I - Para que se considere cometido um crime contra a honra, as expressões utilizadas têm que ser apreciadas no contexto situacional em que são proferidas e alcançar um patamar mínimo de gravidade que lhes confira dignidade penal.
II - Revertendo ao caso dos autos, contextualizado o teor da carta enviada pela arguida à assistente (irmãs uma da outra), verifica-se que as expressões proferidas pela arguida não visam mais do que expressar o seu ponto de vista, a sua opinião crítica quanto ao ambiente de manifesto litígio familiar existente, não podendo afirmar-se que a arguida ultrapassou o direito de crítica e passou a ofender a honra e a consideração da assistente.
III - Atentando no teor da carta em questão, é de concluir que as afirmações e expressões contidas na mesma não podem ser retiradas do seu contexto, e, em tal contexto, e num clima de discórdia, não têm o propósito de rebaixar ou humilhar a assistente, constituindo, tão-só, um exercício do direito à critica perante factos controversos, não atingindo o patamar mínimo para que o direito penal intervenha.
Acordam em conferência os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora
Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Évora, Juízo de Instrução Criminal de Évora, no âmbito do Processo: 775/21.3T9EVR foi, em 1 de fevereiro de 2024, proferida a seguinte decisão (transcrição):
“Declara-se encerrada a fase de instrução, nos termos do artigo 307.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
*
DECISÃO INSTRUTÓRIA
I. RELATÓRIO:
1. Nos presentes autos, a arguida F requer a abertura de instrução por não se conformar com as acusações particulares deduzidas no processo principal n.º 775/21.T9EVR e no processo apenso 12/22.3T9MMN.
Processo principal
2. A assistente M deduziu acusação contra:
A) F
TIR a fls. 223 do processo (Av. …….. Lisboa).
Mandato forense a Dr. José Maria Formosinho Sanchez a fls. 364.
A quem imputa o(s) seguinte(s) crime(s):
«Pelo exposto, a arguida, F, incorreu, em autoria material e, na forma consumada, por dolosa, na prática de um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180º, n.º1, 182º e 183º, n.º1, al. a) e b), todos do Código Penal»;
3. Foi constituída assistente por despacho de fls. 152:
A) M (……………..).
Proc. apenso n.º 12/22.3T9MMN
4. A assistente M deduziu acusação contra:
A) F
TIR a fls. 320 do processo apenso (Av. …….. Lisboa).
Nomeação a Dr. José Maria Formosinho Sanchez a fls. 359.
A quem imputa o(s) seguinte(s) crime(s):
«Pelo exposto os arguidos cometeram, em autoria material, na forma consumada, um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, n.º1 e 183º, ambos do Código Penal»;
B) P
TIR a fls. 315 do processo apenso (Av. ………. Lisboa).
Nomeação a Dr.ª Rita Antunes a fls. 360.
A quem imputa o seguinte crime:
«Pelo exposto os arguidos cometeram, em autoria material, na forma consumada, um crime de difamação, p. e p. pelo artigo 180º, n.º1 e 183º, ambos do Código Penal»
5. Foi constituída assistente por despacho de fls. 157:
A) M (………………).
6. Declarada aberta a instrução (cfr. fls. 462), determinada a apensação do proc. n.º 12/22.3T9MMN ao proc. n.º 775/21.T9EVR (cfr. fls. 505) e realizou-se o debate instrutório com observância de todo o formalismo, conforme resulta da respectiva acta.
II. CONHECIMENTO DE NULIDADES E OUTRAS QUESTÕES PRÉVIAS OU INCIDENTAIS DE QUE SE POSSA CONHECER (ARTIGO 308º, NÚMERO 3, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL):
O tribunal é competente.
O processo é o próprio e válido.
A questão prévia a decidir nos presentes autos é a de saber se a acusação do processo apenso n.º 12/22.3T9MMN reúne todos os requisitos formais para prosseguir para a fase de julgamento, após a análise dos indícios recolhidos.
Antes de mais, há sempre que ter presente, que o juiz de instrução estará limitado, à partida, pela factualidade relativamente à qual se pediu a instrução, nos termos do art.º 287.º, n.ºs 1 e 2, e 288.º, n.º 4 do Código de Processo Penal, sendo orientado no seu procedimento e decisão pelas razões de facto e de direito invocadas.
Por outro lado, dispõe o art.º 283.º, n.º 2, aplicável à fase de instrução ex vi do n.º 2 do art. 308.º ambos do Código de Processo Penal, que “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Preceitua o art.º 308.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que “Se, até ao encerramento da instrução, tiveram sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
O conceito de indícios suficientes funda-se na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, pelo que, deve considerar-se existirem indícios suficientes para efeitos de prolação do despacho de pronúncia (tal qual para a acusação) quando:
- Os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si, fizerem pressentir da culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior; e,
- Se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento; ou,
- Quando se pressinta que da ampla discussão em plena audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido da condenação futura.
Prescreve o art.º 277.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, que o inquérito deve ser arquivado, se não tiver sido possível ao Ministério Público obter indícios suficientes da verificação de crime ou de quem foram os seus agentes.
No despacho de pronúncia, de acordo com o n.º 3 do art.º 308.º do Cód. Penal, o juiz começa por decidir das nulidades e outras questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.
Segundo o art.º 311.º, do Cód. Processo Penal, “2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; (...)
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.”.
A primeira questão a decidir é a de saber se a acusação reúne todos os requisitos formais para prosseguir para a fase de julgamento.
O n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal, aplicável à acusação particular por via da remissão operada pelo n.º 3 do artigo 285.º do mesmo Código, elenca, nas suas diversas alíneas, os requisitos que deverá conter a acusação, sob pena de nulidade.
Exige-se à acusação, nos termos do art.º 283.º, n.º3 al. b) do Cód. Processo Penal, “A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.
A violação deste normativo implicará a rejeição da acusação por manifestamente infundada, ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal.
A narração factual é um requisito que reveste especial importância na medida em que é a acusação que fixa o objecto do processo, o qual se irá manter até ao trânsito em julgado da sentença, protegendo o arguido contra eventuais alargamentos dos poderes de cognição e decisão do Tribunal, por forma a garantir que uma vez comunicada a acusação ao arguido este possa conhecer quais os factos e o crime que lhe são imputados, permitindo-lhe, deste modo, preparar e organizar adequadamente a sua defesa.
Uma acusação particular deve cumprir com todos os requisitos exigidos para esta, contendo todos os elementos de facto, em ordem a subsumi-los nas disposições legais igualmente indicadas. A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.
“O princípio ou cláusula geral estabelecido no n.º 1 do art. 32.º da CRP significa, ao aludir a todas as garantias de defesa, que ao arguido, como sujeito processual, devem ser assegurados todos os direitos, mecanismos e instrumentos necessários e adequados para que possa, em plena liberdade da vontade, defender-se, designadamente para que possa contrariar a acusação ou a pronúncia, através de um julgamento imparcial, realizado com total independência do juiz, em procedimento leal e justo, sendo certo que a individualização e clareza dos factos objecto do processo são indispensáveis para que o arguido possa valida e eficazmente contraditar a acusação ou a pronúncia, única forma de se poder defender” (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-02-2007 - Proc. 06P4341, rel. Cons. Oliveira Mendes).
Exigindo-se, pois, que a acusação proceda à imputação objectiva e subjectiva ao acusado, da factualidade ilícita e típica.
O tipo objectivo do ilícito previsto no art. 180, n.º1 do CP exige a imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa, a formulação de um juízo ofensivo da honra a outra ou a reprodução daquela imputação ou deste juízo. A difamação é dirigida a terceiro ao invés da injúria. (cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal à luz da CRP e CDEH, pág. 496).
Ora, os factos constitutivos do crime de difamação agravada (previsto nos artigos 180.º, n.º 1, e 183.º, todos do Código Penal), que a assistente imputa aos arguidos na sua acusação particular, reconduzem-se à alegação da factualidade de que «no dia 4 de novembro de 2021, veio a assistente ter conhecimento através de citação por carta rogatória, efectuada no domicílio, que já arguida intentou um processo de maior acompanhado sobre a mãe de ambas (assistente/arguida) – Proc. n.º 608/21.0T8MTJ, cfr. documento 2 que se junta e aqui se dá por inteiramente reproduzido. No âmbito da petição inicial apresentada e submetida a Tribunal, a arguida apresenta e submete factos à apreciação Judicial, que sabe e conhece serem falsos, com o intuito claro, não só de prejudicar, humilhar, vexar e atingir dignidade e a consideração da sua irmã/Assistente, bem como ludibriar o Douto Tribunal a quo».
No caso concreto, e porque se trata de um elemento do tipo, a acusação teria que alegar independentemente do meio de envio da petição inicial, quando a imputada formulação chegou ao conhecimento de terceiro. Temos que a petição foi elaborada e submetida através da plataforma Citius, após o que foi autuada e distribuída como acção especial.
Ao invés, a acusação limita-se a tratar de forma genérica acerca da apresentação da petição inicial, sem mencionar a data em que foi submetida. Por conseguinte a alegação formulada não se reconduz ao tipo criminal imputado dado não especificar quando e a quem foram informados os factos falsos.
Acresce que o crime pressupõe «Quem, dirigindo-se a terceiro (...)» mas a petição tem necessariamente um destinatário que pela evidente leitura da petição inicial sob análise é identificável como sendo “EX.MO(A) SENHOR(A) DR. JUIZ DE DIREITO” do “Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Local Cível da Comarca do Montijo”. Tal alegação foi nitidamente omitida da acusação particular.
