ACIDENTE
ABSOLVIÇÃO DO CRIME
RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
CONCAUSALIDADE
RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA
PERDA DO DIREITO À VIDA
COMPENSAÇÃO
Sumário

I - A absolvição em matéria penal não impede que a responsabilidade civil delitual, extra-contratual ou aquiliana seja objecto de apreciação;
II – Pode haver responsabilidade civil sem existir responsabilidade criminal; ou seja, ainda que se considere que os factos provados não integram o tipo criminal em causa, os mesmos podem ser geradores de responsabilidade civil, na medida em que sejam factos ilícitos, violadores de direitos de outrém ou de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, praticados com culpa ou mera culpa;
III – Estando-se perante a uma situação de concausalidade, em que várias causas concorrem para a produção do acidente, verificando-se uma concorrência entre o facto ilícito do agente e factos ilícitos de terceiros, a regra é a da responsabilidade solidária;
IV – Se entre essas causas concorrentes não se incluir a actuação da vítima, não pode haver lugar a qualquer redução da indemnização devida;
V – A defesa da vida num Estado de Direito Democrático tem de ter consequências práticas, não se bastando com declarações de princípio; e entre essas consequências, esses efeitos na realidade, mostra particular importância a sua devida valoração pelos Tribunais, nos casos de compensação aos familiares com esse direito, pela sua perda.
VI – Tendo a vítima perdido a vida de forma abrupta, totalmente inesperada, quando estava a trabalhar, em nada contribuindo para esse resultado, tendo 42 anos, um relacionamento afectivo gratificante com companheira e filho, sendo um pai presente e um profissional responsável na sua área de trabalho, tem de se concluir que a vida desta vítima revestia um considerável e especial valor, mostrando-se ajustado fixar a compensação pela sua perda em 120.000,00€.

(Sumário da responsabilidade do Relator)

Texto Integral

Proc. Nº 600/17.0GBILH.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Ílhavo - Juízo C. Genérica - Juiz 2

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:

No Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, Ílhavo - Juízo C. Genérica - Juiz 2, processo supra referido, foi julgado AA, participando como demandantes cíveis BB, CC (em representação de seu filho DD), EE e “A... S.A”, e ainda B... – Companhia de Seguros, S.A, como demandada (após incidente de intervenção principal), tendo sido proferida Sentença com o seguinte dispositivo:
“Face ao exposto, o tribunal decide julgar a acusação improcedente, por não provada e
a) Absolver o arguido AA da prática do crime de homicídio por negligência, previsto e punido pelos artigos 137.º n.º 1 e 69.º n.º 1, alínea a) do Código Penal, de que vinha acusado;
b) Julgar o pedido de indemnização formulado pela demandante EE improcedente, e do mesmo absolver o demandado/arguido AA, por ilegitimidade passiva deste.
c) Julgar o pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes e assistentes BB e CC, representante legal de DD parcialmente procedente, por parcialmente provado e condenar a demandada B... – Companhia de Seguros, S.A no pagamento aos demandantes da quantia de 10.000,00 € (dez mil euros), a título de danos sofridos pela vítima falecida, a repartir em partes iguais pela assistente BB e pelo filho DD; 40.000,00 € (quarenta mil euros) a título da perda do direito à vida do falecido, respetivamente companheiro e pai dos demandantes; e 15.000,00 € (quinze mil euros) para cada um dos demandantes a título de danos não patrimoniais as quais são acrescidas de juros, à taxa legal, contabilizados desde a data da prolação desta sentença até integral e efectivo pagamento, absolvendo do demais peticionado; bem como o valor de 19.250,00 € (dezanove mil duzentos e cinquenta euros) a título de lucros cessantes/perda da capacidade de ganho a atribuir ao filho da vítima DD, este valor acrescido de juros de mora, à taxa legal, devidos desde a citação da demandada do pedido de indemnização formulado nos autos.
d) Julgar o pedido de indemnização formulado pela A... S.A parcialmente procedente e
d1) Absolver do mesmo o demandado AA;
d2) condenar a seguradora B... – Companhia de Seguros, S.A a pagar à demandante, a título de reembolso, os valores pagos aos lesados BB e DD, nos valores de € 5.561,40, a título de indemnização por morte e € 21.630,10, a título de pensões por morte, absolvendo de tudo o demais peticionado”.

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Desta Sentença foi interposto recurso pela demandante cível CC (em representação do filho DD), formulando as seguintes conclusões:
“I. O recorrente não se conforma com a injustíssima decisão de que foi alvo, designadamente no que concerne aos montantes arbitrados como indemnização pelos danos sofridos com a morte do seu pai, montantes esses que foram fixados sem atender aos valores que têm sido atribuídos recentemente pela jurisprudência, descurando as circunstâncias do caso concreto, incorrendo assim em violação do princípio da igualdade.
II. Andou mal o Tribunal recorrido ao reduzir drasticamente os valores peticionados pelo recorrente, no âmbito do pedido de indemnização civil formulado, quer a título de danos por morte, quer a título de danos intercalares e mesmo a título de danos não patrimoniais deste demandante, afigurando-se os montantes fixados pelo Tribunal ad quo manifestamente insuficientes para ressarcir o recorrente pela lamentável perda do seu pai.
III. Ademais, no que concerne ao valor atribuído ao recorrente, pelos danos não patrimoniais por este sofridos, o Tribunal recorrido incorre em manifesta contradição, na medida em que, dando como provados determinados factos, proferiu, a final, conclusões claramente contraditórias face à factualidade assente, verificando-se, assim, que os fundamentos utilizados estão em clara contradição com a derradeira decisão, assim ferindo a sentença recorrida de nulidade.
IV. Por último, crê humildemente este recorrente que a redução para 50% da responsabilidade que recai sobre o arguido (substituído pela Seguradora B... – Companhia de Seguros, S.A.) na produção do fatídico acidente se revela totalmente descabida, porquanto o Tribunal recorrido não logrou provar que existia, à data do sinistro, efectivamente um diploma legal nacional que exigisse à C... que os cabos estivessem a uma distância de, pelo menos, 6 metros do solo, não sendo portanto esta entidade susceptível de qualquer responsabilidade pelo sucedido.
V. Escalpelizando, entendeu o Tribunal recorrido ser de reduzir a medida da responsabilidade/contribuição da seguradora, em substituição do arguido, para metade, aventando aquele que terá também concorrido culpa de terceiro (neste caso, da companhia C....) para a produção do acidente, contudo não fundamentou devidamente este seu raciocínio, assentando antes em premissas que não foram dadas como provadas (por inexistir prova bastante para o efeito).
VI. Desde logo, o Tribunal ad quo não fundamenta devidamente a sua pretensão e raciocínio, bastando-se a invocar que os cabos deveriam distar do solo pelo menos 6 metros de altura, imputando o cumprimento por essa obrigação à C...., contudo, não existem provas cabais que sustentem este entendimento decisório, resultando apenas de uma analogia legis efectuada pelo julgador, em sede de primeira instância, que arbitrariamente entendeu que as exigências previstas no decreto-regulamentar n.º 90/84, de 26 de dezembro deveria também ser aplicável para as companhias de telecomunicações, sem sequer lograr concretizar qual o preceito normativo em que baseia esta sua tese.
VII. Incorreu assim o Tribunal recorrido no vício de falta de fundamentação, assentando toda a tese decisória em premissas desprovidas do mínimo de fundamento legal, o que, nos termos do plasmado no artigo 615.º, nº 1, alínea b) do C.P.C.. Remete para a nulidade da Sentença.
Se assim não se entender,
VIII. Está em crer este recorrente que se depara também com um erro de julgamento (error in judicando) que resulta de uma distorção na aplicação do direito ao caso (error juris), de forma que o decidido não corresponda à realidade ontológica ou à normativa, traduzindo-se numa apreciação da questão em desconformidade com a lei.
IX. Isto porque, não tendo o Tribunal recorrido prova suficiente para decidir no sentido em que o fez, incorreu na aplicação distorcida de um decreto-regulamentar, cujo âmbito de aplicação desconhece se se aplica às companhias de telecomunicações, ignorando o Tribunal que, para se imputar responsabilidade a quem quer que seja, terá forçosamente de haver provas e preceitos normativos tais que sustentem tal posição.
X. Andou mal o Tribunal ad quo ao repartir de forma igual a contribuição das partes (arguido e C....) para a produção do fatídico acidente, porquanto, da prova produzida e que resultou como provada, exara-se que o arguido se enganou e “entrou dessa forma na localidade da ...”, quando pretendia dirigir-se para a autoestrada ... – vide ponto 5 dos factos provados constantes da sentença recorrida.
XI. Da mesma forma, consta da factualidade provada, sob o ponto 13, que “o arguido não cuidou de verificar se efectuava o transporte da máquina escavadora giratória em cumprimento das disposições legais e regulamentares a esse respeito vigentes (…)”.
XII. Consta ainda da mesma factualidade que o arguido ainda percorreu cerca de 80 metros, após ter embatido com a sua viatura nos postes, tendo demorado algum tempo a constatar que havia provocado a queda de uma pessoa.
XIII. Tais factos foram, aliás, atestados pelo próprio arguido e pela testemunha FF, que presenciou o acidente de viação em causa e bem ainda por prova documental, como o relatório de autópsia e o relatório elaborado pela própria ACT.
XIV. Constata-se, portanto, que o arguido omitiu diversos deveres de cuidado: primeiramente, enganou-se no seu percurso, iniciando o mesmo por estradas locais, quando deveria ter circulado pela auto-estrada; como é consabido, não verificou previamente a altura máxima da carga que transportava e descurou que a licença que detinha para transportar a dita carga já havia caducado; por último, não se apercebeu que havia provocado a queda de uma pessoa, que se encontrava a 4,80 metros de altura, assim protelando uma eventual assistência à vítima.
XV. Não obstante este arguido ter sido absolvido da prática do crime de homicídio por negligência, por falecer o requisito da previsibilidade, não se poderá afirmar, como fez o Tribunal recorrido, que este arguido contribuiu na exacta mesma medida que a C..., companhia que, ao que tudo indica, terá incumprido com uma norma regulamentar, no que concerne à distância que medeia os postes de electricidade do solo.
XVI. Isto porque, da factualidade provada, apenas no ponto 62. Se lê que “a travessia da estrada por cabos deve respeitar uma distância mínima de 6 metros de altura ao solo”, não resultando provado que esta exigência deveria ter sido cumprida pela companhia C....
XVII. Da mesma forma, a sentença recorrida não se revela precisa, nem clara, no que respeita à suposta obrigação legal que impendia sobre a companhia C..., sendo somente referido um decreto-regulamentar (n.º 90/84, de 26 de dezembro), que o Tribunal recorrido entendeu (palavras suas) ser de aplicar a redes de telecomunicações.
XVIII. Ou seja, a aplicabilidade desta norma regulamentar às companhias de telecomunicações não resulta clara do mesmo diploma, pelo que, consequentemente, a responsabilidade que eventualmente impenderia sobre tal companhia (C...) também não resultou provada.
XIX. A insegurança do raciocínio do Tribunal recorrido revela-se flagrante, porquanto nem o próprio Tribunal consegue identificar de forma concreta qual o normativo legal aplicável, que permite imputar à dita companhia de telecomunicações qualquer tipo ou grau de responsabilidade.
XX. Com todo o respeito e considerando que ninguém poderá ser considerado responsável, sem que haja prova cabal e suficiente que lhe impute um determinado grau de responsabilidade, não pode este recorrente ficar condicionado, no pagamento dos valores indemnizatórios que lhe são inteiramente devidos, a uma prova incerta e meramente presuntiva!
XXI. Vejamos: se o arguido não se tivesse enganado no seu percurso e se tivesse verificado a altura máxima da carga que transportava, o acidente não se teria verificado.
XXII. Independentemente da altura dos referidos cabos em que a carga transportada pelo arguido embateu, caso este condutor não transportasse a carga acima do limite previsto, de 4,60m (quatro metros e sessenta cêntimos), para a qual estava licenciado (ainda que com a licença caducada), o acidente não se teria verificado.
XXIII. Mais, se a altura dos cabos era evidente (isto é, menos de seis metros de altura), era igualmente exigido ao arguido, enquanto condutor de pesados, atender às circunstâncias da via em que circulava, sobretudo considerando as regras estradais a que estava igualmente adstrito.
