I - A natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição, na decisão da autoridade administrativa, dos elementos subjetivos da concreta contraordenação imputada ao agente, nomeadamente em termos de saber se estamos perante uma imputação a título de dolo ou, diversamente, a título de negligência.
II - No presente caso, da decisão da autoridade administrativa consta que a arguida agiu com conhecimento e vontade de praticar o facto, bem sabendo que qualquer prédio rústico não permite construção de edificações, que teve um comportamento doloso porque detinha o conhecimento das características do prédio em causa, nomeadamente de ser um prédio rústico, e, conformando-se com o resultado, construiu e implementou edificações no prédio sem o devido licenciamento, pelo que não se pode considerar que a factualidade que foi apresentada na decisão da autoridade administrativa seja insuscetível de ser tipificada como integradora dos elementos subjetivos da contraordenação imputada.
O Tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia.
O Ministério Público detém legitimidade para exercício da acção contraordenacional.
Da nulidade da decisão administrativa
Compulsados os autos importa aferir da verificação ou não de nulidade da decisão administrativa.
Dispõe o art° 1° do RGCC aprovado pelo Dec-Lei n° 433/82 de 27.10, com as alterações introduzidas pelo Dec-Lei n° 244/95 de 14.09, que "constitui contraordenação todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal no qual se comine uma coima".
Por outro lado, o art° 8° n° 1 do mesmo diploma estabelece que "só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, como negligência".
Pese embora, a culpa no domínio das contraordenações não esteja baseada numa censura ética, como a jurídico-penal, ela não deixa de ser um elemento subjetivo indispensável à punição.
E também aqui pode existir quer na modalidade de dolo, quer de mera negligência. Aliás, a necessidade desse elemento subjetivo resulta, desde logo, do citado art° 1°, que afasta a possibilidade de punição a título de contraordenação independentemente do carácter censurável do facto, pelo que se torna sempre necessário e imprescindível formular um juízo de culpa, seja a titulo de dolo, seja a titulo de negligência.
Sucede que nos presentes autos não se trata de uma questão de prova de elementos objectivos e subjetivos, mas de efetiva alegação do elemento subjetivo da infração.
Não obstante a simplicidade da contraordenação imputada não é admissível uma presunção tout court dos elementos, é exigível um nexo de imputação subjetiva, seja através de uma conduta dolosa, seja através de uma conduta negligente.
E essa imputação subjetiva deve constar expressamente da decisão administrativa, não só porque não é indiferente o grau de culpa determinante da conduta, mas, acima de tudo, porque desse mesmo grau depende a determinação da própria coima aplicável, cuja variação, nomeadamente no caso das contraordenações ambientais, pode ser extremamente onerosa para o responsável.
Com efeito, a natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do elemento subjetivo da concreta contraordenação em causa, nomeadamente em termos de saber se estamos perante uma imputação a título de dolo ou, diversamente, a título de negligência.
No caso em apreço, da simples leitura da decisão administrativa impugnada resulta que a mesma não encerra em si e nos factos imputados à arguida, nenhum facto de natureza subjetiva, comummente os chamados elementos subjetivos do tipo (nem a qualquer título de dolo nem de negligência- vide artigos 13°, 14° e 15° do Código Penal),e não se trata de fazer uma imputação imprecisa, ou como muitas vezes verificamos, em vez de aparecer nos factos imputados é descrita factualmente no momento da decisão destinada à apreciação da culpa, estamos antes perante uma ausência absoluta. Nada é descrito. Nada é imputado.
Atento o exposto e nos termos do art.° 63° do RGCO e 311°, n°2° e n°3° a) do C.P.P., rejeito o recurso interposto e determino o imediato arquivamento dos autos.
Notifique, devendo também ser notificada a entidade administrativa.”
III – ÂMBITO OBJETIVO DO RECURSO (QUESTÕES A DECIDIR):
É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Assim sendo, no caso vertente a questão que importa decidir é a de saber se ocorre fundamento para a rejeição do recurso de impugnação, por ausência de articulação de factos relativos ao elemento subjectivo da contraordenação na decisão administrativa em crise.