No ponto 17 da acusação particular pode ler-se que “Os coarguidos bem sabem e conhecem que tudo o que escrevem na petição que redigiram e submeteram a tribunal é falso”. Aqui também se antolha que a arguida e o arguido tivessem ao computador a processar o texto que constitui o objecto da acusação particular, quando na verdade e na realidade tão só P foi quem assinou a petição inicial. Conclui-se que ao nível da autoria dos factos, ou quiçá da cumplicidade, a acusação particular é genérica e insusceptível de proceder a imputação dos factos aos agentes. Aliás, não é só pela simples circunstância do arguido ser mandatário da irmã da assistente que se pode extrair uma intervenção directa na execução do facto criminal, pois seria necessário – e a acusação particular não o faz – alegar que no âmbito do mandato forense a arguida transmitiu e ordenou ao arguido, advogado de profissão, que os factos como aqueles que foram descritos na petição dela tivesse de constar.
Na falta destes elementos, concluímos que não pode a conduta do arguido ser extensível à arguida e determinar a sua responsabilidade.
Neste ponto reproduzimos pela clareza o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 23-05-2012, que demonstra a dificuldade da imputação dos factos na existência de mandato forense: «Discutindo-se, no caso, a eventual comparticipação criminosa (artigo 26º do CP), entre advogados subscritores da peça dita injuriante e os mandantes dos advogados, a este respeito é possível configurar três situações distintas: · Uma em que o advogado transfere para a peça processual aquilo que o cliente lhe disse depois de o advertir expressamente das consequências que daí podem ocorrer; · Outra em que o autor do escrito é apenas o advogado, sem qualquer interferência do cliente, que, inclusive, é surpreendido por aquilo que é difundido; · Finalmente, aquela em que o cliente relata factos que sabe não serem verdadeiros para que o advogado os verta para o articulado, no convencimento de que correspondem à verdade. Se, na primeira hipótese, se poderá configurar um exemplo de comparticipação criminosa e, na terceira, um caso em que apenas se admite a responsabilidade exclusiva do cliente, já na segunda estamos perante um ilícito cometido apenas pelo advogado.».
A imprecisão da matéria alegada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa dos arguidos, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência do Supremo Tribunal tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal – cf. Acs. de 06-05-2004, Proc. n.º 908/04 - 5.ª, de 04-05-2005, Proc. n.º 889/05, de 07-12-2005, Proc. n.º 2945/05, de 06-07-2006, Proc. n.º 1924/06 - 5.ª, de 14-09-2006, Proc. n.º 2421/06 - 5.ª, de 24-01-2007, Proc. n.º 3647/06 - 3.ª, de 21-02-2007, Procs. n.ºs 4341/06 - 3.ª e 3932/06 - 3.ª, de 16-05-2007, Proc. n.º 1239/07 - 3.ª, de 15-11-2007, Proc. n.º 3236/07 - 5.ª, e de 02-04-2008, Proc. n.º 4197/07 - 3.ª.
Princípio consagrado, quer no artigo 29º, n.º1 da CRP, quer no artigo 1º do Cód. Penal, segundo o qual ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que declare punível a acção ou a omissão, foi violado com a acusação particular. Donde, com este fundamento, sempre estaria a acusação votada ao insucesso, porquanto a lei penal que institui uma conduta humana em crime não pode fazer apelo a conceitos vagos e de determinação difícil, a exigir do aplicador uma atividade perturbada e perturbadora, considerando que nenhuma matéria factual da acusação se pode reconduzir ao ditame normativo que fundamenta a putativa responsabilidade da arguida. Não poderia ser consignado nos factos suficientemente indiciados tal alegação, já que em bom rigor constituiria em transformar uma conduta atípica numa conduta típica típica ( com a falta de menção da data de consumação e a quem em concreto foi dirigida a petição inicial, o alegado não constitui crime) e conduziria inequivocamente à nulidade da decisão instrutória, por via do art.º 309.º, n.º1, do Cód. Processo Penal.
Estando a acusação ferida de nulidade importa determinar quais as consequências da mesma. Aqui, concordamos com o acórdão da Relação de Coimbra de 23-5-2012, proferido no processo 126/09.5IDCBR-B.C1, segundo o qual a nulidade da acusação prevista no art.º 283.º, n.º 3, for arguida perante o titular do inquérito e por este declarada, ficará sujeita à disciplina do art.º 122.º; se for declarada no âmbito da instrução, no seio da decisão instrutória, aquando do saneamento do processo, determinará a não pronúncia (cfr. art.º 308.º, n.º 3).
Não obstante as razões formais que apontamos, importa analisar se existe sustento para considerar preenchido o tipo criminal mencionado na acusação particular.
Na mencionada acção de acompanhamento a parte, a aqui arguida, foi considerada parte ilegítima, pelo que o alegado foi destituído de qualquer efeito e não relevante para os fins daquela acção.
No que se refere ao patrocínio, nos termos do artigo 208.º da Constituição da República Portuguesa, artigo 13.º da Lei n.º 62/13 de 26 de Agosto, artigo 150.º n.º 2 do Código de Processo Civil de 2013, existe a imunidade do mandato conferido a advogados. Nos termos do art.º 13.º da Lei n.º 62/13 de 26 de Agosto:
«1 - A lei assegura aos advogados as imunidades necessárias ao exercício dos atos próprios de forma isenta, independente e responsável, regulando-os como elemento indispensável à administração da justiça.
2 - Para garantir o exercício livre e independente de mandato que lhes seja confiado, a lei assegura aos advogados as imunidades necessárias a um desempenho eficaz, designadamente:
a) O direito à proteção do segredo profissional;
b) O direito ao livre exercício do patrocínio e ao não sancionamento pela prática de atos conformes ao estatuto da profissão;
c) O direito à especial proteção das comunicações com o cliente e à preservação do sigilo da documentação relativa ao exercício da defesa;
d) O direito a regimes específicos de imposição de selos, arrolamentos e buscas em escritórios de advogados, bem como de apreensão de documentos.».
De acordo com o n.º2 do art.º 150.º do Código de Processo Civil, «Não é considerado ilícito o uso das expressões e imputações indispensáveis à defesa da causa.».
Considerando que não se apura qualquer índicio da intervenção da Ordem dos Advogados, sempre a imunidade concedida ao exercício do patrocínio pelos advogados e a conduta em causa beneficia da cláusula de exclusão da ilicitude prevista no art.º 31.º, n.º1 e 2, al. b), do Cód. Penal.
Os elementos carreados para os autos não concluem pela probabilidade dos arguidos, pelas razões enunciadas, serem condenados pelo crime de difamação agravada nos termos do art.º 180.º, n.º1, do Cód. Penal, o que justifica a prolação do despacho de não pronúncia e que se considere prejudicada a discussão sobre a agravação do ilícito.
Assim, atento todo o supra exposto, importa proferir despacho de não pronúncia quanto a ambos os arguidos, por referência aos crimes que lhes eram imputados respectivamente na acusação particular (não obstante a instrução particular ter sido requerida pela arguida F), com o consequente arquivamento dos autos.
III. DA VERIFICAÇÃO DA EXISTÊNCIA DE INDÍCIOS SUFICIENTES DE SE TEREM VERIFICADO OS PRESSUPOSTOS DE QUE DEPENDE A APLICAÇÃO AO(S) ARGUIDO(S) DE UMA PENA OU MEDIDA DE SEGURANÇA:
A instrução é uma fase preliminar do processo, tal como o inquérito. A instrução visa, nos termos do art. 286.º, nº 1 do Código de Processo Penal, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não uma causa a julgamento, configurando-se como um “expediente destinado a questionar o despacho de arquivamento ou a acusação deduzida” (SIMAS SANTOS e LEAL HENRIQUES, Código de Processo Penal Anotado, vol. II, pág. 158.).
Atendendo ao regime processual, a instrução é uma instância de controlo e não de investigação, embora não esteja de todo afastada qualquer actividade inquisitória, sendo que o juiz deve investigar autonomamente mas sempre dentro do acervo factual que lhe é apresentado no requerimento de abertura de instrução e que sempre delimitará os seus poderes de actuação. A instrução – importa acentuar – não é um novo inquérito, mas tão só um momento processual de comprovação; não visa um juízo de mérito, mas apenas um juízo sobre a acusação, em ordem a verificar da sua admissibilidade da submissão do arguido a julgamento com base na acusação que lhe foi formulada (MAIA GONÇALVES, Código de Processo Penal Anotado, 15ª Edição, pág. 578.).
Em sentido negativo, a instrução não tem por finalidade directa a fiscalização ou complemento da actividade de investigação e recolha de prova realizada em inquérito, com o que, porém, não se pretende significar que nesta fase processual não se proceda também à fiscalização da legalidade dos actos praticados no decurso do inquérito e até à decisão da sua suficiência ou insuficiência.
Terminada a fase instrutória, o juiz proferirá decisão de pronúncia ou não pronúncia consoante tenha conseguido, ou não, recolher indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança.
Neste sentido prescreve o nº 1 do art.º 308.º que “se até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
O nº 2 do art.º 283.º CPP refere que “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança”. Indícios suficientes prende-se com a suficiência como a maior probabilidade de condenação do que de absolvição e a suficiência como forte possibilidade de condenação.
altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável que a absolvição.
O juiz só deve pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forme a sua convicção de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido.
A decisão deve resultar da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução devendo existir a convicção de forte possibilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação ou de que o não seja, sendo este caso para a não pronúncia.
O Tribunal formou a sua convicção com base na apreciação crítica da prova recolhida durante as fases de inquérito e instrução.
Em particular, o tribunal baseou a sua convicção relativamente aos factos considerados como demonstrados e não demonstrados na apreciação conjugada e de acordo com as regras da experiência comum, dos seguintes elementos de prova:
Da prova documental
Fls.
