado à insolvência até ../../2017, estando verificado o 2º requisito da al. d) do nº 1 do art. 238º.
Por último, conclui-se que, à luz da factualidade provada, o devedor sabia, ou, pelo menos, não podia ignorar, sem culpa grave, de acordo com a noção acima delineada, que não existia qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
Na verdade, o devedor não tinha quaisquer bens livres de ónus e encargos pois o seu vencimento estava penhorado assim como o imóvel que constituiu a casa de morada de família, não lhe sendo conhecidos outros bens. O devedor trabalha por conta de outrem, aufere o salário mínimo nacional e tem um passivo superior a € 55 000,00. Perante este quadro patrimonial de ativo e passivo e atentos os sucessivos incumprimentos de créditos, ocorridos em 2011, 2013 e 2016, não se vislumbra a existência de qualquer possibilidade séria de melhoria da situação económica do devedor que o pudesse levar a não se ter apresentado à insolvência até ../../2017.
Assim sendo, encontra-se preenchido o 3º requisito da al. d) do nº 1 do art. 238º.
Dado o preenchimento de todos os requisitos cumulativos da al. d) do nº 1 do art. 238º, resta concluir que existe fundamento para indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, tal como entendido na decisão recorrida, a qual é de confirmar, pelo que improcede esta questão recursória.
*
Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado improcedente na totalidade, é o recorrente responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação pelo recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
Notifique.
*
Sumário (da responsabilidade da relatora, conforme art. 663º, nº 7, do CPC):
I - Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste (exoneração do passivo restante), nos termos das disposições do capítulo I do Título XII do CIRE (artº 235º).
II - A enumeração dos casos de indeferimento liminar previstos no nº 1 do artº 238º do CIRE é taxativa.
III - Porque se trata de factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito do devedor à exoneração do passivo restante, o respetivo ónus de prova recai sobre o administrador da insolvência e/ou sobre os credores da insolvência, nos termos do art. 342º, nº 2 do CC.
IV - Para que ocorra o fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração relativo a devedor não sujeito à obrigação de apresentação à insolvência, o art. 238º, nº 1, al. d), do CIRE, exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos:
i) não ter o devedor requerido a sua insolvência dentro dos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência;
ii) ter resultado dessa falta ou atraso prejuízo para os credores;
iii) o devedor saber, ou não poder ignorar sem culpa grave, que não existia qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
V- A apresentação tardia à insolvência não implica, por si só, a presunção de prejuízo para os credores, o qual carece de demonstração concreta e efetiva, e o mero acumular de juros, por via do decurso do tempo em caso de apresentação tardia à insolvência, não consubstancia por si só um prejuízo dos credores, sendo antes necessário que exista um concreto prejuízo patrimonial, aferido casuisticamente, consubstanciado, por exemplo, em diminuição do acervo patrimonial, oneração do património, aumento do passivo.
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Guimarães, 17 de outubro de 2024
(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) Gonçalo Oliveira Magalhães
(2º/ª Adjunto/a) Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade
[1] A título de exemplo, vejam-se os seguintes arestos citados no acórdão desta Relação de Guimarães, de 12.10.2023, P 172/22.3T8MDL.G1, em que foi relator o aqui 1º adjunto: STJ 21.10.2010 (3850/09.TBVLG-D.P1.S1), 6.07.2011 (7295/08.BTBBRG.G1.S1), 24.01.2012 (152/10TBBRG-E.G1.S1), 19.04.2012 (434/11.5TJCBR-D.C1.S1), 19.06.2012 (1239/11.9TBBRG-E.G1-S1), 21.02.2013 (542/10.0TBLNH.L1-6), 21.01.2014 (497/13.9TBSTR-E.E1.S1), 27.03.2014 (331/13.0T2STC.E1.S1), 17.06.2014 (985/12.4T2AVR.C1.S1); RL 24.04.2012 (14725/11.1T2SNT-C.L1-7), 28.11.2013 (9507/12.6TBCSC-C.L1-8), 12.12.2013 (1367/13.6TJLSB-C.L1-6), 20.02.2014 (4233/12.9TJLSB-C.L1-2), 5.03.2015 (247/13.0TJLSB-C.L1-2), 8.07.2021 (2475/20.2T8VFX-B.L1-1); RP 27.09.2011 (3713/10.5TBVLG-E.P1), 19.12.2012 (3087/11.7TBVCD.P1); RG 8.06.2017 (3481/16.7T8VNF-C.G1), 23.11.2017 (7111/15.6T8VNF-G.G1), 19.11.2020 (3755/19.5T8GMR-D.G1), 3.12.2020 (1851/20.5T8VNF.G1); RC 25.10.2011 (96/11.0T2AVR-D.C1) e 7.03.2017 (2891/16.4T8VIS.C1).