Cumpre desde logo considerar o antepenúltimo parágrafo do despacho ora posto em crise. Ali se escreve que “da simples leitura da decisão administrativa impugnada resulta que a mesma não encerra em si e nos factos imputados à arguida, nenhum facto de natureza subjetiva”(…) ”e não se trata de fazer uma imputação imprecisa, ou como muitas vezes verificamos, em vez de aparecer nos factos imputados é descrita factualmente no momento da decisão destinada à apreciação da culpa, estamos antes perante uma ausência absoluta. Nada é descrito. Nada é imputado.” (sublinhado nosso).
Face a este parágrafo e às considerações que a Ex.ma colega teceu, estamos certos que certamente por lapso não se apercebeu da descrição feita no ponto 4. da decisão administrativa, nomeadamente nas alíneas c) e d). Com efeito, aí se escreve «analisada a gravidade da infração, cumpre apreciar a culpa da arguida, pois além do facto típico e ilícito, onde recai um juízo de censura, quanto à atitude que o agente expressa da sua prática cumpre atender que na apreciação dos factos a arguida agiu com o conhecimento e vontade de praticar o facto, bem sabendo que qualquer prédio rústico não permite construção de edificações, salvo em casos excecionais e após autorização por parte do Município; Evidenciando-se, assim, um comportamento doloso porque a arguida detinha o conhecimento das características do prédio em causa, nomeadamente de ser um prédio rústico, e agiu conformando-se com o resultado, construindo e implementando edificações no prédio sem o devido licenciamento, que no caso em apreço, nem sequer é passível de legalizações e acções estas interditas por serem em área RAN, pelo que tudo leva a que tais acções sejam consideradas a título de dolo pois “(...) o fundamento de agir doloso reside na atitude ética do agente da hostilidade ou acomodação ou indiferença perante o dever-ser-jurídico penal”».
É certo que tal imputação devia constar dos factos provados e que mencioná-los apenas em sede de culpa para aferição do valor adequado da coima, constitui manifesta má técnica jurídica, sendo desaconselhada a sua prática. No entanto, não podemos daqui retirar que há uma completa ausência de imputação ou descrição do elemento subjectivo, porque a imputação, embora de forma escassa e pouco escorreita, concedemos, existe, só que aparece no momento da decisão destinada à apreciação da culpa.
Vejamos então se a imputação que é feita a título de culpa, apresentada em momento desadequado, é suficiente para preencher as exigências do elemento subjectivo na contraordenação.
Determina o artigo 8.º, n. º1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.
Quer isto dizer que um dos princípios basilares do direito contraordenacional é o princípio da culpa.
Com efeito, a natureza tendencialmente mais simplificada e menos formal do procedimento contraordenacional não pode constituir justificação para a não descrição de modo compreensível do elemento subjetivo da concreta contraordenação em causa, nomeadamente em termos de saber se estamos perante uma imputação a título de dolo ou, diversamente, a título de negligência. Tem aqui aplicação, a título subsidiário, o direito penal.
De entre os elementos do tipo subjectivo de ilícito estão os que se relacionam com o dolo ou a negligência. “Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência (art. 13.º do CP). A negligência está definida no art. 15º do CPenal. O dolo vem legalmente definido nos vários elementos que o compõem no art. 14.º do CPenal. Estes elementos costumam ser referidos, sinteticamente, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo de ilícito.
Sobre o art. 311º do CPP escreve o Conselheiro Oliveira Mendes, Código de Processo Penal, comentado, 2016- 2ª edição revista, Almedina, fls. 989:
“Estabelecem-se neste artigo as regras a observar após o recebimento do processo em juízo, impondo-se ao juiz que verifique se o processo está em condições de passar para a fase de julgamento, ou seja, como dizia Luís Osório no seu Comentário ao Código de processo penal (v.8), conheça da sanidade do processo. Manda a lei que o juiz examine o processo e se certifique da inexistência de motivo impeditivo do conhecimento do seu objecto, para o que deverá pronunciar-se sobre a ocorrência de qualquer nulidade ou outra questão prévia ou incidental que obste á apreciação do mérito da causa.