XXIV. Para além de qualquer infracção criminal, estava em causa o cumprimento das regras estradais, exigíveis a todos os condutores (e claramente mais incisivas quando se trata de transporte de veículos pesados, com carga associada), impondo-se uma condução atenta e em consonância com as condições da estrada/via em que se circula.
Mais,
XXV. Em causa, está o dano morte – a perda da vítima do falecido – morte essa que resultou da queda abrupta que sofreu (por ter sido puxado, juntamente com o poste onde se encontrava, pela carga transportada pelo arguido) e pelo embate que também sofreu num gradeamento, após a queda, assim como pelo arrastamento de que foi vítima durante cerca de 80 metros.
XXVI. Na verdade, as lesões sofridas pela vítima que culminaram na sua morte resultaram desta queda e deste arrastamento – caso contrário, o evento morte não se teria verificado.
XXVII. Ou seja, a morte da infeliz vítima não teria provavelmente acontecido se não tivessem sido nela provocadas as lesões que esta veio a sofrer directamente por força do acidente ocorrido.
XXVIII. Ora, tais lesões surgiram e foram causadas pela conduta directa e exclusiva do condutor (e não pela altura dos cabos), pelo que, salvo melhor entendimento, resulta cristalino que o nexo de causalidade entre a conduta do arguido e a produção do acidente (e as consequentes lesões sofridas pela vítima e bem ainda na derradeira morte) é directo, em nada tendo contribuído a actuação da C.... (no cumprimento eventual ou não de procedimentos internos) para a produção do sinistro.
Ainda que assim não fosse,
XXIX. O facto é que, se a condução pelo arguido não tivesse sido desatenta ou perigosa, e tivesse cumprido com todos os formalismos necessários e prévios ao transporte da carga (como verificar a dimensão e altura máxima permitidas), não se teria verificado a morte da vítima.
XXX. As mais elementares regras de prudência exigiam-lhe que não tivesse adoptado comportamento tão leviano, que, além de manifestamente reprovável, é, ainda, claramente contravencional.
XXXI. De facto, mesmo a concluir-se que a altura dos cabos contribuiu para a produção do acidente, o certo é que este sinistro só se verificou pelo facto do condutor ter transportado carga acima do limite máximo permitido e ter enveredado por uma via estradal cujos cabos de alimentação colidiram com a altura dessa mesma carga.
XXXII. Destarte, a condição/facto dos cabos terem uma altura inferior a 6 metros era indiferente para a produção do dano, apenas tendo relevado pelo facto de o camião conduzido pelo arguido ter indevidamente passado naquele preciso local, com uma carga superior à legalmente prevista (e à que era admitida).
XXXIII. Mais, não se provou que, caso os cabos estivessem a uma altura superior, o acidente não se verificaria na mesma, não se provando o nexo de causalidade entre a suposta conduta da p.t. E a produção do acidente.
XXXIV. Por não resultar provado que a p.t. Tivesse qualquer obrigação legalmente prevista que a impedisse de instalar cabos a uma altura inferior a 6 metros e por não se poder, de modo algum, entender que a produção do acidente é imputável em partes iguais às duas entidades (arguido e C...), deverá a seguradora B... – Companhia de Seguros, S.A., em substituição do arguido, ser responsável pelo pagamento da totalidade dos danos sofridos (quer com a perda do direito à vida, quer com os danos intercalares, quer a título de danos morais e danos emergentes).
XXXV. Se assim não se entender, deverá o Tribunal ad quem rever a medida da contribuição do arguido na produção do acidente, aumentando-se o grau de responsabilidade deste condutor, quer na produção do acidente, quer - e sobretudo - para a causa da morte (as referidas lesões traumáticas e fatais), para 90 % (noventa por cento), devendo a seguradora B... – Companhia de Seguros, S.A., em substituição do arguido, ser responsável pelo pagamento dos montantes peticionados ante pelos danos sofridos, na respectiva proporção. Prosseguindo,
XXXVI. Cumprirá de seguida chamar a atenção dos ilustres desembargadores para o facto de o Tribunal recorrido ter atribuído a quantia global de 80.000,00 € (oitenta mil euros), a título de danos pela perda do direito à vida (os chamados danos por morte), a qual foi reduzida a metade, face à culpa/responsabilidade diminuta que foi a final atribuída à seguradora (em substituição do arguido).
XXXVII. Nesta matéria, o Tribunal recorrido socorreu-se do disposto na portaria n.º 377/2008, de 26 de maio, com as alterações introduzidas pela portaria n.º 679/2009, de 25 de junho, olvidando que na aludida portaria estão apenas contempladas as situações em que a regularização do sinistro ocorre no âmbito extrajudicial, o que, como é bom de ver, não é o caso.
XXXVIII. Ademais, os valores contemplados em tal portaria, nas suas tabelas anexas nunca serão definitivos, nem tal é de aplicação judicial obrigatória, apenas tendo o escopo de dar algumas directrizes nesta matéria, acrescendo ainda que, os valores ali contemplados datam de 2009, ou seja, há 11 anos e são genéricos, abstractos, não estando adaptados às particularidades de cada caso.
XXXIX. Discute-se, pois, neste conspecto, o montante indemnizatório fixado, iniciando o aqui recorrente o seu périplo argumentativo chamando a atenção para as palavras de Laurinda Gemas (in Revista Julgar n.º 8, 2009) que afirma que «a quase estagnação dos montantes indemnizatórios atribuídos a título de danos não patrimoniais não é fácil de ultrapassar, para ela contribuindo, por um lado, o baixo valor dos pedidos formulados (registando-se, por razões sociológicas, um certo “pudor em pedir dinheiro” para compensar uma dor que é irreparável, sendo frequentes as decisões judiciais que reconhecem a moderação do pedido); por outro lado, o não reconhecimento pelos tribunais da relevância da função punitiva da responsabilidade civil no âmbito dos acidentes de viação (uma vez que a condenação recai, em regra, sobre a seguradora) e também a necessidade de recurso comparativo às decisões proferidas em casos idênticos. Por isso, embora frequentemente invocada a necessidade de tendencial ampliação dos montantes indemnizatórios, essa subida não tem sido generalizada, por forma a acompanhar a subida do custo de vida e o mais amplo reconhecimento da dignidade da pessoa humana e dos direitos fundamentais (vida, integridade física e saúde)».
Xl. A referida portaria n.º 377/2008, ao invés de promover um salto quantitativo a este nível, cingiu-se a valores que, globalmente considerados, se afiguram moderados, podendo contribuir, se não for alvo de sucessivas actualizações, para agravar o problema.
Xli. De salientar também que uma fonte legislativa como a portaria, atenta a hierarquia das fontes de direito, é insusceptível de se sobrepor ao critério legal fixado no código civil, pois que as portarias integram o conceito de acto regulamentar do governo e visam pormenorizar e complementar as leis, no intuito de viabilizar a sua aplicação ou execução (art.º 112.º/1/2/6 da constituição da república portuguesa).
Xlii. Para sustentar a sua posição, o Tribunal ad quo recorreu a jurisprudência antiga, sendo antes imperioso e premente, como a jurisprudência suprema assim enalta, comparar casos semelhantes entre si, logrando assim atribuir valores indemnizatórios que se revelem equitativos e justos, face à dimensão dos danos sofridos.
Xliii. Neste seguimento, o recorrente elenca vários acórdãos e arestos da jurisprudência nacional, no âmbit0 dos quais, perante situações idênticas, foram atribuídas indemnizações de montante bastante superior ao que foi fixado arbitrado ora pelo Tribunal recorrido, a saber: no acórdão da relação de lisboa de 30/06/2020 (proc. N.° 65/17.6gtalq -5) e acórdão do supremo Tribunal de justiça, de 27/09/2022 (processo n.º 253/17.5t8prt-a.p1.s1.
Xliv. Ainda, destaca-se outros acórdãos cujos casos reportavam a morte de indivíduos de idade superior à da vítima nestes autos, tendo-lhe sido atribuída uma indemnização igual à que foi arbitrada nestes autos, assim revelando que o Tribunal recorrido descurou da necessidade de comparar casos e de atender a factores, como a idade da vítima - neste sentido, acórdão do supremo Tribunal de justiça, de 19/05/2020 (proc. 572/09.4tbvln.g1.s1); acórdão do supremo Tribunal de justiça, de 11/02/2021 (proc. 625/18.8t8agh.l1.s1).
Xlv. No cálculo desse dano, deveria o Tribunal ad quo ter tomado em consideração que o falecido em nada contribuiu para a produção do acidente do qual veio a resultar a sua morte e bem ainda a superioridade económica em que, presumidamente, se encontra a recorrida (seguradora) relativamente ao aqui recorrente, ressaltando-se que o filho do de cujus ainda é menor de idade.
Xlvi. Por outro lado, ainda, considerando a idade que o falecido tinha à data da sua morte, concretamente 42 (quarenta e dois) anos e atendendo ao facto de a esperança média de vida do homem português, à data do acidente (2017) rondar os 79 (senta e nove) anos de idade, é possível concluir-se que este faleceu subitamente a “meio do seu tempo de vida”.
Xlvii. Nestes termos, considerando a matéria de facto dada como provada e as decisões que vêm sendo proferidas pelos nossos tribunais superiores em casos semelhantes deverá ser alterada a douta sentença ora recorrida, nesta parte, atribuindo-se aos demandantes, a título de direito à vida, o quantum compensatório de, pelo menos, € 200.000,00 (duzentos mil euros).
Xlviii. Também no que concerne aos danos intercalares (respeitantes aos danos sofridos pela vítima antes da morte), sofreu este recorrente um grande decaimento no seu pedido, tendo o Tribunal recorrido deliberado arbitrar uma mísera quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), valor este que mais tarde reduziu a metade, por entender que a responsabilidade pelo sinistro/acidente é imputável à seguradora condenada, ora recorrida, em apenas 50%, assim condenando esta última, a final, somente no pagamento de € 10.000,00 (dez mil euros), a título de indemnização pelos danos sofridos pela vítima.
Xlix. Desde logo, não consegue este recorrente alcançar os motivos que conduziram o Tribunal ad quo a reduzir drasticamente o valor por si inicialmente peticionado, desvalorizando assim de forma flagrante e nociva todos o sofrimento físico e psicólogo que o falecido terá sofrido, nos últimos minutos que antecederam a sua fatídica morte.
L. Consta da factualidade dada como provada sob o artigo 12.º da sentença alvo do presente recurso que a vítima sofreu “lesões traumáticas meningo-encefálicas, faciais e cervico-torácicas (incluindo raqui-meningo medulares dorsais)”, lesões estas melhores descritas no relatório de autópsia médico-legal a fls 84-88 dos presentes autos, terminando o aludido relatório por concluir que se tratou, sem margem para qualquer dúvida, de uma morte violenta.
Li. Entre o hiato temporal que medeia o início do acidente e a concomitante morte da vítima medeiam 31 (trinta e um) minutos.
Lii. Da prova testemunhal produzida em sede de julgamento, resultou provado que o a vítima “sobreviveu alguns minutos ao acidente, dado que respirava e parecia estar emdelírio”, o que foi corroborado pelo próprio arguido e ainda pela testemunha FF, que atestou que a vítima “se encontrava com os olhos abertos”.
Liii. Além do supra exposto, a vítima foi também alvo de cuidados de reanimação.
Liv. Dúvidas não poderão subsistir que a vítima sobreviveu alguns minutos, após o acidente, sofrendo dores lancinantes e angústias próprias de quem se debate pela vida e acaba por sucumbir, com a percepção que a morte é iminente.
Lv. Com efeito, por mais imediata que tenha sido a morte, esta raramente se configura como um acontecimento instantâneo; por breves que tenham sido os momentos que a antecederam, designadamente em eventos de natureza traumática, a vítima não pode deixar de sentir intensas dores físicas, mesmo que por alguns minutos, tal como não poderá deixar de sentir a angústia própria da súbita e inesperada finitude.
Lvi. Todos estes circunstancialismos fácticos, conjugados com o facto de, mais uma vez, a vítima não ter contribuído em nada para o acidente (e, como tal, não contribuiu para a sua morte) e bem ainda relevando a superioridade económica da seguradora ora recorrida, deveriam impreterivelmente ter conduzido o Tribunal ad quo a uma decisão diversa, que se impunha, pelo que pugna veementemente o aqui recorrente pela revisão do valor arbitrado, tendo como razoável e equilibrado aumentar tal valor para a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), a repartir em partes iguais pelos dois demandantes DD e BB.
