I - A suspensão de execução da pena de prisão deve ficar condicionada ao pagamento da indemnização dos danos causados pela prática do crime, se tal se justificar face às finalidades da pena e a um critério de exigibilidade que atenda à concreta situação económica do condenado.
II - Uma pena, qualquer pena, para ser eficaz, deve ser sentida pelo agente, e, no caso de pena suspensa, muitas vezes a única coisa que o agente sente é, precisamente, a condição fixada.
Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:
I – RELATÓRIO
1.1. No Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal, Juízo de Local Criminal de Setúbal – J1, foi a arguida A condenada:
a) Pela prática de 1 (um) crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos art.ºs 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 por referência ao art.º 132.º, n.º 2, alínea c) do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão, a qual foi suspensa na sua execução pelo período de 3 (três) anos, sujeita a regime de prova, sob condição de:
i) Responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social;
ii) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;
iii) Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso.
b) Nos pedidos de indemnização civil deduzidos e, em consequência, pagar à demandante B (representada por C) a quantia de € 2 000,00 € (dois mil euros), a título de danos não patrimoniais, e a pagar à demandante C a quantia de 656,00 € (seiscentos e cinquenta e seis euros), a título de danos patrimoniais.
*
1.2. Inconformadas com esta decisão, dela interpuseram recurso as assistentes, C, por si e em representação de B, formulando no termo da motivação as seguintes CONCLUSÕES (transcrição):
“A. A arguida foi condenada pela prática de um crime de Ofensas à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º, nº 1 e 145º, nº1 e nº 2 por referência ao artigo 132º, nº 2, al, c) do Código Penal, na pena de um ano e quatro meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de três anos, sujeita a regime de prova;
B. Tal facto ilícito foi praticado contra uma criança de 12 meses de idade, à data da prática dos factos, sobre o qual a arguida tinha um especial dever de cuidado;
C. A arguida foi igualmente condenada ao pagamento de quantia indemnizatória no valor de Dois Mil Euros a título de Danos não patrimoniais à Recorrente B e Seiscentos e Cinquenta e Seis Euros à Recorrente C;
D. A pena de prisão – suspensa na execução – não irá realizar de forma adequada as finalidades da punição, já que sem ser condicionada ao pagamento das indemnizações não é suficientemente dissuasora de reiterações criminosas, nem fará com que a Arguida interiorize a gravidade da sua conduta (Prevenção especial). Levando, mesmo, no entendimento das Recorrentes, a um sentimento de que “o crime compensa”.;
E. A arguida deveria ter sido condenada numa pena de prisão, suspensa na execução, sob condição de proceder ao pagamento às Recorrentes no valor global de 2.656,00€ (Dois mil Seiscentos e Cinquenta e Seis euros), num prazo de um ano;
F. Caso a arguida não seja condenada a pagar as quantias indemnizatórias em que foi condenada, às Recorrentes, as consequências do acto criminoso não existem, sendo a Arguida compensada pelos factos ilícitos praticados (o que é violador dos fins das penas).
Termos em que se requer que o Tribunal ad quem altere a decisão recorrida, substituindo-a por outra que subordine a suspensão da execução da pena em que a Arguida foi condenada, ao pagamento das quantias indemnizatórias em que foi condenada às ora Recorrentes, dentro do prazo não superior a um ano (…).”
*
1.3. Notificada da interposição do recurso, a arguida apresentou a respetiva resposta, apresentando a seguinte síntese conclusiva (transcrição):
“I. A Arguida foi condenada pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1 e 145.º, n.º 1, alínea a) e n.º 2 por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea c) do Código Penal, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão.
II. O Tribunal a quo decidiu suspender a pena de prisão a que foi condenada a arguida, pelo período de 3 anos, sob as seguintes condições de: a) responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social; b) receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência; e c) informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso.
III. Da parte cível, a Arguida foi condenada no pagamento da quantia de 2.000€ à Recorrente B (representada por C) e no pagamento da quantia de 656€ à Recorrente C.
IV. A decisão do Tribunal a quo de não condicionar a suspensão da pena ao pagamento das quantias indemnizatórias foi adequada, proporcional e dentro dos limites legais.
V. A suspensão da execução da pena, para além de ter como objetivo evitar o cumprimento da pena privativa da liberdade, visa igualmente a reintegração do condenado na sociedade, evitando a reincidência e promovendo a sua ressocialização.
VI. Nos termos do artigo 51.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, a suspensão da execução da pena pode ser subordinada ao cumprimento de deveres, incluindo o pagamento da indemnização, mas não constitui um dever obrigatório.
VII. O Tribunal pode optar por outras condições que considere mais adequadas e exequíveis para promover a reintegração do arguido, baseando-se na proporcionalidade, adequação e justiça.
VIII. Mais do que assegurar que a Arguida paga o que deve, a suspensão da pena tem um objetivo penal e de ressocialização.
IX. Condicionar a suspensão da pena ao pagamento das indemnizações pode torná-la inviável, frustrando os objetivos de ressocialização e comprometendo a estabilidade social e económica da Arguida.
X. Pelo exposto entendeu bem o Tribunal a quo, não colocando o pagamento das quantias indemnizatórias como condição para a suspensão da execução da pena.
