Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
ABUSO SEXUAL DE MENOR DEPENDENTE
ACTO SEXUAL DE RELEVO
Sumário
I – “Ato sexual de relevo” é toda a conduta que ofenda bens jurídicos fundamentais ou valores essenciais das pessoas quanto à sua livre expressão do sexo. II - Em tais termos, o ato de masturbação de um menor perpetrado pelo arguido tem de ser considerado “ato sexual de relevo”. III - Do mesmo modo, constitui “ato sexual de relevo” o facto de o arguido ter “apalpado” e acariciado, por cima da roupa, o pénis e a zona genital do menor em causa.
Texto Integral
ACORDAM OS JUÍZES, EM CONFERÊNCIA, NA SECÇÃO CRIMINAL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:
I. RELATÓRIO
A –
Nos presentes autos de Processo Comum Colectivo, que com o nº 1077/22.3T9ABT, correm termos no Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo Central Criminal de Santarém – Juiz 3, pelo Ministério Público foi deduzida acusação contra o arguido:
- J (….).
Imputando-lhe factos suscetíveis de integrarem a prática, em autoria material e concurso efetivo de:
1. (7) sete crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravados, p.p. pelo artigo 165º, nº 1 e 177º, nº 1, alínea c), nº 6 e nº 7, ambos do Código Penal e nas penas acessória de proibição de exercício de funções, cujo exercício envolva o contacto regular com menores e de proibição de confiança de menores, p.p. pelos artigo 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2, todos do Código Penal (em concurso aparente com um crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravado, p.p. pelo artigo 172º, nº1, alínea b) e c) e 177º, nº 1, alínea c) e nº 6 e nº 7, e 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2, todos do Código Penal) – (cfr. artigos 8º, 9º, 11º e 12º da acusação pública)
e
2. (2) dois crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado, p.p. pelo artigo 165º, nº 1 e nº 2 e 177º, nº 1, alínea c), nº 6 e nº 7, e nas penas acessória de proibição de exercício de funções, cujo exercício envolva o contacto regular com menores e de proibição de confiança de menores, p.p. pelos artigo 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2 todos do Código Penal (em concurso aparente com um crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravado, p.p. pelo artigo 172º, nº1, alínea b) e c) e 177º, nº 1, alínea c) e nº 6 e nº 7, 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2, todos do Código Penal) - (cfr. artigos 10º da acusação pública).
I, representado pela sua Exma. Patrona nomeada para o efeito, Exma. Sra. Dra. Isabel Anacleto, veio, sob a ref. n.º 9889254 de 26-07-2023, deduzir pedido de indemnização civil contra o arguido, alegando ter sofrido danos de natureza não patrimonial (dores decorrentes da introdução do pénis e dos dedos no ânus do demandante, aproveitando-se da sua vulnerabilidade), concluindo pela fixação de uma indemnização em quantia não inferior a € 15.000,00, acrescida de juros vincendos, à taxa legal, até efetivo e integral pagamento.
O Centro Social Interparoquial de Abrantes, Instituição Particular de Solidariedade Social, com sede na Rua Cidade de Parthenay, Nº 414, Abrantes, constituiu-se assistente.
O arguido apresentou contestação e requerimento probatório.
Foi comunicada, uma alteração não substancial de factos e uma alteração da qualificação jurídica.
Realizada a audiência de julgamento veio a ser proferido pertinente Acórdão, no qual se decidiu: Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provada, a acusação e, assim: - Absolver o arguido J da prática de: 1. (7) sete crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravados, p.p. pelo artigo 165º, nº 1 e 177º, nº 1, alínea c), nº 6 e nº 7, ambos do Código Penal e nas penas acessória de proibição de exercício de funções, cujo exercício envolva o contacto regular com menores e de proibição de confiança de menores, p.p. pelos artigo 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2, todos do Código Penal (em concurso aparente com um crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravado, p.p. pelo artigo 172º, nº 1, alínea b) e c) e 177º, nº 1, alínea c) e nº 6 e nº 7, e 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2, todos do Código Penal) – (cfr. artigos 8º, 9º, 11º e 12º da acusação pública) e 2. (2) dois crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado, p.p. pelo artigo 165º, nº 1 e nº 2 e 177º, nº 1, alínea c), nº 6 e nº 7, e nas penas acessória de proibição de exercício de funções, cujo exercício envolva o contacto regular com menores e de proibição de confiança de menores, p.p. pelos artigo 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2 todos do Código Penal (em concurso aparente com um crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravado, p.p. pelo artigo 172º, nº 1, alínea b) e c) e 177º, nº 1, alínea c) e nº 6 e nº 7, 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2, todos do Código Penal) - (cfr. artigos 10º da acusação pública), pelos quais foi sujeito a julgamento nestes autos.
- Condenar o arguido J como autor material de quatro crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, p. e p. pelo artigo 172º, nº 1, als. b) e c), do CP, nas penas de 2 anos e 9 meses de prisão, 1 ano e 3 meses de prisão, 1 ano e 3 meses de prisão e 1 ano e 9 meses de prisão e em quatro penas acessórias de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores pelo período de 5 anos cada e em quatro penas acessórias de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 5 anos cada (sendo uma pena acessória por cada um dos crimes. - Em cúmulo jurídico, condenar o arguido J na pena única de 4 anos e 3 meses de prisão e na pena acessória única de proibição de exercer profissão, emprego, funções ou atividades, públicas ou privadas, cujo exercício envolva contacto regular com menores pelo período de 8 anos e na pena acessória única de proibição de assumir a confiança de menor, em especial a adoção, tutela, curatela, acolhimento familiar, apadrinhamento civil, entrega, guarda ou confiança de menores, pelo período de 8 anos. - Suspender a execução da pena de prisão por 4 anos e 3 meses, acompanhada de regime de prova. Para tal, competirá à Direção Geral dos Serviços Prisionais da sua área de residência preparar e acompanhar o plano de reinserção do social do arguido, a apresentar a este Tribunal no prazo de 30 dias a partir do trânsito em julgado deste acórdão, trânsito esse que lhe será notificado. Esse plano deverá, além do mais, prever um acompanhamento técnico do arguido, com especial incidência no adequado desenvolvimento da sua maturidade sexual. E deverá ainda ter em vista, entre outros objetivos, visto que o arguido nisso consentiu: a comparência do arguido em consulta de avaliação psiquiátrica/psicológica, a efetuar por médico e serviço a indicar pela DGRSP e, caso se considere necessário em função dessa avaliação, a submissão do arguido a tratamento de modo a controlar a sua impulsividade sexual.
Mais se subordina a suspensão da execução da pena de prisão ao pagamento, até ao termo do prazo da suspensão, de metade da indemnização fixada (no caso € 4.000,00, metade de € 8.000,00).
(…)
Inconformado com este Acórdão condenatório, o arguido J, do mesmo interpôs recurso, extraindo da motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1. Devem ser declarados não provados os factos 8, 9 e 10 da Matéria de Facto Provada,
Porque,
2. Não há na Decisão Recorrida qualquer situação ou quaisquer factos narrados pelas testemunhas que fundamentem a condenação pelo “episódio em que o arguido masturba o I”.
É verdade que este facto consta como provado no nº 8 da MFP (matéria de facto provada)
Só pode ter como fundamento as declarações do I para memória futura.
Ora, com todo o respeito as declarações do I, pela dificuldade da sua comunicação, pela forma como alterava o conteúdo das mesmas – na decisão a fls. 16 refere-se que com as mãos disse 10 vezes, mas como se ouvirá e consta da transcrição disse “tês”, que são três e não dez, que a perguntas afirmativas respondia afirmativamente, não sendo possível deixá-lo fazer uma descrição factual da sua autoria e iniciativa e não podia ser interpelado para ser questionado acerca das suas afirmações, como bem referiu o Sr. Juiz de Instrução, que tem desabafos de não ser crível o que estava a ser dito e reconheceu a impossibilidade do depoente ser contraditado: que declaro o I que tudo aconteceu na sala – fls. 16 da decisão (como se isso fosse feito publicamente onde estavam e passavam pessoas), mas que o tribunal deu como provado ter sido “no interior do CAT”, porque também não acreditou que “isso” pudesse ter acontecido na sala.
Mas e com todo o respeito não acreditando que pudesse ter sido na sala, porque se acredita que foi noutro lado qualquer. Onde?
Assim sendo e por essas razões – inexistência de prova testemunhal e incapacidade do I para descrever os factos e ser questionado acerca dos mesmos – os factos do item 8 da acusação devem ser dados como não provados.
3. Comprova-o os depoimentos das testemunhas:
- C – depoimento no dia 03-10-2023, das 10:42h às 11:16h;
- E – depoimento no dia 03-10-2023, das 11:34h às 11:52h;
- L - depoimento no dia 03-10-2023, das 14:07h às 14:39h;
- R - depoimento no dia 03-10-2023, das 14:58h às 15:14h;
- M - depoimento no dia 03-10-2023, das 15:29h às 15:52h,;
- P - depoimento no dia 03-10-2023, das 15:53h às 16:13h e as declarações do Ivo para memória futura transcritas a fls dos autos.
4. O arguido não deve ser condenado pelos factos dos números 8, 9 e 10 da Matéria de Facto Provada porque os depoimentos não são convincentes e são contraditórios.
5. Quanto aos 2 crimes em que foi condenado por factos ocorridos na sala não é crível que o arguido tivesse o desplante e quisesse publicitar os actos de abusos com o I e as contradições são evidentes.
6. Estas evidenciam-se nos depoimentos das testemunhas que declararam ter presenciado os factos, sendo que há muitos mais que declararam nada ter presenciado:
Na sala
O C: Não se apercebeu o que estava a acontecer.
Estavam com almofadas por cima das pernas.
A L: Está zangada com o arguido.
Viu mais apalpões ao I.
Este negou essa situação – fls. 27 da sentença.
Estava com a R e a C.
O arguido acariciava o pénis do I por cima das calças.
A R: Declarou estar “mais ou menos zangada com o arguido”
O J tocava o I na perna junto à virilha.
Mas instada a esclarecer disse que “o J tocava a pilinha do I”.
A C: Estava na sala com o M – que disse não ter visto nada – e com o L.
Não estava com a R e com a P como estas declararam.
Disse que viu o J massajar o pénis do I.
Só refere uma situação.
Perante estas contradições acerca de quem viu, quantas vezes e a fazer o quê, pode-se com um grau acentuado de convencimento declarar que os crimes aconteceram e aconteceram pelo menos duas vezes?
No quarto:
O C: O I e o arguido no quarto, com a porta aberta, os dois frente a frente e um de costas para a porta.
Não sabe quem estava de costas mas viu o arguido com a mão no pénis do I.
Perguntado se estava ereto disse que sim: “Viu um alto”.
Questiona-se:
Como é que ao entrar numa porta da qual se vê uma pessoa que está de costas para esta em frente a outra, se visiona a mão de um deles a apalpar o pénis do outro?!
O L:
a. A porta não estava aberta estava encostada.
b. O C, que a viu aberta, ia à sua frente.
Ia atrás mas viu aquilo que o C não viu: o I a puxar as calças para cima.
A M:
Ouve, na sala, o P a chamar pelo J, que estivera sem ela saber no quarto do I, onde o L e o C viram o I e o J e ela sorrateiramente vai ver o que se passa e vê o J a mexer no pénis do I, que já havia saído do quarto, quando haviam aparecido o C e o L.
Crê que foi nesse dia que estes o viram no quarto.
7. Inexistindo prova testemunhal e atentando nas incapacidades da alegada vítima e na impossibilidade de o contraditar, não deve o arguido ser condenado pelos factos alegados no item 8 da acusação pública.
8. Não deve o arguido ser condenado pelos factos dos art. 11º e 12º da acusação porque há contradições suficientes nos depoimentos das testemunhas, quer da alegada ocorrência no quarto, quer na sala, que permitem legitimar a dúvida acerca da ocorrência desses factos.
9. As perícias realizadas à alegada vítima e ao arguido não devem ser valoradas, porque foram realizados pelo mesmo perito, porque tal facto limita a liberdade de apreciação do perito: não pode deixar de elaborar um parecer sem pensar no outro.
Entende-se, por isso, que as perícias realizadas não podem ter a valorização devida, em função da quebra de ética do Sr. Perito ao elaborar duas perícias, devendo ter declarado a sua incompatibilidade em relação a uma delas.
10. Considerando que os crimes em que o arguido foi condenado protegem a autodeterminação do arguido, que não foi colocada em causa – atente-se no depoimento da funcionária C que considerou não ter havido quaisquer sequelas para o I – não se tendo provado quaisquer factos que o demonstre, ou indicie;
11. Considerando que os factos provados não demonstram que pudesse ter havido algo mais que uns apalpões;
12. Deverá este Venerando Tribunal considerar que os factos provados não constituem “actos sexuais de relevo”;
13. Não colocaram em causa a autodeterminação sexual da alegada vítima;
Mas,
14. Considerando-se que ocorreram, declarar- se que aconteceu um só crime, porque o bem protegido é o mesmo; a ocorrência é continuada e insere-se num quadro da mesma situação exterior.
Assim,
15. Deve o arguido ser absolvido dos crimes em que foi condenado,
Ou, se assim não se entender
16. Deve ser condenado pela prática de um único crime continuado por prática de actos sexuais sem relevo, nos termos do art. 170º do Código Penal.
Justiça.
Notificado nos termos do disposto no artigo 411º, nº 6, do Código de Processo Penal, para os efeitos do disposto no artigo 413º, do mesmo diploma legal, Ministério Público, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso interposto, concluindo por seu turno (transcrição):
1. O arguido veio interpor recurso do Acórdão proferido nos autos, que o condenou nos termos acima indicados, pois, no seu entender, considera que, quanto à matéria de facto provada nos pontos 8, 9 e 10, inexiste prova testemunhal e atendendo às incapacidades da alegada vítima e na impossibilidade de a contraditar, não deve ser condenado pelos descritos factos.
2. Sustenta que também não deve ser condenado pelos factos constantes dos artigos 11 e 12 da acusação, na medida em que considera que há contradições suficientes nos depoimentos das testemunhas, quer da alegada ocorrência no quarto, quer na sala, que permitem legitimar a dúvida acerca da ocorrência desses factos.
3. Alega ainda que as perícias dos autos foram realizadas pelo mesmo perito, o que não devia ter ocorrido, pois uma perícia condiciona a outra e assim limita a liberdade de apreciação do perito, pois não pode deixar de elaborar um parecer sem pensar no outro, pelo que, não podem as mesmas ser valorizadas como prova.
4. Por outro lado, admitindo a hipótese de que o Tribunal que vai apreciar o recurso entenda que existiu a prática dos quatro crimes, entende que estando os factos, todos eles, situados no mesmo espaço temporal, que ocorreram no mesmo local e com as mesmas circunstâncias, coloca a questão de tais factos não poderem constituir “atos sexuais de relevo”, e coloca em causa a autodeterminação sexual da alegada vítima, bem como, que se estará perante um só crime continuado.
5. Pede a sua absolvição, e a não se entender assim, considera que deve ser condenado pela prática de um único crime continuado por atos sexuais sem relevo, nos termos do art. 170º, do Código Penal.
6. Entendemos, contudo, que em qualquer das matérias em causa não assiste razão ao recorrente.
7. Faz-se notar que o Tribunal de recurso só pode alterar a matéria de facto fixada em 1ª instância, quando as provas indicadas pelo recorrente, por si só ou conjugadas com as demais, impuserem manifestamente uma decisão diversa da decisão recorrida.
8. Aliás, o mecanismo previsto no art. 412º, nºs 3 e 4, do CPP, destina-se tão só a corrigir aquilo que se verifica serem erros manifestos de julgamento e que resultam ostensivos da leitura do registo da prova, mas sem nunca fazer tábua rasa das vantagens da imediação e do princípio da livre convicção (v. Ac. do TRL de 18-02-2014 – processo nº 1426/12.2GLSNT.L1).
9. Só é possível controlar a convicção do julgador quando ela se mostra contrária às regras da experiência, da lógica e, em determinadas situações, dos conhecimentos científicos, dado que, a livre apreciação da prova não exclui, antes exige, que sejam observadas as regras da experiência e critérios de lógica.
10. Lendo o teor do segmento da decisão recorrida respeitante à Motivação de Facto, constata-se que o Tribunal formou a sua convicção, quanto aos factos impugnados pelo arguido, com base nas declarações para memória futura da vítima I, bem como, entre o mais, nos depoimentos das várias testemunhas identificadas na decisão recorrida, os quais, segundo o Tribunal, revelaram isenção, lógica, serenidade e credibilidade.
11. O Tribunal ponderou ainda a prova documental e a prova pericial identificada na decisão recorrida.
12. Donde, conjugando toda a referida prova, o Tribunal não teve dúvidas em dar como provados os factos nos moldes em que o fez, designadamente na conjugação das declarações para memória futura prestadas pelo ofendido com os depoimentos dos jovens que assistiram a alguns episódios, com o depoimento da funcionária C e com os relatórios periciais.
13. Fez também o Tribunal uma análise de tais depoimentos, para concluir nos moldes que veio a concluir.
14. Assim, inexiste qualquer erro manifesto de julgamento e que resulte do registo da prova, ou que a convicção do julgador se mostra contrária às regras da experiência, da lógica ou da razão.
15. Por sua vez, tendo em conta tais regras da experiência comum, consideramos que a decisão recorrida se mostra manifestamente plausível.
16. Nessa medida, o que se verifica no caso, é tão só uma apreciação divergente dos factos e da prova por parte do recorrente. Só que, o mesmo não pode pretender substituir a convicção do julgador pela sua própria convicção, pois se o fizesse, por via de uma apreciação divergente dos factos e prova, sem estar em causa um erro manifesto de julgamento, conforme entendemos ser o caso, então estaria a usurpar a competência do julgador.
17. Assim, não tendo as provas indicadas pelo recorrente, por si só ou conjugadas com as demais, a virtualidade de imporem uma decisão diversa, afigura-se-nos que o Tribunal de recurso não pode alterar a matéria de facto que foi fixada.
18. Com efeito, o recurso da matéria de facto é tão só um remédio para reparar eventual erro cometido na definição dos fatos provados e não provados e que tenham relevância para a boa decisão, não sendo assim um novo julgamento.
19. Daí que, tendo o Tribunal fundamentado a matéria de facto provada nos termos que o fez, a decisão da matéria de facto é inatacável, não podendo o recorrente, só porque faz da prova produzida uma leitura diferente, opor a sua convicção e sustentar que o Tribunal de recurso deve optar por ela.
20. Acresce que o recorrente também não explicitou porque razão as provas que indica impunha decisão diversa da recorrida, na medida em que se limitou a indicar partes da transcrição de depoimentos, e a afirmar que as declarações para memória futura da vítima, face à sua incapacidade para descrever os factos e de ser questionado à cerca dos mesmos, não podem fundamentar os pontos da matéria de facto provada que identificou.