Data
Título do documento
5
31/08/2021
Queixa
13
17/07/2021
Missiva de E
14 a 16, 79 a 80
22/07/2021
Missiva de F
16
23/07/2021
Talão de aceitação de correio registado RH 800427379PT
17
26/07/2021
Aviso de recepção RH 800427379PT
18 a 20, 83 a 86, 450 a 452
22/07/2021
Missiva de E
21, 86
23/07/2021
Talão de aceitação de correio registado RH 800427365PT
22, 87
26/07/2021
Aviso de recepção 800427365PT
23 a 24, 88 a 89
- sem data -
Missiva de E
21, 90
30/07/2021
Talão de aceitação de correio registado RH 800427008PT
44, 400
14/10/2020
Cópia simples da sentença proferida no proc. n.º 57/18.8GDMTJ
78, 448
22/07/2021
E-mail de F
81 a 82, 567 a 567 verso,
11/03/2020
Relatório médico de E
91 a 94
12/02/2019
Cópia não certificada da escritura pública de doação com os
outorgantes L e F
94 a 100
12/02/2021
Cópia simples da decisão proferida no proc. n.º 11757/20.2T8LSB-A
101
09/01/2017
Cheque sacado sobre a conta n.º 00013878500 e assinado por E no valor de € 5.000,00
102
12/01/2017
Cheque sacado sobre a conta n.º 00013878500 e assinado por E no valor de € 230.000,00
103
18/01/2017
Cheque sacado sobre a conta n.º 00013878500 e assinado por E no valor de € 290.000,00
105
12/01/2017
Comprovativo de apresentação de cheque de fls. 102 assinado por E
106
- data ilegível -
Comprovativo de apresentação de cheque de fls. 101 assinado por E
226, 449
22/07/2021
Missiva de M
259
04/07/2022
Termo de incorporação
260 a 307
12/08/2021
Inquérito n.º 919/21.5T9MTJ
318 a 331
30/06/2022
Carta precatória para inquirição de I
391 a 399, 562 verso a 567
11/10/2022
Relatório de perícia médico legal
434 a 447
Printscreen de mensagens enviadas a 14/07/2018, 3/09/2018, 6/09/2018, 24/12/2018, 31/12/2018, 01/01/2019, 13/12/2009, 13/02/2019, 14/02/2018, 15/04/2019, 19/04/2019, 08/07/2019, 12/07/2019, 13/07/2019, 14/07/2019,
507
Extrato de 31/12/2017 emitido pelo Bankinter referente a 01/12/2017 e 31/12/2017 da conta n.º 00203002108 titulada por E
510
19/02/2018
Missiva de F
512
7/02/2020
Declaração de Bankinter referente à titularidade da conta por F e E
520
14/02/2023
Certidão (fora de validade)
524
- sem data -
Queixa
568
23/06/2021
Relatório de alta médica
587 a 588
04/12/2017
Ordem de transferência bancária por E
589
20/05/2020
Informação de instituição bancária sobre o arresto
590
12/12/2023
Certidão emitida no proc. n.º 6741/20.9T9LS
Apenso
4
27/11/2021
Queixa
13, 99, 385
14/10/2020
Cópia simples da sentença proferida no proc. n.º 57/18.8GDMTJ
47, 116
-sem data-
Cópia simples da petição da acção especial de acompanhamento de maior
68, 126
22/07/2021
Missiva de E
69, 127 verso
23/07/2021
Talão de aceitação de correio registado RH 800427365PT
70, 128
26/07/2021
Aviso de recepção 800427365PT
71, 129
- sem data -
Missiva de E
73, 130
30/07/2021
Talão de aceitação de correio registado RH 800427008PT
74, 131
19/02/2018
Missiva de F
343 verso
03/02/2023
Auto de audição do proc. n.º
608/21.0T8MTJ
345 verso
11/10/2022
Relatório de perícia médico legal
27/03/2023
Cópia simples da decisão proferida no proc. n.º 608/21.0T8MTJ
419 a 432
Printscreen de mensagens enviadas a 14/07/2018, 3/09/2018, 6/09/2018, 24/12/2018, 31/12/2018, 01/01/2019, 13/12/2009, 13/02/2019, 14/02/2018, 15/04/2019, 19/04/2019, 08/07/2019,
12/07/2019, 13/07/2019, 14/07/2019.
479
14/06/2021
Certidão da petição inicial do proc. n.º 608/21.0T8MTJ
Prova testemunhal
Processo principal
• Autos de inquirição de fls. 201, 203, 237 e 239;
Apenso
• Autos de inquirição de fls. 171, 172, 178, 181, 186, 264, 266;
Prova por declarações
Processo principal
• Auto de interrogatório de F a fls. 224;
Apenso
• Auto de interrogatório de P a fls. 316 que pese embora conste por ora deseja prestar declarações é notório tratar de lapso de escrita, na medida em que nenhuma declaração prestou;
• Auto de interrogatório de F a fls. 332.
No cotejo da prova supramencionada com o depoimento e as declarações prestadas no inquérito e na instrução, a arguida repristinou a sua versão conforme consta de fls. 224, mas não o fez forma minimamente convincente e aditou novos elementos que prejudicam a posição vertida no requerimento de abertura de instrução.
Foram considerados os mencionados documentos por não conterem quaisquer elementos susceptíveis de indiciarem a sua falsidade, nem conterem informações inverosímeis e/ou contraditórias, lograram criar no Tribunal a convicção de veracidade do teor dos documento e factos aí vertidos.
Valoramos os depoimentos das testemunhas inquiridas, incluindo o depoimento da testemunha C, cônjuge da arguida. O depoimento de C é evidentemente parcial, relatando a visão próxima da defesa, e não permite ao tribunal sedimentar a sua posição no que respeita às matérias em discussão, nomeadamente, a falta de intenção da arguida aquando a prática dos factos.
Sobre o e-mail enviado em 22 de Julho de 2021, mesmo na situação de doença da mãe da arguida e da assistente, amplamente explorada na fase de instrução, e no envio de mensagens da assistente fazendo-se passar pela mãe de ambas, o aludido controlo transmitido pela arguida não é compaginável com uma situação de sequestro. Por ter relatado o último contacto com E, sua mãe, a arguida não deixou de demonstrar que nesse momento a mãe de ambas quis ficar com a assistente. A arguida acaba por se afastar voluntariamente da mãe, por recear o impacto das reações da assistente na mãe. Evocou uma hipótese de maltrato. Mas também disse que a assistente nunca agrediu fisicamente a mãe embora o fizesse verbalmente. Este aspecto foi aditado em sede de instrução. Trata-se de uma novidade em relação às declarações prestadas no inquérito. Perante este contexto, não se mostra adequada ou justificada a descrição feita pela arguida na missiva enviada para o email da assistente. Mesmo que a arguida declare que não teve intenção de injuriar a assistente, a descrição da assistente como alguém que mantém refém a sua mãe ou que está sobre o poder da assistente como garantia de algo, referindo uma situação de coacção, falta de liberdade e de controle indesejado, quando não parece ser esse o caso, revela toda a intencionalidade e significado que a arguida quis exprimir na missiva objecto dos presentes autos. Nem a pendência da acção especial de acompanhamento emenda as declarações da arguida. No acto solene de audição da requerida, E nada disse que leve um terceiro de boa fé concluir que está sequestrada ou manietada pela assistente, quando o podia tê-lo feito. Nem à data em que envia o email nem agora a arguida pode dizer ou justificar o seu entendimento de que a E, sua mãe, se encontra refém da assistente. E, não sendo esse o caso, qualquer palavra desse jaez demonstra a depreciação da honra e consideração que a assistente merece. A posição da arguida de não verificação do elemento subjectivo não merece colhimento. A imputação feita é susceptível de ofender a honra e da consideração. Ora, no que tange ao elemento subjectivo, demonstra-se que a arguida agiu livremente, querendo praticar os factos conscientes de que ofendiam a honra e consideração de outrem, ou seja, agiu consciente da ilicitude.
1. FACTOS SUFICIENTEMENTE INDICIADOS (expurgada toda a matéria conclusiva e valorativa sem relevo para a decisão a proferir):
Processo principal
1. A assistente e a arguida são ambas irmãs.
2. No dia 22 de Julho de 2021, a arguida redigiu e enviou uma carta dirigida à mãe de ambas as partes, para o enderenço de e-mail da assistente, tendo a assistente imprimido e entregue a carta à sua mãe.
3. Resulta do teor da missiva o seguinte: "Olá Mãe, Sei que estás a ser manipulada pela M há já muito tempo e que estás dela refém. E só isto explica porque deixou de ser a Mãe a responder-me aos sms's passando a ser a M que tem um discurso claramente diferente e agressivo coisa que a mãe nunca teve comigo. "Ainda assim, espero que lhe reste um pouco de dignidade à M e que esta carta lhe chegue apenas para lhe dizer que só soube do seu internamento na véspera de ter alta e apenas no dia em que teve alta consegui essa informação do Hospital"; "Como a Mãe bem sabe, nunca a privei de ver o D, aliás tentei por diversas vezes encontrar-me consigo para ver mas de todas as vezes a M boicotou esta vontade, impedindo de nos encontrarmos respondendo por si aos sms e da do sempre desculpas sem nunca encontrar alternativas"; As palavras absurdas de violência, intimidação, vandalismo, infernizar a vida das pessoas a que a carta que a M lhe fez assinar se refere aplicam-se sim à M que como a mãe sabe está agora profissional naquilo que faz desde criança - dar-me a fama do proveito que é ela que tem. Como se calhar nem sabe foi e tem sido a M a tentar infernizar-me a vida e ao C, tendo sido ela a iniciar um rol interminável (ainda) de constante queixas-crime contra mim e o C de situações que nunca aconteceram e muitas delas absolutamente ridículas mas destes tristes episódios continuarei a poupá-la, como tenho feito, por demonstrarem uma total decadência de humanidade da sua filha M; "A única queixa crime que fiz contra si foi a M que me obrigou a fazê-la por ter deixado viver de esmolas por ter deixado a Avó, sua Mãe, sem tecto, numa situação de viver de esmolas"; “ (...) a M ter retirado da sua conta para uma dela todo o dinheiro que a Avó juntou (...) mais de meio milhão.”. “(...) a M tem-se aproveitado disso e tem-na manipulado e levado a fazer coisas que a Mãe nunca faria de livre vontade como abandonar vergonhosamente a sua mãe, abandonar o seu neto e a sua filha mais velha que sempre acompanhou até à chegada da M sempre tratou bem”.