Deverá verificar, pois, da eventual ocorrência de qualquer circunstância, seja de natureza substantiva, seja de natureza adjectiva, que impeça o conhecimento da questão de fundo.”
A decisão de rejeição do recurso de impugnação fundou-se na alegada ausência de enunciação do elemento subjectivo da contraordenação imputada à arguida. Lembramos que não estamos aqui em sede de prova, mas sim de mera descrição de factos que conduzem a concluir pela existência de dolo ou de negligência.
Cumpre esclarecer que não há uma fórmula semântica única para a descrição dos factos que integram o tipo de dolo, sendo, naturalmente, livres a redacção e a utilização dos termos que servirão para descrever, para integrar o dolo, não havendo uma fórmula que, não sendo utilizada ipsis verbis, conduza fatalmente à queda da acusação (ou da decisão administrativa) por manifestamente infundada, por não conter a suficiente narração dos factos.
“Os factos – da acusação e da sentença – são sempre “enunciados linguísticos descritivos de acções” (na expressão de Perfecto Ibanez): da acção executada – factos externos – e da acção projectada na vontade – factos internos.
O Ministério Público é livre de escolher os enunciados linguísticos de que faz utilização, na acusação, desde que descreva plenamente o objecto do processo, desde que esgote factualmente a descrição dos tipos objectivo e subjectivo do crime imputado.” - Acórdão da Relação de Évora de 27.6.2017 (in dgsi.pt).
Analisando mais detalhadamente no que ao dolo diz respeito, e simplificando para não entrarmos no tratamento das diversas teses doutrinárias, o dolo desdobra-se num elemento intelectual e num elemento volitivo. O elemento intelectual do dolo implica, desde logo, o conhecimento - previsão ou representação - por parte do agente, dos elementos materiais constitutivos do tipo objectivo do ilícito. O outro elemento do dolo, o elemento volitivo, consiste na vontade, por parte do agente, de realizar o facto típico, depois de ter representado – ou previsto- as circunstâncias ou elementos do tipo objectivo do ilícito.
Estudando a decisão administrativa conclui-se que não é manifesto, indiscutível, evidente nem inequívoco que os factos dela constantes não sejam susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos da contraordenação prevista e punida pelos artigos 21º, al. d) e 39º n.º 1, al.a) e n.º 2 do Regime Jurídico da Reserva Agrícola Nacional, cuja prática é imputada à arguida, designadamente, que dela não constem factos de natureza subjetiva, ao contrário do que se afirma no despacho recorrido.
Na verdade, consta expressamente, embora não nos factos provados, que “a arguida agiu com o conhecimento e vontade de praticar o facto, bem sabendo que qualquer prédio rústico não permite construção de edificações”, que teve “um comportamento doloso porque a arguida detinha o conhecimento das características do prédio em causa, nomeadamente de ser um prédio rústico e, conformando-se com o resultado, construindo e implementando edificações no prédio sem o devido licenciamento”. Imputa-se, pois, à arguida a prática da referida contraordenação a título de dolo.
Face ao exposto, entendemos que não se pode considerar que a factualidade que foi apresentada na decisão administrativa seja, inequivocamente, insusceptível de ser tipificada como integradora dos elementos típicos subjectivos da contraordenação imputada à arguida, o que determina a não verificação dos pressupostos de que o despacho recorrido partiu quando rejeitou o recurso.
Em face das razões supra expostas, há que concluir pela falta de fundamento do despacho recorrido, o qual deve ser revogado e substituído por outro que designe dia para audiência de julgamento ou que decida através de despacho, caso a M.ma juiz não considere necessária a realização de julgamento e não haja oposição da arguida e do MºPº, nos termos do disposto no art. 64º, n.º 1 e 2 do DL 433/82, de 27.10.
IV-Decisão
Nestes termos acordam os juízes da 2ª Subsecção do Tribunal da Relação de Évora em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido, que deve ser substituído por outro que receba o recurso de impugnação apresentado por L e determine a realização de julgamento ou decida por despacho, nos termos do previsto no n.º 1 e 2 do art. 64º do DL 433/82, de 27.10.
Sem custas.
Lisboa, 22 de outubro de 2024
Renata Whytton da Terra
Maria José Cortes
Renato Barroso