21. Ora, para além de tal alegação não constituir uma explicitação de razões, o arguido omite que na motivação de facto essa situação foi devidamente contextualizada.
22. A prova pericial, que se realiza com base em despacho da autoridade judiciária competente, através de peritos, tem por objetivo questões técnicas, científicas ou artísticas.
23. Por sua vez, a perícia é deferida a instituições e peritos de reconhecida credibilidade. Ou seja, o nosso sistema adotou um regime de perícia oficial podendo, contudo, haver lugar a contraditoriedade na perícia, exercida não só através de outros peritos, mas também através de consultores técnicos.
24. Acresce que os peritos prestam compromisso, podendo a autoridade judiciária competente oficiosamente ou a requerimento dos peritos ou dos consultores técnicos, formular quesitos quando a sua existência se revelar conveniente.
25. Para além disso, os peritos, finda a perícia realizada, procedem à elaboração de um relatório, no qual mencionam e descrevem as suas respostas e conclusões devidamente fundamentadas.
26. Assim, a lei impõe um especial dever de fundamentação dos peritos.
27. Para além disso, o juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, e sempre que a convicção do julgador divergir do juízo e do parecer dos peritos, deve fundamentar tal divergência.
28. A prova pericial é um meio de prova pré-constituído, pelo que, poderá sempre ser tida em conta, quer na fase de instrução quer na fase de julgamento (cf. artigos 327º, nº 2, e 341º, alíneas b) e c), do CPP).
29. O descrito regime resulta do disposto nos artigos 151º a 163º, do CPP.
30. Ora, face à tramitação, regras, competência técnica e oficial que obedece a perícia, bem como, ao especial dever de fundamentação imposta aos peritos, não se alcança como é que as perícias dos autos, que a isso obedeceram, não podem valer como prova.
31. No que ao conceito de ato sexual de revelo respeita, constata-se que a lei não nos dá uma definição. Contudo, pela doutrina e jurisprudência, tem-se considerado como integrando o conceito de ato sexual de relevo toda a conduta que ofende bens jurídicos fundamentais ou valores essenciais das pessoas no que respeita à sua livre expressão de sexo. Ou seja, é a ação com conotação sexual que apresenta uma certa gravidade e realizada na vítima de tal ato.
32. Por isso, apresentando-se o direito penal como “ultima ratio”, tal pressupõe que só seja tutelada a liberdade sexual contra ações que revistam certa gravidade.
33. Assim, consideramos que os atos como o coito oral e a masturbação devem ser incluídos no referido conceito, aliás como resulta do disposto no art. 171º, nº 2, do CP.
34. Face ao referido e tendo ainda em conta a jurisprudência e doutrina que é citada na decisão recorrida sobre esta matéria, dúvidas não devem existir de que os factos dados como provados nos pontos 8, 9 e 10 da matéria de facto integram o conceito de ato sexual de relevo.
35. Por sua vez, resulta do disposto no art. 30º, nº 2, do CP, que o crime continuado parte da situação de um concurso efetivo de crimes através da realização plúrima do mesmo tipo legal, ou de vários tipos legais que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico (por exemplo, o crime de furto e o crime de abuso de confiança), executada de forma essencialmente homogénea, ou seja com um modus operandi análogo, e num semelhante quadro de solicitação exterior que leve a que a culpa do agente diminua sensivelmente, reduzindo-se a culpa do agente a um só crime.
36. Acresce que o crime continuado só se pode aplicar a crimes que não atentam contra bens jurídicos eminentemente pessoais, conforme resulta do disposto no citado art. 30º, nº 3, do CP.
37. Em anotação aos artigos 172º e 30º, do CP, Paulo Pinto de Albuquerque – Comentário do Código Penal – 5º edição atualizada - UCE, páginas 774 e 250, conclui que não é admissível o crime continuado no que respeita ao crime de abuso sexual de menor dependente.
38. Assim, no caso dos autos não se verificam os pressupostos legais para sustentar a existência de um crime continuado.
Por tudo o que vai exposto, consideramos que a decisão recorrida não violou as disposições legais invocadas pelo recorrente.
Deve, pois, o recurso interposto ser julgado totalmente improcedente e, em consequência, manter-se a douta decisão recorrida.
Contudo, V. Exas. farão a costumada Justiça.
Notificado nos termos do disposto no artigo 411º, nº 6, do Código de Processo Penal, para os efeitos do disposto no artigo 413º, do mesmo diploma legal, o assistente I, pronunciou-se no sentido da improcedência do recurso interposto, concluindo por seu turno (transcrição):
Ora, face a tudo o acima exposto, não parece que o Tribunal tenha ficado com dúvidas em relação a qualquer facto que considerou provado, não se vislumbrando na sentença em recurso, tanto na matéria de facto dada como provada, como na fundamentação, tenha hesitado quanto à valoração da prova.
Considera-se, pois, que não assiste razão ao Recorrente no que à Matéria de Facto diz respeito, bem como à matéria de Direito.
Assim, o presente recurso deve ser julgado totalmente improcedente, devendo ser mantida a decisão recorrida.
Vossas Excelências farão a costumada Justiça.
Neste Tribunal da Relação de Évora, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso interposto.
Cumpriu-se o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal, não tendo o arguido apresentado qualquer resposta.
Procedeu-se a exame preliminar.
Com os vistos prévios, foi realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
B -
No Acórdão recorrido consta o seguinte (transcrição):
Factos provados:
Produzida a prova e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos
com pertinência para a decisão da mesma:
1. O CAT – Centro de Acolhimento Temporário de Crianças e Jovens em Risco (Casa Clotilde), doravante CAT, faz parte de uma das valências do Centro Interparoquial de Abrantes (CSAI), também conhecido por “Casa Clotilde”, sita na Rua Fonte de São José, n,º1, Alferrarede, Abrantes sendo presidente da direção o padre António Castanheira.
2. Até finais de novembro de 2022, era diretora técnica a Dr.ª Inês dos Santos Graça, a quem incumbia gerir e administrar do CAT e, assim, zelar pelo bem-estar e segurança dos menores acolhidos, sendo que a mesma veio a ser substituída em 01-12-2022, pela Diretora Lúcia Martins.
3. No CAT – Centro de Acolhimento Temporário de Crianças e Jovens em Risco encontravam-se integradas e internadas várias crianças de 9 a 18 anos, quer do sexo feminino, quer do sexo masculino.
4. Um dos quais era I, nascido em 22-03-2005, que aí foi acolhido, em 09-01-2015, em cumprimento de medida de acolhimento residencial, decretada em 19-12-2014, no processo de promoção e proteção nº 968/10.9TBABT, e revista consecutivamente, até 22-03-2023, data em que cessou a medida de acolhimento residencial por o mesmo ter atingido a idade de 18 anos.
5. I padece, desde nascença, de esclerose tuborosa e epilepsia sintomática, com crises parciais complexas, padecendo ainda de um quadro de debilidade mental moderada, a que corresponde o código F71 da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10), com um atraso global no desenvolvimento psicomotor, sobretudo a nível cognitivo e psicomotor, com manifestas dificuldades e repercussões no pensamento, linguagem e comportamento. I apresenta um coeficiente de inteligência (QI) no nível Muito Inferior (45) com um funcionamento cognitivo homogéneo (QI verbal - 45 e QI de realização - 50). O perfil constituído pelos diversos sub-testes é homogéneo, sendo que todas as pontuações foram de 1 a nível verbal e oscilaram entre 1 e 5 ao nível de realização (escala de 1 a 19). Os índices de compreensão verbal (medida de conhecimentos adquiridos e raciocínio verbal), de organização percetiva (medida de atenção aos detalhes e integração visuomotora) e a velocidade de processamento estão num nível Muito Inferior (50, 56 e 51 respetivamente). O que se traduz na existência de um vocabulário bastante empobrecido, que dificulta a expressão de ideias, o desconhecimento de informação geral como, por exemplo, quantos meses tem um ano ou o que mede um termómetro e ausência de conhecimentos ao nível do cálculo. O pensamento é do tipo concreto, havendo por isso, dificuldade em aceder a questões que requerem maior elaboração e abstração, apesar de possuir suficiente capacidade de compreensão. A existência de uma postura interpessoal submissa e de agrado face ao outro, particularmente perante figuras de autoridade são fatores de vulnerabilidade pessoal que, conjugado com as estratégias utilizadas pelo agressor (aproveitamento de uma relação de familiaridade e de um estatuto de autoridade, manipulação do comportamento do jovem perante as suas dificuldades de juízo social, desconhecimento de informações sobre a sexualidade) levam a que não houvesse à data dos factos uma autodeterminação sexual por parte de I.
6. Ainda assim, I tem uma noção do certo e do errado, o que lhe permite fazer alguns juízos morais, mormente sobre o cariz desadequado de certas condutas, como as descritas nos autos.
7. O arguido J, nascido EM (…..), desde o ano de 2008 e até agosto de 2022, com exceção do período entre março de 2020 e março de 2021 (em que as visitas ao CAT estiveram interrompidas por causa da pandemia Covid-19), frequentava, semanalmente, o CAT – Centro de Acolhimento Temporário de Crianças e Jovens em Risco, com o conhecimento e a autorização da então Diretora Técnica Inês Graça, tendo dessa forma livre acesso e contacto próximo com as crianças acolhidas, bem como acesso, durante horário situado desde o final da tarde mas antes da hora de jantar, até depois de os jovens se deitarem, cerca das 22 ou 23 horas, às zonas privadas, como sala, quartos e casas de banho, onde as crianças pernoitavam e faziam a sua higiene pessoal.
8. Em data não concretamente apurada situada pelo verão de 2021, o arguido J, no interior do CAT, tocou e acariciou, com uma das suas mãos ou com ambas, o pénis de I, que nesse período teria 16 anos de idade, tendo agarrado e rodeado com a(s) sua(s) mão(s) o pénis do I, friccionando-o e feito vários movimentos ritmados para cima e para baixo, para a frente e para trás.
9. Em dias não concretamente apurados, mas situados pelo verão de 2021, no interior do CAT, o arguido, no sofá da sala comum, em número de vezes não exatamente determinadas mas, pelo menos, por duas vezes, quando se encontrava sentado junto de I, apalpou e acariciou com as suas mãos, por cima da roupa, o pénis e a zona genital do Ivo.
10. Em dia não concretamente apurado, em finais de agosto/inícios de setembro de 2021, e ao final do dia, o arguido no interior do quarto de I, no CAT, tocou, com as suas mãos, por cima da roupa, no pénis de I, apalpando e acariciando a sua zona genital, tendo sido nesse momento surpreendido por C.
11. Em todas as situações supra descritas, o arguido tinha perfeito conhecimento de que era maior, e da idade de I, que era uma criança menor, com 16 anos, e que o mesmo padecia de vários problemas de saúde, mais concretamente os acima melhor descritos, os quais afetavam as suas capacidades cognitivas e de expressão.
12. Sabia ainda que ao estar com muito frequência no CAT e dia-a-dia com I, dando-lhe atenção, se tinha estabelecido entre ambos uma relação baseada na confiança, cuidado, influência e ascendente que o arguido tinha sobre I, potenciada pelas manifestas debilidades cognitivas e de comunicação de I, que o via, assim, também como seu cuidador e responsável.
13. O arguido atuou sempre das formas supra descritas, visando a sua satisfação sexual e ímpetos libidinosos, bem sabendo que, ao agir das formas acima descritas, atentava contra a autodeterminação e o normal desenvolvimento sexual de I, obrigando-o a praticar e a tolerar atos de natureza sexual, consciente da sua idade.
14. O arguido atuou, em cada uma das vezes acima descritas, bem sabendo e querendo aproveitar-se da relação de proximidade e de afeto estabelecida e das descritas limitações, também de comunicação, de I, que muito provavelmente não iria relatar a terceiros os atos sexuais que tinham sido contra este praticados ou, pelo menos, de forma percetível, e assim fez-se valer do ascendente e poder que tinha sobre este e das suas fragilidades.
15. Mesmo consciente do supra referido e de que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, o arguido atuou sempre, nas vezes e episódios acima descritos, de forma livre, voluntária, consciente e com o intuito concretizado de se satisfazer sexualmente, bem sabendo que estava a perturbar o normal desenvolvimento sexual de pessoa menor, com 16 anos de idade. O que fez ainda abusando da especial proximidade e confiança que o mesmo em si depositava, em virtude das funções que desempenhava no CAT e do facto de I se encontrar aí institucionalizado.
16. O arguido, em todas as ocasiões acima referidas, agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua atuação era proibida e punida por lei penal. O que quis, fez e conseguiu.
17. Corre termos no Juízo Local Cível de Abrantes o processo nº 246/23.3T8ABT, autos de maior acompanhado, em que I figura como requerido, ainda sem decisão final conhecida neste processo, mas no qual, por douto despacho de 17.07.2023, foi determinado o seu acompanhamento provisório (cfr. expediente de 10.08.2023).
18. Quando relatou os factos à funcionária E, I evidenciou tristeza e vergonha.
19. O anterior Presidente da Direção da Instituição foi substituído em outubro de 2019 pelo Padre António Martins Castanheira.
20. A Diretora nomeada pelo anterior presidente da direção cessou funções em outubro de 2022 e a anterior cessara funções em 2013.
21. O arguido tem 36 anos de trabalho com e em benefício de jovens.
22. O arguido tinha uma relação mais próxima com o I e o L.
23. De entre os utentes eram os mais necessitados de carinho e atenção, não tendo direito a computador, como os demais, quando se iniciou a pandemia, estando por isso mais disponíveis, um pelos problemas de saúde e o outro pela maior dificuldade de aprendizagem.
24. O arguido ajudou o L a ter a sua horta.
25. Foi o arguido quem ensinou os utentes a cortar a barba e ajudava o I.
26. O arguido foi afastado da instituição em agosto de 2022 e alguns jovens perguntaram por ele.
27. Havia uma regra na instituição segundo a qual as portas dos quartos deveriam estar sempre abertas.
28. No certificado de registo criminal do arguido nada consta.
29. À data dos factos, bem como no presente, J vive com a mãe, octogenária, numa habitação térrea arrendada, sendo a renda mensal de € 100,00.
30. O arguido é técnico de administração tributário adjunto na AT – Serviço de Finanças de Abrantes e aufere o vencimento de 1700€ líquidos mensais.
31. Aquando da data dos factos, e paralelamente à função laboral que executa em regime de teletrabalho, desde a situação pandémica da COVID19, J estruturava o quotidiano em torno de inúmeras atividades de promoção e dinamização associativa local, instituições e voluntariado, que incluía o Centro de Acolhimento Temporário de Crianças e Jovens em Risco (Casa Clotilde – CAT).
32. Natural de S. Miguel do Rio Torto - Abrantes, a socialização do arguido decorreu no seio da família de origem, num quadro socioeconómico modesto. O pai, perecido no mês de junho de 2020, era metalúrgico e a mãe empregada doméstica. É o mais novo de dois irmãos, tendo a dinâmica intrafamiliar sido caracterizada pela coesão, assente em princípios e valores normativos.
33. Face ao contexto jurídico-penal a que está adstrito, a irmã integra de forma provisória o agregado sobretudo para apoio à progenitora enferma com vários problemas de saúde, alguns incapacitantes. O progenitor também padeceu de diversas doenças.
34. J terá sempre cuidado dos pais, residindo praticamente ao longo da vida no domicílio dos mesmos.
35. No plano académico e profissional, habilitou-se com o 12º ano de escolaridade na vertente de informática, apesar da frequência depois, durante seis anos, no curso superior de informática de gestão, no Instituto Politécnico de Tomar, que não concluiu.
36. Ainda assim, dos 19 aos 29 anos de idade, chegou a dar aulas como professor contratado na área referida, numa escola secundária de Abrantes.
37. Posteriormente, o arguido foi monitor de campos de férias até à sua admissão efetiva na administração pública em 1999, onde permanece na atualidade.
38. Entre 1998 e 2014, esteve igualmente ligado a uma empresa de animação turística e eventos outdoor em diversos pontos do país (…..). No ano de 2020, foi cofundador do Grupo 280, da Associação de Escuteiros de Portugal.
39. A ocupação de escutista e outras surgiram na juventude e prevaleceram rotineiramente na idade adulta (dirigente sindical, clubes desportivos, estruturas de acolhimento de crianças e jovens, etc). Por conta de tudo isso, nunca estabeleceu qualquer relação amorosa considerada significativa.
40. A eclosão do caso provocou impacto negativo no meio vicinal, que de si detinha uma imagem favorável, mormente associada ao seu trabalho de voluntário, pelo que atribuíram a J diferentes tipos de competências. Descreveram-no como uma pessoa empática, prestativo e empreendedor, estando de certo modo incrédulos e perplexos com a situação.
41. No cumprimento da medida de coação de obrigação de permanência na habitação fiscalizada por vigilância eletrónica, tem evidenciado uma atitude compatível com os deveres e pressupostos intrínsecos, desprovida de motivos para reparo.
42. J denota capacidade crítica face a comportamentos idênticos aos deduzidos na acusação e reconhece a gravidade dos mesmos, como o dano provocado a eventuais vítimas/ofendidos no abstrato. Todavia, com um discurso tendencialmente de recusa, não se revê na totalidade das ocorrências que lhe são imputadas, manifestando alguma apreensão quanto ao desfecho do processo e das consequências que daí possam advir.
Factos não provados:
De entre os factos alegados (nas doutas acusação e contestação e no douto pedido de indemnização civil), não se provaram os factos acima não descritos e os factos contrários aos factos que se deram como provados, ou por este prejudicados sendo certo que o Tribunal se debruçou especificadamente sobre cada um deles e tendo presente que o Tribunal não se pronuncia sobre matéria conclusiva, juízos de valor e alegações que consubstanciam a exteriorização de estados de alma.
Designadamente, não se provou que:
1. Em data não concretamente apurada, mas entre finais do ano de 2019 e inícios do ano de 2020, o arguido abraçou I, dentro da casa de banho da zona dos quartos, com a porta fechada, mas não trancada, sendo que, quando confrontados com a presença de C, largaram-se e tentaram disfarçar o facto de estarem abraçados. (artigo 7º da douta acusação)
2. Entre 09-01-2015 e setembro de 2021 e, pelo menos, por duas vezes, em dias não concretamente apurados, no interior do CAT, I acariciou o pénis de J, “P”, por baixo da sua roupa, tendo agarrado e rodeado com a(s) sua(s) mão(s) o pénis do arguido, friccionando-o e feito vários movimentos ritmados para cima e para baixo, para a frente e para trás. (artigo 9º da douta acusação)
3. Também em datas não concretamente apuradas, mas entre 09-01-2015 e até finais de setembro de 2021, o arguido, pelo menos, por duas vezes, apalpou as nádegas de I e introduziu os seus dedos e o seu pénis ereto no ânus de I, e friccionou-o no seu interior, fazendo vários movimentos ritmados com a sua anca para a frente e para trás, o que causou dor em I (artigo 10º da douta acusação).