4. O que arguida escreve na sua missiva e afirma é falso.
5. A arguida bem sabe e conhece que o que escreve é falso, tendo como objectivo de denegrir, humilhar, vexar a assistente imputando-lhe os factos que sabe e conhece serem falsos de forma a criar a descrença e a dúvida na mãe das partes.
6. A arguida agiu consciente, com o intuito de difamar a assistente, na sua honra e consideração perante terceiros, bem sabendo que as suas palavras por falsas ofendida de forma directa a assistente, criando a convicção da veracidade das mesmas, desrespeitando nessa medida de forma total os direitos de personalidade da assistente.
7. Foi intencionalmente que a arguida proferiu as afirmações no contexto em que fez e pelo meio que escolheu bem sabendo que a sua conduta era proibida por Lei.
8. A arguida actuou com o objectivo de prejudicar, estabilizar e causar descrédito na assistente, na sua honra e consideração, dignidade pessoal e na sua reputação pessoal e social.
9. A arguida agiu em todos os momentos livre, voluntária, e conscientemente bem sabendo e conhecendo que a sua conduta era proibida e punida por lei Penal.
Requerimento de abertura de instrução
10. A mãe da arguida é incapaz de cuidar das suas próprias necessidades básicas sem o auxílio de terceiros.
11. A arguida enviou tal carta para o email da assistente para que esta entregasse a carta à mãe de ambas, tendo escrito em tal e-mail o seguinte:
«M, tem alguma dignidade humana e PÁRA de manipular a verdade e a Mãe. Estás a negar-lhe a liberdade que é o direito mais fundamental do ser humano, estás a impedi-la de ver o seu neto crescer, e a impedir o meu filho de gozar da companhia da Avó de quem ainda vagamente se lembra. Estás a impedir a Mãe do convívio com a filha mais velha e com o genro que a Mãe sempre disse que se fosse seu filho não a tratava melhor.
Desde criança que manipulas a Mãe e tornaste-te, pensas tu, numa profissional em dares-me a fama e o proveito que és tu que tens. Mas agora acabou, tenho provas irrefutáveis das tuas técnicas e manobras de manipulação da verdade e da Mãe, das tuas técnicas de vitimização que, com o tempo, quem te rodeia se aperceberá facilmente mesmo que não te digam por óbvio interesse material. Aviso-te que, ao contrário de quanto era criança, acabou a proteção e a desculpa, não vou desistir!
Travas uma guerra aberta comigo baseada em nada! Desgastas-te a encontrar mentiras para me acusares de coisas que nunca aconteceram?!? Onde é que andas com a cabeça?!? Da tua vida faz o que quiseres, mas poupa a Mãe, deixa-a apaziguar-se com a vida e com os seus, do seu sangue e com quem esteve sempre bem até tu apareceres e inventares um pesadelo que só tu criaste, antes que seja tarde de mais. Ainda temos tempo!
Afastas-te a Mãe de mim, com os teus esquemas e isso não te perdoo.
Estas tuas manobras vão deixar-te marcas profundas e culpa com a qual não vais conseguir viver. Lembra-te que quando a Avó e a Mãe já cá não estiverem eu sou a única família que te resta. Por favor, desta vez, imprime e entrega à Mãe o documento word que anexo e deixa- a fazer o seu julgamento livremente.».
12. Nesta sequência, a Assistente respondeu o seguinte à Arguida:
«Eu já começo a ter pena de ti, faz um favor à humanidade e vai tratar-te, cim? A única louca de pedra aqui és tu. Consegues ser diabólica mas lembra-te que a mentira tem perna curta e eu vou desmascarar-te todinha. E lê bem o que estou a escrever agora e pela última vez: NÃO ME CONTACTAS MAIS, ESTÁS PROIBIDA DE ME CONTACTAR POR TELEFONE, E.MAIL, SEJA DE QUE FORMA FOR, ESTÁS PRDIBIDA DE ME ABORDAR NA RUA OU EM QUALQUER SITUAÇÃO, ESTÁS PROBIDA DE TE APROXIMAR DE MIM OU DA MINHA CASA. DEIXA-ME EM PAZ DE UMA VEZ. ESTÁS OBCECADA E PERSEGUES-ME SEM ESCRÚPULOS! NÃO PERTENCES, NEM NUNCA MAIS VAIS PERTENCER À MINHA FAMÍLIA, ESTEJA NESTA VIDA QUEM ESTIVER! QUERO-TE MUITO LONGE DE MIM!!! ACEITA ISSO DE UMA VEZ. ÉS DOENTE E VIL.».
13. Em resposta à carta enviada à sua Mãe, a Arguida recebeu a seguinte resposta e na que é visível que no seu final se encontra rasurado o seguinte texto:
«Dá um beijinho ao D, um xi para ti e é tudo. Mãe» que foi substituído por "Dá um beijinho ao D. A partir daqui deixa-nos em paz e, se queres que te diga, já nem quero saber de t farta de patacoadas estou eu.
Mãe.".
2. FACTOS NÃO SUFICIENTEMENTE INDICIADOS:
a) A arguida não podia visitar a sua mãe;
b) A assistente continuou a colocar cadeados na propriedade e os mais diversos obstáculos impossibilitando a arguida de aceder à sua mãe, e vice-versa.
c) A assistente até ameaçou expulsar a mãe de casa na sequência de um encontro entre esta e a arguida.
d) A mãe sempre quis agendar encontros com a arguida e o seu único neto e deixou de responder.
e) Em execução de um plano por si previamente estabelecido.
*
O juízo de não indiciação resulta de não ter sido produzida qualquer prova que sustente a sua verificação nesta fase e o tribunal abstém-se de pronunciar sobre matéria contraditória à dada como suficientemente indiciada.
3. ASPECTO JURÍDICO:
No processo principal, discute-se a imputação à arguida F da prática, em autoria material e sob forma consumada, de 1 (um) crime de difamação, na sua forma agravada, ao abrigo do disposto nos artigos 180.º, n.º 1, 182.º e 183.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal, e a provável condenação pelos factos e disposições normativas elencados na acusação particular, e não acompanhada pelo Ministério Público.
O art. 180.º, n.º 1, do Cód. Penal, incrimina “Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo”. A tutela penal do bem jurídico honra cessa, nos termos do n.º 2 do referido normativo, na circunstância de expectio veritatis conjugada com a realização de interesses legítimos, excepto no disposto no art. 180.º, nº 3 CP (se a imputação for relativa a factos atinentes à intimidade da vida privada e familiar).
O tipo objectivo depende da (i) imputação de um facto ofensivo da honra a outra pessoa física viva, (ii) a formulação de um juízo ofensivo da honra de outra pessoa ou reprodução daquela imputação ou deste juízo, (iii) dirigido a terceiro.
FARIA DA COSTA ensina “(…) o ponto nevrálgico da difamação se centra, como de imediato ressalta mesmo com a mais desatenta das leituras do tipo, na imputação a outrem de factos ou juízos desonrosos efectuada, não perante o próprio, mas dirigida, veiculada através de terceiros.” (In Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 1999, pág. 608).
Estamos perante um crime de dano quanto ao grau de lesão da honra e um crime de mera actividade quanto à forma de consumação do ataque ao bem jurídico.
A estrutura subjectiva do crime em questão é dolosa, admitindo qualquer modalidade de dolo, nos termos do art. 13.º e 14.º ambos do Cód. Penal. Não há na lei um dolo específico, um propósito de ofender a honra e a consideração de alguém – animus diffamandi – bastando a consciência, por parte do agente, de que a sua conduta é de molde a produzir a ofensa da honra e consideração de alguém.
Apenas deve considerar-se como difamação aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deva considerar-se ofensivo daqueles valores, utilizando-se, assim, o critério baseado na impressão que as expressões em causa produziriam num bom pai de família, do meio sócio-económico e cultural em questão do destinatário, do visado (cfr. Ac. RP de 30/11/88 in C.J., V, 121 e de 3/2/88 in C.J., I, 232).
Os direitos à integridade moral e ao bom-nome e reputação dispõem de respaldo no texto constitucional e são emanação da base primeira que sustenta e legitima a República: a dignidade da pessoa humana (art. 1.º da Lei Fundamental). Dispõe efectivamente o n.º 1 do artigo 25.º da Constituição da República que “[a] integridade moral e física das pessoas é inviolável”. E o artigo 26.º estabelece que “[a] todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação”. Na sua apreciação, o julgador atenderá às circunstâncias acompanhantes e ao conteúdo global do sentido objectivo da afirmação, bem como a linguagem normalmente usada e, de um modo geral, o circunstancialismo social. Para a interpretação de um juízo de valor desonroso considera-se o seu sentido objectivo e ao contexto, não à intenção do agente ou ao sentir do ofendido.
A arguida requerente sustenta que tem fundamento sério para crer que tudo o que referiu em tal carta corresponde à verdade e nunca teve intenção de ofender a assistente, nem tudo o que referiu em tal carta é sequer susceptível de tal desiderato.
