SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
INCIDENTE DE INCUMPRIMENTO
FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO DE FACTO
REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
AUDIÇÃO PRESENCIAL DO ARGUIDO
OMISSÃO DE DILIGÊNCIAS ESSENCIAIS
NULIDADE INSANÁVEL
IRREGULARIDADE
Sumário

I - Na sequência do AUJ (STJ) n.º 11/2024, de 10 de setembro, é hoje incontroverso que, independentemente das razões subjacentes à ponderação da revogação da suspensão, a interpretação aplicativa do artigo 495º, n.º 2, do Código Processo Penal, conforme à C.R.P., nomeadamente em função das garantias de defesa que o processo penal deve proporcionar aos arguidos/condenados e do inerente princípio do contraditório, consagrados no seu artigo 32º, n.ºs 1 e 5, impõe a consideração de que a audição pessoal e presencial do condenado, com a presença do defensor, é obrigatória, sob pena de nulidade, ressalvadas as situações em que, tendo-lhe sido dado essa oportunidade, o próprio ou circunstâncias a ele imputáveis impeçam a sua audição, dado o forte impacto que, no caso, aquela decisão pode ter sobre a privação da liberdade do condenado, valor fundamental que implica reforçada exigência do contraditório, para poder considerar-se o seu exercício válido e substantivo.
II - Mesmo que os autos forneçam toda a informação relevante para decidir sobre revogação da suspensão da execução da pena de prisão imposta ao condenado, ainda assim não pode ser dispensada a audição presencial do arguido para este efeito.
III - A resposta à questão de saber se a preterição do direito à audição pessoal e presencial ocorreu por facto imputável ao arguido há-de resultar das concretas ocorrências processuais e circunstâncias indiciadas que o tribunal a quo deverá fixar no âmbito da fundamentação de facto da decisão sobre o incidente de incumprimento – art.97º, nº5, do CPP.
IV - Nesse sentido, o tribunal a quo deverá concretizar as diligências que realizou tendentes à audição do arguido, o resultado das mesmas e o motivo da sua frustração, tudo de modo a aferir da imputabilidade das razões de facto que a inviabilizaram, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão – art.97.º nº5 do CPP – de forma a permitir a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso, o que não se satisfaz com a argumentação lacónica de que o arguido se ausentou para paradeiro incerto ou outra de sentido equivalente.
V - Tal vício de fundamentação, se é que foram realizadas as diligências tendentes à audição presencial do arguido, hipótese em que – na negativa – estaríamos perante uma nulidade insanável, conduz a uma irregularidade prevista no art.123º, nº2, do Código Processo Penal.

Texto Integral

Processo: 199/20.0GDGDM.P1




Relator
João Pedro Pereira Cardoso
Adjuntos
1ºJorge Langweg
2ºMaria Deolinda Dionísio





SUMÁRIO
…………………………….
…………………………….
…………………………….





Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto



I – Relatório
No processo 199/20.0GDGDM, do Juízo Local Criminal de ... - Juiz 1, por despacho de 11 de maio de 2024 refª 459730373, foi revogada a suspensão da execução da pena de prisão de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão em que o arguido AA foi condenado nos presentes autos e, em consequência, determinado o seu efetivo cumprimento.
Notificado de tal despacho, e com ele não se conformando, veio o arguido recorrer da revogação da suspensão que, consequentemente, determinou o cumprimento da pena de prisão.
Baseia-se o recurso nos fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes
conclusões”, que se transcrevem:
I Na audiência de discussão e julgamento do dia 4 de Março de 2024 foi proferido despacho a determinar que se aguarde a resposta a todos os mandados de condução e detenção, pelo que terá que ser dada sem efeito a presente diligência, não se marcando nova data até se ter resposta a todos eles, indo, após, com vista ao Ministério Público para promover o que tiver por conveniente - conforme resulta da acta desse mesmo dia 4.3.2024, pelas 14h00, com a refª 457709498.
II E, no dia 9 de Abril de 2024 foi promovido: “Uma vez que existe nos autos a informação de que o arguido se encontrará em França, promovo que se solicite ao MNE através do endereço electrónico paradeiros@mne.pt que informem se o arguido se encontra registado em alguma embaixada ou consultado português e em caso afirmativo qual a morada ali registada do mesmo.”
III Posteriormente, por comunicação de 17 de Abril de 2024, veio o M.N.E. comunicar: “Com referência ao ofº em anexo, datado de 17.04.2024, sobre o assunto em epígrafe, tenho a honra de informar V. Exª que, depois de consultada a base de dados deste Ministério, verificou-se que o nacional AA, está ali registado, no Consulado Geral de Portugal em ..., com a inscrição consular nº ...63, desde 15JUN-2000, tendo apresentado a seguinte morada: ... ...”. (Negrito nosso)
IV No dia 2 de Maio de 2024 foi promovido: “Uma vez que deliberadamente o arguido se furta ao contacto com a DGRSP e com o próprio Tribunal, sendo desconhecido o seu actual paradeiro, renovo promoção de fls. 432.”
V Sucede, porém, que, pelo menos, desde 17 de abril de 2024 que o Tribunal a quo tomou conhecimento da residência do arguido/condenado no estrangeiro – nomeadamente, em ... - ....
VI Nenhuma medida foi tomada pelo tribunal a quo para, conhecendo a atual residência do condenado, notificá-lo na sobredita morada para comparecer na continuação da audiência de discussão e julgamento.
VII A audição pessoal do condenado, nos casos como os dos autos, é imprescindível e necessária (art. 495.º, n.º 2 CPP), sendo certo que, a exigência da presença do arguido é uma formalidade tão relevante que a Lei, no art. 119.º, c) do CPP, comina a sua preterição com nulidade insanavel (V.g., entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 12.05.2021).
VIII O despacho em crise, deveria ter sido obrigatoriamente precedido da audição pessoal do condenado, tanto mais que foi encontrado o seu paradeiro (V.g. informação do MNE).
IX A revogação da suspensão não constitui uma consequência automática da conduta do condenado.
XII Destarte, tendo sido preterida a prévia audição do condenado em relação à decisão que revogou a suspensão (como a tanto determina o art. 495.º, n.º 2 do CPP), o Tribunal a quo, cometeu a nulidade insanável prevista na al. c) do art. 119.º do CPP.
XIII Sem prescindir, o condenado não só não foi notificado da promoção de 2 de Maio de 2024, como não foi o condenado notificado, previamente à decisão proferida no despacho em crise, sobre a intenção e fundamentos do Tribunal a quo em revogar a suspensão.
XIV Não tendo o Tribunal a quo observado, assim, o contraditório do condenado / Apelante, tal inobservância constitui uma violação ao princípio do contraditório, consagrado no art. 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa.
XV A decisão do Tribunal a quo consubstancia verdadeira decisão surpresa – proibida no nosso Direito processual.
XVI Decidindo, como decidiu, neste particular, o Tribunal a quo fê-lo inopinadamente e com inobservância do princípio do contraditório.
XVII O Tribunal a quo, violou, entre outras, as disposições contidas no artigo 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa e nos artigos 495.º, n.º 2 e 119.º, c) ambos do CPP.

*
O recurso foi admitido para subir de imediato, nos autos e com efeito (retificado) suspensivo.
*
O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de 1ª instância apresentou resposta, defendendo a manutenção do despacho recorrido, com os fundamentos constantes do respetivo articulado.
*
Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto pugnou pela manutenção do despacho recorrido.
*
Cumprido o disposto no art.º 417.º, n.º 2, do Código do Processo Penal, procedeu-se a exame preliminar e, colhidos os vistos, foram os autos submetidos à conferência.
*