Lvii. Também no que respeita aos danos não patrimoniais, não pode o aqui impetrante deixar de manifestar o seu total desagrado, perante a quantia diminuta que lhe foi arbitrada pelo Tribunal recorrido, a qual se cifra em 30.000, (trinta mil euros), que foiposteriormente reduzida para € 15.000,00 (quinze mil euros), atenta a responsabilidade limitada da seguradora recorrida.
Lviii. O aqui recorrente viu-se precocemente confrontado e assombrado com um dos danos não patrimoniais mais significativos (para além da perda do direito à vida) e que, no fundo, se relacionada com a dor pela perda do ente que, em termos de laços familiares e biológicos, nos é normalmente dos mais queridos, ou seja, da dor sofrida pela perda de um pai.
Lix. Trata-se, portanto, de um dor emocional e espiritual, que atormentará para sempre este recorrente, sobretudo por se tratar de uma morte totalmente inesperada e que se sucedeu num contexto tão trágico.
Lx. Para o recorrente DD, único filho da vítima, nunca existirão palavras suficientes para descrever a perda tão precoce de um progenitor, muito menos no caso em apreço, tendo este menor apenas 9 (nove) anos de idade quando tudo sucedeu, sofrendo, ainda hoje, com a morte do pai, algo que, naturalmente, lhe provocou sequelas e traumas de ordem psicossomática.
Lxi. Os sintomas traumáticos foram surgindo de forma gradual, sendo certo que, após o óbito do pai, o comportamento do menor, aqui recorrente, se pagina por actos de revolta constante, tendo em conta que aquele pai era uma figura presente e assídua na sua vida, que muita falta lhe faz (a todos os níveis).
Lxii. Também a mãe do menor se viu numa realidade distinta da que havia planeado, suportando sozinha todos os encargos associados à educação e provento do seu filho.
Lxiii. In casu estamos perante duas pessoas, que muito precocemente se viram privados, respectivamente, do seu companheiro de vida e do seu pai, numa altura que dele muito precisavam, pelo que não será difícil concluir, de acordo com as regras da experiência comum, que este recorrente sofreu um forte abalo psicológico como a perda do falecido.
Lxiv. Pois bem, como os ilustres desembargadores poderão aferir, toda esta factualidade, subjacente aos danos não patrimoniais sofridos pelo demandante, foi dada como assente, em sede de primeira instância, razão pela qual não se concebe por que motivo o Tribunal ad quo deliberou, a final, reduzir substancialmente o quantum indemnizatório a atribuir a esta também vítima.
Lxv. Da douta sentença recorrida não se consegue sequer descortinar quais os fundamentos que subjazem a decisão proferida, no que a este conspecto concerne, porquanto o Tribunal recorrido socorre-se apenas de doutrina e sustenta que a compensação não deve ser “miserabilista”, o que, com todo o respeito, não vai de encontro à decisão tomada.
Lxvi. Efectivamente, crê o aqui recorrente de que, nesta matéria, a sentença recorrida carece de fundamentação e padece de contraditoriedade, concretamente de fundamentação de direito (designadamente quais as normas jurídicas interpretadas pelo Tribunal, assim como a doutrina e jurisprudência emanada e seleccionada nesta matéria).
Lxvii. O Tribunal ad quo limitou-se a invocar os factores que se devem ter em consideração, na determinação e apuramento do quantum compensatório, não justificando devidamente por que razão não atendeu, na integra, ao pedido de indemnização formulado por este demandante, ficando por apurar quais os motivos que conduziram o Tribunal recorrido a julgar o pedido de indemnização civil formulado apenas parcialmente procedente, no que concerne aos danos não patrimoniais sofridos pelo aqui recorrente – sobretudo, porque todos os alegados danos morais constam inclusive (e bem) da matéria dada como provada.
Lxviii. Remata assim o recorrente que os fundamentos fácticos da sentença estão em oposição com a decisão, o que acarreta a nulidade da sentença, nos termos do art. 615º, nº 1, al. C), do c.p.c., nulidade esta que deverá ser conhecida pela relação, em observância ao disposto no artigo 665º, nº 1, do c.p.c., com as inerentes consequências legais.
Mesmo que assim não fosse,
Lxix. Salvaguardando-se o maior dos respeitos, como pode o Tribunal recorrido entende que a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) se afigura suficiente para compensar este filho pela perda súbita e manifestamente violenta do seu pai?
Lxx. Nestes termos, pugna o aqui recorrente pela reforma da sentença recorrida, no que concerne ao quantum indemnizatório atinente aos danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes, devendo ser atribuído, para este efeito, o montante de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), para cada um dos lesados.
Termos estes em que se pugna que os preclaros e venerandos juízes desembargadores do briosíssimo Tribunal da relação do porto acolham a argumentação supra narrada, julgando-se procedente o presente recurso e, em consequência:
A) Revogar a decisão recorrida, porquanto padece a mesma de vícios vários, designadamente de falta de fundamentação e de contradição entre os fundamentos/premissas e a decisão tomada, assim padecendo de nulidade.
B) Alterar os valores arbitrados, a título de danos pela perda do direito à vida/danos por morte, elevando a quantia devida aos lesados/demandantes para € 200.000,00 (duzentos mil euros);
C) Alterar os valores fixados, a título de danos intercalares, elevando a quantia devida aos demandantes para 50.000,00 (cinquenta mil euros), a repartir em partes iguais pelos dois lesados;
D) Alterar os valores fixados, a título de danos não patrimoniais sofridos pelos demandantes, fixando-se um montante nunca inferior a € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), para cada um dos demandantes;
E) Alterar a sentença recorrida, concluindo-se pela responsabilidade exclusiva e total da seguradora B... – Companhia de Seguros, S.A., em substituição do arguido, na produção do acidente e, por conseguinte, no pagamento de todos os créditos indemnizatórios peticionados.
F) Se assim não se entender, relativamente ao peticionado sob a alínea e), aumentar a medida da contribuição/responsabilidade da seguradora, em substituição do arguido, para 90% (noventa por cento), condenando-se a mesma a proceder ao pagamento dos créditos indemnizatórios peticionados, na respectiva proporção”.
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Desta Sentença foi igualmente interposto recurso pela demandante cível BB formulando as seguintes conclusões:
“Primeira:- Andou mal o Tribunal recorrido ao reduzir drasticamente os valores peticionados pelos recorrentes, no âmbito do pedido de indemnização civil formulado, quer a título de dano por morte, a título de dano intercalar e, mesmo a título de danos não patrimoniais e danos patrimoniais futuros destes dois demandantes, afigurando-se os montantes fixados pelo Tribunal ad quo manifestamente insuficientes para ressarcir os recorrentes pela perda do seu companheiro e pai.
Segunda:- o Tribunal recorrido incorre em manifesta contradição, na medida em que, dando como provados determinados factos, proferiu, a final, conclusões claramente contraditórias face à factualidade assente, verificando-se, assim, que os fundamentos utilizados estão em clara contradição com a derradeira decisão, assim ferindo a sentença recorrida de nulidade, nos termos dos artº 615 do C.P.C
Terceira:-por último, crêem humildemente estes recorrentes que a redução para 50% da responsabilidade que recai sobre o arguido (substituído pela seguradora B... – Companhia de Seguros, S.A.) na produção do fatídico acidente se revela totalmente descabida, porquanto o Tribunal recorrido não logrou provar que existia, à data do sinistro, efectivamente um diploma legal que exigisse à C... que os cabos estivessem a uma altura de, pelo menos, 6 metros do solo, não sendo portanto esta entidade susceptível de qualquer responsabilidade pelo sucedido.
Quarta:-a douta sentença proferida ainda, na repartição da responsabilidade pelo sinistro, também não teve em consideração o comportamento do arguido que, não mediu a altura da carga do veículo ao solo, não verificou a validade da licença para transporte especial da carga, que estava caducada.
Quinta:-o arguido foi negligente, e não fora a sua negligencia o sinistro não teria ocorrido.
Sexta:- o arguido conduzia o veiculo por conta e sob as ordens e orientações do dono do veiculo - provado o pressuposto da culpa na relação comitente comissario nos termos do artº500,503 ambos do cc
Sétima:- o sinistro ocorre por culpa exclusiva do arguido, que de forma negligente conduzia- o com excesso de carga (na sua altura) e com licença caducada, o que não verificou aquando quer do carregar da carga, quer quando lhe entregaram os documento do veículo.
Oitava:- violando assim os artºs 468, 503e 499 todos do c.c.
Nona:- para sustentar a sua posição, na fixação dos danos pela própria vitima, pelos danos sofridos pela perda do direito á vida, pelos danos não patrimoniais e pelos danos patrimoniais futuros/ lucros cessantes, o Tribunal ad quo recorreu a jurisprudência antiga com mais de 7 anos olvidando quer acórdãos da relação quer do porto quer de lisboa, quer mesmo revista e/ acórdão do stj, que foram amplamente mencionados na fundamentação deste recurso.
Decima:- já que a douta sentença proferida e ora colocada em crise se fundamente na fixação dos valores em juizos de equidade que estramente carecem de apoio jurisprudencial recente, que existe, olvidando ainda a actual conjuntura economica e financeira do pais, onde pelas quais, o euro está em constante desvalorização e custo de vida cada vez mais alto.
Decima primeira:- nomeadamente no acórdão da relação de lisboa de 30/06/2020 (proc. N.° 65/17.6gtalq -5) e acórdão do supremo Tribunal de justiça, de 27/09/2022 (processo n.º 253/17.5t8prt-a.p1.s1. Acórdão processo n.º 704/12.5tvlsb.l3.s1, de 29/04/2021, disponível em www.dgsi.pt).
Ainda, destaca-se outros acórdãos cujos casos reportavam a morte de indivíduos de idade superior à da vítima nestes autos, tendo-lhe sido atribuída uma indemnização igual à que foi arbitrada nestes autos, assim revelando que o Tribunal recorrido descurou da necessidade de comparar casos e de atender a factores, como a idade da vítima - neste sentido, acórdão do supremo Tribunal de justiça, de 19/05/2020 (proc. 572/09.4tbvln.g1.s1); acórdão do supremo Tribunal de justiça, de 11/02/2021 (proc. 625/18.8t8agh.l1.s1).
Decima segunda:_a titulo de danos sofridos pela própria vitima desde o momento do sinistro, momento em que aranca o poste, e a vitima cai em cima do gradeamento e é posteriormente arrastado pela via publica 80 metros, tendo inclusive sido alvo de tentativas de reanimação, e o momento em que ocorre a morte cujo período foi nunca inferior a 31 minutos, pelas dores imensas e prolongadas que teve e a visualização da morte prespetivando o sofrimento em que ia deixar a sua companheira e o filho, deve ser arbitrada indemnização nunca inferior a 50.000,00 euros a repartir em partes iguais entre a companheira e o filho menor.
Decima terceira:-a vitima tinha em 2017 - 42 anos de idade festejava naquele mesmo dia o seu aniversário, atendendo ao facto de a esperança média de vida do homem português rondar os 79 (senta e nove) anos de idade, é possível concluir-se que este faleceu subitamente a “meio do seu tempo de vida”. Quarta:- considerando a matéria de facto dada como provada e as decisões que vêm sendo proferidas pelos nossos tribunais superiores em casos semelhantes deverá a douta sentença ora recorrida, ser alterada atribuindo-se aos aqui recorrentes, a título dano da perda do direito à vida, o quantum compensatório de valor nunca inferior a € 100.000,00 (cem mil euros), a cada um, no total de 200.000,00 euros
Decima quinta:- no que respeita aos danos não patrimoniais, a recorrente companheira do falecido desde 2015, vivia com este de forma marital, em comunhão de leito, mesa e habitação, o falecido GG nutria um grande afecto, carinho e amor pela recorrente BB, sentimentos que eram recíprocos partilhando com este a sua vida, as suas rotinas e, naturalmente, os seus sonhos e ambições futuras.
Decima sexta:-a morte súbita e inesperada da vítima causou na sua companheira, ora recorrente, um profundo desgosto, traumatizando-a de forma profunda, de que dificilmente recuperará, acresce o facto de a vítima ter falecido no dia do seu próprio aniversário, data em que não era suposto ir trabalhar, o que sucedeu apenas para substituir um colega de trabalho .