Portanto, a arguida requerente sustenta que a conduta não é punível ao abrigo do disposto no art.º 180.º, n.º2, do Cód. Penal e não existe intenção da prática dos factos.
É jurisprudência da Relação de Évora, de um acórdão datado de 02/07/96, que «Um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, deve constituir um comportamento com objecto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético-necessário à salvaguarda sócio-moral da pessoa, da sua honra e consideração” (cfr., CJ96, IV, 295).
No caso em apreço nem todas as expressões constantes da missiva e salientadas na acusação particular são objectivamente ofensivas da honra e consideração.
Apenas há a imputação directa de factos nas seguintes expressões: “estás dela refém”, “A única queixa crime que fiz contra si foi a M que me obrigou a fazê-la por ter deixado viver de esmolas por ter deixado a Avó, sua Mãe, sem tecto, numa situação de viver de esmolas”, “A M ter retirado da sua conta para uma delas todo o dinheiro que a Avó juntou (...) mais de meio milhão.”.
Tais imputações podem consubstanciar em abstracto a prática de crimes de sequestro, de coação e de abuso de confiança. São susceptíveis de integrar o tipo objectivo do crime de difamação previsto no art.º 180.º, n.º1, do Cód. Penal.
Só não é punível se através dessa imputação o agente visar exercer um direito legítimo, merecedor de tutela legal e desde que não se prove que esses factos são falsos.
Em face da prova produzida em sede de instrução e da argumentação apresentada no requerimento de abertura de instrução, resulta a inexistência de indícios de que é verdadeiro o facto comunicado de que a E se encontre refém da assistente e que tal imputação realizar um interesse legítimo. As situações de dificuldade de contacto ou debilidade estão longe consistir em motivo justificativo para a apodar E como refém da assistente M ou crer que o por si escrito é verdadeiro.
No que se refere à queixa, concluímos que as expressões utilizadas não permitem afirmar que a arguida tenha imputado à assistente factos eticamente reprováveis, ou seja, ofensivos da honra e consideração que a assistente possa em concreto merecer.
Na acusação particular, a assistente procede à truncagem de palavras, impendido a leitura global e compreensiva do relatado, pois a exacta expressão é “Aliás tive que me endividar para garantir um teto, um mínimo de decência à sua mãe depois da a M lhe ter retirado da sua conta bancária para uma dela todo o dinheiro que a Avó juntou uma vida de muito trabalho com o PIM. E não satisfeita, mesmo com mais de meio milhão de euros da Avó em sua posse teve a lata de deixar de pagar”.
Esta expressão é eticamente inócua, na medida em que nada se diz sobre a existência, ou não, de autorização. Por conseguinte, não integra um facto ofensivo da honra e consideração da assistente, sendo irrelevante a sua sensibilidade sobre este assunto.
Tudo visto e ponderado, no contexto de um relacionamento entre irmãs, é patente a carga difamatória constante das expressões utilizadas pela arguida quando refere que a irmã, a aqui assistente, tem a mãe refém, ou seja, que sequestrou a mãe. Tal expressão constitui acção como relevância típica para o preceito incriminador em análise. A expressão tem associada uma clara e inequívoca carga difamatória ao significar que a mãe da arguida e da assistente está a ser vítima de sequestro e a assistente é a sua sequestradora a qual pretende com ela obter uma vantagem mediante a privação da sua liberdade.
No que respeita ao elemento subjectivo – posto em causa pela arguida requerente – os elementos do processo permitem-nos concluir que, porque o próprio teor da carta denota uma redacção e um encadeamento de ideias que fazem supor uma escolaridade de nível mais avançado que o básico, um domínio da língua da portuguesa com propriedade, e o conhecimento da significação das palavras e das expressões que nela foram feitas constar, as expressões foram intencionalmente utilizadas para denegrir a imagem da assistente e nitidamente eram susceptíveis de ofender a sua honra, dignidade e bom nome pessoal.
O que da carta ressuma claramente é a critica ao comportamento da assistente que resvalou para um deliberado e intencional ataque à sua personalidade, em desagrado pelo afastamento da mãe e das consequências que daí advieram. Na ênfase da figura da assistente, a arguida excedeu-se ao exprimir a sua posição em termos inadequados e desnecessários e mesmo ofensivos, não podendo desconhecer a ilicitude da sua conduta. Como se lê no acórdão do Tribunal da Relação de Évora datado de 07-11-2023, relatado por Laura Goulart Maurício no proc. n.º 57/19.0T9NIS.E1, disponível em www.dgsi.pt, “II. Quanto ao elemento subjetivo do tipo, é pacífico que o crime de difamação é um crime doloso, traduzindo-se tal elemento subjetivo na vontade livre de praticar o ato com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal ato é proibido por lei (cf. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2009, www.dgsi.pt). III. O dolo neste tipo legal consiste, assim, no conhecimento e vontade de imputar perante terceiros, factos ou palavras ofensivas da honra e consideração de uma pessoa, em contrariedade ou com indiferença perante o dever-ser jurídico-penal, ou seja, com consciência que a sua conduta é ilícita, proibida por lei.”.
É forçoso concluir que se mostra preenchido o elemento subjectivo do crime de difamação. Mesmo que assim não se entenda, não se poderá deixar de considerar que com a formulação apresentada a ofensa da honra e consideração da assistente foi representada como consequência possível, pois a arguida conformou-se com aquela realização. Veja-se a este respeito o Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora de 05-03-2013, disponível em www.dgsi.pt, segundo o qual relativamente a este tipo de crime, “basta, pois, que, grosso modo, o arguido admita o teor ofensivo da imputação ou juízo formulados e atue conformando-se com ele (dolo eventual), para que se tenha por preenchido o elemento subjetivo do tipo (…)”. Tratando-se uma situação contextual, é precisamente esse contexto e a diferença entre as mensagens enviadas pela arguida – o email dirigido à assistente e a carta dirigida à mãe – que demonstram que a carta alcançou o patamar mais intenso de imputar o sequestro da mãe à assistente. Não é a resposta da assistente que claramente acusa o resultado das mensagens que lhe foram dirigidas bem assim o teor da carta destinada à mãe nem os nomes dirigidos à arguida, a legitimar ou a justificar o teor da missiva escrita pela arguida em momento anterior.
Inexistem elementos que permitam configurar causas de justificação ou exculpação da conduta e não estão demonstrados os requisitos cumulativos da exceptio veritatis prevista no art.º 180.º, n.º2, al. a) e b), do Cód. Penal.
Preceitua o artigo 183º, nº1, alínea b), do Cód. Penal que: “1. Se no caso dos crimes previstos nos artigos 180º, 181º e 182º: (…) b) Tratando-se da imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação; as penas da difamação ou da injúria são elevadas de um terço nos seus limites mínimo e máximo”.
Ora no caso em apreço estando suficientemente indiciado que a arguida bem sabe e conhece que o que escreve é falso, tendo como objectivo de denegrir, humilhar, vexar a assistente imputando-lhe os factos que sabe e conhece serem falsos de forma a criar a descrença e a dúvida na mãe das partes, é de ajuizar pelo preenchimento da agravação prevista no art.º 183.º, n.º1, al. b), do Cód. Penal.
Assim sendo, os autos fornecem elementos probatórios suficientes para o preenchimento do tipo objectivo e subjectivo do crime supra referenciado, permitindo efectuar um juízo de prognose seguro quanto à futura condenação da arguida em sede de julgamento.
Em face do exposto, conclui-se que a arguida deverá ser pronunciada pela prática de um crime de difamação, previsto e punível pelos art.º 180.º, n.º 1, 182.º e 183.º, n.º 1, alínea b)do Cód. Penal, não sendo de aplicar a agravação pela alínea a) do n.º1 do art.º 183.º.
IV. DECISÃO:
Termos em que ao abrigo do disposto no artigo 308.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, decido:
• declarar nula a acusação constante do apenso por violação do disposto no art.º 283.º, n.º3, al. b), do Cód. Processo Penal, julgar prejudicadas as questões suscitadas no requerimento de abertura de instrução, e em consequência não pronunciar os arguidos F e P da prática do crime de difamação previsto e punido pelo artigo 180º, n.º1 e 183º, ambos do Código Penal do qual estavam acusados.
• pronunciar a arguida F (…………), para julgamento em Tribunal Singular, pela prática, em autoria material e, na forma consumada, de um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180º, n.º1, 182º e 183º, n.º1, al. b), todos do Código Penal, nos termos da dos factos supra considerados suficientemente indiciados, para os quais remeto em conformidade com o art.º 307.º, n.º1, do Cód. Processo Penal; e não a pronunciou pela agravação prevista na alínea a) do art.º 183.º, n.º1, do dito diploma legal.
A prova: a indicada na acusação particular.
Medida de coacção:
A arguida ficará sujeita ao Termo de Identidade e Residência já prestado nos autos.
*
Pela não pronúncia, as custas são a suportar pela assistente cuja taxa de justiça fixo em 2 UC.
*
Pela pronúncia, as custas são a suportar pela arguida cuja taxa de justiça fixo em 2 UC a ter em consideração a final – artigo 8.º, n.º 9 e Tabela III do Regulamento de Custas Processuais.
*
Ao abrigo do disposto no artº 40º do C.P.P., declaro-me impedido para intervir no julgamento.
Notifique.
Após o trânsito em julgado, remeta à distribuição do Juízo de Competência Genérica de Montemor-o-Novo.
Dê baixa estatística”
*
Inconformada com a decisão, a arguida interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:
A. Vem o presente recurso interposto da decisão instrutória proferida no âmbito do processo acima identificado, nos termos da qual a Arguida, aqui Recorrente, foi pronunciada – pelos factos constantes da acusação particular (não acompanhada pelo Ministério Público) - pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 182.º e 183.º, n.º 1, alínea b), todos do Código Penal.