II - Fundamentação
É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (art.º 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do Código Processo Penal.
Cumpre apreciar
as seguintes questões:
1) Da nulidade do despacho recorrido: falta de audição presencial prévia do arguido/recorrente
2) Da falta de fundamentação do despacho recorrido e suas consequências
*
O despacho recorrido tem o seguinte teor:
“O arguido AA foi condenado na pena de única de DOIS ANOS E OITO MESES DE PRISÃO, suspensa na sua execução por quatro anos, com sujeição do arguido a regime de prova assente em plano de reinserção social a ser executado com vigilância e apoio da Direção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (artº 50º, nºs 1 e 5, 53, nº 3 e 54º todos do CP).
O condenado esteve presente na leitura da sentença (cf. acta com a referência 443302345).
Desde então, não obstante as tentativas de localização de paradeiro que foram efectuadas nestes autos, o condenado tem-se deliberadamente furtado a quaisquer contactos com o Tribunal ou com a Direcção Geral de Reinserção e dos Serviços Prisionais (DGRSP), desconhecendo o seu atual paradeiro.
O M.P. promoveu a revogação da pena suspensa aplicada nos autos.
Cumpre apreciar e decidir.
Nos termos promovidos, o arguido esteve presente na leitura da Sentença pelo que estava o mesmo consciente da condenação sofrida e da necessidade, designadamente, de cooperar com a DGRSP, e ao, deliberadamente, ausentar-se em paradeiro incerto, eximiu-se ao cumprimento da pena que lhe foi aplicada, revelando um total desprezo pela condenação sofrida.
Ora, com a sua conduta o arguido frustrou as expectativas do tribunal e as finalidades que estiveram subjacentes à aplicação do instituto da suspensão da execução da pena de prisão.
Perante tal cenário, outra opção não resta ao tribunal que a de revogar a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido por Sentença dos autos, porquanto, como acima se relatou, as finalidades da punição não podem definitivamente ser alcançadas, senão pela efectiva execução da pena de prisão.
Pelo exposto, nos termos do art. 56, nº1, alínea b) do Código Penal, revogo a suspensão da execução da pena de prisão de 2 (dois) anos e 8 (oito) meses de prisão em que o arguido foi condenado nos presentes autos e, em consequência, determino seu efectivo cumprimento pelo arguido AA.” – itálico nosso.
*
É atualmente incontroverso que, independentemente das razões subjacentes à ponderação da revogação da suspensão, a interpretação aplicativa do artigo 495º, n.º 2, do Código Processo Penal, conforme à C.R.P., nomeadamente em função das garantias de defesa que o processo penal deve proporcionar aos arguidos/condenados e do inerente princípio do contraditório, consagrados no seu artigo 32º, n.ºs 1 e 5, impõe a consideração de que a audição pessoal e presencial do condenado, com a presença do defensor, é obrigatória, sob pena de nulidade, ressalvadas as situações em que, tendo-lhe sido dado essa oportunidade, o próprio ou circunstâncias a ele imputáveis impeçam a sua audição, dado o forte impacto que, no caso, aquela decisão pode ter sobre a privação da liberdade do condenado, valor fundamental que implica reforçada exigência do contraditório, para poder considerar-se o seu exercício válido e substantivo.
Com efeito,
O artigo 495.º, n.º 2, do CPP, sob a epígrafe “Falta de cumprimento das condições de suspensão”, dispõe:
«2 – O tribunal decide por despacho, depois de recolhida a prova, obtido parecer do Ministério Público e ouvido o condenado na presença do técnico que apoia e fiscaliza o cumprimento das condições da suspensão, bem como, sempre que necessário, ouvida a vítima, mesmo que não se tenha constituído assistente.»
Sendo inquestionável que, atualmente, a revogação da suspensão da pena nunca é uma consequência automática, exigindo sempre um juízo de ponderação negativo, no sentido da constatação de que se frustraram as finalidades que estiveram na base da suspensão, impõe-se sempre, independentemente do(s) motivo(s) da eventual revogação, a prévia audição do condenado.
Com efeito, a revogação da suspensão configura uma alteração da sentença condenatória, já que, sendo a suspensão da execução da pena uma verdadeira pena (uma pena de substituição), a sua revogação traduz-se sempre no cumprimento pelo condenado de outra pena – a pena de prisão.
A revogação é um ato decisório que contende com a liberdade do arguido, que o atinge na sua esfera jurídica, o que implica o reconhecimento legal do direito constitucional de contraditório e de audiência.
Por isso, a jurisprudência mais recente tem, reiterada e uniformemente, considerado que a audição do condenado é obrigatória e que a sua falta constitui uma nulidade insanável, nos termos do art.º 119.º, alínea c), do Cód. Proc. Penal.