4. Os problemas de saúde de I impediam-no de perceber o alcance das suas decisões e de se opor cabalmente aos avanços de natureza sexual do arguido. (parte do artigo 13º da douta acusação).
5. O I não tinha capacidade intelectual para perceber o alcance dos atos sexuais que praticou e de que foi objeto e muito menos de consentir, de forma esclarecida e consciente, nos mesmos, não se encontrando, assim, capaz de recusar os atos sexuais praticados, opondo-se e impedindo os mesmos, de forma eficaz. (parte do artigo 15º da douta acusação).
6. I era incapaz, pelas suas limitações cognitivas, de entender o alcance de tais atos (carícias, toques, masturbação) e de os recusar e de se opor de forma eficaz aos mesmos, impedindo a sua concretização (parte do artigo 17º da douta acusação).
7. I sentiu dores aquando da introdução do pénis ereto e dos dedos do arguido no seu ânus.
8. O Psicólogo da instituição não soube nem se apercebeu de nada de anormal no funcionamento da mesma, nem nas relações entre utentes e demais pessoas que faziam parte da instituição.
9. Nenhuma das funcionárias relatou a quem quer que fosse qualquer situação a banir.
10. O I e as demais crianças massacradas pela vida ou pela doença têm uma noção distorcida dos comportamentos, sem verdade e sem preocupação de não causar mal ao outro.
11. De março de 2021 até setembro de 2021 as visitas e o arguido não passavam além da marquise.
12. A partir de setembro de 2021 e até ser impedido de frequentar a instituição, o arguido teve que usar máscara e não podia ir além da sala.
13. O I sempre revelou um “delírio sexual”.
14. Chegado da escola, relatava que fizera com o L o que agora diz ter feito com o arguido.
15. Chegado no táxi, no qual saíra com outros utentes – e no qual fazia questão de viajar ao lado do condutor – dizia que fizera o mesmo com o colega que tinha viajado com ele, o qual viajara no banco de trás.
Motivação:
A convicção do Tribunal Coletivo para considerar provados e não provados os factos acima descritos teve por base a análise crítica e conjugada dos seguintes elementos probatórios:
I - O arguido dispôs-se a prestar declarações.
Explicou quando é que foi trabalhar para o centro de acolhimento temporário de crianças e jovens, identificado a pessoa que era a diretora e as funções que ele exerceu na instituição e que se prendem com o exercício de voluntariado
Confirmou assim ter iniciado o voluntariado na instituição no verão de 2008 até agosto de 2022.
Relatou que em regra comparecia na instituição às segundas-feiras por volta das 19:00 e que aí ficava até às 22:00.
Quanto aos factos de que vem acusado, negou-os perentoriamente, declarando que não entende a origem da denúncia.
O arguido apenas abraçava os jovens e retribuía abraços que destes recebia. No que diz respeito ao I, apenas por vezes esfregava a mão na sua barriga como se faz aos bebés, quando este na sala dizia que doía a barriga
Explicou ainda que, depois da pandemia, quando regressou à instituição, não mais lá jantou. Não mais foi aos quartos desejar boa noite aos utentes e que manteve uma maior proximidade com o I e o L uma vez que eram os únicos jovens que não tinham computador atribuído.
Prestou ainda declarações sobre a sua situação pessoal, familiar, social e económica.
II - Ouvido para memória futura (transcrição a fls. 753 a 798, estando o depoimento gravado não só em áudio também em vídeo, sendo que este último permite descortinar respostas através de gestos), I, ainda que com manifesta dificuldade em expressar-se verbalmente, descreveu, da forma que lhe era possível em termos de linguagem oral e gestual, os atos praticados pelo arguido, em moldes que mereceram credibilidade e isenção.
Perguntado sobre o que o “P” lhe teria feito, efetuou gestos de masturbação. Feitos na “sua casa” (ou seja, a instituição, já que se tratava de menor institucionalizado). Perguntado se o arguido lhe fez isso ao depoente ou a si, apontou para a sua pessoa. Perguntado onde foi, diz que foi na sala.
Com as mãos, respondeu que tal aconteceu 10 vezes.
É certo que, mais adiante, parece resultar do seu depoimento que, ele depoente, também teria “feito o mesmo” ao arguido, mas parece haver aqui alguma imprecisão. O I responde que sim, mas depois limita-se a dizer “P”, “P”, o que tornou o seu discurso aqui confuso.
Menciona depois o “rabo”, apontando para a mão quando lhe perguntam o que o “P” lá pôs, responde que sim quando perguntado se também pôs a pila e responde que sim quando perguntado se doeu. Aponta com as mãos 10 vezes.
III – Ponderaram-se os depoimentos das seguintes testemunhas:
C é utente na instituição há 5 anos.
Relatou uma situação em que terá visto o arguido e o I no quarto do depoente, em pé, encostados ao armário. Estavam de frente um para o outro e um deles estava de costas para a porta, mas não recorda qual. Viu então o arguido com a mão nas partes íntimas do I, esclarecendo depois que se tratava do pénis do I.
No quarto em questão dormiam o depoente, o L e o D.
O quarto tinha duas portas juntas, estando uma aberta e a outra fechada.
Quando o arguido se apercebeu da presença do depoente, ficou vermelho, começou a disfarçar e a meter conversa e foi-se embora.
Ainda reparou que o J apertou o cinto e ajeitou as calças.
Perguntados sobre se o J tinha o pénis ereto, disse que sim por ter visto um alto.
O depoente contou o que viu à C.
A situação descrita terá acontecido na altura do covid, no verão, não recordando bem o dia ou o mês mas crendo ter sido entre julho e agosto de 2020.
Foi ao final do dia, depois do jantar, cerca das oito, oito e meia, altura em que o depoente ia dar uma volta.
Viu ainda o arguido e o I juntos no sofá com almofadas por cima das pernas, na sala de jantar, mas não se apercebeu do que estaria a acontecer.
Nessa circunstância não estava lá mais ninguém na sala. Este episódio terá acontecido no verão à tarde no mesmo ano do episódio do quarto, e antes de jantar
Contou que o arguido estava na instituição às segundas-feiras entre as 17, 18 horas e até às 21:30, 22:00, jantava com os utentes e que depois ia aos quartos dar um beijo na cara ou na testa, falar com eles ou tapá-los.
Depois do covid continuou a lá ir mas menos vezes e já não jantava com eles.
Relatou que chegou a confrontar o I, que se encontrava muito nervoso e que fazia gestos para as partes íntimas.
M esteve institucionalizada no local dos factos desde dezembro de 2015 até janeiro de 2022.
Sabe que o I e o “P” tinham uma grande relação e que era normal o I ou o L estarem sentados ao colo do arguido.
Explicou que o arguido era um voluntário e que ela nunca foi muito ligada a ele.
Antes da covid, o “P” ia à segunda-feira, jantava e passava nos quartos só dos rapazes a despedir-se. Por vezes ficava até à meia-noite para troca dos turnos e ia para a sala esperar.
Era normal o “P” entrar nos quartos e sentar-se nas camas dos meninos.
Não sabe como a situação foi despoletada. Ouviu uma chamada da C para a Dra. Inês mas não percebeu qual era o tema.
Explicou que, na instituição, eram doze utentes, 4 raparigas e 8 rapazes.
Relatou ainda que o I e o L jogavam playstation durante a covid e depois da covid.
E é funcionária na instituição desde 2002 e conhece o arguido como voluntário.
Não assistiu a nada, só sabendo o que o I, o C e a R lhe contaram no verão de 2021. O I estava a chorar, de cabeça para baixo, e falaram.
O I terá feito os gestos e a depoente ligou à diretora técnica. Esta gritou com o I porque não acreditava e dizia que o I queria prejudicar o “P”.
A depoente não encontrou diferenças no I anteriormente.
Chegou a ver alguns rapazes ao colo do arguido, designadamente o L, o I e o A.
O arguido fazia cócegas quando estavam no sofá da sala, estando mais miúdos por perto.
Relatou o horário do arguido, que este jantava e que tinha acesso aos quartos, indo despedir-se de cada um, fazendo-o também nos quartos das raparigas.
Não sabe por que razão o arguido deixou de ir à instituição.
Ainda assim, quando soube da situação do I passou a “andar em cima do “P” mas nada viu.
No dia a seguir, a diretora não falou do assunto com ninguém.
D é utente da instituição há cerca de 2, 3 anos.
O que sabe foi-lhe contado pelo I, talvez no verão passado, não sabendo bem as datas.
Reparou então que o I estava mais em baixo e foi falar com ele.
O depoente dormia no quarto ao lado do quarto do I e não sabe se o “P” ia aos quartos despedir-se, uma vez que chegava tarde do treino de futebol.
Chegou a ver o “P” e o I sentados lado a lado no sofá.
O “P” também se sentava com L.
Quando o arguido cumprimentava o depoente com um “passou bem”, este agarrava a sua mão em moldes que não se sentia confortável.
Nunca viu ou ouviu o I relatar o sucedido a outras pessoas, designadamente na escola ou na carrinha.
F é utente na instituição desde os seus 7 anos de idade, contando presentemente com 19 anos.
Sabe apenas que o arguido era voluntário, que lá ia à segunda-feira e qual o seu horário, aproximadamente desde às 19:00 até às 21:00 ou 22:00 horas.
Chegou a ver o I sentado ao colo do “P” ou o L sentado ao colo do “P”, estando outras crianças ao lado.
O arguido subia aos quartos para os despedir dos utentes.
Só soube dos factos quando se falou numa reunião.
Antes disso não se apercebeu de qualquer comportamento diferente do I.
D é utente da instituição desde 2015.
Conhece o “P”, que lá ia à segunda-feira e que era mais chegado ao I e ao L.
Por vezes via os três sentados no sofá e sentia-se incomodado por isso.
Também a forma de cumprimentar, que era usada pelo arguido incomodava o depoente, uma vez que o “passou bem” demorava mais tempo do que o usual.
Quando o I estava ao colo do “P” brincavam e o arguido fazia-lhe cócegas.
Sensivelmente uma hora e meia mais cedo do que os demais utentes, o I ia deitar-se e o “P” ia sempre ter com ele despedir-se, o que fazia durante 45 minutos.
Na maioria das vezes em que os demais utentes iam dormir, o “P” já não estava lá.
V está na instituição há 11 anos.
Conhece o arguido da instituição, estando zangada com ele por causa do sucedido com o I.
Declarou que, na sala da instituição, viu o arguido com o L ou o I ao colo e que viu apalpões, mais no caso do L.
Explicou que o arguido apalpava o I nas partes íntimas, mais exatamente no pénis, e que o I gostava.
Por vezes isso acontecia com o I ao colo do arguido, outras vezes como o I sentado ao seu lado.
Falaram com a Dra. Filipa que disse que era tudo uma invenção.
Na primeira vez que viu o arguido a apalpar o I, a depoente encontrava-se na sala, no sofá, com a R e a C.
Declarou ter assistido a cenas idênticas mais do que uma vez, não recordando quantas.
Crê que os episódios aconteceram antes da covid, não recordando muito bem quando porque, depois da covid, o arguido raramente lá ia e havia distância.
Quando iam dormir, o arguido ia cumprimentar os utentes, mas estava meia hora ou 1 hora com o L ou o I quando estes iam mais cedo.
O arguido era voluntário na instituição.
Não tem dúvidas de que, no sofá onde se encontrava, conseguia ver que sucedia no sofá onde estava o arguido e o I.
Não tem dúvidas de que o arguido acariciava o pénis do I por cima das calças.
Quando o arguido se apercebia de que a depoente e os seus colegas estavam a olhar, tirava a mão.
Depois de ter contado à F, esta contou à I.
Elas protegem-se uma outra.
R foi utente na instituição desde 2015 até 2023 e era colega de turma do I.
Em regra tinha treinos às segundas-feiras
A única coisa que viu foram brincadeiras, cócegas que o J fazia ao I ou L, ou na sala (mais exatamente no sofá, sentados ao colo do arguido ou ao lado) ou nos quartos.
Ainda assim nada viu de concreto nos quartos apenas os vendo aos três a dirigirem-se para os quartos.
Relatou que o I começou por tentar conversar sobre o assunto através de gestos.
Os comportamentos do I apenas se alteraram quando começou a expressar-se.
Todavia, o I não se terá expressado com o depoente.
B é utente da instituição desde mais ou menos há 2 anos e conhece mal o arguido
Apenas ouviu o I a queixar-se do J, mas nada viu.
O “P” ia à instituição ao final do dia, ficando até a hora de jantar.
D encontra-se na instituição há 6 anos e declarou estar mais ou menos zangada com o arguido.
Uma vez, na sala, o “P” e o I estavam sentados no sofá à sua frente e o “P” tocava o I na perna junto à virilha.
A depoente encontrava-se com a L e a C.
Este facto terá acontecido antes da pandemia.
Viu situações idênticas num total de 4/5 vezes, antes da pandemia.
Pormenorizou depois que o arguido tocava na zona da pilinha do I, sempre quando a depoente estava acompanhada pela L e pela C e que os toques eram feitos por cima da roupa.
Quando isso sucedia, a depoente e as suas amigas já lá estavam.
O I chegava com o arguido ou às vezes também já lá estava.
Pensa que o “P” nunca se apercebeu de que era visto.
O “P” costumava ir aos quartos de todos mas não se lembra se ia ao seu quarto.
Uma vez apanhou o “P” no quarto do I com a porta fechada.
Viu-os a sair e abrir a porta.
Este facto terá acontecido antes da pandemia e antes do jantar.
António Martins Castanheira, sacerdote católico, é o presidente da instituição desde 15 de outubro de 2019.
Conhece o arguido por ter feito trabalhos informais de voluntariado.
Soube dos factos pelo processo disciplinar que foi movido à ainda diretora do CAT, a Dra. Inês Graça.
Esta rescindiu o contrato em setembro e, quando gozou as férias de que tinha direito, o depoente reuniu com os utentes e os funcionários para dizer que iriam assegurar os trabalhos durante as férias daquela.
Foi nessa reunião com os utentes falaram de maus-tratos e o depoente intentou o processo disciplinar à funcionária e à diretora que se encontrava de saída.
Quando viu depois a nota de culpa é que a situação se despoletou com a hipótese de terem existido abusos sexuais do arguido ao I.
Fez depois queixa no Ministério Público e conversou com a direção.
Nunca falou com o I.
Aquando da covid, tinha acertado com a Dr. Inês em encerrar todo o voluntariado.
Quando viu que o arguido tinha regressado depois, o depoente disse que tal deveria acabar pois não tinha decidido voltar com o voluntariado.
O depoente disse então à Dr. Inês para dizer ao J para não voltar.
Esse facto sucedeu porque se sentiu desautorizado e não por causa da gravidade dos factos.
L foi utente na instituição desde os seus 7 anos de idade até dezembro de 2022 e tem neste momento 15 anos de idade.
Uma vez o depoente e o C estavam para ir ao quarto.
Nesse quarto dormiam o C, o depoente e outro menino que pensa não ser o I.
Quando chegaram a porta estava encostada.
O C entrou primeiro no quarto.
O depoente entrou logo a seguir ao C e viu o I a puxar as calças para cima atrapalhado.
O “P” encontrava-se junto do I.
Não reparou se algum deles tinha o pénis ereto.
Eles saíram os dois.
Esta situação foi antes da pandemia, talvez no ano de 2019, era mais ou menos inverno e foi entre as 17:00 e as 19:00
Antes desta situação assistiu a um episódio na sala, estando o depoente, a C e o C no sofá.
Num outro sofá para o qual não há muita visão estavam o I e o “P” e viu o “P” a mexer no pénis do I.
Ambos tinham a roupa vestida.
Pensa que o “P” se apercebeu e parou.
O I levantou-se e foi para o quarto sozinho.
Viu duas vezes uma situação na sala como a relatada
Depois falaram com o I, que confirmou nervoso.
O I depois desmentiu quando foi ameaçado pela Inês de que lhe seriam retirados os óculos e o relógio.
Depois da situação do quarto, o depoente, o C e a C foram falar com a diretora Inês Graça que os pôs de castigo.
C esteve na instituição desde os sete até aos dezoito anos, tendo saído há dez meses.
Contou ter visto uma primeira situação, na sala, onde estavam todos os meninos.
O L perguntou pelo “P” e a depoente não sabia dele.
Foi então à casa de banho em passo sorrateiro e viu o “P” a mexer no pénis do I.
Ambos tinham a roupa vestida.
O “P” e o I encontravam-se num quarto.
Esta situação aconteceu depois de jantar e crê que durante a pandemia sem ter a certeza.
Eles aperceberam-se de que tinham sido vistos.
O “P” disfarçou, abraçou o I e bateu-lhe nas costas.
Crê que foi nesse dia que o C e o L os viram no quarto.
A C contou à Inês, que ralhou muito e fez ameaças e o I depois desmentiu.
Contou que, que no sofá da sala, encontrava-se com o L e o C.
A dada altura olhou e viu o “P” a massajar o pénis do I noutro sofá.
A depoente, a R e a L foram dizer à F que o “P” estava a mexer no I.
Recorda-se também de o I ter feito gestos e dizer que lhe doía o rabo.
Uma vez ao jantar o I não se conseguia sentar e dizia que lhe doía o rabo e dizia “P foi rabo”.
Não era a primeira vez que ele se queixava.
Na situação do sofá o “P” apercebeu-se de que tinha sido visto.
Pensa que todas as situações que presenciou foram durante a pandemia quando algumas pessoas começaram a voltar à instituição.
D é amigo do arguido há cerca de 20 anos.
É presidente de uma associação que presta assistência a vítimas de queimaduras.
O arguido animou os campos de férias das crianças.
Os encontros foram muitos, sempre durante uma semana, com o arguido a colaborar e sem que alguma suspeita tenha existido.
O arguido sempre foi exemplar e correto, solidário.
M é amigo do arguido há cerca de 25 anos.
Teve atividades com os escuteiros e foi aí que conheceu o arguido, que descreveu como um exemplo, um motivador que cria adesão, uma pessoa de confiança que é um modelo para as crianças e os jovens.
P é amigo do arguido há 22 anos.
Participaram juntos em várias atividades com pessoas queimadas.
Descreveu o arguido como altruísta, adorado pelos jovens.
O arguido foi “voluntário do ano” e frequentou a sua casa.
P é amigo do arguido há cerca de 30 anos.
Lidou com o depoente quando este era jovem, no ensino secundário e fizeram juntos atividades de ar livre, montanhismo e campos de férias com pessoas queimadas.
O arguido incutiu-lhe bons princípios e é pessoa de bem, a quem já confiou a sua filha de sete anos para atividades.
R é amigo do arguido desde 2000.
Participou com ele em atividades de férias de campo no âmbito do escutismo e respeita o seu trabalho com crianças e jovens.
A é amigo do arguido desde 2002, quando tinha 5 anos de idade foi para os escuteiros e o arguido foi seu chefe.