XI. Devendo a decisão do Tribunal a quo manter-se nos seus precisos termos.”
*
1.4. Igualmente o Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelas assistentes, sintetizando assim a sua motivação (transcrição):
“1.º
Por sentença proferida a 12/04/2024, no âmbito dos autos de processo à margem referenciados, foi a arguida A condenada pela prática, em autoria material e sob a forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 143.º, n.º 1, e 145.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea c), do Código Penal, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 3 anos, sob as seguintes condições de: a) responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social; b) receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência; e c) informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso; e, bem assim, no pagamento à demandante B (representada pela assistente C) da quantia de €2.000,00 (dois mil euros), a título de danos não patrimoniais, e no pagamento à assistente C da quantia de €656,00 (seiscentos e cinquenta e seis euros), a título de danos patrimoniais.
2.º
Inconformada com o respectivo teor, a assistente C interpôs recurso da mesma, com o argumento de que a pena de prisão suspensa na sua execução, que não seja subordinada ao cumprimento, por banda da arguida, do dever de pagar a indemnização devida à assistente C e à demandante B, no montante de €2.656,00 (dois mil seiscentos e cinquenta e seis euros), num prazo de um ano, não realizará, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, discordando, assim, da medida concreta da pena aplicada à arguida.
3.º
Pese embora o Ministério Público tenha feito, em sede de audiência de discussão e julgamento, as suas alegações orais em sentido coincidente com aquele que é o objecto do recurso apresentado pela assistente, reconhecendo a sua bondade, certo é que depois de se ter tomado conhecimento do teor da douta sentença recorrida e da medida concreta da pena aplicada à arguida, o Ministério Público conformou-se com a mesma, considerando-a justa e adequada.
Vejamos, então, porquê.
4.º
A este respeito, dispõe o artigo 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal que: «A suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente:
a) Pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea».
5.º
Não obstante, assim preceitua o artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal, «Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir», que consagra o denominado princípio da razoabilidade.
6.º
Conforme se pode ler, no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 11/02/2004, relatado pelo Conselheiro Henriques Gaspar, acessível em www.dgsi.pt: «A decisão de suspensão de execução da pena de prisão, quando sujeita a condições, deveres ou regras de conduta, nos termos permitidos pelo artigo 50.º, n.º 2, do Código Penal, tem de pressupor e conter um razoável equilíbrio entre a natureza das imposições à pessoa condenada, e a eficácia e integridade da medida de substituição. A imposição de condições de muito difícil ou não suportável cumprimento não satisfaz, nem as injunções para a reintegração dos valores afectados e para a condução de vida de acordo com tais valores, nem conformação da vontade da pessoa condenada na aceitação e no respeito das sujeições que devem acompanhar e potenciar o reencaminhamento para o reencontro com os valores do direito; é, por isso, que o artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal determina que «os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir». A natureza excessiva ou dificilmente praticável do dever imposto determinará, em si, necessariamente, uma posição interior de anomia, rejeição ou desinteresse, contraditória com as finalidades e a intenção de política criminal subjacentes ao instituto da suspensão da execução. Por isso, os deveres ou condições a estabelecer na suspensão da execução da pena devem ser adequados, pessoal e materialmente possíveis, num plano de reordenação para os valores do direito que previna, no essencial, a reincidência, ou que possa contribuir para a reparação das consequências do crime.».
7.º
À luz do que fica exposto, impõe-se olhar à condição económica da arguida, para se alcançar, enfim, a bondade da douta sentença recorrida e a adequação da medida concreta da pena aplicada à arguida, para acautelar suficientemente as finalidades da punição que, no caso concreto, se fazem sentir.
8.º
Neste conspecto, resultou provado que desde o final do ano de 2022 até à presente data, a arguida tem assumido a função de cuidadora dos seus progenitores, ambos com problemas de saúde com alguma gravidade, acompanhando-os a consultas e a tratamentos, assumindo, também, o acolhimento da neta, durante o período de trabalho dos pais.
No presente, a subsistência da arguida tem sido assegurada através do apoio dos pais, do ex-companheiro e da filha, sendo uma situação que assume como transitória.
9.º
Posto isto, o Ministério Público considera, a esta luz e a esta distância, que a subordinação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada à arguida ao pagamento à assistente de indemnização no valor peticionado, traduzir-se-ia, efectivamente e na verdade, numa condição excessiva e dificilmente praticável, que teria de ser, na realidade, cumprida pelos seus pais, pelo seu ex-companheiro e pela sua filha, que a sustentam, e não pela própria arguida, que não dispõe de condição económica bastante que lhe permita, ela própria, condenada, cumprir tal dever.
10.º
Nesta medida, a subordinação da suspensão da execução da pena de prisão aplicada à arguida ao pagamento à assistente de indemnização no valor peticionado seria, conforme se alcança a partir da leitura do citado aresto do Supremo Tribunal de Justiça, contraditória com as finalidades e a intenção de política criminal subjacentes ao instituto da suspensão da execução da pena de prisão aplicada à arguida.
11.º
Nesta confluência, o Ministério Público considera adequada a medida concreta da pena aplicada à arguida, que acautela suficientemente as finalidades da punição que, no caso concreto, se fazem sentir.