Decima setima:-a recorrente BB, que antes era uma sofreu um forte abalo psicologico que ainda não conseguiu ultrapassar,pessoa alegre e comunicativa,
Decima oitava:- também o filho DD, com 9 anos, sofreu um fortíssimo abalo psíquico,
Decima nona:- a sentença recorrida baseou-se em juizo de equidade, porém carece de fundamentação e padece de contraditoriedade, concretamente de fundamentação de direito (designadamente quais as normas jurídicas interpretadas pelo Tribunal, assim como a doutrina e jurisprudência emanada e seleccionada nesta matéria), foi pois violados os artºs 4,494,496 nº2 e 3 500,499 e 503 todos do c.c.
Vigésima:- pelo que deve ser arbitrada aos recorrentes a titulo de danos não patrimoniais, uma indemnização nunca inferior a 75.000,00 euros para cada um.
Vigésima primeira:- entendeu o Tribunal a quo que a titulo de danos patrimoniais futuros/ lucros cessantes a demandante não tinha legitimidade para os requerer dado não ser herdeira do falecido, violando expressamente os artºs 496 nº3 2 2020 todos do c.c.
Vigésima segunda:- deve assim ser reconhecida á recorrente –BB, legitimidade para reclamar o dano patrimonial futuro ou lucros cessantes nos termos dos artºs 496 nº3 e 2020 do c.c. e legitimada pela jurisprudência indicada e ainda revistanº1581/12.1tbmc.p1.s1 – 2º secção em que foi relator abrantes geraldes, cujo sumario se encontra no caderno de acessoria cível, gabinete de juízes do supremo Tribunal de justiça.
Vigésima terceira:-também aqui o Tribunal a quo se refugiou em juízos de equidade, olvidando não só a jurisprudência existente como a existência de tabelas matemáticas.
Vigésima quarta:-o Tribunal mais uma vez violou o disposto nos artºs 4º do cc 494 e 496 nº2 e 3 também do c.c.
Vigésima quinta:-o critério utilizado pelos demandante aqui recorrentes tiveram por base as tabelas matemáticas que serviram de calculo em direito e no processo de trabalho, e pelas quais os recorrentes deverão ser indemnizados,
Vigésima sexta:- assim deve ser fixada á recorrente BB a título de dano patrimonial futuro/ lucro cessante quantia nunca inferior na 147.840,00 euros, e ao recorrente, DD quantia nunca inferior a 89.600,00 euros
Vigésima sétima:-incorreu assim o Tribunal recorrido no vício de falta de fundamentação, assentando toda a tese decisória em premissas desprovidas do mínimo de fundamento legal, o que, nos termos do plasmado no artigo 615.º, nº 1, alínea b) do C.P.C remete para a nulidade da sentença. Termos em que deve ser declarada a nulidade da sentença recorrida, e substituida por outra que tendo em conta a prova documental dos autos e a matéria assente que consta da sentença, e proferira sentença em conformidade rectificando os valores indemnizatórios reclamados pelos recorrentes, quer a titulo de danos sofridos pela própria vitima em valor nunca inferior a 50.000,00 euros; a titulo de dano pela perda do direito á vida, deverá ser fixado um valor que tenha em consideração a idade desta, o seu vencimento e condições de vida, nunca inferior a 200.000,00 euros, a repartir em partes iguais pelos recorrentes, ainda a titulo de danos não patrimoniais devem os recorrentes ser compensados em valor nunca inferior a 150.000,00 a repartir em partes iguais, entre a recorrente e o filho, DD, e reconhecendo a legitimidade da demandante BB, deverão os recorrentes receber a titulo de dano patrimonial futuro/ lucros cessantes a quantia de 147.840,00 euros para a recorrente BB e 89.600,00 euros para o recorrente DD”.
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Desta Sentença finalmente, também interposto recurso pela demandada “B... – Companhia de Seguros, S.A”, formulando as seguintes conclusões:
“1. A Recorrente não se conforma com a decisão proferida relativamente à matéria de facto controvertida relativa à distância dos cabos de telecomunicações aéreos da C..., que atravessavam a faixa de rodagem, ao solo e, consequentemente, impugna o facto 69 do elenco da matéria dada como provada e o facto n) do elenco da matéria de facto dada como não provada, entendendo que se verificou um erro notório na apreciação da prova;
2. Com efeito, resulta da fundamentação da sentença recorrenda quanto aos referidos pontos da matéria de facto sub judice que a decisão assenta em 2 (dois) pontos, a saber:
(i) o relatório fotográfico anexo ao relatório final do NICAV, de fls.
267 a 286; e
(ii) o depoimento do militar da GNR HH;
3. Da análise das fotos identificadas com os n.º 23, 25, 29, 32, 33 e 34 (únicas que registam com clareza o cabo ou cabos da C... presos na máquina transportada no veículo garantido pela Recorrente) resulta que o cabo de telecomunicações em apreço surge pela esquerda do veículo, vindo da sua traseira (foto 23), sobe pela cabine do manobrador da máquina (foto 33) e encontra-se preso num cabo/tubo do braço da máquina transportada, na parte junto à cabine do manobrador (foto 29 e 32) em ponto distinto e mais baixo em relação ao solo do que o local onde foi medido o topo da máquina (foto 34), não constando qualquer registo de medição ao solo do local do braço da máquina escavadora giratória onde o cabo de telecomunicações ficou preso;
4. Atento o referido na conclusão precedente, é manifesto que o relatório fotográfico da responsabilidade do NICAV da GNR não atesta, de modo algum, que o cabo ou cabos de telecomunicações tenham enrolado e/ou prendido no ponto mais alto da máquina escavadora giratória, sendo perceptível exatamente o contrário;
5. Do depoimento da testemunha HH, em depoimento prestado na sessão de audiência de discussão e julgamento realizada do dia 22 de março de 2023, com início às 15:11:30 horas e fim às 15:49:17, concretamente das passagens gravadas aos minutos 07:36 a 08:10, 19:20 a 24:13, 24:25 a 25:04 e 28:11 a 28:22, resulta uma posição manifestamente antagónica à dada como provada pelo Tribunal a quo, resultando das passagens supra identificadas que a testemunha não consegue afirmar qual a exata distância ao solo a que os cabos que ficaram presos / enrolados no braço da máquina escavadora giratória estariam, tendo consignado que nem consegue concretizar se os cabos estavam a uma altura superior a 4 metros;
6. Na verdade, questionado sobre se o ponto de impacto seria a 4,80 metros de altura, a testemunha refere “Pelo menos. A menos de 4,80 metros do solo.”, ou seja, a expressão “pelo menos” utilizada pela testemunha foi em sentido antagónico ao considerado pelo Tribunal a quo: enquanto que a testemunha utilizou tal expressão no sentido redutor (os cabos não estariam a 6 metros de altura mas pelo menos a 4,80 metros de altura ou inferior) o Tribunal a quo terá feito uma interpretação amplificadora da expressão “pelo menos” (tendo dado como provado que os cabos estariam a uma distância do solo de pelo menos 4,80 metros);
7. Considerando os registo fotográficos do Relatório elaborado pelo NICAV e o depoimento da testemunha HH, não se compreende ou aceita a resposta dada matéria de facto dada como provada no ponto 69 e não provada sob a alínea n), especialmente com a interpretação que lhe deu o Tribunal a quo na fundamentação da matéria de facto e na motivação da matéria de direito, concretamente que os cabos teriam de estar pelo menos a 4,80m do solo, “caso contrário, tal embate e enrolamento não teria ocorrido”;
8. Note-se que a expressão vertida no facto provado 69, numa interpretação literal significa que os cabos estariam a uma altura de 4,80 metros ou superior, o que se mostra objetivamente impossível;
9. Pelo exposto, a expressão “pelo menos 4,80 metros” é utilizada de forma paradigmática pelo Tribunal a quo o longo da fundamentação e motivação da sentença, especialmente considerando o facto n) do elenco dos factos julgados como não provados, uma vez que para o Tribunal a quo significa, simultaneamente, que os cabos de telecomunicações não estavam mais altos do que 4,80 metros e que estariam, pelo menos, a essa distância do solo, ou seja, o Tribunal a quo considerou que foi possível apurar a exata altura dos cabos no ponto de embate com a carga transportada pelo veículo pesado em causa nos autos;
10. Efetivamente, pelas regras da física e da experiência comum, é forçoso concluir, desde logo, que se o cabo aéreo se encontrassem, por exemplo, a 4,81 metros de altura ao solo o infeliz acidente não teria acontecido, uma vez que a altura máxima da carga nem os alcançaria, assim, os cabos referidos em 6. atravessavam a via a uma distância do solo de 4,80m ou inferior, sem ser possível retirar de tal facto, com a mínima certeza, qual a distância mínima a que estariam os cabos em relação ao solo;
11. Por outro lado, o único elemento objetivo passível de retirar quanto ao ponto de embate foi o local onde os cabos se prenderam na carga transportada pelo veículo pesado (o que não significa que os cabos não estivessem a uma altura inferior e subissem para o local onde se prenderam após o impacto) altura não concretamente apurada mas objetivamente constatável como inferior ao ponto mais alto da carga, conforme resulta das fotografias n.º 23, 25, 29, 32, 33 e 34 do relatório do NICAV;
12. O único depoimento que versou sobre esta matéria foi o da testemunha HH o qual, como supra referido, consignou no seu depoimento que o embate se terá dado “A menos de 4,80 metros do solo.” (conforme supra transcrito e identificado), tendo ainda declarado que não conseguia afirmar se tal ponto de embate teria sido a uma altura superior a 4,00 metros de altura;
13. Pelo exposto, sempre se dirá que as regras da experiência comum, as fotografias juntas ao relatório do NICAV e o depoimento da testemunha HH, impõem que o ponto 69 do elenco da matéria de facto provada deve ser julgado, ao invés, como não provado e, ainda, ser dado como provada a matéria vertida no ponto n do elenco dos factos julgados como não provados;
14. Consagrando-se normativamente o nexo de causalidade em termos de causalidade adequada – “considera-se causa de um prejuízo a condição que, em abstracto, se mostre adequada a produzi-lo” - a altura do veículo em causa nos autos apenas seria causa adequada do embate nos cabos aéreos se, em abstracto e segundo o curso normal das coisas, a altura do mesmo fosse suficiente para o embate nos cabos aéreos à altura regulamentar dos mesmos, ou seja, 6 metros;
15. Sucede que, não é possível afirmar se o ponto de impacto ocorreu a uma altura superior aos 4,60 metros correspondentes à licença do veículo (caducada há meros 5 meses antes do acidente) ou se o ponto de embate foi superior aos 4 metros permitidos por lei para a generalidade dos veículos, como admitiu expressamente a testemunha HH;
16. Submetendo as “concausas” consideradas pelo Tribunal a quo à teoria da causalidade adequada na sua vertente negativa:
i. se os cabos aéreos se encontrassem à altura regulamentar de 6 metros, não teria havido qualquer acidente, uma vez que a altura máxima do veículo é de
4,80 metros;
ii. considerando que os cabos aéreos se encontravam a uma altura inferior a 4,80 metros, mas não tendo sido dado como provado que os mesmos se encontravam a uma altura superior a 4,00 metros, não é possível concluir que se o veículo circulasse com uma altura de 4 metros não teria existido o acidente em causa nos autos.
17. Em suma, da factualidade apurada apenas podemos concluir que a circulação do veículo pesado nas condições apuradas não pode ser vista como causa adequada do acidente, sendo que apenas a atuação ilícita do responsável ou responsáveis pela instalação e manutenção dos cabos que procediam à travessia daquela via foi a causa adequada do acidente em causa nos autos e subsequentes danos.
18. O que impõe a absolvição da Recorrente de todos os pedidos cíveis contra si formulados.
Subsidiariamente, caso assim não se entenda:
19. Considerando as concausas identificadas na sentença e a fixação de uma responsabilidade de 50% quanto ao veículo em causa nos autos, é forçoso concluir que tal responsabilidade limita não só a indemnização devida aos Demandantes BB e CC, representante legal de DD, mas também a indemnização fixada à Demandante “A...”, razão pela qual deve a mesma ser reduzida para o montante global de Eur. 15.723,27.