Participou ainda em atividades com os utentes do CAT.
Aquando do convívio do arguido com crianças nunca sentiu ou presenciou comportamentos ofensivos.
S é amiga do arguido há 18 anos, tendo-o conhecido num corpo de escutas.
Juntos fizeram voluntariado e, no ano de 2020, criaram um grupo de escuteiros.
Sempre viu uma boa relação do arguido com todos os jovens.
Os jovens sentem a falta do “P” porque é muito presente e acarinhado por todos.
A é amiga do arguido há mais de 30 anos e foi dirigente dos escoteiros com ele até ao momento.
Também acompanhou jovens que iam ao CAT fazer atividades, mas não se recorda concretamente do I.
O J sempre ajudou os jovens a estar e a ser íntegros.
Nunca viu os jovens ou os pais desagrados com ele.
Mesmo depois da saída do arguido, os jovens têm comentários positivos a seu respeito.
G é amiga do arguido há mais de 40 anos.
Tem um filho de 11 anos de idade que frequentou o último agrupamento onde o “P” foi chefe.
E o seu filho gostava do “P”, tal como os outros jovens.
Nunca ninguém apontou ao “P” o que quer que fosse.
L, de 18 anos de idade, foi utente no CAT desde os 9 anos até momento depois da pandemia que não conseguiu concretizar.
E do CAT que conhece o “P”.
Só soube dos factos quando um dia chegou à instituição e estavam lá a falar.
Referiu que o arguido e o “P” iam os dois para o quarto e ele ficava na sala.
Na sala chegou a ver “P” e o I sentados lado a lado, estando colegas nos sofás.
Costumavam acampar e o I andava sempre atrás do “P” a perguntar quando iam acabar novamente.
À noite o “P” ia aos quartos de cada um.
Uma vez saiu do banho e apercebeu-se de que os dois estavam no quarto com a porta fechada.
Em regra, as portas do quarto estava sempre abertas
No mais, nada viu entre eles.
O C é que terá visto e houve depois uma reunião entre os jovens e o padre e o padre contou o que teria acontecido.
Essa reunião foi sem a diretora, que já tinha saído.
Declarou que não estava com eles sentados do sofá, só lá indo às vezes falar.
Crê que o “P” ia à instituição todas as sextas-feiras à tarde.
Ouviu o I a dizer que o “P” lhe tinha mexido na pilinha.
O “P” ajudava o depoente a cuidar da horta.
S foi voluntária no CAR desde janeiro de 2012 até maio de 2016 e foi aí e conheceu o I.
Ficou em choque quando soube da acusação.
Em regra a depoente e o “P” iam à instituição em dias diferentes, só coincidindo nos dias de festa de algum aniversário.
A depoente saía do seu local de trabalho às 18:00 e ia à instituição, jantava, fazia depois companhia aos jovens, deitava-os e ia embora.
Deitavam-se mais cedo os mais pequeninos.
Acompanhava-os ao quarto como os pais fazem aos filhos.
O I era muito apelativo e queria estar sempre perto da depoente.
Não recorda de ter visto o I sentado ao colo de “P”, mas qualquer criança podia sentar-se ao colo de qualquer um dos voluntários.
As portas dos quartos estavam sempre abertas mesmo depois de os jovens se deitarem.
A é amigo do arguido desde a década de 80.
Tinha então um café em frente do qual o arguido passava com os escuteiros e dinamiza muito o grupo.
Foi colega do arguido num grupo de escuteiros.
O arguido era muito importante para os jovens porque tinha um dom natural e os jovens gostavam muito dele.
Quando acampavam o arguido nem dormia e estava sempre a vigiar, tendo detetado, no cimo de um morro, um grupo de motards que se aproximava.
Foi coordenador de uma escola que o I frequentava.
O I tinha necessidade de contacto físico, sempre agarrado aos adultos e ao colo da professora.
Era necessário empurrá-lo.
O arguido é bem visto na comunidade e ninguém acredita nos factos da acusação.
A, assistente social, foi voluntária no CAT desde 2015 até ao início de 2017.
No início, ia uma duas vezes por semana, tendo, meses depois, aumentado a frequência.
Chegada pelas 4:30 - 5:00 da tarde e aí ficava até às 11:00 da noite.
Encontrava-se lá com o arguido.
Ajudava a fazer os trabalhos de casa, jantavam e, depois do jantar, estava na sala a socializar antes de as crianças se irem deitar.
Era normal as crianças estarem ao colo dos voluntários
O I sempre pediu muita proximidade física.
Os mais velhos deitavam-se mais tarde.
O quarto do I tinha sempre a porta aberta.
Nunca viu o arguido fechado com crianças.
O arguido era uma referência para os jovens e, quando ele lá estava, as funcionárias não eram rígidas para os jovens.
A conhece o arguido há 30 anos e deslocou-se ao CAT durante 4 a 6 vezes, ao domingo à tarde, desde finais de 2018 até à pandemia.
O arguido dedicou a vida ao escutismo.
Referiu que o I, quando o cumprimentava, não desgrudava do seu corpo e sentia por isso desconforto.
F, auxiliar de ação direta, trabalhou no CAT desde 25 de junho de 2018 até 3 de janeiro em 2023 como auxiliar de ação educativa.
Foi aí que conheceu o arguido como voluntário.
Durante a pandemia, as visitas e a entrada de voluntários estiveram interrompidas desde março 2020 até março de 2021.
A partir de então, as visitas faziam-se na marquise com 2 metros de distância, sucedendo o mesmo ao contacto entre os voluntários e os jovens.
A partir de setembro de 2021, as visitas e os voluntários voltaram a entrar na casa.
O arguido passou então a estar na sala ou no refeitório, sempre com máscara.
Crê que as máscaras ficaram até ao final do ano de 2021.
Quando o arguido regressou, deixou de lá jantar e de subir aos quartos para se despedir dos jovens.
Quando o arguido chegava, ficava na sala à espera que jantassem e depois ficava com os utentes da sala.
Começou a sair mais cedo.
O arguido tinha uma relação mais próxima com o I e o L.
Antes da pandemia não havia tanto em interação com telemóveis e computadores.
Nunca viu crianças ao colo do arguido e nunca foi chamada a atenção para tal.
Recorda que, no dia 8 de novembro de 2022, a L lhe disse que contou ao padre o que teria acontecido entre o I e o “P”.
A depoente disse se ela tinha noção de que isso era grave e perguntou se tinha visto e se tinha pedido ajuda.
A L disse que contara as funcionárias
A L contou-lhe que estava na sala com a C, o C e o O e tinham visto apalpões na zona genital.
A depoente não confiava no psicólogo e a Inês já estava em fim de contrato.
Ligou então à Inês que a mandou indagar.
Falou com a R, a V e a A que disseram nada ter visto ou recebido queixas.
Posteriormente, a depoente foi suspensa.
Há um domingo em que a C liga à Inês a dizer que o I dissera que o “P” lhe tinha mexido na pilinha, mas a C nada viu.
Em regra, as portas dos quartos estavam sempre abertas.
O I era muito pegado às pessoas e tinha histórias em contexto sexual, por exemplo que o L o tinha masturbado no táxi e que o C lhe tinha mexido na pilinha.
Porém, no táxi, o L e o I não iam sentados lado a lado ou sequer próximos.
O I também costumava fingir que estava doente.
O “P” costumava fazer a barba do I.
O I não era capaz de guardar qualquer coisa que tivesse acontecido, pois contava logo.
O I sabe distinguir o bem do mal.
Depois da pandemia, o arguido nunca mais esteve sozinho na sala, havendo sempre um outro adulto lá ou no refeitório (que permitia avistar a sala).
M é amigo do arguido desde os seus 15, 16 anos de idade, contando presentemente 44 anos.
Chegou a ir ao CAT no natal, depois de realizar atividades de animação.
O arguido foi seu chefe de escuteiros e depois fizeram atividades em conjunto, fazendo o depoente animação das férias de campo.
O arguido tem com os miúdos uma relação exemplar.
Inês, assistente social, conhece o arguido desde o ano 2000, altura em que foram escuteiros no mesmo agrupamento.
Foi diretora técnica no CAT desde 2013 até 2022. Antes disso, entre 2011 e 2013, foi lá assistente social
O arguido foi lá voluntário até agosto de 2022
Aquando da covid, as entradas na instituição foram suspensas em março de 2020, tendo sido retomadas em março de 2021.
As regras para os voluntários eram iguais às regras das visitas.
Assim, desde março a setembro de 2021, as visitas faziam-se com a distância física e na marquise.
A partir de setembro de 2021, o “P” voltou a ter acesso à casa como antes.
Antes da covid, o arguido tinha acesso a todos os pontos da casa, uma vez que se pretendia aproximar o CAT o mais possível das casas de família, com voluntários como figuras de referência.
No primeiro, a 26 de setembro de 2021, encontrava-se com a F a jantar num restaurante.
A C ligou-lhe a contar que o I tinha ido ter consigo, quando estendia roupa, e lhe contou que o “P” lhe tinha mexido na pilinha, fazendo gestos de masturbação, o que teria acontecido na sala onde estariam o L, o C e a C.
A depoente disse à C para pedir ao “P” para sair e ela disse que não era capaz de o fazer.
Pediu-lhe então para se deslocar para a sala.
Em novembro de 2022, depois de ter apresentado a carta de demissão, a F ligou-lhe a dizer que havia reuniões e que a L dissera que estavam a contar ao padre que o “P” abusara do I.
Pediu então à F para ir indagar junto de outras funcionárias.
No dia seguinte é que falou com o I, o L, o C e a C.
O I manteve a sua versão e os demais jovens disseram que nada viram.
Concluiu assim que não tinha elementos para fazer denúncia.
Aliás os relatos do I acerca de masturbação feita por outros miúdos eram frequentes em 2021.
Supostamente tudo se passaria na sala e nada mais lhe foi relatado.
Em regra, o “P” ia à instituição à segunda-feira, mas podia por lá passar no outro dia ou para ir ao futebol ou para levar coisas dos escuteiros.
Um ano depois do confinamento, o “P” pediu-lhe para voltar e decidiram retomar o voluntariado.
Foi a depoente que aceitou o regresso do “P”.
O horário da depoente era de segunda a sexta-feira entre as 10:00 e as 18:30.
Nunca confrontou o “P” com o teor das denúncias e, depois do telefonema de 26 de setembro, não castigou ninguém, designadamente o I.
A, professora, conhece o arguido desde a década de 80, em que foram colegas de uma escola,
Foi professora do I em 2021/2022 numa turma de turismo do 10º ano, o que a surpreendeu porque o I mal fala e não sabe escrever.
Já conhecia o I há alguns anos.
Disseram-lhe que o I era de beijos e de abraços.
O I é muito físico, dando constantemente beijos e abraços à depoente na escola e esta teve que o contrariar.
O I era muito influenciável e fazia e dizia o que lhe mandavam.
O arguido sempre foi muito participativo em atividades com miúdos.
P conhece o arguido há 10, 11 anos e são amigos, tendo trabalhado juntos em projetos, alguns deles com os jovens do CAT.
O “P” sempre foi muito profissional e respeitador.
No essencial, os depoimentos foram prestados com isenção, lógica, serenidade e credibilidade.
Excetuam-se os depoimentos de F e de Inês Graça, que não mereceram credibilidade, como infra se desenvolverá.
IV- Analisaram-se os seguintes documentos:
- Denúncia - fls. 20;
- Informação do CAT - fls. 21 - do Padre denunciante;
- Assento de nascimento de J - fls.252 a 253;
- Assento de nascimento de I - fls. 250 a 251;
- Certidão extraída do processo de promoção e proteção nº 968/10.9TBABT – fls. 262 a 285 e fls.307 a 392;
- Publicações MedioTejo, da internet - fls. 408 a 415 – o arguido e o seu projeto “férias de campo”, “Prémio Carreira”;
- Publicações do Facebook - fls.416 a 418 - idem;
- Informação clínica - fls.499 e fls. 512 – diagnóstico médico do I;
- Informação sobre o processo nº 246/23.3T8ABT, autos de maior acompanhado - expediente de 10-08-2023.
V - Tiveram-se em atenção os relatórios periciais:
1. Perícia de avaliação de dano corporal - fls.487 a 489 – na pessoa de I.
É a seguinte a conclusão a que chegou o Exmo. Perito no relatório datado de 20-12-2022:
«Não foram encontradas lesões traumáticas ou seus vestígios a nível da região anal, importando assinalar que a ausência de elementos objetivos que permitam afirmar ou infirmar que tenham sido exercidas práticas sexuais sobre o examinando não significa que o abuso sexual não possa ter ocorrido, uma vez que num número expressivo destas situações não resultam evidências físicas».
2. Perícia médico legal a I - fls.633 a 649, de psicologia e psiquiatria.
Neste particular, destacam-se os seguintes excertos das conclusões da psicologia:
«O examinando é uma pessoa convencional com um campo de interesse limitado, que revela grandes necessidades de apoio e atenção associadas a uma carência afetiva significativa. Neste sentido, e devido à existência de características mais dependentes, submete-se muitas vezes aos outros, procura fazer coisas que os possa agradar, nem que para isso tenha de camuflar as suas próprias necessidades e sentimentos.
(...)
No que diz respeito aos factos relatados verificou-se a existência de suficiente coerência nas informações prestadas, ainda que não estejam organizadas em descrições elaboradas, com recurso a expressões típicas do seu pensamento concreto, circunstanciado na sua forma concreta de pensar.
O jovem consegue contextualizar o alegado abuso e violação referir o local e as circunstâncias é que o mesmo terá acontecido bem como dá alguns detalhes específicos.
(...)
Apesar da sugestionabilidade ser uma característica comum aos quadros de dificuldades cognitivas, o jovem mostra-se resistente a tentativa de sugestionamento por parte do perito. Face a um evento neutro, mostra-se incapaz de reproduzir espontaneamente e em discurso livre uma história que é narrada, sendo que as suas dificuldades principais se relacionam com o discurso verbal e com a sua organização, e não incidem particularmente na memória. Foi ainda utilizada uma linguagem adequada ao seu desenvolvimento cognitivo e afetivo, o que diminui a probabilidade de estarmos para a tua situação de sugestionamento por parte do terceiros. Por outro lado, não apurámos a existência de benefícios secundários, nem de elementos que possam ser interpretados como fatores de simulação ou de dissimulação nem outra motivação para a denúncia que não a reparação do dano».
E salientam-se as seguintes conclusões da psiquiatria:
«Apesar das limitações cognitivas, com repercussão no pensamento, linguagem e comportamento, o seu relato mostrou-se suficientemente coerente, credível, demonstrando saber que o que a outra pessoa lhe fez não é correto. Com uma linguagem adaptada, essencialmente concreta e pragmática, evitando o recurso a conceções teóricas, está capaz de prestar declarações em tribunal».
3. Perícia médico legal a J - fls.727 a 743 – de psicologia e psiquiatria, onde se lê, além do mais, o que se transcreve:
«Da análise dos resultados do EPI, podemos observar que a escala L (Mentira) se encontra acima da média esperada, remetendo para alguma tendência para distorcer a verdade nas suas respostas ao questionário. O sujeito pode ser caracterizado no quadrante de extrovertido estável. Ou seja, as respostas dadas são compatíveis com o perfil de uma pessoa sociável, que atua segundo o estímulo do momento, que prefere o movimento e as realizações. Para além disso, remete-se para uma pessoa com um limiar de ativação mediano e com capacidade de inibir ou controlar as suas reações emocionais, com tendência para atingir elevados níveis de ansiedade apenas perante situações de maior stress. No entanto, as respostas do examinando estão significativamente abaixo da média esperada na dimensão neuroticismo/estabilidade indiciando uma tendência para minimizar as suas reações ao stress.
Da análise dos resultados do MCMI-III, nas escalas de validade, o examinando apresenta elevada desejabilidade social, ou seja, tendência a apresentar-se de forma favorável, como moralmente íntegro, preocupado em esconder dificuldades psicológicas e interpessoais.
Relativamente às escalas que avaliam a personalidade, mostra características de um perfil compulsivo. Remete-se para alguém organizado, que planeia o futuro, consciencioso, preciso e pontual, eficiente, industrioso e persistente. As pessoas com este tipo de perfil perante figuras de autoridade, comportam-se de forma respeitadora e elogiosa, contudo perante subordinados, podem tornar-se excessivamente perfeccionistas e exigentes. Estes indivíduos acreditam na disciplina e praticam o autocontrole, sobretudo sobre as suas emoções, o que os deixa algo formais e convencionais no trato, fechados e pouco espontâneos. A elevação na escala da compulsão, também pode ser atingida por sujeitos que, não sendo organizados e rigorosos, estão interessados em passar uma boa imagem de si próprios, ou são psicologicamente defensivos».
VI - A situação pessoal, familiar, económica e social do arguido resultou da análise do relatório social junto em 01-10-2023, conjugado com as declarações que o mesmo prestou e com os depoimentos das testemunhas que conhecem o seu modo de vida e a sua inserção social.
VII - A ausência de antecedentes criminais do arguido emerge da leitura do seu certificado de registo criminal, datado de 25-09-2023.
Tudo conjugado, o Tribunal não teve dúvidas em dar os factos como provados nos moldes em que fez, designadamente na conjugação das declarações para memória futura prestadas pelo ofendido com os depoimentos dos jovens que assistiram a alguns episódios, com o depoimento da funcionária C e com os relatórios periciais.
Na verdade, analisadas as ditas declarações de I, o mesmo, apesar das suas evidentes dificuldades de expressão, responde ao que lhe é perguntado sem grandes hesitações.
O I tem consciência da gravidade da acusação e responde ao que lhe é perguntado de forma espontânea, sincera e globalmente convincente, à luz das regras de experiência comum.
Depois, temos o depoimento de E que nos disse que o I, o C e a C, no verão de 2021, lhe contaram algo que teria acontecido, sendo que o Ivo fazia os gestos (de masturbação) e estava a chorar, de cabeça para baixo.
Apesar de a acusação situar os factos em datas não apuradas entre os anos de 2015 e 2021, estes elementos permitiram ao Tribunal situar o episódio no tempo.
Dos depoimentos dos jovens S, R, L e C, o Tribunal não teve dúvidas de que, na sala, o arguido passava com as mãos, por cima da roupa, na zona do pénis do I, apalpando ou acariciando a sua zona genital.
É certo que as testemunhas não coincidem temporalmente, mas é a própria acusação que fala em pelo menos duas vezes.
Ou seja, ainda que se possa entender que existam algumas não coincidências nos depoimentos (o que sempre se dirá que não os abalaria, porque passou tempo e não é invulgar que uma pessoa, mormente um adolescente não retenha na sua memória com exatidão um mês ou um ano), sempre terão acontecido vários episódios e as testemunhas podem não ter estado sempre juntas ou ter visto na mesma ocasião.