B. Isto porque, em 22.07.2021, a Arguida enviou uma carta para a Assistente, sua irmã, - carta essa dirigida à mãe de ambas – na qual consta, ao que releva, o seguinte:
“Olá Mãe,
Sei que está a ser manipulada pela M há já muito tempo e que está dela refém. E só isto explica porque deixou de ser a Mãe a responder-me aos SMS’s passando a ser a M que tem um discurso claramente diferente e agressivo coisa que a Mãe nunca teve comigo. (…)”
C. Ora, atento:
a. o contexto em que foi dirigida a expressão em causa;
b. os destinatários da expressão;
c. do sentido figurado em que foi usada a expressão “refém”;
d. o princípio da intervenção mínima do direito penal;
e. o direito à liberdade de expressão
o comportamento da Arguida, aqui Recorrente, não atinge o patamar mínimo de gravidade para que seja reclamada tutela penal e, por isso, deveria o Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal ter proferido despacho de não pronuncia.
D. No mesmo sentido pronunciou-se o Ministério Público ao referir que “resulta evidente quer dos depoimentos das testemunhas ouvidas em inquérito, quer dos escritos recebidos e enviados, entre si, pelas Assistentes e pela Arguida, juntos aos autos, que as afirmações proferidas se enquadram num ambiente de manifesto litígio familiar que, inclusive, já deu origem a outros processos judiciais além deste. A troca de correspondência entre as partes (seja ela redigida pela Arguida como pelas Assistentes) é feita com recurso a um discurso de teor acusatório, agressivo, e que evidência litígios transversais à família. Como tal, pese embora as afirmações denunciadas pela Assistente possam não ser as mais adequadas a dirigir a uma irmã, não afectam, na perspectiva do Ministério Público, de forma grave e merecedora da tutela criminal, a honra e consideração da Assistente.”
(cfr. despacho datado de 11.01.2023 com a referência 32526574).
E. Desde logo, é manifesto que a Arguida emprega uma figura de estilo ao referir que crê que a sua mãe está refém da sua irmã. E qualquer pessoa que leia a carta aqui em causa, salvo devido respeito, percebe claramente que o uso da expressão refém é figurado.
F. O uso de tal expressão insere-se num contexto de conflito familiar que levou inclusivamente a Assistente a apresentar uma ação especial para acompanhamento de maior, da sua mãe.
G. Conforme referido no relatório de perícia medico legal, datado de 11.10.2022, produzido no âmbito da referida ação a Mãe da Arguida, é “[i]ncapaz de cuidar das suas próprias necessidades básicas sem o auxílio de terceiros” sendo que é a Assistente, irmã da Arguida, “quem faz a gestão dos bens [da Mãe de ambas]” (fls. 391 a 399, 562 verso a 567).
H. Tal como a Arguida bem explicou e tem fundamento para crer que a sua mãe se encontra dependente da sua irmã, sujeita às vontades da desta.
I. Foi isto e apenas isto que a Arguida quis dizer, pelo que é manifestamente excessivo que a este propósito o Tribunal a quo tenha entendido que “mesmo na situação de doença da mãe da arguida e assistente, amplamente explorada na fase de instrução, e no envio de mensagens da assistente fazendo-se passar pela mãe de ambas, o aludido controlo transmitido pela arguida não é compaginável com uma situação de sequestro.”
J. E note-se que, além de a expressão não ser “sequestro”, se se considerar o sentido literal, a verdade é que a imputação é feita à Mãe. A Mãe estava refém e não a Assistente, sua irmã. E nem se diz que a Assistente fosse sequestradora/raptora, pelo que até se poderia equacionar se a Mãe estava refém voluntariamente ou não.
K. Acima de tudo note-se que a carta foi enviada à Assistente e à Mãe destas – não foi enviada a estranhos, nem a terceiros!
L. Se a Mãe da Arguida estava ou não refém da Assistente era algo que - melhor que ninguém - quer a Mãe quer a Assistente sabiam se corresponderia ou não à verdade.
M. Era algo que - melhor que ninguém - quer a Mãe quer a Assistente sabiam interpretar no sentido figurativo que tal expressão acarretava.
N. Razão pela qual não se vislumbra dado o contexto e os destinatários da expressão como é que a mesma pode ser considerada como difamatória ao ponto de merecer relevância criminal.
O. Por último, sempre se diga que entendimento contrário violaria o direito à liberdade de expressão consagrado no 37º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa e 10.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
P. Razão pela qual deve a decisão instrutória proferida ser revogada – na parte em que pronuncia a Arguida pela prática de um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, 182.º e 183.º, n.º 1, alínea b), todos do Código Penal – e substituída por outra que não pronuncie da Arguida.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. certamente suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser o Despacho a quo revogado e substituído por outro que de não pronúncia da Arguida.
*
A Assistente M respondeu ao recurso interposto, pugnando pela respetiva improcedência e formulando as seguintes conclusões:
A- Veio a recorrente interpor recurso da decisão instrutória que pronunciou a mesma pela prática de um crime de difamação, agravada, conforme p. e p. pelo art. 180º n.º 1, 182º e 183º n.º 1 alínea b) todos do Código Penal.
B- Nos termos do debate instrutório realizado, a recorrente, confessou que escreveu e enviou, tanto a carta bem como o e-mail, tendo as mesmas sido recebidas pela Assistente e pela mãe das partes.
C- Nestas comunicações a mesma imputou directamente à Assistente, da carta: “Olá Mãe, sei que estás a ser manipulada pela M há já muito tempo e que estás dela refém”. E só isto explica porque deixou de ser a Mãe a responder-me aos sms`s passando a ser a M que tem um discurso claramente diferente e agressivo coisa que a mãe nunca teve comigo. “Ainda assim, espero que lhe reste um pouco de dignidade à M e que esta carta lhe chegue apenas para lhe dizer que só soube do seu internamento na véspera de ter alta e apenas no dia em que teve alta consegui essa informação do Hospital”; “Como a Mãe bem sabe, nunca a privei de ver o D, aliás tentei por diversas vezes encontrar-me consigo para ver mas de todas as vezes a M boicotou essa vontade, impedindo de nos encontrarmos respondendo por si aos sms e dando sempre desculpas sem nunca encontrar alternativas”; As palavras absurdas de violência, intimidação, infernizar a vida das pessoas a que a carta que a M lhe fez assinar se refere aplicam-se sim à M que como a mãe sabe está agora profissional naquilo que faz desde criança – dar-me a fama do proveito que é ela que tem. Como se calhar nem sabe foi e tem sido a M a infernizar-me a vida e ao C tem sido ela a iniciar um rol interminável (ainda) de constantes queixas-crime contra mim e o C de situações que nunca aconteceram e muitas delas absolutamente ridículas mas destes tristes episódios continuarei a poupá-la, como tenho feito, por demonstrarem uma total decadência de humanidade da sua filha M; “A única queixa-crime que fiz contra foi a M que me obrigou a fazê-la por ter deixado viver de esmolas por ter deixado a Avó sua Mãe, sem tecto, numa situação a viver de esmolas”; (...) A M ter retirado da sua conta para uma dela todo o dinheiro que a Avó juntou (...) mais de meio milhão.” (...) A M tem-se aproveitado disso e tem-na manipulado e levado a fazer coisas que a Mãe nunca faria de livre vontade como abandonar vergonhosamente a sua mãe, abandonar o seu neto e a sua filha mais velha que sempre acompanhou até à chegada da M sempre tratou bem.
D- Do e-mail, a arguida ainda escreveu: “M, tem alguma dignidade humana e PÁRA de manipular a verdade e a Mãe. Estás a negar-lhe a liberdade que é o direito mais fundamental do ser humano, estás a impedi-la de ver o neto crescer, e a impedir o meu filho de gozar da companhia da Avó de quem ainda vagamente se lembra. Estás a impedir a Mãe do convívio com a filha mais velha e com o genro que a Mãe sempre disse que se fosse seu filho não a tratava melhor. Desde criança que manipulas a Mãe e tornaste-te, pensas tu, numa profissional em dares-me fama e o proveito que és tu que tens. Mas agora acabou, tenho provas irrefutáveis das tuas técnicas e vitimização que, com o tempo, quem te rodeia se aperceberá facilmente mesmo que não te digam por óbvio interesse material. Aviso-te que, ao contrário de quanto era criança, acabou a protecção e a desculpa, não vou desistir! Travas uma guerra aberta comigo baseada em nada! Desgastas-te a encontrar mentiras para me acusares de coisas que nunca aconteceram?!?Onde é que andas com a cabeça?!? Da tua vida faz o que quiseres, mas poupa a Mãe, deixa-a apaziguar-se com a vida e com os seus, do seu sangue e com quem esteve sempre bem até tu apareceres e inventares um pesadelo que só tu criaste, antes que seja tarde de mais. Ainda temos tempo! Afastas-te a mãe de mim, com os teus esquemas e isso não te perdoo. Estas tuas manobras vão deixar-te marcas profundas e culpa com a qual não vais conseguir viver. Lembra-te que quando a Avó e a Mãe já cá não estiverem eu sou a única família que te resta. Por favor, desta vez, imprime e entrega à Mãe o documento word que anexo e deixa-a fazer o seu julgamento livremente”;
E- Ora, as expressões e palavras utilizadas pela arguida, na missiva, por si escrita e enviada, são objectivamente ofensivas da honra e consideração da Assistente;
F- Teremos sempre de sublinhar, que a arguida, sabe e conhece que os comportamentos que a mesma imputa à Assistente, são falsos.