20. Consequentemente, ao decidir nos termos vertidos na sentença proferida, foi violado, pelo menos, o disposto nos artigos 342.º e 483.º do Código Civil e 414.º do Código de Processo Civil, sendo certo que a correta subsunção dos supra referidos normativos legais implica a revogação da decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância e a absolvição da Demandante Civil, nos termos supra pugnados. Deve o presente recurso de apelação ser admitido e, consequentemente, ser proferido acórdão que revogue a douta sentença em crise e julgue improcedentes todos os pedidos de indemnização civil formulados contra à Demandada Civil, sendo assim feita, Justiça!
Subsidiariamente, caso assim não se considere, deve a indemnização fixada à Demandante “A...” ser reduzida em 50%, - considerando a contribuição da culpa de terceiro - para o montante global de Eur. 15.723,27.
Valor do recurso: Eur. 126.441,50 (cento e vinte e seis mil quatrocentos e quarenta e um Euros e cinquenta cêntimos)”.
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A “B... – Companhia de Seguros, S.A” apresentou resposta aos recursos dos demandantes cíveis, defendendo a sua improcedência.
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Neste Tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto limitou-se a apôr o visto.
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Com interesse para a decisão a proferir, é o seguinte o teor da Sentença recorrida:
Factos Provados
“Da acusação
1. No dia 2 de Outubro de 2017, o arguido AA, conduzia o tractor de mercadorias de matrícula ..-..-PT.
2. Ao lado do arguido seguia como passageiro II, manobrador de máquinas.
3. O supra referido tractor acoplava o semirreboque de matrícula L-......, em que era transportada uma máquina escavatória giratória, cujo respectivo limite superior distava 4,80m do solo.
4. O arguido havia iniciado o seu trajecto naquele mesmo dia na ..., tendo como destino o ....
5. Para o efeito, o arguido circulou pela Estrada Nacional n.º .... Ao chegar ao nó de acesso à Autoestrada n.º ..., para onde tencionava dirigir-se, o arguido enganou-se e entrou dessa forma na localidade da ....
6. Cerca das 16h24, o arguido circulava pela Rua ..., no sentido Avenida ... – ..., quando o braço da máquina escavatória giratória que transportava prendeu dois cabos de telecomunicações aéreos da C..., que atravessavam a faixa de rodagem, derrubando consequentemente os postes que os sustentavam e arrastando-os.
7. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, GG, operário de telecomunicações afecto à empresa “D..., SA”, encontrava-se a desenvolver trabalho num dos referidos postes, suspenso por um arnês no topo do poste situado na berma direita da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do arguido.
8. Em consequência do derrube dos postes e posterior arrastamento dos mesmos, conforme supra referido, GG caiu sobre um gradeamento de um muro de uma moradia marginal à faixa de rodagem e, em seguida, foi arrastado pelo pavimento por cerca de 80 metros, até ao momento em que o arguido imobilizou a viatura que conduzia.
9. A faixa de rodagem é constituída por duas via de trânsito, uma em cada sentido, e estavam delimitadas por uma linha descontínua de cor branca.
10. A faixa de rodagem é marginada por habitações de ambos os lados, e configura uma recta em patamar.
11. A via estava, no dia em apreço, em bom estado de conservação, apresentando-se seca, limpa e sem obstáculos.
12. O supra descrito teve como consequência directa a morte de GG, devida às lesões traumáticas meningo-encefálicas, faciais e cervico-torácicas (incluindo raqui – meningo medulares dorsais), descritas no relatório da autópsia médico-legal a fls. 84-88, que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
13. O arguido não cuidou de verificar se efectuava o transporte da máquina escavadora giratória em cumprimento das disposições legais e regulamentares a esse respeito vigentes, designadamente no que respeita à altura máxima legalmente permitida de 4 metros, prevista nos artigos 56.º, n.º 3, alínea f), e 57.º, n.º 1, ambos do Código da Estrada, e artigo do 3.º, n.º 1, alínea a), do Decreto- Lei n.º 99/2005, de 21 de Junho, já que a máquina que era por si transportada nas referidas circunstâncias de tempo e lugar distava 4,80 metros do solo.
Do pedido de indemnização civil formulado BB e DD
14. BB e o falecido GG, ambos divorciados, viviam maritalmente, como se fossem marido e mulher, desde 26 de Agosto de 2015 até á data do óbito deste, em 2 de Outubro de 2017.
15. O referido casal residia na Rua ..., ..., em ....
16. BB e o falecido GG fizeram toda a sua vida como marido e mulher, em comunhão de cama, mesa e habitação.
17. Repartindo entre si as despesas comuns da habitação e alimentação e outros gastos do casal.
18. Era nessa habitação, que o casal recebia família e amigos e comemoravam as festas de aniversário de ambos, Páscoa, Natal, entre outras.
19. Sendo tal relação do conhecimento da família, amigos e vizinhança.
20. O casal fazia férias juntos e com amigos.
21. O falecido GG era divorciado e tinha um filho menor, DD.
22. Os veículos referidos em 1. e 3. eram propriedade de E..., Lda.
23. O arguido conduzia o veículo sob as ordens e orientações do proprietário dos veículos E..., Lda.
24. O veículo transportava também, para alem da máquina escavadora giratória referida em 3., uma cabine WC móvel e um cilindro de compactar.
25. O falecido GG trabalhava por conta da empresa D..., Lda..
26. O arguido só imobilizou o seu veículo após ter sido advertido por outro veículo que circulava em sentido oposto, cujo condutor lhe chamou a atenção para o derrube dos postes.
27. O veículo referido em 1. e 3 era conduzido pelo arguido no interesse, por conta e sob as orientações do proprietário E..., Lda. e este havia transferido para a Seguradora B..., S.A Companhia de Seguros a responsabilidade civil emergente de sinistros estradais que fossem causados pelo tractor e semirreboque, pela apólice n.º ... do ramo automóvel, que se encontrava válido e eficaz em 2 de Outubro de 2017.
28. Na sequência do acidente foi chamada a GNR do Posto Territorial ..., que lavrou o auto de notícia e a participação de acidente de viação.
29. Foram também chamados a intervir os Bombeiros Voluntários ... e uma viatura da VMER.
30. Este ainda no local uma equipa do NICAV – Núcleo de Investigação de Crimes em Acidente de Viação – do Destacamento de Transito da Guarda Nacional Republicana ....
31. A empresa proprietária do veículo possuía uma autorização especial de trânsito para o transporte máximo de carga com 4,60 de altura a contar do solo – autorização anual n.º 01179/2015/DRMTC – para o veículo pesado de mercadorias, cuja validade havia expirado em 6 de Maio de 2016.
32. O falecido durante a sua queda iminente e arrastamento sofreu um choque imenso, sofreu muitas dores e anteviu a sua morte, pois viu-se amarrado ao poste, este a ser arrancado do solo em queda e sem meio de se soltar, caindo com o poste na estrada e arrastado pelo solo por mais de 80 metros.
33. Os Bombeiros Voluntários ainda tentaram a reanimação, sem sucesso, e com a chegada da equipa médica encetaram novas manobras de reanimação cardiorrespiratória, todas sem sucesso.
34. O sofrimento do falecido GG, embora durante poucos minutos, foi atroz.
35. Foi declarado o óbito ainda no local do acidente.
36. O corpo foi posteriormente transportado para o Gabinete Médico-Legal do Baixo Vouga.
37. No período que medeia o sinistro e a sua morte, GG sobrevive alguns minutos após o acidente.
38. Período durante o qual sofreu dores lancinantes e angustias próprias de quem se debate pela vida e sabe que a morte é iminente.
39. BB é funcionária judicial e vivia com o falecido há mais de dois anos, como se marido e mulher se tratassem, em comum faziam as compras para o dia a dia, cozinhavam em conjuntos, tomavam as refeições diárias, pagavam as despesas com água e electricidade, bem como um empréstimo que o falecido GG havia contraído junto dos familiares quando construiu a casa onde o casal morava.
40. Era um casal feliz e alegre, amigo de passear e conviver com amigos e familiares.
41. O GG tinha 42 anos e faleceu no dia do seu aniversário.
42. Era pessoa jovem e saudável, trabalhador, sempre pronto a ajudar quem quer que fosse.
43. Nutria amor, amizade e carinho pela assistente BB e pelo filho DD.
44. Era pessoa prezada, estimada e respeitada na comunidade local.
45. Com vários projetos de futuro.
46. O falecido GG dedicada grande afecto, carinho e amor à assistente BB, sentimentos que eram recíprocos, mantendo-se ao longo da sua união de facto muito unidos e o amparo moral e afectivo um do outro, havia cumplicidade entre ambos que era pública e notória para com quem com eles convivia.
47. O óbito de GG causou à assistente profundo desgosto, que a traumatizou de forma profunda e de que dificilmente recuperará, a que acresce o facto de ter falecido no dia do seu aniversário, dia em que em princípio não iria trabalhar e só foi substituir um colega. 48. A assistente que antes era pessoa alegre e comunicativa, passou a ser pessoa triste, isolando-se de amigos e familiares.
49. Ficando a viver sozinha, num estado depressivo, que persiste.
50. O filho DD sofreu e sofre imenso com a morte do pai, com sequelas e traumas de origem psicossomática.
51. Nunca vai poder crescer na companhia do pai, de poder receber o seu apoio, carinho e amor, e ajuda futura, nunca mais vai poder partilhar brincadeiras, as duvidas, as alegrias, tristezas e angustias, um ombro no qual se podia apoiar e partilhar a vida.
52. Os sintomas foram surgindo de forma gradual sendo que após a morte do pai, o comportamento do menor DD tem sido paginado por actos de revolta, dado que o pai era pessoa presente e assídua na sua vida e que muita falta lhe faz.
53. O filho DD teve e tem de suportar a dura realidade sobre as circunstâncias do acidente, pois os comentários que ouve e com que tem de lidar são constantes.
54. A educação do DD era repartida entre os seus dois progenitores, assim como os encargos da mesma.
55. O DD enfrentou problemas escolares, resultantes de alguma apatia e mau comportamento, pautado por algumas atitudes violentas e agressiva para com colegas da escola e professores.
56. Teve se ser acompanhado em psicólogos de forma a conseguir ultrapassar os traumas causados pela morte do pai, e para se reabilitar a nível emocional.
57. O falecido auferia € 11.200,00 anuais.
58. A assistente BB foi fixada uma pensão anual e vitalícia correspondente a 30% da remuneração, no valor de € 3.360,00.
59. Ao filho DD, que à data do sinistro tinha 9 anos de idade, foi fixada uma pensão anual temporária correspondente a 20% da remuneração, no valor de € 2.240,00, até atingir a maioridade ou, se continuar os estudos, até perfazer 25 anos.
Da contestação da demandada B... – Companhia de Seguros, S.A. ao pedido de indemnização civil formulado BB e DD
60. A vítima encontrava-se em cima de uma escada, a realizar trabalhos de manutenção numa caixa de derivação de fibra óptica.
61. Até ao local do acidente, o arguido já havia percorrido cerca de 80 kms, e desde a saída da ... até ao local do acidente já havia efectuado percurso pelo interior de ruas na ..., não tendo existido no seu trajecto qualquer embate anterior em cabos.
62. A travessia da estrada por cabos deve respeitar uma distância mínima de 6 metros de altura ao solo.
Do pedido de indemnização civil formulado pela A..., S.A (F..., S.A)
63. Em consequência da morte de GG correu termos no Tribunal Judicial de Aveiro – Juízo do Trabalho de Aveiro – Juiz 1, o processo n.º 3564/17.6T8AVR, referente ao acidente de trabalho que vitimou aquele.
64. Por contrato de seguros de Acidentes de Trabalho, titulado pela apólice n.º ..., tinha sido transferida para a A..., S.A a responsabilidade por acidentes de trabalho da entidade patronal do falecido GG, a empresa D..., S.A, declarada insolvente.
65. Realizado o julgamento no processo de acidente de trabalho, foi a demandante A..., S.A condenada nos termos que constam da parte decisória da sentença que se daqui por integralmente reproduzida.
66. A sentença proferida nos autos de processo n.º 3564/17.6T8AVR já transitou em julgado.
67. Decorrente das obrigações estabelecidas por tal sentença, a demandante A..., S.A efectuou, até 2 de Julho de 2021, os seguintes pagamentos: custas judicias – 1.124,13€, despesas de funeral – 1.760,00€, honorários – 1.367,91€, indemnização por morte – 5.561,40€, juros – 2.227,48€, despesas de gestão – 3,34€, pensões por morte – 21.630,10, no total de 33.724,36€.