C, com grande maturidade, determinação e desassombro, não teve dúvidas de que o que viu foi “durante a pandemia quando algumas pessoas começaram a voltar à instituição”, o que nos conduz a momento próximo verão de 2021.
Na verdade, aquando da pandemia, só em março de 2021 as pessoas voltaram a entrar na instituição.
Neste particular, o Tribunal não acreditou que o arguido, quando voltou à instituição em março de 2021, não passasse da marquise.
Não só a personalidade do arguido (envolvente e de proximidade) fazem com que isso não seja verosímil, como as atividades que disse exercer na instituição pressupõem a transposição da marquise e não que aí permanecesse, à distância, a fazer quase nada.
Temos adolescentes que, de forma espontânea, situam factos no verão de 2021, dizendo que o arguido continuava a estar na sala e a ir aos quartos.
E temos depoimentos, formais e com evidente interesse na causa, que querem convencer de que, antes de setembro de 2021, o arguido não passava da marquise e que, depois dessa data, não passava da sala, estava sempre de máscara e ia embora cedo.
São os casos de F e de Inês Graça, que manifestamente se protegiam e protegem reciprocamente (aliás, ambas saíram da instituição com procedimentos disciplinares) e que prestaram depoimentos sem isenção e contrariados pela demais prova (seja no sentido de o arguido aceder à instituição e não ficar na marquise, seja nos castigos que os jovens sofreram quando falaram do assunto e que Inês Graça negou perentoriamente, contrariada pelos depoimentos dos jovens).
Mais, não se percebe como, alegadamente, depois de receber o telefonema da funcionária C, a Diretora Inês lhe teria pedido para dizer ao “P” para ir embora (versão de Inês Graça) quando, do depoimento da funcionária C, resulta claro que a Diretora não acreditou no que lhe foi relatado.
Finalmente, os depoimentos dos jovens C e L, relatando o episódio do quarto (em que o arguido, por cima da roupa, passou com as mãos, por cima da roupa, na zona do pénis do I, apalpando ou acariciando a sua zona genital) permitem situar o mesmo em finais de agosto / inícios de setembro de 2021.
Se é certo que o C fala no verão de 2020, não tendo dúvidas de que era verão, o arguido só terá regressado, por causa da pandemia, no verão de 2021.
É certo que, reconhece-se, os depoimentos de C e L não foram totalmente coincidentes (cada um deles viu uma pessoa diferente a ajeitar as calças, o L referiu crer ter sido “mais no inverno”), mas repete-se que passou tempo e não é invulgar que uma pessoa, mormente um adolescente, não retenha na sua memória com exatidão um mês ou um ano.
E, cotejada toda a prova, o Tribunal não vislumbrou qualquer interesse pessoal ou benefício que os jovens e adolescentes ouvidos tivessem ou visassem alcançar para depor falsamente contra o arguido.
Nem se descortina qualquer animosidade ou inimizade que tivessem com o arguido.
Não são apenas uma ou duas testemunhas.
São mais.
E todas convergem no sentido de que o arguido praticaria atos de cariz sexual na pessoa do I.
Todas depuseram sem hesitações e sem qualquer interesse visível ou sequer equacionável em abstrato.
Não é porque são adolescentes ou jovens com um passado difícil que se devem considerar falsos ou tendenciosos os seus depoimentos.
Aliás, frequentemente estes jovens têm uma forte perceção do bem e do mal, do certo e do errado, em função das suas vivências anteriores à institucionalização.
O facto de o I reclamar mais atenção e proximidade não impede que, na sua pessoa, tenham sido praticados os factos dados como provados.
Conjugando esses depoimentos com as declarações do I e com as conclusões dos relatórios periciais (mormente na parte em que se refere que o I não é sugestionável), o Tribunal deu como provados os episódios de masturbação ao I e de carícias/apalpões na sala e no quarto.
C não referiu ter visto o abraço a que aludia o artigo 7º da douta acusação e nenhum outro meio de prova foi apresentado.
É certo que, analisadas as declarações do I, parece resultar do seu depoimento que, ele depoente, também teria “feito o mesmo” (masturbação) ao arguido, mas parece haver aqui alguma imprecisão.
O I responde que sim, mas depois limita-se a dizer “P”, “P”, o que tornou o seu discurso aqui confuso.
Menciona depois o “rabo”, apontando para a mão quando lhe perguntam o que o “P” lá pôs, responde que sim quando perguntado se também pôs a pila e responde que sim quando perguntado se doeu.
Aponta com as mãos 10 vezes.
Estes episódios baseiam-se apenas no que o I conseguiu dizer.
Em julgamento, apenas foi referido pela C que o I fez gestos e queixava-se de dores no rabo.
Mas inexiste qualquer delimitação temporal, não existem lesões percecionadas no relatório de avaliação do dano corporal e ninguém ouviu gritos que pudessem indiciar a prática dos factos.
O Tribunal Coletivo, neste particular, ficou com dúvidas.
Não se está a significar que não se acredita no I, mas apenas que, nesta parte, há imprecisões e lacunas que suscitam a dúvida razoável.
Ora, perante uma dúvida objetiva e razoável que não foi ultrapassada em audiência, o non liquet sobre os factos constitutivos da infração criminal (ou sobre factos que afastem a ilicitude ou a culpa) deve transformar-se numa decisão favorável ao arguido em homenagem ao princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º nº1 da Constituição da República Portuguesa, o qual abarca o princípio in dubio pro reo e decorre igualmente do primado da culpa.
Como consideram Gomes Canotilho e Vital Moreira «além de ser uma garantia subjetiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa» (Cfr, Gomes Canotilho e Vital Moreira, in "Constituição da República Portuguesa Anotada", Coimbra Editora, 1993, p. 203 e seguintes).
Como se lê no recente acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 08-02-2022, disponível no site da dgsi, cujo relator é o Exmo. Sr. Juiz Desembargador Dr. João Amaro, «quando o tribunal não forma convicção, a dúvida determina inelutavelmente a absolvição, de harmonia com o princípio in dubio pro reo, o qual consubstancia principio de direito probatório decorrente daqueloutro princípio, mais amplo, da presunção da inocência (constitucionalmente consagrado no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa».
Assim, quanto à matéria de facto não provada, constante da douta acusação, a decisão do Tribunal decorreu do funcionamento do princípio geral da prova in dubio pro reo.
Nesta decorrência, e como consequência lógica, foi julgado não provado que o I sentiu dores aquando da introdução do pénis ereto e dos dedos do arguido no seu ânus.
Do depoimento de C resultou provado que, quando o I lhe relatou os factos, estava triste e envergonhado.
Mesmo que assim não fosse, partindo das regras da experiência comum, estas dizem-nos que, em casos como os dos autos, os ofendidos naturalmente sentiram tristeza, vergonha e medo, com inevitável perturbação no crescimento da sua sexualidade, com sequelas de ordem psicológica, mais não seja o estigma associado a vivências similares.
Os demais factos não provados, mormente da douta contestação, resultaram da circunstância de, sobre o seu teor, não ter sido produzida prova que permitisse outra convicção, reiterando-se que se consideraram não credíveis os depoimentos de F e de Inês Graça.
Fundamentação de Direito:
O arguido encontra-se acusado da prática, em autoria material e em concurso real, de:
1. (7) sete crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravados, p.p. pelo artigo 165º, nº 1 e 177º, nº 1, alínea c), nº 6 e nº 7, ambos do Código Penal e nas penas acessória de proibição de exercício de funções, cujo exercício envolva o contacto regular com menores e de proibição de confiança de menores, p.p. pelos artigo 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2, todos do Código Penal (em concurso aparente com um crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravado, p.p. pelo artigo 172º, nº 1, alínea b) e c) e 177º, nº 1, alínea c) e nº 6 e nº 7, e 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2, todos do Código Penal) – (cfr. artigos 8º, 9º, 11º e 12º da acusação pública) e
2. (2) dois crimes de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência agravado, p.p. pelo artigo 165º, nº1 e 2 e 177º, nº1, alínea c), nº 6 e nº 7, e nas penas acessória de proibição de exercício de funções, cujo exercício envolva o contacto regular com menores e de proibição de confiança de menores, p.p. pelos artigo 69º-B, nº 2 e 69º-C, nº 2 todos do Código Penal do Código Penal (em concurso aparente com um crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável agravado, p.p. pelo artigo 172º, nº 1, alínea b) e c) e 177º, nº 1, alínea c) e nº 6 e nº 7, 69º-B, nº 2 e 69º-C, n.º2, todos do Código Penal) - (cfr. artigos 10º da acusação pública).
Indaguemos do cometimento de algum crime de abuso sexual de pessoa incapaz de resistência.
Nos termos do preceito mencionado, ““1 - Quem praticar ato sexual de relevo com pessoa inconsciente ou incapaz, por outro motivo, de opor resistência, aproveitando-se do seu estado ou incapacidade, é punido com pena de prisão de seis meses a oito anos. 2 - Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de dois a dez anos.” Mediante este ilícito criminal pretende-se tutelar a liberdade e a autodeterminação sexual, porquanto versa-se sobre pessoas inconscientes ou incapazes de formularem a sua vontade para a prática de atos com relevo sexual. Ou seja, pretende-se tutelar “o direito à autodeterminação sexual de pessoa incapaz de opor resistência por fatores físicos ou psíquicos, protegendo-se os indivíduos que por motivos ligados a circunstâncias intelectuais ou psíquicas ou ao seu estado psíquico, são incapazes de se autodeterminar no plano sexual”.
Note-se, todavia, que a pessoa é incapaz de opor resistência, ou porque está inconsciente, ou porque se encontra incapacitada de formar, ou exprimir ou exercitar a sua vontade de se defender ao ato sexual referido no nº 1 da norma ou à cópula, coito anal, coito vaginal ou anal de partes do corpo ou de objetos, mencionados no nº 2. A incapacidade - seja por motivos físicos, seja por motivos psíquicos - não se relaciona, pois, à oposição contra qualquer ato de força do agente mas sim aos seus propósitos. Para o preenchimento do ato de força do agente, mas sim aos seus propósitos. Para o preenchimento do tipo, é pois, decisiva uma anterior incapacidade de resistência de que o agente tipo, é pois, decisiva uma anterior incapacidade de resistência de que o agente se aproveita, aproveitamento que surge quando o agente age com a consciência de que o estado da vítima pelo menos lhe facilita o abuso sexual.
Os mesmos autores defendem que o abuso não existirá se a conduta sexual nada mais representar do que “uma relação de amor”, expressão que, cremos, se manifesta curiosa e de manifesta, se não quase impossível, avaliação no caso concreto, assim como não existirá abuso se não tiver havido influência da incapacidade da pessoa de opor resistência, ou melhor, se o ato influência da incapacidade da pessoa de opor resistência, ou melhor, se o ato sexual foi praticado sem para o efeito tivesse qualquer relevância a incapacidade da pessoa de opor resistência, ou, finalmente, se o ato tiver tido lugar antes da incapacidade se ter relevado.
Como refere Mouraz Lopes, a incriminação da conduta em causa, “assenta na validade e eficácia à manifestação de vontade do portador individual do bem jurídico.
É o aproveitamento dessa incapacidade da vítima entender o alcance do próprio ato sexual de relevo, por parte do autor, abusando por isso dessa situação, que está em causa, sendo, por isso, o elemento essencial do crime”.
Por sua vez, ato sexual de relevo e partindo do indicado bem jurídico, será toda aquela ação que afete a liberdade e autodeterminação sexual e que, por isso mesmo, seja suscetível de condicionar a liberdade e autonomia sexual de outra pessoa a partir de atos relativamente aos quais a pessoa visada não consentiu (pessoa inconsciente) ou então não tinha qualquer capacidade para consentiu (pessoa inconsciente) ou então não tinha qualquer capacidade para consentir (pessoa incapaz).
Porém, o Código Penal não nos diz o que é uma pessoa incapaz. No entanto, quando define o inimputável em razão de anomalia psíquica no seu artigo 20º, considera como tal aquele que “por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a ilicitude deste ou de se determinar de acordo com essa avaliação”.
Mas, como podemos constatar não existe uma similitude entre a responsabilização penal pelo cometimento de um crime, o que passa pela valoração da integridade da sua conduta com os parâmetros do direito e os quadros legais, e a realização sua conduta com os parâmetros do direito e os quadros legais, e a realização de condutas que não revelam qualquer ilicitude.
A isto acresce, como decorre da designada Convenção dos Direitos das Pessoas com Deficiência que, ao nível do relacionamento sexual, as pessoas com limitações de capacidade intelectual não estão, à partida e em regra, privadas de se envolverem sexualmente, uma vez que as mesmas têm, como as demais pessoas, o direito à sua plena sexualidade, como decorre do necessário respeito pela sua dignidade, incluindo a liberdade de fazerem as suas escolhas, não sendo discriminadas para o efeito (artigo 3º).
Por outro lado, as mesmas têm direito à proteção contra os abusos, incluindo os baseados no género, assim como à sua integridade pessoal, seja a nível físico, seja a nível psíquico, devendo para o efeito atendera às específicas vulnerabilidades apresentadas (16º/1 e 17º CDPD).
Como paradigmaticamente se assinalou no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-04-2013, que com, a devida vénia, seguimos de muito perto, “No entanto, o legislador parece que ainda não assimilou estes novos quadros de referência em relação às pessoas com limitações de capacidade, continuando a optar por referências menos sugestivas na determinação das vítimas a proteger, tratando-as como “deficientes” – numa tradução apressada de “persons with disabilities”, quando “imparment” significa “deficiência” – ou então como “incapazes”. Certamente por isso, continua a dirigir a tutela penal então como “incapazes”. Certamente por isso, continua a dirigir a tutela penal para os casos de nítida “incapacidade”, quase que equiparando as mesmas às para os casos de nítida “incapacidade”, quase que equiparando as mesmas às pessoas totalmente destituídas de capacidade, pois só assim se compreende a sua equiparação às “pessoas inconscientes”, que igualmente integram o tipo legal de crime aqui em apreço”.
Assim, o que releva é que as “pessoas incapazes” sejam totalmente destituídas de razão para se oporem à prática de atos sexuais de relevo, estando para o efeito completamente privadas, em razão da sua anomalia psíquica, de dar o seu consentimento para o efeito.
Nesta conformidade e atento o princípio da legalidade (29º/1 da Constituição da República Portuguesa e 1º/1 do Código Penal) “não é admissível qualquer interpretação por analogia, de modo a equiparar as pessoas “incapazes” de oporem resistência, com aquelas outras pessoas que têm limitações de capacidade”.
Quanto à incapacidade da pessoa para opor resistência, ensina Figueiredo Dias que ela constitui o denominador de todas as situações típicas que ocorram com a vítima, relevando que são típicas tanto a situação de a vítima se encontrar incapaz de formar a suavontade, como a de se encontrar incapaz de exprimir a sua vontade, sendo indiferente que a fique a dever-se a motivos psíquicos ou antes a motivos físicos.
E, analisando os motivos psíquicos, entende o mesmo autor que eles se devem reconduzir à existência de uma anomalia psíquica – uma psicose, oligofrenia, uma psicopatia, uma neurose grave ou mesmo os estados de perturbação de consciência graves, ainda que, por si, não determinem a inconsciência da vítima -, o que de forma nenhuma leva ao extremo de se “condenar” a generalidade das pessoas portadoras de uma qualquer anomalia mental à abstinência de atos sexuais com outrem, a fazer do sexo uma espécie de “tabu” para aquelas categorias de pessoas, pois, o tipo objetivo uma espécie de “tabu” para aquelas categorias de pessoas, pois, o tipo objetivo de ilícito não se esgota com este elemento e o da prática de ato sexual, exigindo ainda que o agente se aproveite da incapacidade da vítima.
Entende, porém, que os conceitos próprios da doutrina da inimputabilidade têm de ser aqui diversamente interpretados, dada a sua, dada a sua diferente teleologia e a sua diversa funcionalidade dogmática.
Por um lado, podem existir anomalias psíquicas que não relevem em definitivo para a inimputabilidade (mas quando muito para a imputabilidade diminuída), mas devam relevar para efeito da incapacidade de opor resistência ao ato sexual. Por outro lado, inversamente, podem existir com frequência anomalias que conduziriam à inimputabilidade, mas não constituem, em concreto e em definitivo, incapacidade para formar e exprimir a vontade da vítima no sentido da resistência ao ato sexual.
E conclui considerando que o que importa é o efeito concreto que da doença ou anomalia resulta para a capacidade e vontade de resistência em determinadas condições de tempo e lugar e não a sua qualificação médica abstrata.
Continuando a seguir o mesmo autor, é necessário e suficiente que o estado ou incapacidade torne possível ao agente o abuso sexual ou significativamente o facilite. Neste contexto se justifica que não seja sentido do tipo impedir a vítima que sofre de uma anomalia mental de toda e qualquer atividade sexual com outra pessoa: sempre que aquela seja capaz de formar e exprimir a sua vontade no sentido de anuir ao ato, ou inclusivamente de tomar a iniciativa dele, não há aproveitamento para efeito do tipo.
Ora, no caso em apreço, é preciso relembrar que no caso em apreço, I apresenta, segundo o já mencionado exame pericial, um quadro de debilidade mental moderada, a que corresponde o código F71 da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10).
Cremos que “Atraso Mental de grau moderado”, significa que a vítima não é totalmente incapaz, e que sendo, sem dúvida, uma pessoa vulnerável, atendendo às suas limitações intelectuais e cognitivas, o preceito legal não tutela tais situações de vulnerabilidade (a tal “discapacidade”) mas apenas, anote-se uma vez mais, de “incapacidade”, de total impossibilidade de dar o seu consentimento livre e esclarecido.
Assim, será certamente mais conforme a tutela penal aqui em causa partir do conceito legal de consentimento, o qual se encontra no artigo 38º do Código Penal, onde se diz que “Além dos casos especialmente previstos na lei, o consentimento exclui a ilicitude do facto quando se referir a interesses jurídicos livremente disponíveis e o facto não ofender os bons costumes”jurídicos livremente disponíveis e o facto não ofender os bons costumes” (nº 1), acrescentando-se que “O consentimento só é eficaz por quem tiver mais de 16 anos e possuir discernimento necessário para avaliar o seu sentido e alcance no momento em que o presta” (nº 3).
“Daqui decorre que perante a atual tipificação do crime de abuso de sexual de pessoa incapaz de resistência o mesmo não contempla os casos em que a pessoa visada apenas tenha uma importante diminuição dessas mesmas capacidades, como certamente seria preferível, de modo a compatibilizar a proteção da sexualidade das pessoas com limitações de capacidade intelectual contra os abusos de que pode ser vítima, com os seus direitos a uma sexualidade plena.”
Assim, uma pessoa só será incapaz de se opor a atos sexuais de relevo que lhe forem pessoalmente dirigidos por outrem, quando aquela apresentar uma quase total diminuição das suas capacidades para avaliar o sentido e alcance de tais atos.