12.º
Não merecendo quaisquer reparos, deverá, pois, a douta sentença recorrida ser mantida nos seus precisos termos, sendo o recurso julgado totalmente improcedente.”
*
1.5. Nesta Relação, a Exa. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto pelas assistentes.
*
1.6. Foi cumprido o estabelecido no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta pelas recorrentes.
*
1.7. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o art.º 419.º, do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir.
**
II – FUNDAMENTAÇÃO
2.1. Âmbito do recurso e questões a decidir
Conforme entendimento pacífico, são as conclusões extraídas pelo recorrente, a partir da respetiva motivação, que operam a fixação e delimitação do objeto do recurso submetido à apreciação do tribunal de recurso, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que, face à lei, sejam de conhecimento oficioso e de que seja ainda possível conhecer.
Face às conclusões apresentadas pelas recorrentes da respetiva motivação, extraímos uma única questão a decidir que é a de determinar se a pena de prisão aplicada à arguida deve ser suspensa na sua execução, para além de condicionada ao regime de prova, como se decidiu na sentença recorrida, condicionada ao pagamento dos pedidos cíveis em que foi condenada a favor das demandantes/recorrentes.
*
2.2. A sentença recorrida (nas partes relevantes para a decisão)
2.2.1. O tribunal de primeira instância deu como provados os seguintes factos:
1. Em Setembro de 2022, a arguida A desenvolvia na sua residência, sita na Rua (…..), resposta social de Creche, sem titulo de autorização de funcionamento e sem a respectiva licença de utilização camarária.
2. No exercício desta actividade, no dia 2 de Setembro de 2022, pelas 12.30 horas, no interior do imóvel supra descrito, a Arguida tinha à sua guarda e cuidados, a menor ofendida B, nascida em 4 de Agosto de 2021, com 12 (doze) meses, filha de C, devidamente autorizada por esta para o efeito.
3. Neste contexto, sem qualquer razão que o justificasse, aquela desferiu uma forte pancada de mão aberta no lado esquerdo da face da criança.
4. Em resultado desta conduta da Arguida, a menor ofendida B foi assistida no Hospital de São Bernardo de Setúbal, nos dias 2 de Setembro de 2022 e 3 de Setembro de 2022, apresentado quadro clinico com noticia de vómitos, sofrendo extensa equimose na hemiface esquerda arroxeada difusa, sendo perceptível acentuação de 4 equimoses em carril justapostas, correspondendo a 4 dedos, lesões estas que lhe determinaram 8 (oito) dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho.
5. A Arguida agiu bem sabendo que atingia o corpo e saúde da menor ofendida B, criança com apenas 12 meses na data da prática da conduta supra descrita, utilizando para o efeito a sua superioridade física, bem sabendo que sobre a mesma possuía especial dever de cuidado, por ter sido autorizada pela progenitora a garantir a sua guarda, na sua ausência.
6. A Arguida agiu de modo livre, deliberado e consciente, conhecedora da ilicitude dos seus actos.
7. A Arguida sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
*
8. Quando os pais a foram buscar, encontraram-na com a cara bastante marcada, vermelha arroxeada, e num estado de alguma prostração.
9. O estado em que encontraram a menor, determinou grande aflição e determinou que os seus progenitores, após tentarem apurar o que teria ocorrido, se encaminhassem de imediato às urgências do hospital de São Bernardo em Setúbal, onde entrou cerca das 18:23h, e onde foi sujeita a observação e exames médicos, com vista a verificar-se da extensão e dimensão das lesões sofridas, como consequência directa e necessária da agressão de que foi vítima.
10. Da observação médica, verificou-se que a menor, ora Demandante, apresentava área de lesões petéquiais muito numerosas e confluentes, isto é manchas avermelhadas de tamanho pequeno e causadas, maioria das vezes por algum tipo de sangramento ocorrido na pele, grande parte das vezes decorrente de trauma físico, na hemiface esquerda inferior, região malar entendendo-se à mandibula, pré-auricular e infra auricular com cerca de 7 a 6cm por 3mm de posição horizontal na transição mandíbula/região cervical.
11. Após ser sujeita a observação médica e a hemograma, cujos valores se apresentavam normais, e lhe ter sido administrado paracetamol 133 mg, por dor, foi dada alta à Demandante.
12. Após alta hospitalar e já em casa a Demandante manteve-se em estado de prostração, apática e queixosa, ao que se atribui por um lado a estar em estado de choque perante a ocorrência e às dores que teria no rosto face ao estado em que se encontrava.
13. Pela sua tenra idade a menor não sabia explicar-se, mas era notório que se encontrava em sofrimento, inspirando cuidados aos seus progenitores.
14. Durante a noite, a menor começa com episódios de vómitos (cerca de seis episódios).
15. Considerando que a mãe, a aqui sua representante legal, é enfermeira, foi controlando a situação e prestando-lhe os cuidados adequados, controlando sempre o estado da mesma, mas já ao final da manhã do dia seguinte, 3 de Setembro, considerou aquela adequado levar de novo a menor, ora Demandante, às urgências do Hospital de São Bernardo, onde deu entrada cerca das 12h14m.
16. Perante o quadro clínico apresentado, de vómitos persistentes foi a Demandante sujeita a nova observação e exames médicos, para despistagem de traumatismo crânio-encefálico.