Do pedido de indemnização civil formulado EE
68. Em consequência do derrube dos postes e posterior arrastamento dos mesmos, foram provocados danos no gradeamento da casa de EE, sita na Rua ..., no valor orçamentado de material e mão-de-obra para reparação de € 565,00 acrescido de IVA a 23%.
Mais se provou que
69. Os cabos referidos em 6. atravessavam a via a uma distância do solo de pelo menos 4,80m.
70. Do certificado de registo criminal do arguido nada consta.
71. O arguido AA tem 45 anos, é divorciado e reside sozinho num apartamento de tipologia 3, arrendado, tem um filho menor.
72. O arguido trabalha por conta própria, é proprietário da “G...”, empresa em nome individual, multisserviços – reparações domésticas/industriais.
73. Tem por habilitações literárias o 10.º ano de escolaridade.
74. É tido por pessoa trabalhadora, respeitadora, reconhecida na comunidade onde reside e trabalha e de natureza pacífica”.
*
Factos não provados
“Para além dos factos não referidos por irrelevantes, conclusivos, por conterem matéria de direito ou por se apresentarem em contradição com os factos provados, não se provaram, com relevância para a boa decisão da causa, os demais factos constantes da acusação, dos pedidos de indemnização civil e das contestações, designadamente que:
a) O arguido sabia que fazia o supra referido transporte da máquina escavadora giratória em incumprimento das disposições legais e regulamentares a esse respeito vigentes, designadamente no que respeita à altura máxima legalmente permitida de 4 metros, prevista nos artigos 56.º, n.º 3, alínea f), e 57.º, n.º 1, ambos do Código da Estrada, e artigo do 3.º, n.º 1, alínea a), do Decreto- Lei n.º 99/2005, de 21 de Junho, já que a máquina que era por si transportada nas referidas circunstâncias de tempo e lugar distava 4,80 metros do solo.
b) O arguido sabia ainda que a sua condução se revelava perigosa porque efectuada sem a atenção e concentração necessárias à mesma, designadamente porque estava ciente de que efectuava um transporte de grandes dimensões no interior de uma localidade que lhe era desconhecida, fora das disposições legais e regulamentares que a esse respeito regem.
c) O arguido actuou, pois, de forma livre, voluntária e consciente, com total falta de cuidado, atenção e prudência, em desrespeito pelas mais elementares regras estradais, que o mesmo podia e devia ter acautelado.
d) Porque não o fez, não obstante saber que a sua conduta era proibida e punida por lei, causou o acidente supra descrito, bem como as trágicas consequências que daí advieram para GG.
e) o braço da máquina escavadora giratória estava colocado por cima da cabine do veículo tractor;
f) a transporte de várias máquinas no semi-reboque referido em 3. impedia a retracção completa do braço da escavadora giratória;
g) os cabos de comunicações presos aos postes de madeira que ladeavam a via referida em 6. cruzavam-na a uma altura de cerca de 6 metros.
h) o falecido trabalhava a cerca de 6 metros de altura do solo.
i) o veículo conduzido pelo arguido, pelas suas dimensões, ocupava não só a sua faixa de rodagem mas também parte da faixa de rodagem destinada ao trânsito que seguia em sentido contrário ao seu.
j) o falecido encontrava-se a realizar o seu trabalho sem qualquer capacete;
k) por força da morte do companheiro, a assistente BB deixou mesmo de colaborar com a organização do cortejo de Carnaval.
l) Sempre que se desloca para o trabalho, nos transportes ou nos dias em que está mais só, ou menos ocupada, as reminiscências são uma constante mesmo ao fim deste tempo.
m) desde a saída da ... até ao local do acidente o veículo conduzido pelo arguido já havia percorrido cerca de 1,6 km, nas ruas... e ....
n) os cabos que embateram na carga do veículo atravessavam a via a uma distância do solo inferior a 4,80m”.
*
Motivação da convicção do Tribunal
“O tribunal valorou a globalidade da prova produzida em audiência de discussão e julgamento, conjugada com os elementos probatórios já constantes dos autos, tudo ao abrigo do princípio da livre valoração da prova previsto no art. 127.º do C.P.P.
Em concreto, foram valorados conjuntamente as declarações prestadas pelo arguido AA, as declarações prestadas pelas testemunhas II, manobrador de máquinas e que acompanhava o arguido no interior do veículo na data do acidente; JJ, o qual presenciou o acidente em discussão nos autos, por se encontrar parado no semáforo, em sentido de trânsito contrário ao seguido pelo camião conduzido pelo arguido, FF, colega de trabalho do falecido e que o acompanhava, em trabalho, à data do acidente, a assistente/demandante BB, companheira do falecido GG, a assistente/demandante CC, representante legal do filho menor do falecido, DD, a testemunha KK, inspectora da ACT desde 2005 e que de deslocou ao local do acidente a 4 de Outubro de 2017, tendo elaborado relatório de instrução do Processo de Acidente de Trabalho, LL, amiga do casal BB e o falecido GG, MM, filha da assistente BB, NN, irmã da assistente BB; OO, gestora do sinistro discutido nos autos junto da seguradora A..., PP, perito averiguador que presta serviços para a seguradora B... – Companhia de Seguros, S.A. e nessa qualidade procedeu à averiguação do acidente em causa, QQ, amigo do arguido, os militares da GNR RR, SS, bem como o militar da GNR HH, em exercício de funções do NICAV ... e responsável pela elaboração do relatório final junto aos autos.
No que concerne à prova documental e pericial valorada pelo tribunal, foram considerados os seguintes documentos: participação de acidente de viação e respectivo croquis de fls. 5 a 8; e respectivo aditamento de fls. 48 a 49 verso; declaração/informação prestada pelo arguido a fls. 9; declaração/informação prestada pela testemunha JJ a fls. 10; suporte fotográfico à participação de acidente de viação de fls. 14; termo de entrega de cadáver de fls. 12 e registo de entrada de cadáver de fls. 15; registo de exame de confirmação de substancias psicotrópicas e de quantificação de taxa de álcool no sangue, realizado ao arguido, de fls. 17 e 18; e relatório final de fls. 51, assento de óbito de GG, de fls. 41 e 42; relatório de autopsia médico- legal de fls. 84 a 88; relatório de exame toxicológico e de quantificação de taxa de álcool no sangue realizado ao falecido, de fls. 89; documento único automóvel e carta verde do veículo com a matricula L-......, com seguro constituído na B... – Companhia de Seguros, S.A., de fls. 138 e 139; ficha de inspecção periódica válida do veículo com a matricula L-......, de fls. 140; apólice H... de D..., S.A, de fls. 141 e 142; autorização especial de trânsito emitida pelo IMT em 7 de Maio de 2015 e com validade de 7 Maio de 2015 a 6 de Maio de 2016, referente à autorização concedida à empresa E..., Lda., proprietária do veículo com a matricula L-...... para transporte de máquinas industriais e agrícolas, madeira para construção civil, estruturas e chapas metálicas, gruas e seus elementos, vigas e postes em betão, metal e madeira, manilhas, varões de ferro, silos em vazia, com a altura máxima de 4,60m; certificado de matrícula do veículo com a matrícula ..-..-PT, propriedade da sociedade E..., Lda., de fls. 146 a 147 e carta verde do veículo, com seguro constituído a favor da B... – Companhia de Seguros, S.A., de fls. 148; ficha de inspecção periódica válida do veículo com a matricula ..-..-PT, de fls. 149, 175 a 177; cópia de carta de condução do arguido, de fls. 150 e 173; cópia de cartão do cidadão do arguido de fls. 151; cópia do Registo Individual de condutor do arguido de fls. 170 e 171; normas técnicas de traçados áereos de telecomunicações, de fls. 219 a 231; relatório final do NICAV e respectivo anexo fotográfico de fls. 256 a 286; assento de nascimento do arguido de fls. 297; assento de nascimento do falecido de fls. 310 a 311; cópia de sentença proferida nos autos de Processo por Acidente de Trabalho n.º 3564/17.6T8AVR, que correu termos pelo Juízo do Trabalho de Aveiro – Juiz 1 de fls. 345 a 357; inquérito de acidente de trabalho elaborado pelo ACT de fls. 453 a 464 verso, atestado emitido pela Junta de Freguesia ... atentando a união de facto do falecido com BB, de fls. 479; elementos fotográficos de fls. 480, 482 a 483, 487 a 489, comprovativo de pagamento de empréstimo a Banco 1... por parte da assistente de fls. 481; assento de nascimento do menor DD de fls. 500 a 501; assento de nascimento da assistente BB de fls. 522 a 523; listagem de pagamentos/reembolsos por sinistro pagos a BB e DD, de fls. 544 a 547, 617 a 663, cópia de apólice de seguro n.º ... de fls. 574 a 576 verso e relatório de averiguação requerido pela Seguradora B... de fls. 578 a 593 verso, 605 a 612.
O arguido AA prestou declarações, confirmando as circunstâncias em que se encontrava a transportar no camião que conduzia, uma máquina giratória, um cilindro e um tanque de água, tendo iniciado a viagem na ..., circulando pela Nacional ..., sendo que entrou erradamente na saída localidade da ..., quando pretendia sair no ..., razão pela qual se deslocava a baixa velocidade, com atenção à estrada onde circulava por não conhecer a rua, dentro da sua faixa de rodagem e porquanto pretendia, de acordo com o GPS, voltar para trás e retomar o caminho devido; julgava deter uma autorização especial para transporte de carga com 4,50m de altura, desconhecendo o facto de a mesma se encontrar caducada por não ter confirmado esta, sendo que a carga foi colocada no camião por parte de II, julgando estar a mesma conforme em altura de acordo com o por este transmitido, mas admitindo não ter efectuado qualquer medição prévia por ter confiado naquele.
Mais referiu que não viu qualquer sinalização de obras na estrada, não se apercebeu da presença da vítima GG em cima do poste, tendo apenas parado a sua marcha quando ouviu gritos a dizer “para, caiu o homem”, momento em que já viu a vítima no chão/no alcatrão, com o arnês colocado e agarrado ao poste, não se tendo apercebido de qualquer capacete colocado na cabeça deste ou nas imediações do acidente, tendo-se aproximado do mesmo, verificando que este ainda esta a respirar mas “em delírio”.
Referiu que mesmo não tendo verificado a existência de autorização válida de carga elevada e não tendo medido a carga, nada lhe fazia prever que as “linhas” estariam tão baixas, tendo a percepção que poderia passar, tanto mais que, ao longo da viagem, já havia passado no interior de demais povoações, sem qualquer problema, não sendo expectável tal embate nas mesmas.
Admite como possível que a vítima tenha sido arrastada por 80 metros, não colocando em causa tal medição, por não se ter apercebido, de imediato, antes de ser advertido, da ocorrência do acidente.
Relativamente à velocidade a que circulava, disse o arguido circular a velocidade não superior a 40 km/h.
No que diz respeito às funções que se encontrava a exercer, relatou o arguido que prestava serviços de transporte à empresa E..., Lda, a qual o havia contratado para tal serviço, o que fazia com regularidade.
Cumpre, assim, ao tribunal apreciar da explicação dada pelo arguido para a ocorrência do acidente que vitimou GG e, nessa sequência, aferir da veracidade da mesma, apurando, na medida do possível, das causas do acidente. No que concerne à concreta dinâmica dos factos, o tribunal, além da extensa prova testemunhal e documental carreada para os autos, dispõe de um elemento probatório de particular relevância, isto é, os elementos fotográficos junto aos autos e que se encontram em anexo ao relatório final elaborado pelo NICAV. Da análise dos mesmos, é possível verificar, a via em que ocorreu o acidente, a viatura conduzida pelo arguido e a carga que este transportava, bem como o local em que ocorreu o embate e em que as linhas prenderam à carga transportada.
Este meio probatório foi ainda complementado com os depoimentos das testemunhas que se encontravam presentes no local e que, de uma ou outra perspetiva, presenciaram o acidente em causa nos autos, nomeadamente II, que acompanhava o arguido no interior do camião, no chamado lugar do pendura, JJ, que presenciou o acidente de dentro da sua viatura, seguindo em sentido contrário ao do camião e o colega de trabalho da vítima mortal, FF, que só se apercebeu do acidente após a sua eclosão, não obstante se encontrasse junto à vitima, mas no chão, encontrando-se a arrumar os equipamentos.