Neste sentido, veja-se o douto acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12-05-2020, disponível no site da dgsi, relatado pela Exma. Sra. Juíza Desembargadora Dra. Fátima Bernardes, onde se lê que:
«I - A incapacidade de opor resistência ao ato sexual, exigida para o preenchimento do tipo objetivo do crime previsto no artigo 165º do Código Penal, na vertente que aqui releva, é a incapacidade para formar e exprimir a vontade no sentido da resistência ao ato sexual. Não importa, por isso aqui, a qualificação médica abstrata de uma doença ou de uma anomalia, mas sim o efeito concreto que dela resulta para a capacidade e vontade de resistência em determinadas condições de tempo e lugar.
II - Para o preenchimento do tipo objetivo, do crime de abuso de pessoa incapaz de resistência, não é suficiente que a pessoa seja portadora de uma qualquer doença psíquica ou deficit cognitivo, de maior ou menor grau, o que importa e que tem de se apurar é se aquela doença ou deficit cognitivo a tornam incapaz de compreender o significado e o alcance do ato sexual e de exprimir a sua vontade no sentido de se opor ao ato sexual.
III - E a pessoa só será incapaz de ser opor ao ato sexual quanto apresentar uma quase total diminuição da sua capacidade para avaliar o sentido e alcance de tal tipo de ato».
No caso concreto, não logrou provar-se que o ofendido seja pessoa incapaz de resistência, desde logo faltando um elemento objetivo necessário ao preenchimento do ilícito típico penal.
Na verdade, e de acordo com os relatórios periciais, I tem uma noção do certo e do errado, o que lhe permite fazer alguns juízos morais, mormente sobre o cariz desadequado de certas condutas, como as descritas nos autos.
Vejamos se a conduta do arguido integra a prática de outro ilícito penal.
De acordo com o artigo 172º do CP, com a epígrafe abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável:
1 - Quem praticar ou levar a praticar ato descrito nos números 1 ou 2 do artigo anterior, relativamente a menor entre 14 e 18 anos:
a) Em relação ao qual exerça responsabilidades parentais ou que lhe tenha sido confiado para educação ou assistência; ou
b) Abusando de uma posição de manifesta confiança, de autoridade ou de influência sobre o menor; ou
c) Abusando de outra situação de particular vulnerabilidade do menor, nomeadamente por razões de saúde ou deficiência;
é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos.
2 - Quem praticar ato descrito nas alíneas do nº 3 do artigo anterior, relativamente a menor compreendido no número anterior deste artigo e nas condições aí descritas, é punido com pena de prisão até um ano.
3 - Quem praticar os atos descritos no número anterior com intenção lucrativa é punido com pena de prisão até 5 anos.
4 - A tentativa é punível.
Importa, assim, atentar no art. 171º do CP.
Nos termos do artigo 171º, nº 1, do Código Penal, sob a epígrafe abuso sexual de crianças: 1 - Quem praticar ato sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos.”
2 - Se o ato sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.
3 - Quem:
a) Importunar menor de 14 anos, praticando ato previsto no artigo 170º; ou
b) Atuar sobre menor de 14 anos, por meio de conversa, escrito, espetáculo ou objeto pornográficos;
c) Aliciar menor de 14 anos a assistir a abusos sexuais ou a atividades sexuais;
é punido com pena de prisão até três anos.
4 - Quem praticar os atos descritos no número anterior com intenção lucrativa é punido com pena de prisão de seis meses a cinco anos.
5 - A tentativa é punível.
Conforme ensina Figueiredo Dias, com a norma legal do artigo 171º do Código Penal, visa-se proteger a autodeterminação sexual do menor, mas de uma forma muito específica: não face a condutas que representem a extorsão de contactos sexuais por forma coativa ou análoga, mas face a condutas de natureza sexual que, em consideração da pouca idade da vítima, podem, mesmo sem coação, prejudicar gravemente o livre desenvolvimento da sua personalidade.
Segundo Paulo Pinto de Albuquerque (e sobre os quatro crimes distintos previstos no artigo 171º), “O bem jurídico protegido pelas incriminações é a liberdade de autodeterminação sexual da criança, isto é, do menor de 14 anos de idade”.
A lei presume, pois, que a prática de atos sexuais com menor, ou em menor de certa idade, prejudica o desenvolvimento global do próprio menor, devendo-se salientar que a plasticidade do instinto sexual faz com que o livre exercício da sexualidade, mormente nos primeiros estádios da vida, revista uma importância fundamental para o desenvolvimento da personalidade individual, justificando assim a sua especificidade no seio dos crimes contra a liberdade em geral, e ainda que a especificidade destes crimes reside como que numa obrigação de castidade e virgindade quando estejam em causa menores, seja de que sexo forem.
Por outras palavras, há uma presunção legal de “que a prática de atos sexuais em menor, com menor ou por menor de certa idade, prejudica o seu desenvolvimento global, e considera este interesse tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob a tutela da pena criminal. Protege-se, pois, uma vontade individual ainda insuficientemente desenvolvida e apenas parcialmente autónoma, dos abusos que sobre ela executa um agente, aproveitando-se da imaturidade do jovem para a realização de ações sexuais bilaterais. O que está em causa não é somente a autodeterminação sexual mas, essencialmente, o direito do menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso, presumindo-se que este estará sempre em perigo quando a idade se situe dentro dos limites definidos pela lei.”
Por isso, estamos perante um crime de perigo abstrato, pelo que pode verificar-se mesmo que não haja lugar a perigo concreto para o desenvolvimento fisiológico ou psicológico do menor.
A lei não fornece a definição de ato sexual de relevo. Mas doutrinal e jurisprudencialmente tem-se considerado ato sexual de relevo toda a conduta que ofenda bens jurídicos fundamentais ou valores essenciais das pessoas quanto à sua livre expressão do sexo. O tipo legal está, pois, limitado pelo uso da expressão restritiva “de relevo”. O direito criminal, como ultima ratio, implica que só seja tutelada a liberdade sexual contra ações que revistam certa gravidade. Em tais termos, atos como o coito oral e a masturbação devem aqui ser incluídos (aliás como expressamente estatui o nº 2 do artigo 171º do Código Penal); o mesmo não sucederá, em regra, com os “toques” e os beijos, por exemplo, que só o deverão ser em casos mais extremos, ou seja, naqueles em que existem grande intensidade objetiva e intuitos sexuais atentatórios da autodeterminação sexual, nomeadamente e no que diz respeito ao “toque” por se dirigirem a zonas genitais, erógenas ou particularmente sensíveis. Conforme ensinam Leal-Henriques e Simas Santos, “repescando o sentido legislativo imanente ao preceito correspondente do Código anterior - onde se considerou que nem todo o ato ofensivo do pudor cabia na previsão da norma, mas apenas os que ofendiam gravemente os sentimentos gerais de moralidade sexual, com exclusão, portanto, das atitudes anódinas como, por exemplo, um simples beijo, que não têm dignidade criminal”, forçosa é a conclusão de que não é qualquer ato de natureza sexual que serve ao espírito do artigo, mas apenas aqueles atos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objetivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano, e, no caso concreto, especialmente das crianças.
Também o Prof. Figueiredo Dias acentua que é de excluir do ato sexual de relevo não apenas os atos insignificantes ou bagatelares, mas também aqueles que não representem entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima, v.g. atos que, embora pesados ou em si significantes por impróprios, desonestos, da mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima.
A conduta, para ser de relevo terá de ser intensa, objetivamente grave e traduzir intuitos e desígnios sexuais que frontalmente sejam atentatórios da autodeterminação sexual da vítima.
O Supremo Tribunal de Justiça considerou tratarem-se de atos sexuais de relevo “os atos de masturbação, os beijos procurados nas zonas erógenas do corpo, como os seios, a púbis, o sexo… também se deve incluir no conceito de ato sexual de relevo a desnudação de uma mulher e o constrangimento a manter-se despida para satisfação dos apetites sexuais do agente.” Sénio Alves, a propósito do que sejam atos sexuais de relevo refere que estes se aproximam daquilo que vulgarmente se designa como “preliminares da cópula” e, por isso, são atos de natureza sexual ou, se se preferir, “atos com fim sexual”, pelo que e, sintetizando, “o ato sexual de relevo é, assim, todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas”.
O bem jurídico protegido através da norma transcrita é a autodeterminação sexual, sendo que, face à idade da vítima, a prática destes crimes pode ter consequências graves no desenvolvimento da sua personalidade. Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05-09-2007, “a lei presume que a prática de atos sexuais em menor, com menor ou por menor de certa idade, prejudica o seu desenvolvimento global, e considera este interesse tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob a tutela da pena criminal. Protege-se, pois, uma vontade individual ainda insuficientemente desenvolvida, e apenas parcialmente autónoma, dos abusos que sobre ela executa um agente, aproveitando-se da imaturidade do jovem (…). O que está em causa não é somente a autodeterminação sexual mas, essencialmente, o direito do menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso, presumindo-se que este estará sempre em perigo quando a idade se situe dentro dos limites definidos pela lei”.
Ato sexual de relevo é “todo aquele (comportamento ativo...) que, de um ponto de vista predominantemente objetivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado diretamente relacionado com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de autodeterminação sexual de quem a sofre ou pratica”.
Como se lê ainda no Acórdão da Relação de Guimarães de 12-04-2010 «embora o conceito de “ato sexual de relevo” tenha suscitado alguma polémica na doutrina e jurisprudência nacionais, afigura-se-nos que o mesmo tem de ter uma relação com o sexo (relação objetiva), tem de tratar-se de um comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais embora possa não haver envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes, e em que haja da parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais (esta intencionalidade ou motivação específica do agente não é, porém exigida por um sector minoritário da doutrina e jurisprudência - cfr. Ac. da Rel. de Coimbra de 12-1-1996, Col. de Jur. ano tomo 1, pág. 165 e Inês Ferreira Leite, Pedofilia, Coimbra, 2004, págs. 76-77 e 86-88).
Para além disso o tipo está limitado pelo uso da expressão restritiva “de relevo” pelo que a liberdade/autodeterminação sexual só está tutelada criminalmente contra ações que constituam grave entrave para a liberdade ou autodeterminação sexual da vítima [tais como o beijo na boca, a exposição dos órgãos genitais, o apalpar os seios, pressionar a zona púbica, ejacular ou urinar sobre a vítima, esfregar o pénis no rabo da menor simulando a cópula - exemplos colhidos da doutrina e da jurisprudência, para além dos indicados no nº 2 do citado artigo 172º (cópula, coito anal, coito oral, introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos) - sobre o conceito de “ato sexual de relevo” cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 17ª ed., Coimbra, 2005, pág. 578-579, Fernando João Ferreira Ramos, Notas sobre os crimes sexuais no projeto de revisão do Código penal de 1982, RPCC, ano 3º, fasc. 1 (Janeiro-Março 1993), pág. 55 Sénio Reis Alves, Crimes Sexuais, Coimbra, 1995, págs. 7-12; José Mouraz Lopes, Os Crimes contra a Liberdade e Autodeterminação Sexual no Código Penal, 4ª ed., Coimbra, 2008, págs. 23-31, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, Tomo I, Coimbra, pág. 447 a 450, §§7 a 13 inclusive, e pág. 543, §6 e Inês Ferreira Leite, Pedofilia, cit., págs. 75 e seguintes; na jurisprudência dos tribunais superiores merecem destaque os Acs. do S.T.J. de 31-10-1995, B.M.J. n.º 450, pág. 165, de 16-5-1996, proc.º nº 136/94, de 17-10-1996 e de 20-10-1996, os dois últimos in Col. de Jur.- Acs. do S.T.J., ano IV, tomo 3, pág. 170 e B.M.J. nº 460, pág. 605, respetivamente, e de 12-07-2005, proc. nº 05P2442, in www. dgsi.pt, o Ac. da Rel. de Coimbra de 12-01-1996, in Col. de Jur. ano XXI, tomo 1, pág. 165, o Ac. da Rel. de Évora de 14-11-2006, proc. nº 2864/05-1, rel. João Gomes de Sousa, e o recente Ac. da Rel. do Porto de 27-1-2010, proc. nº 1044/07.7GGMTS.P1, rel. Olga Maurício, ambos in www. dgsi.pt».
No crime de abuso sexual de menores dependentes, o bem jurídico protegido reside no livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, ligado à ideia de que a liberdade e autodeterminação sexual de menores entre 14 e 18 anos, confiados a outrem para educação ou assistência, se encontra em princípio carecida de uma proteção particular.
Exige-se ainda que o menor entre os 14 e 18 anos de idade tenha sido confiado ao agente para educação ou assistência, verificando-se, pois, uma relação de dependência pessoal. Encontra-se nesta relação de dependência o menor entre os 14 e 18 anos de idade que tenha sido confiado ao agente para educação ou assistência por força da lei, de decisão judicial ou de facto, encontrando-se nestes casos o agente investido num particular dever, não sendo necessário que tal relação tenha carácter permanente, pois pode ser temporária ou intermitente.
Educar significa assumir a direção e supervisão da condução da vida, promovendo o desenvolvimento físico e mental. Sob a designação de assistência temos a colaboração na formação e no bem-estar do menor no conjunto dos aspetos físicos e mentais.
Descendo ao caso concreto, está desde logo provado que:
- No CAT – Centro de Acolhimento Temporário de Crianças e Jovens em Risco encontravam-se integradas e internadas várias crianças de 9 a 18 anos, quer do sexo feminino, quer do sexo masculino, um dos quais era I, nascido em 22-03-2005, que aí foi acolhido, em 09-01-2015, em cumprimento de medida de acolhimento residencial, decretada em 19-12-2014, no processo de promoção e proteção n.º968/10.9TBABT, e revista consecutivamente, até 22-03-2023, data em que cessou a medida de acolhimento residencial por o mesmo ter atingido a idade de 18 anos.
- I padece, desde nascença, de esclerose tuborosa e epilepsia sintomática, com crises parciais complexas, padecendo ainda de um quadro de debilidade mental moderada, a que corresponde o código F71 da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10), com um atraso global no desenvolvimento psicomotor, sobretudo a nível cognitivo e psicomotor, com manifestas dificuldades e repercussões no pensamento, linguagem e comportamento. I apresenta um coeficiente de inteligência (QI) no nível Muito Inferior (45) com um funcionamento cognitivo homogéneo (QI verbal - 45 e QI de realização - 50). O perfil constituído pelos diversos sub-testes é homogéneo, sendo que todas as pontuações foram de 1 a nível verbal e oscilaram entre 1 e 5 ao nível de realização (escala de 1 a 19). Os índices de compreensão verbal (medida de conhecimentos adquiridos e raciocínio verbal), de organização percetiva (medida de atenção aos detalhes e integração visuomotora) e a velocidade de processamento estão num nível Muito Inferior (50, 56 e 51 respetivamente). O que se traduz na existência de um vocabulário bastante empobrecido, que dificulta a expressão de ideias, o desconhecimento de informação geral como, por exemplo, quantos meses tem um ano ou o que mede um termómetro e ausência de conhecimentos ao nível do cálculo. O pensamento é do tipo concreto, havendo por isso, dificuldade em aceder a questões que requerem maior elaboração e abstração, apesar de possuir suficiente capacidade de compreensão. A existência de uma postura interpessoal submissa e de agrado face ao outro, particularmente perante figuras de autoridade são fatores de vulnerabilidade pessoal que, conjugado com as estratégias utilizadas pelo agressor (aproveitamento de uma relação de familiaridade e de um estatuto de autoridade, manipulação do comportamento do jovem perante as suas dificuldades de juízo social, desconhecimento de informações sobre a sexualidade) levam a que não houvesse à data dos factos uma autodeterminação sexual por parte de I.
- Ainda assim, I tem uma noção do certo e do errado, o que lhe permite fazer alguns juízos morais, mormente sobre o cariz desadequado de certas condutas, como as descritas nos autos.
- O arguido J, nascido em 27-01-1969, desde o ano de 2008 e até agosto de 2022, com exceção do período entre março de 2020 e março de 2021 (em que as visitas ao CAT estiveram interrompidas por causa da pandemia Covid-19), frequentava, semanalmente, o CAT – Centro de Acolhimento Temporário de Crianças e Jovens em Risco, com o conhecimento e a autorização da então Diretora Técnica Inês Graça, tendo dessa forma livre acesso e contacto próximo com as crianças acolhidas, bem como acesso, durante horário situado desde o final da tarde mas antes da hora de jantar, até depois de os jovens se deitarem, cerca das 22 ou 23 horas, às zonas privadas, como sala, quartos e casas de banho, onde as crianças pernoitavam e faziam a sua higiene pessoal.
- Em data não concretamente apurada situada pelo verão de 2021, o arguido J, no interior do CAT, tocou e acariciou, com uma das suas mãos ou com ambas, o pénis de I, que nesse período teria 16 anos de idade, tendo agarrado e rodeado com a(s) sua(s) mão(s) o pénis do I, friccionando-o e feito vários movimentos ritmados para cima e para baixo, para a frente e para trás.
- Em dias não concretamente apurados, mas situados pelo verão de 2021, no interior do CAT, o arguido, no sofá da sala comum, em número de vezes não exatamente determinadas mas, pelo menos, por duas vezes, quando se encontrava sentado junto de I, apalpou e acariciou com as suas mãos, por cima da roupa, o pénis e a zona genital do I.
- Em dia não concretamente apurado, em finais de agosto/inícios de setembro de 2021, e ao final do dia, o arguido no interior do quarto de I, no CAT, tocou, com as suas mãos, por cima da roupa, no pénis de I, apalpando e acariciando a sua zona genital, tendo sido nesse momento surpreendido por C.
- Em todas as situações supra descritas, o arguido tinha perfeito conhecimento de que era maior e da idade de I, que era uma criança menor, com 16 anos, e que o mesmo padecia de vários problemas de saúde, mais concretamente os acima melhor descritos, os quais afetavam as suas capacidades cognitivas e de expressão.
- Sabia ainda que ao estar com muito frequência no CAT e dia-a-dia com I, dando-lhe atenção, se tinha estabelecido entre ambos uma relação baseada na confiança, cuidado, influência e ascendente que o arguido tinha sobre I, potenciada pelas manifestas debilidades cognitivas e de comunicação de I, que o via, assim, também como seu cuidador e responsável.
- O arguido atuou sempre das formas supra descritas, visando a sua satisfação sexual e ímpetos libidinosos, bem sabendo que, ao agir das formas acima descritas, atentava contra a autodeterminação e o normal desenvolvimento sexual de I, obrigando-o a praticar e a tolerar atos de natureza sexual, consciente da sua idade.
- O arguido atuou, em cada uma das vezes acima descritas, bem sabendo e querendo aproveitar-se da relação de proximidade e de afeto estabelecida e das descritas limitações, também de comunicação, de I, que muito provavelmente não iria relatar a terceiros os atos sexuais que tinham sido contra este praticados ou, pelo menos, de forma percetível, e assim fez valer do ascendente e poder que tinha sobre este e das suas fragilidades.