17. Tendo-se concluído que os vómitos não tinham aparente relação com traumatismo.
18. Após ser estabilizado o seu quadro clínico, e já sem novos episódios de vómito, já mais bem-disposta, corada e hidratada, foi-lhe dada alta hospitalar.
19. Durante pelo menos três a quatro dias após a ocorrência dos autos, a menor, aqui Demandante, manteve-se queixosa, passando de um estado de prostração a um estado de grande irritabilidade, apresentando dificuldade em dormir, não por não ter sono mas fazendo uma resistência ao sono.
20. Os factos referidos de 8. a 19. foram consequência directa e necessária da actuação da Arguida.
21. No período posterior ao referido anteriormente, a menor passou a ficar mais agarrada e dependente da mãe.
22. Tornou-se uma criança menos sociável, com dificuldade em aceitar pessoas que lhe eram estranhas, mostrando-se em algumas circunstâncias mais assustadiça e receosa nesses contactos.
23. Tendo passado a mostrar medo da presença de terceiros que não lhe eram pessoas conhecidas.
24. Quando a menor Demandante foi para uma ama em creche familiar, o que ocorreu em 20 de Setembro de 2022, pertencente à IPSS " O Sonho", verificou-se que a mesma teve uma integração muito difícil, razão pela qual durante a primeira semana apenas ficava com a ama durante o período da manhã.
25. Não só com dificuldade no relacionamento com as demais crianças que estavam ao cuidado da ama, mas como com a própria.
26. Notando esta um comportamento muito difícil da menor ora Demandante em especial nas horas das refeições e sestas, o que a levou inclusive a ama a falar com a mãe, tentando perceber o que se passava ou teria passado para existir um tal comportamento.
*
(…)
48. A Arguida nasceu a 31 de Janeiro de 1972.
49. O processo de desenvolvimento de A, a mais velha de uma fratria de três irmãs, decorreu maioritariamente em Massamá, onde os seus pais e restante família alargada, oriundos do concelho de Grândola, se tinham fixado, assegurando o progenitor a subsistência familiar através dos seus rendimentos de trabalho como empreiteiro da construção civil.
50. As tarefas domésticas e educativas eram da responsabilidade da progenitora, que em simultâneo também trabalhava como “ama” informal de outras crianças, complementando dessa forma o orçamento familiar, referenciando A a dinâmica familiar, quer a nuclear quer a alargada, como afectuosa e de ajuda mútua.
51. O primeiro e segundo ano da Arguida foram realizados na escola pública da zona de residência, a que se seguiu o terceiro e quarto ano em Grândola, para onde a família foi viver durante dois anos, devido ao trabalho do progenitor, retornando a Massamá, onde realizou o primeiro ano do 2.º ciclo de escolaridade.
52. Com a ida, pelo período de dois anos, da família para Grândola, A concluiu naquela localidade o sexto e sétimo ano de escolaridade, regressando de novo a Massamá, vindo a abandonar a escola, aos 18 anos, com a frequência do 11º ano, guardando desses anos boas memórias, apesar do insucesso escolar que se verificou, pois tinha amigos e primos nas duas localidades, com quem passeava e convivia.
53. A primeira experiência laboral da Arguida verificou-se no Verão de 1990, num clube vídeo, a que seguiu o trabalho na fábrica da Papelaria Fernandes, no Cacém, a partir de Março de 1991.
54. No plano afectivo A mantinha desde os 18 anos uma relação de namoro com um primo direito do lado materno, situação que veio a ser aceite pela família, iniciando o casal a coabitação na casa dos pais da Arguida, nascendo a filha mais velha em Setembro de 1992.
55. No ano seguinte, o casal contraiu casamento e autonomizou-se, passando a viver em casa própria no Cacém, sendo os encargos familiares assegurados pelos rendimentos de ambos, o marido da Arguida como empresário da construção civil, continuando A a trabalhar na fábrica da Papelaria Fernandes, nascendo o segundo filho do casal em 1999.
56. Em 2000, A e respectiva família constituída vieram viver para casa própria na Quinta do Anjo, concelho de Palmela, onde até hoje se mantém a viver, localidade para onde também se mudaram vários familiares, optando a Arguida por deixar o seu anterior trabalho e ficar a cuidar dos filhos.
57. O afastamento do casal, devido às características da vida laboral do cônjuge, que decorria sobretudo longe de casa, culminou na separação, em 2003, por mútuo acordo, passando os encargos de subsistência da Arguida e dos filhos, a ser assumidos pelo ex-cônjuge, figura caracterizada como presente e responsável e com quem até ao presente mantém uma boa comunicação.
58. Ao longo desses anos de vida maioritariamente caseira, A para além de estar dedicada à educação e acompanhamento dos filhos refere também ter tomado conta de sobrinhos e de outras crianças de famílias conhecidas.
59. A partir de 2015 a Arguida decidiu exercer aquela actividade, mas de forma remunerada, acolhendo em média quatro crianças de cada vez, que lhe chegavam, por recomendação de pais a quem já tinha prestado esse serviço.
60. A manifestou-se realizada com trabalho que desenvolvia, procurando que a sua prestação correspondesse a critérios de qualidade, considerando que tinha boa imagem no meio, tendo como critério a satisfação que lhe era manifestada pelos pais, com quem mantinha um regular relacionamento.