G- Pelo que ao imputar à Assistente a prática em abstracto de comportamentos que em si configuram crimes – como os crimes de, sequestro, coação, abuso de confiança, violência doméstica, conforme p. e p. pelos arts. 158º, 154º, 152-Aº, 205º e 210º todos do Código Penal, estas imputações são em si tão gravosas que são susceptíveis de integrar o tipo objectivo do crime de difamação previsto no art. 180º n.º 1 do Código Penal, uma vez que somos forçados a considerar que estas imputações quando proferidas têm sempre que ofender a honra e a consideração da pessoa visada.
H- Inexiste qualquer prova ou mesmo indício, que as imputações tecidas pela arguida sejam verdadeiras.
I- Ora, o crime de difamação é um crime doloso, traduzindo-se o elemento subjectivo, na vontade livre do sujeito/arguida praticar o acto com plena consciência que as expressões por si utilizadas, ofendem a honra e consideração da pessoa visada, sendo tal acto proibido por Lei.
J- A arguida é licenciada em economia, pelo que a mesma sabe e conhece, que as palavras e expressões que utilizou têm exactamente o significado por si pretendido e tendo sido por esta razão as mesmas por si utilizadas.
K- Estando assim, suficientemente, indiciado, que a arguida quando escreveu as comunicações, utilizou as palavras não enquanto expressão mas sim de forma a que as mesmas fossem exactamente a imputação que a mesma pretendia, de forma a destratar, humilhar vexar e magoar a Assistente, a mesma, bem sabia e conhecia, que o que escreveu é falso, tendo como objectivo torpe, a arguida, denegrir, humilhar, vexar, castigar a Assistente, imputando-lhe ilícitos que a mesma sabe e conhece serem falsos, uma vez que não foram pela mesma praticados, de forma a criar a dúvida na mãe das partes, sobre o comportamento, a rectidão e honra da mesma, pelo que para além da prática do crime, p. e p. pelo art. 180º n.º 1 encontra-se indiciada a agravação prevista no art. 183º n.º 1 al. b) do Código Penal.
L- O comportamento da arguida é de tal forma grave que a mesma com o seu comportamento pratica o ilícito descrito no art. 180º, 183º n.º 1 al. b) ambos do Código Penal, art. 26º n.º 1 da CRP, 17º do PIDCP e art. 8º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
M- Pelo que, não merece qualquer censura, o douto despacho de pronúncia que considerou que os autos fornecem os elementos probatórios suficientes para se considerar, preenchido o tipo objectivo e subjectivo do crime supra referenciado, pronunciando-se a arguida pela prática do crime de difamação, previsto e punido pelo art. 180º n.º 1, 182º e 183º n.º 1 al. b) do Código Penal, pelo que deve a mesma manter-se inalterada nos exactos termos em que foi proferida.
Termos em que, Venerandos Juízes Desembargadores, deverá manter-se o douto despacho de pronúncia, por ser de elementar justiça. Ao julgar, assim, estareis a praticar a tão costumada Justiça!
*
O Ministério Público também respondeu ao recurso interposto pugnando pelo provimento do mesmo e formulando as seguintes conclusões:
1. O Ministério Público não acompanhou a acusação particular deduzida pela assistente, tendo consignado entender que não foram recolhidos indícios suficientes da prática do crime de difamação.
2. O teor do recurso apresentado pela arguida mostra-se fundamentado, citando entendimentos jurisprudenciais desta Relação em situações semelhantes, pelo que acompanhamos o mesmo.
Porém, Vossas Excelências melhor decidirão, fazendo, como sempre, a costumada JUSTIÇA!
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No Tribunal da Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta apôs “Visto”.
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Realizado o exame preliminar determinou-se que fossem os autos aos vistos e à conferência.
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Fundamentação
Delimitação do objeto do recurso
O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).
São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respetiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.
No presente recurso suscita-se a questão de aferir se a decisão recorrida fez uma correta apreciação da prova indiciária recolhida à luz dos pressupostos do ilícito criminal em causa e, consequentemente, concluir pela sua suficiência ou insuficiência para sujeitar a arguida a julgamento.
*
Apreciando
Como é sabido, a instrução visa, nos termos do artigo 286.º, n.º 1, do CPP, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
A instrução, enquanto fase jurisdicional, compreende a prática dos atos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento, só devendo o juiz pronunciar o arguido quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forme a sua convicção no sentido de que há uma possibilidade razoável de o arguido ter cometido o crime objeto de acusação.
Assim, pronuncia o arguido quando “tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança” (artigo 308º, nº 1 do CPP), sendo a apreciação dos indícios nos termos dos artigos 308º, nº 1 e 283º, nº 2 do CPP feita de acordo com os elementos probatórios apurados, constantes do inquérito e da instrução, exigindo um juízo de prognose do qual resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança, pois que «não se basta a lei com um mero juízo subjetivo, mas antes exige um juízo objetivo fundamentado nas provas dos autos. Da apreciação crítica das provas recolhidas no inquérito e na instrução há de resultar a convicção da forte probabilidade ou possibilidade razoável de que o arguido seja responsável pelos factos da acusação» (cfr. Germano Marques da Silva. Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 1994, p. 183).
A instrução configura-se assim como fase processual sempre facultativa destinada a questionar a decisão de arquivamento ou de acusação deduzida e como atividade de averiguação processual complementar da que foi levada a cabo durante o inquérito e que tendencialmente se destina a um apuramento mais aprofundado dos factos, da sua imputação ao agente e do respetivo enquadramento jurídico-penal.
Com efeito, realizadas as diligências tidas por convenientes em ordem ao apuramento da verdade material, conforme dispõe o artigo 308.º, n.º 1, do CPP, “se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respetivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia”.
Na base da não pronúncia do arguido, para além da insuficiência de indícios necessariamente consubstanciada na inexistência de factos, na sua não punibilidade, na ausência de responsabilidade ou na insuficiência da prova para a pronúncia, poderão estar ainda motivos de ordem processual, ou seja, a inadmissibilidade legal do procedimento ou vício de ato processual.
Já no que toca ao despacho de pronúncia, a sustentação deverá buscar-se, como supra referido, na suficiência de indícios.
E, nos termos do n.º 2 do artigo 283.º do CPP “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Assim, para que seja proferida uma decisão de pronúncia a lei não exige a prova no sentido da certeza-convicção da existência do crime; antes se basta com a existência de indícios, de sinais dessa ocorrência, tanto mais que a prova recolhida na fase instrutória não constitui pressuposto da decisão de mérito final.
Trata-se de uma mera decisão processual relativa ao prosseguimento do processo até à fase do julgamento, que, porém, só deverá ocorrer quando existam indícios suficientes da prática pelo arguido do crime que lhe é imputado, por forma a que da sua lógica conjugação e relacionação se conclua pela culpabilidade do arguido, formando-se um juízo de probabilidade da ocorrência dos factos que lhe são imputados e bem assim da sua integração jurídico-criminal.
Os indícios são, pois, suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, quando se verifique uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.
Vejamos
A arguida vem pronunciada pela prática, em autoria material e, na forma consumada, de um crime de difamação, p. e p. pelos artigos 180º, n.º1, 182º e 183º, n.º1, al. b), todos do Código Penal.
Objeto do recurso interposto é a decisão instrutória e o que se impõe apreciar é se tal decisão deve ser revogada e substituída por outra que não pronuncie a arguida pela prática de tal crime de difamação.
Dispõe o artigo 180º, nº1 do Código Penal que quem dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até seis meses, ou com pena de multa até 240 dias, dispondo o artigo 182º que à difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão, e preceituando o artigo 183º, nº1, al.b) que no caso dos crimes previstos nos artigos 180º, 181º e 182º, tratando-se de imputação de factos, se averiguar que o agente conhecia a falsidade da imputação.
O bem jurídico protegido e tutelado pelo normativo do artigo 180º do Código Penal é a honra (que respeita mais a um juízo de si sobre si) e a consideração (que se reporta prevalentemente ao juízo dos outros sobre alguém) de uma pessoa, como um bem jurídico complexo, que integra quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a sua própria reputação ou consideração exterior (cfr. José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I pág. 607).
Assim, e em conformidade com estabelecido na Lei Fundamental, que tutela autonomamente quer a honra, ao consagrar a inviolabilidade da integridade moral das pessoas (artigo 25°, n° 1) quer a consideração social, ao reconhecer a todos o direito ao bom nome e reputação, protege-se, quer o sentimento da própria dignidade pessoal, da estima que cada um tem por si mesmo, em função daquilo que pensa ser e valer quer o sentimento da dignidade social, decorrente daquilo que os outros pensam e vêem em si, independentemente de tal juízo de valor corresponder ou não à realidade (cfr. ANTÓNIO J. F.OLIVEIRA MENDES, “0 Direito à Honra e a sua Tutela Penal”, págs. 19 e seguintes).
Poder-se-á entender a honra como a “essência da personalidade humana, referindo-se propriamente à probidade, à rectidão, à lealdade, ao carácter” e a consideração com o “património de bom nome, de crédito, de confiança que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros” (cfr. Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas-Santos, Código Penal Anotado. 2°, vol., 3º ed., pág. 469).
Os direitos à integridade moral e ao bom-nome e reputação dispõem de respaldo no texto constitucional e são emanação da base primeira que sustenta e legitima a República: a dignidade da pessoa humana (art. 1.º da Lei Fundamental).
Dispõe efetivamente o n.º 1 do artigo 25.º da Constituição da República que a “integridade moral e física das pessoas é inviolável”.
E o artigo 26.º estabelece que a “todos são reconhecidos os direitos à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à capacidade civil, à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem, à palavra, à reserva da intimidade da vida privada e familiar e à proteção legal contra quaisquer formas de discriminação”.
Importa agora fazer algumas considerações sobre os elementos constitutivos do crime de difamação.