A testemunha II, que seguia no camião ao lado do arguido, depôs de uma forma pouco segura e titubeante, demonstrando particular preocupação em se eximir de qualquer responsabilidade pela não verificação da altura máxima da carga transportada, assumindo ter colocado a mesma no veículo, sendo a sua única atribuição, sem efectuar qualquer medição – por entender não deter tal obrigação - e desconhecendo se o arguido a realizou mas demonstrando conhecer as normas que regulamentam o transporte da mesma, desconhecendo se existia uma autorização especial de transporte de carga com 4,5 m de altura para a carga em transporte. De forma contraditória e pouco segura, não merecendo credibilidade, referiu não terem falado da altura da carga entre eles mas julgar ter comentado com o arguido que deveriam ter atenção à altura, não esclarecendo o que procurou atestar com tal comentário.
Mais confirmou terem iniciado a viagem na ... com destino ao ..., que o arguido se enganou no caminho e pretendia voltar para trás, que não se apercebeu da existência de qualquer sinalização de obras na via, não se apercebeu da presença da vítima no poste arrancado enão se apercebeu do acidente, não tendo sentido qualquer impacto na cabine do camião, tendo-se apercebido que um carro lhes buzinou e só quando saiu do camião verificiou a ocorrência, recordando pouco após tal momento, por declarar ter ficado em choque com a situação vivenciada, o que, atento a natureza da mesma, surge como plausível. Referiu que seguia de forma descontraída ao lado do condutor, que entende circular de forma atenta e numa condução normal, não lhe tendo chamado a atenção os cabos existentes na via, atestando que os mesmos “prenderam” na parte superior dos tubos hidráulicos da máquina giratória transportada.
A testemunha JJ disse ter presenciado os factos, visto que, quando se encontrava parado no semáforo da rua descrita em 6., vendo o camião, em marcha lenta, na faixa de rodagem contrária aquela onde seguia, transportando o que entendeu como uma grua e estranhando a altura da mesma, por achar que a ponta desta quase tocava nos cabos da estrada, momento em que passou por um poste onde se encontrava a vitima, com um arnês e o arrastou, derrubando dois postes. Refere que buzinou e alertou o camionista para parar, depondo nesta parte de forma coincidente com o arguido e a testemunha II. De forma pouco segura, referiu julgar que a vítima tinha capacete colocado e não se ter apercebido que algum cabo estivesse mais baixo que o normal ou face aos demais.
A testemunha FF, companheiro de trabalho de GG, ambos trabalhando para a D..., não obstante encontrar-se junto do mesmo, perto do poste onde este se encontrava, mas no chão, demonstrou, de forma séria e objectiva, não ter verificado a eclosão do acidente, por se encontrar a arrumar material e concentrado em tal serviço, referindo que a vítima esta no cimo do poste a fixar uma caixa de fibra óptica, momnto em que ouviu um estrondo e deixou de o ver, bem como aos poste, não se tendo apercebido de imediato do que havia sucedido, tendo procurado o colega, momento que que o viu no alcatrão, a cerca de 100 metros (medida não exacta mas não desconforme com a medição efectiva efectuada no local), ainda com o arnês colocado e vendo que um camião havia arrastado o poste onde o GG se encontrava, localizado no sentido de marcha deste e um outro poste situado do outro lado da estrada.
Mais disse que o tipo de trabalho realizado não é normalmente parecido de aviso de obra na estrada e que o tipo de trabalho realizado pela vítima não implica mexer nos cabos existentes no poste, não tendo qualquer noção da altura de tais cabos, sabendo, por força das funções que exerce - técnico de telecomunicações - que os mesmos devem estar à altura de 6 metros.
Foram igualmente ouvidos os militares da GNR que se deslocaram ao local do acidente após a sua produção, RR e TT, tendo sido este último a proceder à elaboração do auto de participação de acidente de viação que se encontra junto aos autos. Ambos referiram que, quando chegaram ao local, já havia sido declarado o óbito de GG e que se aperceberam com facilidade da dinâmica do acidente, tendo efectuado medições e confrontados com o relatório fotográfico anexo ao relatório final do NICAV, referiram que a fotografia n.º 32 do mesmo atesta o local onde verificaram que o cabo de telecomunicações engatou na máquina transportada no camião conduzido pelo arguido. Ambos disseram ter sido o cabo do NICAV a efectuar a medição da altura da máquina giratória ao solo e não da altura do cabo preso ao solo, dado que o arrastamento do mesmo e queda do poste a que se encontrava ligado não permitia uma mediação fidedigna.
Foi igualmente inquirida a testemunha KK, inspectora da ACT, que elaborou relatório de tal entidade apresentado em sede de processo de acidente de Trabalho, a qual explicitou os termos do seu relatório de fls. 453 a 464 verso, elaborado após deslocação ao local do acidente, no dia 4 de Outubro de 2017, apenas vendo os postes de madeira derrubados, apurado que a vítima havia usado equipamentos de segurança ancorado ao Poste; mais disse que a norma técnica de instalação de cabos de travessia aérea de via exige que os mesmo se situem a 6 metros do solo, o que não se verificava no caso do cabo embatido, que estaria a pelo menos 4,80 do solo, em face da altura máxima da máquina transportada e onde o mesmo engatou. Conclui referindo ter concluído terem sido causas directas do acidente a altura dos cabos aéreos e a altura da carga transportada pelo arguido e como causa indirecta o facto de o poste ser de madeira, dado que sendo de betão, teria oferecido maior resistência.
Por seu turno, a testemunha PP, perito averiguador que presta serviços para a Seguradora B... desde 2017, confirmou o teor do documento por si elaborado e constante de fls. 577 a 593 verso, referindo ter-se deslocado ao local do acidente e verificado que a via era atravessada por vários cabos aéreos pertença da C..., apurando, de acordo com os elementos documentais reunidos que com grande probabilidade a parte superior de articulação do braço hidráulico da máquina giratória que seguia no camião conduzido pelo arguido havia engatado num cabo aéreo mas não existindo, da sua análise, elementos fotográfico que ateste o especifico local de engajamento onde o referido cabo prendeu.
Por fim, ouvido em declarações o militar da GNR que elaborou o relatório final junto aos autos, HH, o mesmo esclareceu que se deslocou ao local do sinistro 25 minutos após a sua ocorrência, que efectuou as medições no local, com auxilio de demais militares, tendo Ambos referiram que, quando chegaram ao local, já havia sido declarado o óbito de GG e que se aperceberam com facilidade da dinâmica do acidente, tendo efectuado medições e confrontados com o relatório fotográfico anexo ao relatório final do NICAV, referiram que a fotografia n.º 32 do mesmo atesta o local onde verificaram que o cabo de telecomunicações engatou na máquina transportada no camião conduzido pelo arguido. Ambos disseram ter sido o cabo do NICAV a efectuar a medição da altura da máquina giratória ao solo e não da altura do cabo preso ao solo, dado que o arrastamento do mesmo e queda do poste a que se encontrava ligado não permitia uma mediação fidedigna.
Foi igualmente inquirida a testemunha KK, inspectora da ACT, que elaborou relatório de tal entidade apresentado em sede de processo de acidente de Trabalho, a qual explicitou os termos do seu relatório de fls. 453 a 464 verso, elaborado após deslocação ao local do acidente, no dia 4 de Outubro de 2017, apenas vendo os postes de madeira derrubados, apurado que a vítima havia usado equipamentos de segurança ancorado ao Poste; mais disse que a norma técnica de instalação de cabos de travessia aérea de via exige que os mesmo se situem a 6 metros do solo, o que não se verificava no caso do cabo embatido, que estaria a pelo menos 4,80 do solo, em face da altura máxima da máquina transportada e onde o mesmo engatou. Conclui referindo ter concluído terem sido causas directas do acidente a altura dos cabos aéreos e a altura da carga transportada pelo arguido e como causa indirecta o facto de o poste ser de madeira, dado que sendo de betão, teria oferecido maior resistência.
Por seu turno, a testemunha PP, perito averiguador que presta serviços para a Seguradora B... desde 2017, confirmou o teor do documento por si elaborado e constante de fls. 577 a 593 verso, referindo ter-se deslocado ao local do acidente e verificado que a via era atravessada por vários cabos aéreos pertença da C..., apurando, de acordo com os elementos documentais reunidos que com grande probabilidade a parte superior de articulação do braço hidráulico da máquina giratória que seguia no camião conduzido pelo arguido havia engatado num cabo aéreo mas não existindo, da sua análise, elementos fotográfico que ateste o especifico local de engajamento onde o referido cabo prendeu.
Por fim, ouvido em declarações o militar da GNR que elaborou o relatório final junto aos autos, HH, o mesmo esclareceu que se deslocou ao local do sinistro 25 minutos após a sua ocorrência, que efectuou as medições no local, com auxilio de demais militares, tendo verificado que o topo da máquina giratória distava 4,80m do solo, e existiam cabos enrolados no ponto mais alto de tal maquina giratória, concluindo que, pelo menos a 4,80 m do solo, ocorreu um contacto entre a máquina transportada e os cabos. Requerida a análise da fotografia n.º 32 anexa ao seu relatório, reafirmou a existência de vários cabos enrolados tendo enrolado no ponto mais alto e permanecido enrolado ao longo de parte do braço da máquina.
Atestou que a vítima antes de ser arrastado pelo solo caiu sobre um gradeamento por existirem vestígios de tecido e manchas de sangue no mesmo, encontrando-se este retorcido, sendo que a dinâmica do acidente não se suscitou dúvidas de maior, nos termos expostos no seu relatório. Mais disse ter efectuado diligências junto da C... para efeitos de averiguação da altura devida dos cabos de telecomunicações, tendo a empresa respondido que a altura devida seria de 6 metros em relação ao solo. Esclareceu que não viu qualquer capacete da vítima no local, nem sinalização de obra, atestado o uso de arnês pela mesma. Mais referiu que o primeiro poste a ser arrancado foi aquele onde a vítima se encontrava a laborar e que se encontrava do lado direito da estrada, em face do sentido de marcha do camião.
Em suma, quanto à dinâmica do acidente, é possível afirmar que o arguido, ao volante do de um camião de mercadorias, que transportava, no seu semi-reboque, entre o mais, uma máquina escavatória giratória, se encontrava a realizar viagem desde a ... e tendo por destino o ..., entrou de forma errada na localidade da ..., sendo que, quando se encontrava a percorrer a Rua ..., no sentido Avenida ... – ..., não se apercebeu da presença de GG a efectuar trabalhos num poste que se encontrava na berma da estrada, à sua direita, no seu sentido de marcha, momento em que, ao passar junto a tal poste, o braço da máquina escavatória giratória que transportava prendeu dois cabos de telecomunicações aéreos da C..., unidos a tal poste e que atravessavam a faixa de rodagem, derrubando consequentemente os postes que os sustentavam, em número de dois e arrastando-os, sendo que num dos mesmo se encontrava a vítima acoplada por um arnês.
Temos por assente que a vítima se encontrava a efectuar os trabalhos no topo do poste (sem se ter logrado demonstrar a que altura do chão o mesmo se encontrava mas sabendo-se que tais caixas de derivação onde trabalhava costuma se encontrar encimadas nos postes) suspenso por um arnês, porquanto tal resulta à saciedade de toda a prova produzida e coligida, tanto testemunhal, como documental. Ao invés, não se logrou formar convicção no sentido de afirmar, sem qualquer dúvida, que o mesmo estaria igualmente equipado com capacete de protecção, por, neste âmbito, a prova testemunhal produzida ter sido díspare e pouco segura, ora se referindo, de forma pouco segura, a presença de capacete junto ao corpo da vítima, já no asfalto, ora não se logrando esclarecer tal presença, sendo certo que de tal elemento de protecção não é feita qualquer referência em sede de auto de participação de acidente de viação ou em sede de relatório final do NICAV, como seria normal caso tal elemento tivesse sido observado no local.
No entanto, tal não é de molde a demonstrar qualquer contribuição da vítima para a produção do seu resultado morte dado que o mesmo não resultou apenas e só de lesões crânio-encefálicas mas de lesões mútuas a nível facial e cervico-torácico.