61. No que se refere às condições de espaço e segurança para exercer aquela actividade, a Arguida afirmou que as mesmas se encontravam reunidas, dispondo, no período da hora de almoço, da ajuda necessária por parte de um ou dois familiares.
62. À data dos factos, nomeadamente a 2 de Setembro de 2022, A mantinha-se a viver sozinha no seu apartamento, na Quinta do Anjo, encontrando-se a filha mais velha, então com 30 anos, residente na zona, já autónoma e com família constituída e o filho, à data com 19 anos, a estudar em Durby, no Reino Unido, vindo a casa apenas nas férias.
63. A relação com os diversos familiares residentes na zona, nomeadamente pais, irmãs e sobrinhos continuava a ser frequente, caracterizada pela proximidade afectiva e interajuda.
64. No plano laboral a Arguida prosseguia a sua actividade como ama, profissão onde se sentia realizada e reconhecida, tendo a ajuda da sua progenitora ou da filha à hora de almoço, de modo a garantir o necessário acompanhamento das crianças durante o período do almoço.
65. A continuou a trabalhar como ama até ao final de 2022, referindo ter-lhe sido mantida, ao longo desses quatro meses, a confiança por parte dos outros pais.
66. Apesar desse reconhecimento, a Arguida decidiu não voltar a exercer essa actividade, considerando ter deixado de ter as condições emocionais e psicológicas para prosseguir a profissão de que gostava e onde era valorizada.
67. Desde então A tem assumido a função de cuidadora dos seus progenitores, ambos com problemas de saúde com alguma gravidade, acompanhando-os a consultas e a tratamentos, assumindo também o acolhimento da neta, durante o período de trabalho dos pais.
68. No presente a subsistência da Arguida tem sido assegurada através do apoio dos pais, do ex-companheira e da filha, sendo uma situação que assume como transitória.
69. Apesar de nunca se ter verificado qualquer comportamento de hostilidade por parte de nenhum elemento da comunidade em que vive, a Arguida limitou a frequência de determinados espaços públicos, nomeadamente o exercício físico, que passou a fazer em casa, através de aulas à distância.
70. A revelou para com a equipa da DGRSP uma postura de aparente sinceridade e revelação (embora sem assumir a prática dos factos), assim como adequado raciocínio sociomoral, valorizando quer a oportunidade de dar a conhecer o seu percurso e as vicissitudes das suas circunstâncias, quer o incondicional apoio da sua rede familiar e social.
71. A Arguida é referenciada o meio em que se insere como uma pessoa sociável, disponível para ajudar, empática, dedicada e cuidadosa com as crianças, com boa imagem, sendo as circunstâncias de que está acusada dissonantes com o que tem sido o seu desempenho profissional.
72. O presente processo pela centralidade e negativo impacto que teve na vida de A, tem sido vivenciado com preocupação e sentido de responsabilidade, tendo a proximidade do julgamento aumentado o seu nível de ansiedade.
73. Ao longo deste último ano e meio, a Arguida refere ter atravessado momentos muito difíceis, com negativo impacto no seu ânimo e humor, tendencialmente abatido e na sua auto-estima, sendo uma constante a angústia, ansiedade e as perturbações de sono.
74. O facto dos acontecimentos de que está acusada terem ocorrido no contexto da actividade profissional que desenvolvia de forma dedicada, tem sido vivenciado pela Arguida de forma particularmente dolorosa e devastadora, tendo a expectativa que o Tribunal seja compreensivo e esclareça a situação em que se viu envolvida.
75. A Arguida não apresenta antecedentes criminais.
2.2.2. O tribunal de primeira instância deu como não provados os seguintes factos:
a) A bofetada referida em 3. foi desferida quando a Arguida mantinha a ofendida B ao seu colo, e apenas porque a menor adoptou comportamento irrequieto;
b) A menor contava com 11 (onze) meses de idade;
c) A Arguida atingiu a menor única e exclusivamente para evitar que a menor caísse do seu colo para o solo, num acto reflexo, isto é, uma resposta rápida e involuntária, independente da sua vontade, com o intuito de amparar a queda da menor, o que logrou conseguir, não obstante tenha atingido no processo a menor no rosto, com a sua mão, o que lhe provocou as lesões supra descritas;
d) A conduta da Arguida foi determinada, única e exclusivamente, pelo zelo e bem-estar da menor;
e) A Arguida, para impedir que a menor B caísse no chão, tentou agarrá-la, embora tivesse a consciência do risco que podia correr em ofender (no mínimo) a integridade física da menor, conformando-se com o perigo de verificação do resultado, aceitando a possibilidade da sua ocorrência;
f) Por força da actuação da Arguida a criança manifestava-se assustada a qualquer movimento mais brusco por parte de quem se aproximava de si, designadamente pais, familiares e amigos, situação esta que se prolongou por diversos meses;
g) Os factos referidos de 21. a 26. foram consequência da actuação da Arguida;
h) Por sua vez, uma vez mais em consequência da actuação da Arguida, passou-se a verificar que à mínima situação de frustração a menor Demandante ficava muito irritada, agindo muito impulsivamente, e que ao mínimo confronto, tentava bater, seja a quem fosse;
i) Todos os comportamentos supra descritos por parte da menor, não existiam antes da violência e agressão de que foi vítima por parte da Demandante;
j) Nos termos referidos em 27. C ficou em verdadeiro estado de choque;
k) Nos termos referidos em 31. C não conseguiu descansar absolutamente nada;
l) Nos termos referidos em 40. C fazia contactos telefónicos constantes para a nova ama para saber do estado da sua filha;
m) O valor referido em 45. é de 680,00 € (seiscentos e oitenta euros);
n) A Arguida revelou adequado juízo crítico, face aos factos e ao seu comportamento.