Quanto ao elemento objetivo, há duas modalidades do comportamento que integram, a igual título, o tipo: o agente imputa à vítima factos desonrosos ou dirige-lhe palavras ofensivas da sua honra e consideração.
Quanto ao elemento subjetivo do tipo, é pacífico que o crime de difamação é um crime doloso, traduzindo-se tal elemento subjetivo na vontade livre de praticar o ato com a consciência de que as expressões utilizadas ofendem a honra e consideração alheias, ou pelo menos são aptas a causar aquela ofensa, e que tal acto é proibido por lei (cfr.Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21.10.2009, in www.dgsi.pt).
O Código Penal não define o dolo do tipo, mas apenas, no seu artigo 14.º, cada uma das formas em que ele se analisa ( direto, necessário ou eventual) .
A doutrina dominante define, porém, o dolo, na sua formulação mais geral, como conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo de ilícito.
O dolo enquanto conhecimento e vontade de realização do tipo objetivo é elemento constitutivo do tipo-de-ilícito.
Mas é ainda expressão de uma atitude pessoal contrária ou indiferente perante o dever-ser jurídico-penal e, nesta parte, é ainda elemento constitutivo do tipo-de-culpa dolosa, uma entidade complexa, cujos elementos constitutivos se distribuem pelas categorias da ilicitude e da culpa.
«o dolo não pode esgotar-se no tipo de ilícito (…) , mas exige do agente um qualquer momento emocional que se adiciona aos elementos intelectual e volitivo contidos no “conhecimento e vontade de realização”; uma tal posição ou atitude de contrariedade ou indiferença face às proibições ou imposições jurídicas. O que significa que a estrutura do dolo do tipo por que perguntamos aqui só se alcança quando se tenha a consciência clara de que, com ela, não fica por si mesma justificada a aplicação da moldura penal prevista na lei para o crime doloso respectivo; antes se torna indispensável um elemento que já não pertence ao tipo de ilícito, mas à culpa ou ao tipo de culpa. Com esse elemento se depara quando se atente em que a punição por facto doloso só se justifica quando o agente revela no facto uma posição ou uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal.» - (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal – Parte Geral , Tomo I , Coimbra Editora , 2004 pág. 333.
O dolo neste tipo legal consiste, assim, no conhecimento e vontade de imputar perante terceiros, factos ou palavras ofensivos da honra e consideração de uma pessoa, em contrariedade ou com indiferença perante o dever-ser jurídico-penal, ou seja, com consciência que a sua conduta é ilícita, proibida por lei.
A ação típica deste crime consistirá na divulgação de factos (acontecimentos da realidade), incluindo a suspeição, ou então de considerações (palavras ou expressões) injuriosas, tanto na sua dimensão pessoal, como social. No entanto, tanto os conceitos de honra como de desconsideração não devem estar dependentes da perspetiva ou compreensão que cada um tem dos seus valores “morais” ou “ético-sociais”. Daí que os mesmos devam ser insuflados por aqueles valores que emergem do nosso quadro constitucional (art. 26.º, n.º 1 Constituição da República), que alude ao “bom nome e reputação, à imagem”, como legislativo (v. g. 70.º, n.º 1 Código Civil), nomeadamente aquela que diz respeito à tutela geral da personalidade (“personalidade física ou moral”).
Se a norma diz claramente que difamar é, dirigindo-se a terceiros, imputar a outra pessoa um facto ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra e consideração, também se vem entendendo que nem todo o facto ou juízo que envergonha e perturba ou humilha, cabem na previsão do artigo 180.º do Código Penal.
Com efeito, “(…) não basta que o visado pelas imputações ou juízos se considere ofendido, para que se possa concluir pelo preenchimento do tipo de crime em causa. Há que ponderar, perante as circunstâncias do caso, a existência, ou não, de ofensa.” (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 28.02.2007, in www.dgsi.pt.).
A conduta pode ser reprovável em termos éticos, profissionais ou outros, mas não o ser em termos penais. Existem margens de tolerância conferidas pela liberdade de expressão, que compreende não só a liberdade de pensamento, como a liberdade de exteriorização de opiniões e juízos.
E o direito penal tem carácter subsidiário ou fragmentário, como decorre expressamente do artigo 18.º, n.º 2 da Constituição da República, ao preceituar que “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
O direito à honra e consideração não é um direito absoluto e está sujeito a compressões, por via do exercício ao direito de expressão e ao exercício de outros direitos legítimos, tendo a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem vindo a entender nesse sentido, pelo que o justo limite da liberdade de expressão de uma parte em processo judicial, é ditado pelas necessidades de defesa da causa. É essa a justa compressão que o direito à honra e consideração da contra-parte deve sofrer.
É o que decorre do art.37.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, quando preceitua que «todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio...». O direito à liberdade de expressão e critica tem limites, como decorre do n.º 3 do mesmo art.37.º da Constituição da República Portuguesa, quando estabelece que «as infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal...».
Há pois que conciliar o direito à honra e consideração com o direito à critica, pois um e outro, pese embora sejam direitos fundamentais, não são direitos absolutos, ilimitados.
“O significado das palavras, para mais quando nos movemos no mundo da razão prática, tem um valor de uso. Valor que se aprecia, justamente, no contexto situacional e que ao deixar intocado o significante ganha ou adquire intencionalidades bem diversas no momento em que apreciamos o significado”, o que não significa que não haja palavras “cujo sentido primeiro e último é tido, por toda a comunidade falante, como ofensivo da honra e consideração” cfr. Faria Costa, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, p. 630.
Assim, para que se considere cometido um crime contra a honra, as expressões utilizadas têm que ser apreciadas no contexto situacional em que são proferidas e alcançar um patamar mínimo de gravidade que lhes confira dignidade penal.
Nesta medida, e revertendo ao caso dos autos, impõe-se saber se as sobreditas afirmações e expressões, se devem considerar, no seu conteúdo, ofensivos da honra e consideração da ora assistente.
Ora, percebe-se, quando contextualizado o teor da carta, que as expressões proferidas pela arguida não visam mais do que expressar o seu ponto de vista, a sua opinião crítica quanto ao ambiente de manifesto litígio familiar existente, não podendo afirmar-se que a arguida ultrapassou o direito de crítica e passou a ofender a honra e consideração da assistente, sendo entendimento deste tribunal que nenhuma das expressões atinge os limites da incriminação que protege o bem superior que é a honra.
Com efeito, devidamente contextualizadas à luz do referido litígio familiar existente, estando objetivamente ligadas a factos da dinâmica familiar, tais expressões estão necessariamente abrangidas no direito de crítica, nem se podendo dizer que levanta a suspeita da prática de qualquer crime, mas surge sob forma de indignação, surgindo legitimado, na perspetiva da arguida tal direito de crítica, não se inscrevendo na área de tutela típica do artigo 180.º do Código Penal.
Atentando no teor da carta em questão, parece claro que as afirmações e expressões contidas na mesma não podem ser retiradas do seu contexto, e em tal contexto e num clima de discórdia não têm o propósito de rebaixar ou humilhar a assistente, mas tão só um exercício do direito à critica perante factos controversos, não atingindo o patamar mínimo para que o direito penal intervenha.
Com efeito, e como referido pela recorrente na conclusão D “ D. No mesmo sentido pronunciou-se o Ministério Público ao referir que “resulta evidente quer dos depoimentos das testemunhas ouvidas em inquérito, quer dos escritos recebidos e enviados, entre si, pelas Assistentes e pela Arguida, juntos aos autos, que as afirmações proferidas se enquadram num ambiente de manifesto litígio familiar que, inclusive, já deu origem a outros processos judiciais além deste. A troca de correspondência entre as partes (seja ela redigida pela Arguida como pelas Assistentes) é feita com recurso a um discurso de teor acusatório, agressivo, e que evidência litígios transversais à família. Como tal, pese embora as afirmações denunciadas pela Assistente possam não ser as mais adequadas a dirigir a uma irmã, não afectam, na perspectiva do Ministério Público, de forma grave e merecedora da tutela criminal, a honra e consideração da Assistente.”
(cfr. despacho datado de 11.01.2023 com a referência 32526574).”
É que o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito penal seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função” – (cfr. Ac. da RP de 19.1.2005, in dgsi.pt.), e “(…) a protecção penal dada à honra e consideração e a punição dos factos lesivos desse bens jurídicos só se justifica em situações em que objectivamente as palavras proferidas não têm outro conteúdo ou sentido que não a ofensa, ou em situações, em que, uma vez ultrapassada a mera susceptibilidade pessoal, as palavras dirigidas à pessoa a quem o foram, são indubitavelmente lesivas da honra e da consideração do lesado” (cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 20/03/2006, in www.dgsi.pt).
Mais se dirá que na atuação da arguida não se vislumbra intenção de ofender a honra e consideração da assistente, mas antes criticar comportamentos e atos desta, pelo que tem de considerar-se não ilícita a sua conduta.
Por isso, estando perante uma situação de atipicidade, não merece a intervenção do direito penal.
Por outro lado, entende-se que a atipicidade da crítica objetiva não depende do acerto, da adequação material ou da verdade das apreciações, as quais persistirão como atos atípicos seja qual for o seu bem fundado ou justeza material.
Assim, o comportamento externo da arguida, face à matéria fáctica assente, apresenta-se como objetivamente inconcordável com uma consciência da falsidade da imputação.
Pelo que fica dito, entende-se que não estão preenchidos os pressupostos típicos do crime por que a arguida foi pronunciada.
Decisão
Nos termos expostos, julgando-se procedente o recurso, decide-se revogar a decisão recorrida e, por consequência, despronunciar a recorrente pelo crime que aí lhe era imputado.
Sem tributação.
Elaborado e revisto pela primeira signatária
Évora, 22 de outubro de 2024
Laura Goulart Maurício
Artur Vargues
Carla Francisco