- Mesmo consciente do supra referido e de que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, o arguido atuou sempre, nas vezes e episódios acima descritos, de forma livre, voluntária, consciente e com o intuito concretizado de se satisfazer sexualmente, bem sabendo que estava a perturbar o normal desenvolvimento sexual de pessoa menor, com 16 anos de idade. O que fez ainda abusando da especial proximidade e confiança que o mesmo em si depositava, em virtude das funções que desempenhava no CAT e do facto de I se encontrar aí institucionalizado.
- O arguido, em todas as ocasiões acima referidas, agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua atuação era proibida e punida por lei penal. O que quis, fez e conseguiu.
Daqui decorre o preenchimento, pelo arguido, dos elementos objetivos e subjetivos que integram o crime em apreço, no caso o art. 172º, nº 1, al. b) (abuso de uma posição de manifesta confiança ou de influência sobre o menor I), e al. c) (abuso de uma situação de particular vulnerabilidade do menor, nomeadamente por razões de deficiência deste).
Não ocorre, no caso dos autos, qualquer agravação, mormente em função do que dispõe o art. 177º, nº 1, als. b) e c) – situações já abarcadas pelo art. 172º, nº 1, als. b) e c), sob pena de uma dupla valoração da conduta do arguido.
(…)
II – FUNDAMENTAÇÃO
1 - Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, as cominadas como nulidade da sentença, artigo 379º, nº 1 e nº 2, do mesmo Código e as nulidades que não devam considerar-se sanadas, artigos 410º, nº 3 e 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, a este propósito cfr. ainda o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça de 19-10-1995, publicado no D.R. I-A Série, de 28-12-1995 e, entre muitos outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 25-06-1998, B.M.J. nº 478, pág. 242 e de 03-02-1999, B.M.J. nº 484, pág. 271 e, bem assim Simas Santos e Leal-Henriques, em “Recursos em Processo Penal”, Rei dos Livros, 7ª edição, pág. 71 a 82).
No caso em apreço, atendendo às conclusões constantes do recurso interposto, as questões que se suscitam são as seguintes:
- Impugnação do Acórdão proferido relativamente à matéria de facto provada nos pontos 8 a 12, por erro de julgamento, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal e por as perícias terem sido realizadas pelo mesmo perito, devendo os mesmos serem considerados não provados.
- Impugnação do Acórdão proferido relativamente à matéria de direito, por os factos provados não serem subsumíveis ao tipo legal de crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, previsto e punido pelo artigo 172º, nº 1, alíneas b) e c), do Código Penal, por não constituírem actos sexuais de relevo e não colocarem em causa a autodeterminação sexual do ofendido.
- Impugnação do Acórdão proferido relativamente à matéria de direito, os factos provados porque situados no mesmo espaço temporal, no mesmo local e nas mesmas circunstâncias e com a mesma vítima, constituírem um só crime continuado.
- Da impugnação do Acórdão proferido relativamente à matéria de facto provada nos pontos 8 a 12, por erro de julgamento, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, devendo os mesmos serem considerados não provados.
É sabido que constitui princípio geral que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no artigo 428º, do Código de Processo Penal, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no artigo 412º, nº 3 e, nº 4, do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Da impugnação do Acórdão proferido, por erro de julgamento da matéria de facto, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, devendo os factos não provados sob os pontos 8 a 12, serem considerados como não provados.
É sabido que constitui princípio geral que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no artigo 428º, do Código de Processo Penal, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro da impugnação alargada, se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no artigo 412º, nº 3 e, nº 4, do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
O erro de julgamento, ínsito no artigo 412º, nº 3, do Código de Processo Penal, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelo nº 3 e, nº 4, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
E, é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros “in judicando” (violação de normas de direito substantivo) ou “in procedendo” (violação de normas de direito processual), que o recorrente deverá expressamente indicar e se lhe impõe o ónus de proceder a uma tríplice especificação, nos termos constantes do nº 3, do artigo 412º, do Código de Processo Penal.
No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão revidenda, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe porque deveria o tribunal ter decidido de forma diferente.
Ou, por outras palavras, como se afirma no Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-03-2012, publicado no D.R., I Série, nº 77, de 18-04-2012, “Impõe-se ao recorrente a necessidade de observância de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta especificação dos concretos pontos da matéria de facto, que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.
A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.
O especial/acrescido ónus de alegação/especificação dos concretos pontos de discórdia do recorrente (seja ele arguido, ou assistente), em relação à fixação da facticidade impugnada, bem como das concretas provas, que, em seu entendimento, imporão (iam) uma outra, diversa, solução ao nível da definição do campo temático factual, proposto a subsequente tratamento subsuntivo, justifica-se plenamente, se tivermos em vista que a reapreciação da matéria de facto não é, não pode ser, um segundo, um novo, um outro integral, julgamento da matéria de facto.
Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.”.
Cabe aqui evidenciar, um Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que lança luz sobre a questão em apreço.
Como, de forma impressiva, refere o Conselheiro Carmona da Mota no acórdão do STJ de 27-02-2003, Proc. 140/03, “ii. O valor da prova, isto é a sua relevância enquanto elemento reconstituinte do facto delituoso imputado ao arguido depende fundamentalmente da sua credibilidade: ou seja, a sua idoneidade e autenticidade. iii. A credibilidade da prova por declarações depende essencialmente da personalidade, do carácter e da probidade moral de quem as presta, sendo que tais características e atributos, em princípio, não são apreensíveis ou detectáveis mediante o exame e análise das peças ou textos processuais onde as declarações se encontram documentadas, mas sim através do contacto pessoal e directo com as pessoas. iv. O tribunal de recurso, salvo casos de excepção, deve adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido".
Ou seja, e como assinala Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, pág. 204 e sgs., a convicção do juiz há-de ser uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade meramente cognitiva, mas também elementos racionalmente não explicáveis - v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova, e mesmo puramente emocionais. Em todo o caso, também ela uma convicção objectivável e motivável, capaz de se impor aos outros.
Uma tal convicção existirá quando e só quando o Tribunal tenha logrado convencer-se da verdade, para além de toda a dúvida razoável.
E, nesta matéria assume-se, como fundamental, o princípio da imediação, isto é, a relação de proximidade comunicante entre o Tribunal e os participantes no processo, de modo tal que aquele possa obter uma percepção própria do material que haverá de ter como base da sua decisão.
Só a oralidade e imediação, com efeito, permitem avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais.
Postos estes considerandos e sem os olvidarmos, decorre da peça recursiva apresentada pelo recorrente que pretende impugnar os factos provados sob os pontos 8 a 12 que deverão ser considerados como não provados.
Como se pode ler no Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05-06-2002, proferido no processo nº 0210320, disponível em www.dgsi.pt, “a actividade dos juízes, como julgadores, não pode ser a de meros espectadores, receptores de depoimentos. A sua actividade judicatória há-de ter necessariamente, um sentido crítico. Para se considerarem provados factos não basta que as testemunhas chamadas a depor se pronunciem sobre as questões num determinado sentido, para que o juiz necessariamente aceite esse sentido ou versão. Por isso, a actividade judicatória, na valoração dos depoimentos, há-de atender a uma multiplicidade de factores, que têm a ver com as garantias de imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem, o tom de voz, o comportamento, os tempos de resposta, as coincidências, as contradições, o acessório, as circunstâncias, o tempo decorrido, o contexto sociocultural, a linguagem gestual (inclusive, os olhares) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para poder perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade e até que ponto é que, consciente ou inconscientemente, poderá a mesma estar a ser distorcida, ainda que, muitas vezes, não intencionalmente. (…) Assim, a reapreciação das provas gravadas pelo Tribunal da Relação só pode abalar a convicção acolhida pelo tribunal de 1ª instância, caso se verifique que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas recolhidas.”.
Ao Tribunal “a quo” fundamentou a sua convicção sobre os factos provados, nas declarações de I que apesar das dificuldades de expressão, mostra-se assertivo nas suas afirmações, respondendo de forma espontânea, sincera e globalmente convincente, à luz das regras de experiência comum.
Os depoimentos das testemunhas C e a C, que confirmam as declarações do I.
Por outro lado, os depoimentos das testemunhas são R, L e C, sobre os episódios ocorridos na sala são coerentes com as regras da experiência comum.
Também os depoimentos dos jovens C e L, sobre as ocorrências no interior do quarto pela credibilidade que transmitiram ao Tribunal Colectivo e são susceptíveis de fundamentar essa mesma convicção.
Quanto à prova pericial tem lugar quando a percepção ou a apreciação dos factos exigem conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos – artigo 151º, do Código de Processo Penal, sendo realizada por perito constante da lista de peritos existentes na comarca, constituída por pessoas de honorabilidade inquestionável, de reconhecida competência e sobre compromisso.
Podendo sempre ser exercido o contraditório através de outros peritos ou consultores técnicos.
Elaborando um relatório final, com um especial dever de fundamentação, onde expressam as suas respostas e conclusões.
Tal juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador, e sempre que a convicção do julgador divergir do juízo e do parecer dos peritos, deve fundamentar tal divergência.
Por tal não se compreende como poderão tais meios de prova não ser validados, sem qualquer fundamento sério e factualmente comprovado, como meio de prova nos presentes autos.
Com o devido respeito pela opinião contrária, entendemos que o alegado pelo recorrente, constituindo uma diferente análise valorativa da prova produzida, não demonstra a imposição lógica de uma decisão diversa.
Atenta a prova em causa, não há motivo bastante, ao contrário do pretendido pelo recorrente, que justifique qualquer alteração do decidido pela instância recorrida, não assistindo razão àquele que, no fundo, pretende substituir-se ao julgador, na apreciação da prova, mau grado a forma clara e isenta de dúvidas pelas quais foram dados como provados os factos em análise, num processo explicativo que se mostra suficientemente objectivado e motivado, capaz, portanto, de se impor aos outros.
No nosso ordenamento jurídico, e particularmente no processo penal, não existe prova tarifada, inexistindo regras de valoração probatória que vinculem o julgador, pelo que, por regra, qualquer meio de prova deve ser analisado e valorado de acordo com o artigo 127º do CPP - princípio da livre apreciação da prova – onde se estipula que: Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Tal princípio assenta, fundamentalmente, em duas premissas:
A de que o juiz decide de forma livre e de acordo com a sua íntima convicção, formada a partir do confronto das provas produzidas em audiência.
E que tal convicção há-de ser formada com base em regras de experiência comum.
Nestes termos, o juiz não está sujeito a critérios de valoração de cada um dos meios probatórios, legalmente pré-determinados, sistema da prova legal, sendo o tribunal livre na apreciação que faz da prova e na forma como atinge a sua convicção.
Contudo, sendo esta uma apreciação discricionária, não é a mesma arbitrária, tendo a referida apreciação os seus limites.
Não verdade, livre convicção não pode ser sinónimo de arbitrariedade.
Ou seja, a livre apreciação da prova tem sempre de se traduzir numa valoração "racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência (…), que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão” de modo a que seja possível, por qualquer pessoa, entender porque é que o tribunal se convenceu de determinado facto, ou, dito de outro modo; porque é que o juiz conferiu credibilidade a uma testemunha e descredibilizou outra, por exemplo.
Como se diz no Ac. da Relação de Coimbra, de 18-02-2009, proferido no proc. 1019/05.0GCVIS.IC, disponível em www.dgsi.pt:
“A sindicância da matéria de facto na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações (cfr ac. do S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375, www.dgsi.pt):
1º) – A que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
2º) – A que decorre da natural falta de oralidade e de imediação, com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
3ª) – A que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disse;
4ª) – A que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida (al. b) do nº3 do citado artigo 412º)”.
A prova que se produziu permite o cenário factual assumido pela instância recorrida, que explicou e fundamentou a sua decisão de acordo com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
E isso foi feito, poder-se-á dizer, de modo perfeitamente inteligível para qualquer leitor, que logo compreenderá o modo de valoração das provas e o juízo resultante dessa mesma aferição efectuado pelo tribunal “a quo”, sendo manifesto que as razões que presidiram à motivação da matéria de facto provada se apresentam como lógicas, racionais e coerentes com o conjunto da prova produzida.
O raciocínio do tribunal recorrido sobre a prova produzida não se mostra inadequado às regras de experiência, à normalidade da vida e à razoabilidade das coisas, razão pela qual, não merecendo censura, não é sindicável por este tribunal, inexistindo por isso motivos para alterar o desenho factual feito pela instância sindicada.
O presente tribunal só poderia alterar o decidido factualmente pela 1ª instância se existissem provas nos autos que impusessem decisão diferente e “in casu”, embora a prova produzida, eventualmente e no entender do recorrente, permitisse uma decisão de facto em sentido diverso, ela não impunha decisão distinta, pelo que o pretendido por aquele está destinado ao fracasso.
A definição do quadro probatório dos autos foi efectuado ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no art. 127º do CPP, nada decorrendo dos elementos probatórios produzidos que imponha a sua alteração.
Assim, em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal “ad quem” não pode deixar de julgar improcedente a impugnação alargada da matéria de facto por parte do recorrente J.
Quanto aos vícios da matéria de facto, nos termos do preceituado no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal.
Cumpre por obediência à jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, deixar exarado que a sentença recorrida, por si ou com recurso às regras da experiência, não revela qualquer dos vícios prevenidos no nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal.
A alteração da factualidade assente na 1ª instância poderá ocorrer pela verificação de algum destes vícios a que aludem as alíneas do nº 2, do artigo 410º, do Código de Processo Penal, a saber: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e c) o erro notório na apreciação da prova – cfr. ainda artigo 431º, do citado diploma –, verificação que, como acima se deixou editado, se nos impõe oficiosamente.
Em comum aos três vícios, terá o vício que inquina o Acórdão em crise que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugadamente com as regras da experiência comum.
Quer isto significar que não é possível o apelo a elementos estranhos à decisão, como por exemplo quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento, só sendo de ter em conta os vícios intrínsecos da própria decisão, considerada como peça autónoma – cfr. Maia Gonçalves, “Código de Processo Penal Anotado”, Almedina, 16ª ed., pág. 871, Simas Santos e Leal-Henriques, “Recursos em Processo Penal”.
Com efeito, investigada que foi a materialidade sob julgamento, não se vê que a matéria de facto provada seja insuficiente para fundar a solução de direito atingida, não se vê que se tenha deixado de investigar toda a matéria de facto com relevo para a decisão final, nomeadamente, não resulta da sentença recorrida, a insuficiência da matéria de facto para a subsunção jurídica nos termos em que foi efectuada relativamente aos tipos jurídicos.
Não se vê qualquer inultrapassável incompatibilidade entre os factos julgados provados ou entre estes e os factos julgados não provados ou entre a fundamentação probatória e a decisão, e, de igual modo, não se detecta na decisão recorrida, por si e com recurso às regras da experiência comum, qualquer falha ostensiva na análise da prova ou qualquer juízo ilógico ou arbitrário, nomeadamente, que se verifique constarem da sentença recorrida factos abusivamente tidos como provados.
Por outro lado, conceda-se, a decisão recorrida, como já se afirmou, não deixa de expor, de forma clara e lógica, os motivos que fundamentaram a decisão sobre a matéria de facto, com exame criterioso, das provas que abonaram a decisão, tudo com respeito do disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal.
A decisão recorrida está elaborada de forma equilibrada, lógica e fundamentada.
O Tribunal “a quo” decidiu segundo a sua livre convicção e explicou-a de forma objectiva e motivada e, portanto, capaz de se impor aos outros.
Em consequência, mantém-se e, sedimentada se mostra, a factualidade assente pelo Tribunal “a quo”, não se vislumbrando na decisão recorrida vício ou nulidade cujo conhecimento oficiosamente ou a requerimento se imponha a este Tribunal “ad quem”.
Por tal, não resulta existir qualquer dos vícios constantes do disposto no artigo 410º, nº 2, alíneas a), b) ou, c), do Código de Processo Penal, bem como não se mostra verificado qualquer nulidade do Acórdão, nos termos do disposto no artigo 379º, nº 1 e, nº 2, do mesmo Código ou nos termos dos artigos 410º, nº 3 e, 119º, nº 1, do mesmo diploma legal, que não devam considerar-se sanadas.
Ou seja, analisada a prova produzida, não se vê que o Tribunal recorrido tenha concluído de forma contrária às regras da experiência e da lógica.
Assim, em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal “ad quem” não pode deixar de julgar improcedente a eventual invocada impugnação alargada da matéria de facto por parte do recorrente.
Não se verifica nenhuma violação do princípio da presunção da inocência, constante do artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, ou qualquer violação do princípio “in dubio pro reo”.
O que não viola qualquer garantia de defesa do arguido, nos termos do disposto no artigo 32º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa, do disposto no artigo 11º, nº 1, da Declaração Universal dos Direitos do Homem, do disposto no 14º, nº 2, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos e, do disposto no artigo 6º, nº 2, da Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais.
Assim, em conclusão, decorre, necessariamente, que este Tribunal “ad quem” não pode deixar de julgar improcedente a invocada impugnação alargada da matéria de facto por parte do recorrente J.
- Da impugnação do Acórdão proferido relativamente à matéria de direito, por os factos provados não serem subsumíveis ao tipo legal de crime de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, previsto e punido pelo artigo 172º, nº 1, alíneas b) e c), do Código Penal, por não constituírem actos sexuais de relevo e não colocarem em causa a autodeterminação sexual do ofendido.
Decorre do disposto no artigo 172º, do Código Penal, que:
“Quem praticar ou levar a praticar ato descrito nos nº 1 ou 2 do artigo anterior, relativamente a menor entre 14 e 18 anos:
(…)
b) Abusando de uma posição de manifesta confiança, de autoridade ou de influência sobre o menor; ou
c) Abusando de outra situação de particular vulnerabilidade do menor, nomeadamente por razões de saúde ou deficiência”.
Resultando do artigo 171º, nº 1 e nº 2, do Código Penal, que:
“Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo com outra pessoa, é punido com pena de prisão de um a oito anos”.
Resulta do Acórdão recorrido, que passamos a transcrever por subscrever na íntegra a fundamentação do aí escrito: “A lei não fornece a definição de ato sexual de relevo. Mas doutrinal e jurisprudencialmente tem-se considerado ato sexual de relevo toda a conduta que ofenda bens jurídicos fundamentais ou valores essenciais das pessoas quanto à sua livre expressão do sexo. O tipo legal está, pois, limitado pelo uso da expressão restritiva “de relevo”.
O direito criminal, como ultima ratio, implica que só seja tutelada a liberdade sexual contra ações que revistam certa gravidade.
Em tais termos, atos como o coito oral e a masturbação devem aqui ser incluídos (aliás como expressamente estatui o nº 2 do artigo 171º do Código Penal); o mesmo não sucederá, em regra, com os “toques” e os beijos, por exemplo, que só o deverão ser em casos mais extremos, ou seja, naqueles em que existem grande intensidade objetiva e intuitos sexuais atentatórios da autodeterminação sexual, nomeadamente e no que diz respeito ao “toque” por se dirigirem a zonas genitais, erógenas ou particularmente sensíveis.