2.2.3. O tribunal de primeira instância fundamentou pela seguinte forma a opção para substituir a pena de prisão que aplicou à arguida e a forma dessa substituição:
Uma vez determinada a concreta medida da pena, importa verificar se a pena de prisão aplicada à Arguida é de substituir por alguma pena de substituição.
(…)
Tendo em conta o quantum da pena de prisão, aquela pode ser substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, nos termos do artigo 58.º, n.º 1 ou suspensa na sua execução, nos termos do artigo 50.º, n.º 1, todos do Código Penal.
Estabelece a primeira disposição que se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Por seu lado, o segundo preceito prevê que o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
No caso, atendendo à personalidade do agente e às circunstâncias do caso, entendemos que a execução da pena de prisão não é exigida pela necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes.
(…)
Considerando que a Arguida não apresenta antecedentes criminais inexistem razões para não acreditar que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não satisfaçam as exigências de prevenção (geral) comunitária do crime, de defesa do ordenamento jurídico e se mostrem suficientes para promover a recuperação social da Arguida (prevenção especial de socialização).
As exigências de socialização mostram que a suspensão da pena de prisão – desde que suficientemente longa – pode ser uma importante “prova de fogo”, mas também de confiança no comportamento futuro da Arguida, cumprindo de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, sem que a sua aplicação ponha em causa a necessária tutela do bem jurídico e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, representando, portanto, uma censura suficiente do facto e, simultaneamente, uma garantia para a comunidade da validade e vigência da norma violada.
Afigura-se que a suspensão da pena de prisão, tendo a Arguida consciência que as consequências de um incumprimento gravoso implicarão, necessariamente, o cumprimento da pena de prisão, será um estímulo maior para a prevenção da prática de futuros crimes do que a aplicação de uma pena de prisão, com os efeitos nefastos que lhe são associados.
Desta forma, numa lógica de responsabilidade, dá-se uma prova de confiança à Arguida para demonstrar, através do seu comportamento em liberdade, que se vai saber comportar de acordo com as regras sociais e não praticar qualquer acto susceptível de lesar importantes bens jurídicos protegidos pela nossa lei penal.
(…)
Assim sendo, tudo ponderado, decido suspender a execução da pena de prisão aplicada à Arguida pelo período de 3 (três) anos, a contar do trânsito em julgado da decisão, atendendo ao supra exposto, período que se julga adequado para completar o processo de ressocialização da Arguida e, suficientemente longo, para que o Tribunal possa optar pela revogação, na eventualidade daquela ressocialização não ser atingida.
Apesar de existirem razões que permitem acreditar na capacidade da Arguida para a auto-prevenção do cometimento de novos crimes, a verdade é que na situação sub iudicio, atenta a especificidade do ilícito em análise se impõe, com vista realizar as finalidades da punição, subordinar a suspensão da execução da pena de prisão a regime de prova, nos termos dos artigos 50.º, n.º 2 e 53.º, n.º 1 do Código Penal.
Estabelece o preceito referido por último que o tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade.
Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito, o regime de prova assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social.
Pelo exposto, a suspensão da execução da pena de prisão será acompanhada de regime de prova assente num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio dos serviços de reinserção social, durante o tempo de duração da suspensão.
O plano de reinserção social contém os objectivos de ressocialização a atingir pelo condenado, as actividades que este deve desenvolver, o respectivo faseamento e as medidas de apoio e vigilância a adoptar pelos serviços de reinserção social.
Com vista à adequada execução de tal plano determina-se, nos termos do artigo 54.º, n.º 3 do Código Penal, a imposição à Arguida das seguintes regras:
i) Responder a convocatórias do magistrado responsável pela execução e do técnico de reinserção social;
ii) Receber visitas do técnico de reinserção social e comunicar-lhe ou colocar à sua disposição informações e documentos comprovativos dos seus meios de subsistência;
iii) Informar o técnico de reinserção social sobre alterações de residência e de emprego, bem como sobre qualquer deslocação superior a oito dias e sobre a data do previsível regresso.
Deste modo, reforça-se o conteúdo educativo e pedagógico da pena de substituição e responde-se à necessidade de tutela do bem jurídico em causa nestes autos, promovendo igualmente a reinserção social da Arguida, assim como se corresponde às expectativas da comunidade na manutenção da validade da norma violada.
Destarte, a pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão será suspensa, pelo período de 3 (três) anos, sujeita a regime de prova.
**
2.3. Apreciação do recurso
A única questão a decidir, como acima deixámos exposto, é a de determinar se a pena de prisão aplicada à arguida deve ser suspensa na sua execução, para além de condicionada ao regime de prova, como se decidiu na sentença recorrida, condicionada ao pagamento dos pedidos cíveis em que foi condenada a favor das demandantes/recorrentes.