Nesse sentido o AUJ (STJ) n.º 11/2024, de 10 de setembro, in D.R. n.º 175/2024, Série I de 2024-09-10, fixou jurisprudência nos seguintes termos: “O despacho previsto no art. 495.º, n.º 2, do CPP, com fundamento no disposto no art. 56.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, deve ser precedido, salvo em caso de ausência por facto que lhe seja imputável, de audição presencial do condenado, nos termos dos arts. 495.º, n.º 2, e 61.º, n.º 1, als. a) e b), ambos do Código de Processo Penal, constituindo a preterição injustificada de tal audição nulidade insanável cominada no art.119.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal”.
Por isso, mesmo que os autos forneçam toda a informação relevante para decidir sobre revogação da suspensão da execução da pena de prisão imposta ao condenado, ainda assim não pode ser dispensada a audição presencial do arguido para este efeito.
Trata-se de assegurar que o condenado apresente perante o juiz as suas “razões” e contradiga os elementos de prova ou simplesmente os argumentos ou dados de facto trazidos ao processo que afetem a sua posição.
No presente caso, o despacho recorrido não foi precedido da audição pessoal e presencial prevista no citado artigo 495.º, n.º 2.
A questão que se coloca consiste em saber se a preterição desse direito à audição pessoal e presencial ocorreu por facto imputável ao arguido.
Ora, a resposta a esse problema há-de resultar das concretas ocorrências processuais e circunstâncias indiciadas que o tribunal a quo deverá fixar no âmbito da fundamentação de facto da decisão sobre o incidente de incumprimento – art.97º, nº5, do Código Processo Penal.
Nesse sentido, o tribunal a quo deverá concretizar as diligências que realizou tendentes à audição do arguido, o resultado das mesmas e o motivo da sua frustração, tudo de modo a aferir da imputabilidade das razões de facto que a inviabilizaram, devendo ser especificados os motivos de facto e de direito da decisão – art.97.º nº5 do C.P.Penal – de forma a permitir a sua impugnação e o reexame da causa pelo tribunal de recurso.
Ora, neste particular o tribunal a quo nada referiu no despacho recorrido, ficando por conhecer as concretas diligências e razões da falta de audição presencial do arguido, quando apenas aquelas que lhe são imputáveis dispensavam a obrigatoriedade de o ouvir pessoal e presencialmente.
Não basta, pois, afirmar genericamente que o arguido deliberadamente se ausentou para paradeiro incerto.
De tão genérica e abstrata, esvaziadas de conteúdo preciso, o destinatário e o tribunal de recurso ficam sem perceber o que de útil, em concreto, o tribunal fez, extraiu e valorou para audição presencial do arguido e o motivo pelo qual assim decidiu, sem o ouvir pessoalmente.
Inegavelmente o dever de fundamentação das decisões dos tribunais, que não de mero expediente, tem sustentação constitucional (art. 205º, nº 1, da CRP), de modo a que as mesmas sejam sindicáveis, garantindo-se o contraditório e o direito de defesa, constitucionalmente consagrado no artigo 32º nº 5 da CRP, e também nos artigos 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e 10º da Declaração Universal dos Direitos do Homem.
Esse princípio, que se afirma em todo o processo penal enquanto garante do seu caráter bilateral e do equilíbrio das partes em confronto, impõe que qualquer decisão judicial, ainda que interlocutória ou recorrível, só seja proferida depois de o sujeito processual contra a qual é dirigida poder contestar, discutir e valorar o respetivo objeto.
Atentas as várias situações em que o princípio do contraditório se impõe, a sua efetivação não tem sempre as mesmas formalidades e exigências, sendo o respetivo grau de amplitude naturalmente proporcional ao tipo de consequências que podem advir para a parte da respetiva decisão judicial a proferir.
A concretização do princípio do contraditório não tem que assumir a mesma forma em todos os atos processuais e deve ter em conta a gravidade da decisão que venha a ser proferida, aferida pelos seus efeitos, na sequência da audição a que a autoridade judiciária proceda.
Ora, o despacho que revoga a suspensão da execução da pena é, assim maioritariamente entendido, um despacho que não pode deixar de integrar-se na decisão final, dando efetividade à condenação em pena de prisão.
No caso concreto, dado que o incidente de incumprimento podia, como aconteceu, legalmente determinar a alteração do regime de execução da prisão, é incontroverso que a decisão final do incidente contende diretamente com o núcleo essencial dos direitos fundamentais dos cidadãos, no caso o direito à liberdade e segurança (art.27º, da C.R.P.)
Ora, uma decisão deste tipo e importância tem de ser necessariamente precedida de um contraditório o mais eficaz possível, que possibilite ao condenado uma efetiva e real possibilidade do exercício de defesa e pronúncia na discussão dos seus argumentos e eventual comprovação dos motivos dos pressupostos da modificação da execução da pena, mas também de uma fundamentação de facto (art.97º, nº5, do Código Processo Penal) capaz de espelhar as inferências lógicas do julgador quanto à impossibilidade de o assegurar.