Conforme ensinam Leal-Henriques e Simas Santos, “repescando o sentido legislativo imanente ao preceito correspondente do Código anterior - onde se considerou que nem todo o ato ofensivo do pudor cabia na previsão da norma, mas apenas os que ofendiam gravemente os sentimentos gerais de moralidade sexual, com exclusão, portanto, das atitudes anódinas como, por exemplo, um simples beijo, que não têm dignidade criminal”, forçosa é a conclusão de que não é qualquer ato de natureza sexual que serve ao espírito do artigo, mas apenas aqueles atos que constituam uma ofensa séria e grave à intimidade e liberdade do sujeito passivo e invadam, de uma maneira objetivamente significativa, aquilo que constitui a reserva pessoal, o património íntimo, que no domínio da sexualidade, é apanágio de todo o ser humano, e, no caso concreto, especialmente das crianças.
Também o Prof. Figueiredo Dias acentua que é de excluir do ato sexual de relevo não apenas os atos insignificantes ou bagatelares, mas também aqueles que não representem entrave com importância para a liberdade de determinação sexual da vítima, v.g. atos que, embora pesados ou em si significantes por impróprios, desonestos, da mau gosto ou despudorados, todavia, pela sua pequena quantidade, ocasionalidade ou instantaneidade, não entravem de forma importante a livre determinação sexual da vítima.
A conduta, para ser de relevo terá de ser intensa, objetivamente grave e traduzir intuitos e desígnios sexuais que frontalmente sejam atentatórios da autodeterminação sexual da vítima.
O Supremo Tribunal de Justiça considerou tratarem-se de atos sexuais de relevo “os atos de masturbação, os beijos procurados nas zonas erógenas do corpo, como os seios, a púbis, o sexo… também se deve incluir no conceito de ato sexual de relevo a desnudação de uma mulher e o constrangimento a manter-se despida para satisfação dos apetites sexuais do agente.”
Sénio Alves, a propósito do que sejam atos sexuais de relevo refere que estes se aproximam daquilo que vulgarmente se designa como “preliminares da cópula” e, por isso, são atos de natureza sexual ou, se se preferir, “atos com fim sexual”, pelo que e, sintetizando, “o ato sexual de relevo é, assim, todo o comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais (ainda que não comporte o envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes) que ofende, em grau elevado, o sentimento de timidez e vergonha comum à generalidade das pessoas”.
O bem jurídico protegido através da norma transcrita é a autodeterminação sexual, sendo que, face à idade da vítima, a prática destes crimes pode ter consequências graves no desenvolvimento da sua personalidade.
Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 05-09-2007, “a lei presume que a prática de atos sexuais em menor, com menor ou por menor de certa idade, prejudica o seu desenvolvimento global, e considera este interesse tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob a tutela da pena criminal. Protege-se, pois, uma vontade individual ainda insuficientemente desenvolvida, e apenas parcialmente autónoma, dos abusos que sobre ela executa um agente, aproveitando-se da imaturidade do jovem (…). O que está em causa não é somente a autodeterminação sexual mas, essencialmente, o direito do menor a um desenvolvimento físico e psíquico harmonioso, presumindo-se que este estará sempre em perigo quando a idade se situe dentro dos limites definidos pela lei”.
Ato sexual de relevo é “todo aquele (comportamento ativo...) que, de um ponto de vista predominantemente objetivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado diretamente relacionado com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de autodeterminação sexual de quem a sofre ou pratica”.
Como se lê ainda no Acórdão da Relação de Guimarães de 12-04-2010 «embora o conceito de “ato sexual de relevo” tenha suscitado alguma polémica na doutrina e jurisprudência nacionais, afigura-se-nos que o mesmo tem de ter uma relação com o sexo (relação objetiva), tem de tratar-se de um comportamento destinado à libertação e satisfação dos impulsos sexuais embora possa não haver envolvimento dos órgãos genitais de qualquer dos intervenientes, e em que haja da parte do seu autor a intenção de satisfazer apetites sexuais (esta intencionalidade ou motivação específica do agente não é, porém exigida por um sector minoritário da doutrina e jurisprudência - cfr. Ac. da Rel. de Coimbra de 12-1-1996, Col. de Jur. ano tomo 1, pág. 165 e Inês Ferreira Leite, Pedofilia, Coimbra, 2004, págs. 76-77 e 86-88).
Para além disso o tipo está limitado pelo uso da expressão restritiva “de relevo” pelo que a liberdade/autodeterminação sexual só está tutelada criminalmente contra ações que constituam grave entrave para a liberdade ou autodeterminação sexual da vítima [tais como o beijo na boca, a exposição dos órgãos genitais, o apalpar os seios, pressionar a zona púbica, ejacular ou urinar sobre a vítima, esfregar o pénis no rabo da menor simulando a cópula - exemplos colhidos da doutrina e da jurisprudência, para além dos indicados no nº 2 do citado artigo 172º (cópula, coito anal, coito oral, introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objetos) - sobre o conceito de “ato sexual de relevo” cfr. Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, 17ª ed., Coimbra, 2005, pág. 578-579, Fernando João Ferreira Ramos, Notas sobre os crimes sexuais no projeto de revisão do Código penal de 1982, RPCC, ano 3º, fasc. 1 (Janeiro-Março 1993), pág. 55 Sénio Reis Alves, Crimes Sexuais, Coimbra, 1995, págs. 7-12; José Mouraz Lopes, Os Crimes contra a Liberdade e Autodeterminação Sexual no Código Penal, 4ª ed., Coimbra, 2008, págs. 23-31, Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense, Tomo I, Coimbra, pág. 447 a 450, §§7 a 13 inclusive, e pág. 543, §6 e Inês Ferreira Leite, Pedofilia, cit., págs. 75 e seguintes; na jurisprudência dos tribunais superiores merecem destaque os Acs. do S.T.J. de 31-10-1995, B.M.J. n.º 450, pág. 165, de 16-5-1996, proc.º nº 136/94, de 17-10-1996 e de 20-10-1996, os dois últimos in Col. de Jur.- Acs. do S.T.J., ano IV, tomo 3, pág. 170 e B.M.J. nº 460, pág. 605, respetivamente, e de 12-07-2005, proc. nº 05P2442, in www. dgsi.pt, o Ac. da Rel. de Coimbra de 12-01-1996, in Col. de Jur. ano XXI, tomo 1, pág. 165, o Ac. da Rel. de Évora de 14-11-2006, proc. nº 2864/05-1, rel. João Gomes de Sousa, e o recente Ac. da Rel. do Porto de 27-1-2010, proc. nº 1044/07.7GGMTS.P1, rel. Olga Maurício, ambos in www. dgsi.pt».
No crime de abuso sexual de menores dependentes, o bem jurídico protegido reside no livre desenvolvimento da personalidade do menor na esfera sexual, ligado à ideia de que a liberdade e autodeterminação sexual de menores entre 14 e 18 anos, confiados a outrem para educação ou assistência, se encontra em princípio carecida de uma proteção particular.
Exige-se ainda que o menor entre os 14 e 18 anos de idade tenha sido confiado ao agente para educação ou assistência, verificando-se, pois, uma relação de dependência pessoal.
Encontra-se nesta relação de dependência o menor entre os 14 e 18 anos de idade que tenha sido confiado ao agente para educação ou assistência por força da lei, de decisão judicial ou de facto, encontrando-se nestes casos o agente investido num particular dever, não sendo necessário que tal relação tenha carácter permanente, pois pode ser temporária ou intermitente.
Educar significa assumir a direção e supervisão da condução da vida, promovendo o desenvolvimento físico e mental.
Sob a designação de assistência temos a colaboração na formação e no bem-estar do menor no conjunto dos aspetos físicos e mentais.
Descendo ao caso concreto, está desde logo provado que:
- No CAT – Centro de Acolhimento Temporário de Crianças e Jovens em Risco encontravam-se integradas e internadas várias crianças de 9 a 18 anos, quer do sexo feminino, quer do sexo masculino, um dos quais era I, nascido em 22-03-2005, que aí foi acolhido, em 09-01-2015, em cumprimento de medida de acolhimento residencial, decretada em 19-12-2014, no processo de promoção e proteção n.º968/10.9TBABT, e revista consecutivamente, até 22-03-2023, data em que cessou a medida de acolhimento residencial por o mesmo ter atingido a idade de 18 anos.
- I padece, desde nascença, de esclerose tuborosa e epilepsia sintomática, com crises parciais complexas, padecendo ainda de um quadro de debilidade mental moderada, a que corresponde o código F71 da International Classification of Diseases and Related Health Problems, Tenth Revision (ICD-10), com um atraso global no desenvolvimento psicomotor, sobretudo a nível cognitivo e psicomotor, com manifestas dificuldades e repercussões no pensamento, linguagem e comportamento. Ivo Anjos apresenta um coeficiente de inteligência (QI) no nível Muito Inferior (45) com um funcionamento cognitivo homogéneo (QI verbal - 45 e QI de realização - 50). O perfil constituído pelos diversos sub-testes é homogéneo, sendo que todas as pontuações foram de 1 a nível verbal e oscilaram entre 1 e 5 ao nível de realização (escala de 1 a 19).
Os índices de compreensão verbal (medida de conhecimentos adquiridos e raciocínio verbal), de organização percetiva (medida de atenção aos detalhes e integração visuomotora) e a velocidade de processamento estão num nível Muito Inferior (50, 56 e 51 respetivamente). O que se traduz na existência de um vocabulário bastante empobrecido, que dificulta a expressão de ideias, o desconhecimento de informação geral como, por exemplo, quantos meses tem um ano ou o que mede um termómetro e ausência de conhecimentos ao nível do cálculo.
O pensamento é do tipo concreto, havendo por isso, dificuldade em aceder a questões que requerem maior elaboração e abstração, apesar de possuir suficiente capacidade de compreensão.
A existência de uma postura interpessoal submissa e de agrado face ao outro, particularmente perante figuras de autoridade são fatores de vulnerabilidade pessoal que, conjugado com as estratégias utilizadas pelo agressor (aproveitamento de uma relação de familiaridade e de um estatuto de autoridade, manipulação do comportamento do jovem perante as suas dificuldades de juízo social, desconhecimento de informações sobre a sexualidade) levam a que não houvesse à data dos factos uma autodeterminação sexual por parte de I.
- Ainda assim, I tem uma noção do certo e do errado, o que lhe permite fazer alguns juízos morais, mormente sobre o cariz desadequado de certas condutas, como as descritas nos autos.
- O arguido J, nascido em 27-01-1969, desde o ano de 2008 e até agosto de 2022, com exceção do período entre março de 2020 e março de 2021 (em que as visitas ao CAT estiveram interrompidas por causa da pandemia Covid-19), frequentava, semanalmente, o CAT – Centro de Acolhimento Temporário de Crianças e Jovens em Risco, com o conhecimento e a autorização da então Diretora Técnica Inês Graça, tendo dessa forma livre acesso e contacto próximo com as crianças acolhidas, bem como acesso, durante horário situado desde o final da tarde mas antes da hora de jantar, até depois de os jovens se deitarem, cerca das 22 ou 23 horas, às zonas privadas, como sala, quartos e casas de banho, onde as crianças pernoitavam e faziam a sua higiene pessoal.
- Em data não concretamente apurada situada pelo verão de 2021, o arguido J, no interior do CAT, tocou e acariciou, com uma das suas mãos ou com ambas, o pénis de I, que nesse período teria 16 anos de idade, tendo agarrado e rodeado com a(s) sua(s) mão(s) o pénis do I, friccionando-o e feito vários movimentos ritmados para cima e para baixo, para a frente e para trás.
- Em dias não concretamente apurados, mas situados pelo verão de 2021, no interior do CAT, o arguido, no sofá da sala comum, em número de vezes não exatamente determinadas mas, pelo menos, por duas vezes, quando se encontrava sentado junto de I, apalpou e acariciou com as suas mãos, por cima da roupa, o pénis e a zona genital do I.
- Em dia não concretamente apurado, em finais de agosto/inícios de setembro de 2021, e ao final do dia, o arguido no interior do quarto de I, no CAT, tocou, com as suas mãos, por cima da roupa, no pénis de I, apalpando e acariciando a sua zona genital, tendo sido nesse momento surpreendido por C.
- Em todas as situações supra descritas, o arguido tinha perfeito conhecimento de que era maior e da idade de I, que era uma criança menor, com 16 anos, e que o mesmo padecia de vários problemas de saúde, mais concretamente os acima melhor descritos, os quais afetavam as suas capacidades cognitivas e de expressão.
- Sabia ainda que ao estar com muito frequência no CAT e dia-a-dia com I, dando-lhe atenção, se tinha estabelecido entre ambos uma relação baseada na confiança, cuidado, influência e ascendente que o arguido tinha sobre I, potenciada pelas manifestas debilidades cognitivas e de comunicação de I, que o via, assim, também como seu cuidador e responsável.
- O arguido atuou sempre das formas supra descritas, visando a sua satisfação sexual e ímpetos libidinosos, bem sabendo que, ao agir das formas acima descritas, atentava contra a autodeterminação e o normal desenvolvimento sexual de I, obrigando-o a praticar e a tolerar atos de natureza sexual, consciente da sua idade.
- O arguido atuou, em cada uma das vezes acima descritas, bem sabendo e querendo aproveitar-se da relação de proximidade e de afeto estabelecida e das descritas limitações, também de comunicação, de I, que muito provavelmente não iria relatar a terceiros os atos sexuais que tinham sido contra este praticados ou, pelo menos, de forma percetível, e assim fez valer do ascendente e poder que tinha sobre este e das suas fragilidades.
- Mesmo consciente do supra referido e de que a sua conduta era proibida e punida por lei penal, o arguido atuou sempre, nas vezes e episódios acima descritos, de forma livre, voluntária, consciente e com o intuito concretizado de se satisfazer sexualmente, bem sabendo que estava a perturbar o normal desenvolvimento sexual de pessoa menor, com 16 anos de idade. O que fez ainda abusando da especial proximidade e confiança que o mesmo em si depositava, em virtude das funções que desempenhava no CAT e do facto de I se encontrar aí institucionalizado.
- O arguido, em todas as ocasiões acima referidas, agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua atuação era proibida e punida por lei penal. O que quis, fez e conseguiu.
Daqui decorre o preenchimento, pelo arguido, dos elementos objetivos e subjetivos que integram o crime em apreço, no caso o art. 172º, nº 1, al. b) (abuso de uma posição de manifesta confiança ou de influência sobre o menor I), e al. c) (abuso de uma situação de particular vulnerabilidade do menor, nomeadamente por razões de deficiência deste)”.
Entendemos, sem necessidade de outros considerandos porque sempre seriam redundantes, que o Tribunal “a quo” expressou de uma forma clara e transparente os fundamentos da subsunção jurídica dos factos provados e da consequente conduta do arguido J, no disposto no artigo 172º, nº 1, alíneas b) e c), do Código Penal.
Por tal, também nesta parte improcede o recurso interposto.
- Da impugnação do Acórdão proferido relativamente à matéria de direito, os factos provados porque situados no mesmo espaço temporal, no mesmo local e nas mesmas circunstâncias e com a mesma vítima, constituírem um só crime continuado.
O crime continuado (artigo 30º nº 2, do Código Penal), resulta da dificuldade com que os tribunais se deparam em determinar um concreto número de crimes ocorridos num determinado período de tempo.
Corresponde a um tipo agravado de culpa alicerçado na constatação de que é na persistência do propósito criminoso, relevado e intensificado em cada momento temporal e em cada conduta típica, de forma crescente, à medida que as condutas se vão repetindo, que vai também aumentando, quer o grau de ilicitude, quer a censurabilidade daquele conjunto de factos típicos.
Contudo as situações de abuso sexual reiteradas e prolongadas no tempo traduzem “comportamentos diferentes, que requerem do seu autor a criação de situações favoráveis de secretismo e condicionamento da vontade da vítima, aptos à concretização do resultado proibido, a que tendencialmente estarão associados diversos processos volitivos autónomos entre si e não uma única vontade, de cuja análise global, transparecem diferentes sentidos técnico-jurídicos de ilicitude que exige o seu enquadramento jurídico como concurso real de infrações” (Cfr. Cristina Almeida e Sousa, cit 26).
Portanto, terá de considerar-se que sempre que o crime de abuso sexual é praticado em momentos diferentes estamos na presença de mais um crime, tanto mais quanto a sua prática, pressupõe a criação pelo agente das circunstâncias que o permitam e que “em cada ato individualmente perpetrado a vítima é renovadamente lesada” - Helena Moniz in Crime de trato sucessivo - Revista Julgar on line, abril, 2018, pág. 22.
Por isto resulta expresso do disposto no nº 3, do mesmo artigo 30º, do Código Penal, que o disposto no nº 2, não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.
Sendo entendimento pacífico que o bem jurídico tutelado pelo crime abuso sexual de crianças, previsto no artigo 171º, do Código Penal, é a liberdade pessoal de decidir e de actuar, o sentimento pessoal de segurança, de paz interior, logo trata-se indubitavelmente de um bem jurídico pessoal ou eminentemente pessoal e, subsumível ao disposto no artigo 30º, nº 3, afastando a possibilidade de se poder considerar a sua prática na forma continuada, nos termos do nº 2, da mesma disposição legal, por não existir uma diminuição considerável de culpa.
Então, no caso concreto, como o crime de abuso sexual de menor dependente em situação particularmente vulnerável, atenta contra um bem jurídico eminentemente pessoal (a liberdade sexual de menor dependente em situação particularmente vulnerável), teremos de considerar que o arguido J não praticou um crime de abuso sexual na forma continuada, previsto e punido pelos artigos 172º, nº 1, alíneas b) e c), do Código Penal, mas sim quatro (4) crimes de abuso sexual de menores dependentes ou em situação particularmente vulnerável, previstos e punidos pelo artigo 172º, nº 1, alíneas b) e c), do Código Penal.
Improcede por isso o recurso também nesta parte.
Improcede, pois, na sua globalidade o recurso interposto pelo arguido J.
Em vista do decaimento total no recurso interposto pelo arguido J, ao abrigo do disposto nos artigos 513º, nº 1 e 514º, nº 1, do Código de Processo Penal, 8º, nº 5, com referência à Tabela III anexa, do Regulamento das Custas Processuais, impõe-se a condenação do recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que goze.
III - DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:
- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido J e, consequentemente, confirmar na integra o Acórdão recorrido.
Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) unidades de conta, sem prejuízo do eventual benefício de apoio judiciário de que goze.
Certifica-se, para os efeitos do disposto no artigo 94º, nº 2, do Código do Processo Penal, que o presente Acórdão foi pelo relator elaborado em processador de texto informático, tendo sido integralmente revisto pelos signatários.