As assistentes não discordam, nem da natureza, nem do quantum, nem da forma de execução da pena que foi aplicada à arguida. Insurgem-se quanto às condições impostas pelo tribunal de 1.ª instância para suspender tal pena que entendem que a mesma deveria ter sido suspensa na sua execução com a condição da arguida pagar as indemnizações cíveis em que foi condenada.
Vejamos.
Afirma o art.º 51.º, n.º 1, alínea a), do Código Penal, que “a suspensão da execução da pena de prisão pode ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime, nomeadamente, pagar dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado, ou garantir o seu pagamento por meio de caução idónea”.
O dever enunciado tem, em primeira linha, uma finalidade reparadora (reparar o mal do crime) mas, por via dela, fortalece a finalidade da pena enquanto visa a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Com efeito, limitando-se a suspensão da execução da pena de prisão ao pronunciamento da culpa e da pena, deve encontrar-se, por razões de justiça e equidade, outra maneira de fazer sentir à comunidade e ao condenado, os efeitos da condenação [Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Parte Geral, Volume II, Bosch, Casa Editorial, S.A., p. 1160]. Do que se trata, em suma, neste dever de indemnizar, é da sua função adjuvante da realização da finalidade da punição [Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 353].
O pagamento da indemnização, na medida em que representa um esforço ou implica até um sacrifício para o arguido, no sentido de reparar as consequências danosas da sua conduta, funciona não só como reforço do conteúdo reeducativo e pedagógico da pena de substituição, mas também como elemento pacificador, neutralizando o efeito negativo do crime e apresentando-se, assim, como meio idóneo para dar satisfação suficiente às finalidades da punição, respondendo, nomeadamente, à necessidade de tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas da comunidade [acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13.10.1999, proc. n.º 665/99, sumariado por Manuel de Oliveira Leal-Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos, Código Penal Anotado, 3.ª Edição, 1.º Volume, Editora Rei dos Livros, 2002, p. 681].
A obrigação deve responder à ideia da exigibilidade e ao princípio da proporcionalidade que são conceitos básicos do Estado de Direito. Por outro lado, os deveres, a que alude o referido art.º 51.º, não podem violar direitos fundamentais do condenado, o que aconteceria por exemplo no caso de dever que pusesse em causa o mínimo necessário para a subsistência do condenado. (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, p. 196). E a propósito dos alegados princípios da razoabilidade e da possibilidade, decorrem do n.º 2 do citado preceito – “Os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não seja razoavelmente de lhe exigir” – e da alínea a) do seu n.º 1 – “Pagar, dentro de certo prazo, no todo ou na parte que o tribunal considerar possível, a indemnização devida ao lesado …”. Relacionam-se intimamente, no sentido da devida exigibilidade, na medida em que «Quanto à exigibilidade de que, em concreto, devem revestir-se os deveres e regras de conduta, o critério essencial é o de que eles têm de encontrar-se [numa relação estrita de adequação e de proporcionalidade com os fins preventivos almejados Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, 1993, p. 351], sem que comportem excesso que atente contra direitos fundamentais do condenado. Pretende-se, pois, que a condição que subordina a suspensão da execução da pena se revele, não obstante a sua natureza reparadora, como razoavelmente possível e pessoalmente sustentável, sob pena de, se assim não for, as subjacentes finalidades ficarem prejudicadas e facilmente conduzirem, afinal, ao incumprimento e às consequências contrárias ao que, em si mesma, aquela pena de substituição, na sua aplicação, tem em vista. A jurisprudência tem sido sensível aos legítimos interesses da vítima. Daí que se defenda que “a suspensão da execução da pena só não pode ser condicionada ao pagamento da indemnização quando se demonstre que o arguido, mesmo com todos os sacrifícios exigíveis, é incapaz de cumprir essa obrigação” [acórdão do TRC, de 08.06.1995, CJ, Ano XX, tomo III, p. 71. A melhor justiça no caso concreto é aquela que compagina a suspensão da execução da prisão com dever que permite que o sucesso da mesma não seja, desde logo, muito duvidoso de se conseguir. Tecidos estes considerandos, e fazendo apelo à matéria de facto provada (que não é exuberante) com interesse para a decisão da questão (65.A continuou a trabalhar como ama até ao final de 2022, referindo ter-lhe sido mantida, ao longo desses quatro meses, a confiança por parte dos outros pais; 66. Apesar desse reconhecimento, a Arguida decidiu não voltar a exercer essa actividade, considerando ter deixado de ter as condições emocionais e psicológicas para prosseguir a profissão de que gostava e onde era valorizada; 67. Desde então A tem assumido a função de cuidadora dos seus progenitores, ambos com problemas de saúde com alguma gravidade, acompanhando-os a consultas e a tratamentos, assumindo também o acolhimento da neta, durante o período de trabalho dos pais; 68. No presente a subsistência da Arguida tem sido assegurada através do apoio dos pais, do ex-companheira e da filha, sendo uma situação que assume como transitória.), entendemos que a suspensão da execução da pena aplicada à arguida deve, igualmente, ser condicionada ao pagamento das quantias em que a arguida foi condenada a título de indemnização civil, a favor das assistentes.