Por assim ser, a decisão final do incidente de incumprimento não se compadece com a fundamentação lacónica de que o arguido se ausentou para paradeiro incerto ou outra de sentido equivalente, o que não satisfaz minimamente as exigências constitucional e legal da fundamentação, mormente quando se trate de apreciar e decidir questões que envolvem direitos, liberdades e garantias, como é o caso.
Tal vício de fundamentação, se é que foram realizadas as diligências tendentes à audição presencial do arguido, hipótese em que – na negativa – estaríamos perante uma nulidade insanável, conduz a uma irregularidade prevista no art.123º, nº2, do Código Processo Penal.
Considerando que a irregularidade que se evidencia do texto da decisão recorrida atinge valores e princípios que extravasam o interesse dos concretos sujeitos processuais, deve a mesma ser declarada oficiosamente por este tribunal de recurso e determinada a sua reparação pelo tribunal a quo, nos termos e ao abrigo do disposto no art.123º n.º 2, ocorrendo a invalidade de todos os efeitos desse ato e de todos os subsequentes dele dependentes.
A extrema gravidade e consequências da imperfeição que atinge o ato decisório determina que o tribunal de recurso possa declarar a sua ineficácia, independentemente da sua arguição (nulidade insanável e irregularidades de conhecimento oficioso), dada a ofensa aos mais elementares direitos, liberdades e garantias individuais, sobrepondo-se aos ideais de segurança, celeridade e economia na administração da justiça penal.
A falta de fundamentação constitui, neste caso, uma irregularidade processual (art.97º, nº5, e art.123º) que afeta o valor do ato e poderá ser suprida a todo o tempo, pelo que, ainda que não seja arguida, pode ser reparada oficiosamente ou mandada reparar pela autoridade judiciária competente.
Posto isto, verificada irregularidade abrangida pela estatuição do art.123º n.º 2, por omissão dos reais fundamentos de facto da decisão de revogar a suspensão da execução da pena de prisão, aqui incluídas as circunstanciadas razões de facto da sua não audição presencial, cumpre declarar inválido o despacho recorrido (e todos os atos posteriores dele dependentes), devendo ser substituído por outro que explicite e exteriorize no respetivo texto, ainda que de forma simples e breve, os fundamentos de facto [enumeração factual e concretos meios de prova atendidos ou não e em que moldes] e de direito que sustentam o respetivo juízo indiciário, pois só assim se dará claro e completo cumprimento ao imperativo constitucional da fundamentação da decisão que afeta o direito fundamental da liberdade (art.27º da C.R.P.).
Com efeito, não é possível a discussão critica desses indícios probatórios sem a incindível clarificação do sentido indiciado ou não dos factos submetidos ao juízo indiciário.
A fundamentação influi essencialmente sobre a descrição dos factos indiciados e dos factos não indiciados, pois são estes que delimitam o objeto de apreciação.
A necessidade de descrição dos específicos factos indiciados com relevância para a decisão do incidente, correlacionados com os meios de prova que os sustentam, é corolário do dever de fundamentação das decisões judiciais e imposto quer pela CRP quer pela lei ordinária – artº 97º CPP como mencionado), pelo que só após os ter elencado o tribunal a quo poderia extrair a consequência jurídica designadamente de revogação ou não da suspensão.
A declaração desta irregularidade que afeta o valor do ato praticado e implica a sua repetição, prejudica o conhecimento das restantes questões suscitadas no recurso.
Impõe-se, por conseguinte, declarar oficiosamente a irregularidade do despacho recorrido, sem prejuízo do tribunal a quo promover, caso antes não o tenha realizado, a audição pessoal e presencial do arguido sobre as razões que fundamentam o incumprimento, nos termos previstos na alínea b) do artigo 56.º, n.º 1 do Código Penal, expressando na nova decisão os precisos factos e provas subjacentes a este, mas também à impossibilidade de o ouvir, se for caso disso.
*


III - Dispositivo.
Pelo exposto, acordam os juízes da segunda secção criminal do Tribunal da Relação do Porto em conceder provimento ao recurso e em consequência declarar a irregularidade do despacho recorrido, nos termos do art.123º, nº2, do Código Processo Penal, com a anulação dos demais atos subsequentes dele dependentes, devendo os autos baixar à 1ª instância com vista ao seu suprimento e sem prejuízo, sendo o caso, do cumprimento dos trâmites legais em falta nos moldes supra explicitados.

Sem custas.

Notifique.
-





Porto, 16.10.2024

(Elaborado, revisto e assinado digitalmente– art. 94º, nº 2, do CPP).

João Pedro Pereira Cardoso
Jorge Langweg
Maria Deolinda Dionísio