De facto, embora a matéria fáctica não seja exuberante, como se disse, quanto às condições económicas da arguida (veja-se que não se apuraram as suas despesas), parece-nos que a mesma beneficia de um bom suporte familiar, ao nível económico, ao ser ajudada pelos pais, ex-companheiro (provando-se que com ele mantém uma boa comunicação) e da filha; por outro lado, e tendo em conta os legítimos interesses das vítimas, impõe-se algum sacrifício, decorrente, além do mais, da conduta grave em que incorreu e dos prejuízos causados às vítimas, que resultam da matéria de facto provada, e como o tribunal a quo sublinhou, “exigências de prevenção geral situam-se num ponto superior ao médio (…) quando tal ilícito é praticado sobre crianças, (…), considerando que tais condutas não são, de modo nenhum, toleradas pela sociedade”, pelo que a condição de suspensão de execução da pena de pagar as indemnizações, não se revela impossível, nem sequer irrazoável, tanto mais que se trata, ainda, de um período de três anos e um montante indemnizatório global de 2 656,00 €. A solução preconizada não viola direitos fundamentais da arguida, nem os princípios da razoabilidade e da possibilidade.
Como se pode ler no acórdão do TRP, de 25.03.2023 (in www.dgsi.pt) “Conforme referem as atas da Comissão de Revisão do Código Penal, foi acolhida neste diploma a ideia de que o agente do crime deve proceder ao pagamento segundo aquilo que puder e de acordo com as suas forças. Mas isto não significa que a condição tenha que se restringir ao que for confortável ao agente, isto é, àquilo que ele puder cumprir sem sacrifício, sob pena de não se poder impor como condição de suspensão da execução da pena o pagamento de indemnização ao lesado quando o agente não disponha, no momento, do montante em causa.” Citando, ainda, o acórdão do STJ, de 13.12.2006, lê-se, também, no citado aresto do TRP que “o n.º 1 do art.º 51.º do Código Penal, consagra o princípio da razoabilidade, que significa que a imposição de deveres deve atender às forças do destinatário, o agente do crime, para não frustrar, logo à partida, o efeito reeducativo e pedagógico que se pretende extrair da medida, mas cuidando de não cair no extremo de fixar uma condição atendendo apenas às possibilidades económicas e financeiras oferecidas pelos proventos certos e conhecidos do condenado, sob pena de se inviabilizar, na maioria dos casos, o propósito que lhe está subjacente, qual seja o de dar ao arguido margem de manobra suficiente para desenvolver diligências que lhe permitam obter recursos indispensáveis à satisfação do dever ou condição.
Uma pena, qualquer pena, para ser eficaz, deve ser sentida pelo agente e, no caso de pena suspensa, muitas vezes a única coisa que o agente sente é, precisamente, a condição fixada.” – sublinhado nosso.
Não podemos deixar de concordar com esta posição.
E assim sendo, decide-se no sentido de suspender a pena de prisão aplicada à arguida não só condicionada ao regime de prova, mas também ao pagamento da indemnização global em que foi condenada, no período da suspensão da execução da pena (3 anos).
Dividindo o valor em causa por 36 meses, encontramos uma quantia mensal de cerca de 73,00 €, o que não é de todo irrazoável. De qualquer modo, sublinhe-se, os deveres impostos podem ser modificados até ao termo do período da suspensão sempre que ocorrerem circunstâncias relevantes supervenientes ou de que o tribunal só posteriormente tiver tido conhecimento (art.º 51.º, n.º 3, do Código Penal) e a revogação da suspensão (com o correspondente cumprimento da pena de prisão fixada na sentença - art.º 56.º, n.º 2), só poderá ocorrer se o condenado vier a infringir, com culpa “grosseira”, os deveres impostos (art.º 56.º, n.º 1, al. a)).
E sendo assim, adita-se uma alínea com uma nova condição relativamente ao regime de prova fixado, com o seguinte teor:
iv) Comunicar ou colocar à disposição do técnico de reinserção social documentos comprovativos dos pagamentos que for realizando às assistentes e que integrem os pedidos cíveis em que foi condenada. Procede, nesta medida, o recurso.
**
III – DECISÃO
Nestes termos, acordam, em conferência, os Juízes que integram a 2.ª subsecção criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso interposto pelas assistentes e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte em que condicionou a suspensão da execução da pena de 1 ano e 4 meses de prisão, pelo período de 3 anos apenas sujeita a regime de prova, e, em substituição:
a) Determinar que a suspensão da execução da pena de 1 ano e 4 meses de prisão, pelo período de 3 anos e sujeita a regime de prova, fica condicionada igualmente ao pagamento da indemnização de € 2 656,00 às vítimas assistentes no mesmo prazo de 3 anos;
b) Aditar uma nova condição relativamente ao regime de prova fixado, com o seguinte teor:
iv. Comunicar ou colocar à disposição do técnico de reinserção social documentos comprovativos dos pagamentos que for realizando às assistentes e que integrem os pedidos cíveis em que foi condenada.
No mais, mantém-se a sentença recorrida.
Sem custas (art.º 513.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Notifique.
**
Évora, 22 de outubro de 2024
(o presente acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos seus signatários – art.º 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal)
Maria José Cortes
Maria Perquilhas
Fernando Pina