Não tendo o arguido se apercebido da presença da vítima no topo do poste, nem da circunstância de os cabos ligados a esse mesmo poste se encontrarem a altura passível de colisão com a mercadoria transportada, como referiu em audiência de julgamento e nos parece efectivamente resultar da prova produzida, não efectuou qualquer manobra evasiva ou travagem para evitar o embate.
Note-se que, segundo referiu o arguido, não se apercebeu sequer do que tinha ocorrido, apenas tendo imobilizado o camião quando foi alertado por condutor de veículo que seguia em sentido contrário, facto que mereceu credibilidade porquanto foi igualmente atestado quer por tal condutor, JJ, quer por parte do seu colega, II, que seguia também no interior do camião.
Ora, a dinâmica de eclosão do acidente verificado nos autos não é, de facto, colocada em crise por parte do arguido, nem mesmo o que ocorreu após o embate da máquina nos cabos aéreos, com queda da vítima sobre um gradeamento (onde se encontravam sinais visíveis de tal queda) e arrastamento pelo asfalto até o arguido imobilizar o veículo, que não foi por si diretamente observado mas que o mesmo aceita e resulta dos elementos recolhidos no local do acidente.
Em face da prova produzida, o que se impõe analisar são as causas possíveis ou prováveis da ocorrência do acidente.
Desde logo, é certo que se admite como possível que o arguido tripulasse o camião de forma distraída, sendo essa a causa pela qual não parou antes do embate com os cabos. Porém, não podemos dizer que tal resulte de forma segura da prova produzida. De facto, resulta das regras da normalidade que a atenção na condução se prende e se fixa, em regra, na via onde se circula, nos demais veículos em circulação na mesma faixa e na faixa contrária e nos limites da via onde se transita, tanto mais, na circunstâncias concretas em causa, em que o arguido aí havia ingressado de forma errónea e pretendia retomar caminho mais directo para o .... O mesmo será dizer que não resulta da habitualidade, conduzir com atenção ao que passe na zona acima do campo de visão necessário a assegurar o acto de condução na via, de forma correcta.
Ou seja, o facto de o arguido não se ter apercebido do embate não é de molde a afirmar que o mesmo circulava de forma desatenta ou distraída (ou como referia o libelo acusatório sem a atenção e concentração necessárias), em face das concretas circunstância da dinâmica do acidente aferidas.
Tanto mais, que II, não obstante não deter especiais deveres de cautela com a condução - por não se encontrar ao volante mas seguindo ao lado do arguido - afirmou a sua condução regular e atenta e também o mesmo declarou não se ter apercebido de qualquer embate, por o mesmo não ter provocado qualquer efeito na cabine do camião onde seguiam. Acresce que inexiste qualquer prova produzida no sentido de afirmar que o arguido seguia em velocidade excessiva ou desadequada à via onde circulava ou que os trabalhos que se encontravam a ser desenvolvidos pela vítima GG se encontrassem sinalizados na via, sendo que existindo tal sinalização, seria normal exigir ao arguido especial atenção à referida existência de trabalhos e modo do seu desenvolvimento.
Acresce que resultou demonstrado, com segurança, que os cabos nos quais a mercadoria transportada pelo arguido embateram se encontravam a pelo menos 4,80 m de altura.
Tenhamos em consideração que o derrube dos postes onde tais cabos se encontravam colocados e posterior arrastamento dos mesmos no asfalto tornou impossível a possibilidade de aferição concreta da altura a que estes mesmos se encontravam. Seria elemento essencial mas impossível de apurar ou sequer reconstituir.
Mas sabemos que o ponto mais alto da máquina escavadora giratória transportada no semi-reboque conduzido pelo arguido distava do chão a 4,80 metros, por tal medição ter sido efectuada logo após a produção do acidente, por parte de militares da GNR, sem que antes de tal acto, tenha sido a mesma mexida ou modificada a sua forma de transporte. Acresce que julgamos ter sido efectuada prova bastante do ponto físico situado na máquina escavadora giratória em sede do qual os cabos aéreos prenderam, de forma efectiva, provocando o derrube dos postes de madeira que sustentavam os mesmos. Tal ponto resulta, salvo melhor entendimento, da análise fotográfica efectuada e anexa ao relatório final articulada com o depoimento prestado pelo militar HH, seu subscritor e que, não obstante não ter subido à máquina, atestou tal local ao coordenar as medições necessárias imediatamente após o acidente, fazendo corresponder a tal ponto mais elevado da máquina o ponto onde prenderam os referidos cabos aéreos.
Assim, julgamos poder afirmar com segurança que os referidos cabos, para terem prendido a tal ponto da máquina, se encontravam pelo menos a 4,80m do solo, caso contrário, tal embate e enrolamento não teria ocorrido, sendo tal facto dado como provado e não o facto alegado pelas assistentes que os cabos se encontravam à altura de 6 metros em relação ao solo (manifesta e fisicamente impossível caso contrário inexistia qualquer embate) ou o facto alegado pela seguradora B..., que se encontravam a altura inferior a 4,80m do solo, sendo plausível tal possibilidade mas não tendo sido efectuada qualquer prova concreta de tal medida inferior, mormente por verificação do local diverso da altura máxima da máquina onde os cabos tenham embatido e prendido, por análise fotográfica.
Assim, ficou o tribunal com a convicção de que para a produção do acidente terão concorrido, com segurança, duas circunstâncias distintas.
Por um lado, o facto de o arguido transportar uma máquina que distava do solo a uma altura de 4,80 m, sabendo-se que a licença especial de transporte de altura excepcional de 4,60 metros se encontrava caducada (e mesmo em vigor não se encontraria a ser respeitada) e que a altura máxima de transporte a partir do solo se situa legalmente nos 4 metros, de acordo com o consignado no artigo 56.º do Código da Estrada e artigo 3.º, n.º 4 do DL n.º 99/2005 de 21 de Junho que aprova o Regulamento que fixa os pesos e as Dimensões Máximos Autorizados para os Veículos em Circulação, transpondo para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2002/7/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 18 de Fevereiro.
Por outro lado, o facto de os cabos aéreos pertença da C... que se encontravam unidos aos postes arrancados e arrastados (e num dos quais se encontrava em laboração acoplado a vítima GG) se encontrarem a altura do solo de pelo menos 4,80 metros, quando a sua altura regulamentar é de 6 metros a partir do solo. (vide Decreto Regulamentar n.º 90/84 de 26 de Dezembro que entendemos aplicável a redes de telecomunicações)
Cumpre então analisar a prova produzida em face da assumida existência de um transporte de mercadoria com medida excessiva de altura face ao solo e da possibilidade de o arguido evitar, ainda assim, a produção do acidente.
Julgamos demonstrado que o arguido não cuidou de verificar, como se lhe impunha, a altura da carga que transportava face ao solo.
É certo que resulta das regras da experiência, que em face do tipo de transporte que realizava, considerando o facto de não ter cuidado de apurar, em concreto, qual a altura efectiva da carga transportada e o facto de circular no interior de uma localidade, com maior exigência e cuidado de circulação, terá o condutor de adoptar especiais cuidados para salvaguardar a presença de pessoas ou objectos no decurso da sua trajectória.
Com efeito, resulta até da experiência que todos os condutores – seja de camiões ou de quaisquer outros veículos – estão sujeitos a um especial dever de cuidado de se assegurar de que, transportando carga especial acondicionada, adoptam os comportamentos necessários a salvaguardar o seu transporte sem possibilidade de queda ou colisão.
Porém, o comportamento negligente que vem imputado ao arguido terá de assentar precisamente em três vectores: previsibilidade (em termos de previsibilidade de um certo resultado, teremos de analisar não só aquilo que é previsível e evitável para a generalidade das pessoas, mas também se para aquela pessoa em concreto, era previsível e evitável que um certo acontecimento se desse); possibilidade de adoptar comportamento que evite a produção do resultado; e exigibilidade desse mesmo comportamento (apesar do legislador nada dizer acerca da medida de cuidado exigível do agente, esta deverá coincidir com o necessário para evitar a ocorrência do resultado típico, analisada, não tanto em termos de cuidado exigível a uma pessoa média, mas em termos de cuidado exigido àquela pessoa em concreto).
No que diz respeito à previsibilidade da presença da vítima no local, verificamos ter resultado demonstrada a inexistência de qualquer sinalização de obra ou trabalhos em curso na via ou junto a tal poste (tal foi atestado pelo colega da vítima FF que efectuava trabalho no solo), de molde a chamar a atenção do arguido para a sua ocorrência, a qual não detém, efectivamente, natureza habitual mas sim, excepcional. Assim, em suma, ficou o tribunal com a convicção de que, efectivamente, os trabalhos que se encontravam a ser desenvolvidos pela vítima - de manutenção numa caixa de derivação de fibra óptica colocada no poste arrancado – não se encontravam sinalizados na via, de molde a chamar a atenção do arguido durante o seu acto de condução.
Acresce que, julgamos que não seria igualmente previsível para o arguido o facto de os cabos aéreos se encontrarem a uma altura de pelo menos 4,80m, dado que já havia o mesmo percorrido, durante a sua viagem, o interior de demais povoações (logramos afirmar tal facto pela circunstância de ter circulado desde a ... pela Nacional ... que se desenvolve pelo interior de povoações) e já ter percorrido parte daquela via - Rua ..., onde demais postes com cabos aéreos necessariamente existirão (sendo que no que concerne à especifica Rua ... a existência de demais postes com cabos aéreos resulta da análise dos elementos fotográficos juntos aos autos.) sem qualquer problema de embate que o houvesse alertado, presumindo-se que os demais estivessem à altura devida regulamentar.
É certo que a testemunha JJ refere que, parado no semáforo e vendo o camião conduzido pelo arguido em sentido contrário ao seu sentido de marcha, “tem a percepção que este quase toca nos cabos aéreos existentes na via, antes de efectivamente engatar num deles”, mas di-lo de forma quase opinativa, e não cabalmente sustentada e oferece tal percepção de um ângulo diverso do detido pelo arguido, pelo que não podemos afirmar que tal percepção pudesse ter sido aferida igualmente pelo arguido.
Importa ressalvar que não podemos afirmar que o falecido GG tenha tido qualquer interferência na altura dos cabos aéreos, que os haja tocado ou laçado no sentido da diminuição da sua altura face ao solo, dado que os trabalhos que se encontrava a realizar não interferiam com os mesmos, conforme resulta do declarado pelo seu colega de trabalho FF e que mereceu credibilidade em face da natureza dos trabalhos em execução.
Em face do exposto, considerando a prova recolhida com a análise do veículo conduzido pelo arguido e determinação do local onde os cabos prenderam, impõe-se concluir que os cabos aéreos se encontravam a uma altura do solo de pelo menos 4,80m.
Concatenadas todas estas circunstâncias, temos que, apesar da conduta relevante do arguido ao não se assegurar previamente da altura da carga transportada, não podemos deixar de concluir que ao arguido não era previsível que os cabos aéreos existentes na via estivessem a altura do solo que levasse os mesmos a ficarem presos na carga transportada.
Quanto à possibilidade de o arguido adoptar um comportamento que evitasse a produção do acidente, resulta das suas próprias declarações, que não cuidou sequer em aferir a altura da carga transportada, julgando tal estar medido por parte de II que efectuou a carga, mas demonstrando que nem a este inquiriu sobre a mesma altura de carga, pelo que tal circunstância de transporte não foi tida em consideração por parte do arguido.
Analisadas conjuntamente todas as referidas circunstâncias que concorreram para a ocorrência do acidente que vitimou GG, o tribunal ficou com sérias dúvidas de que tal lhe fosse previsível, em termos de cuidado exigido àquela pessoa e naquelas condições em concreto.
Julgamos não se demonstrar, com segurança, que, apesar de o arguido se ter demitido da responsabilidade de apurar a altura máxima da carga que transportava, lhe era previsível que a mesma embatesse nos cabos aéreos existentes na via e que atravessavam a mesma, por confiar que estes se encontrariam a altura superior.
Em face de tal ausência de previsibilidade, decorrente da con-causa do acidente referente a altura do solo dos cabos aéreos, julgamos não terem sido reunidos elementos bastantes de moldo a imputar ao arguido o comportamento negligente imputado.
No que diz respeito às causas da ocorrência do acidente, reiteramos que, como referimos, é convicção do tribunal que para o mesmo concorreram, pelo menos, duas circunstâncias: por um lado a altura irregular da carga transportada pelo arguido e, por outro, a altura dos cabos aéreos que atravessavam a via em relação ao solo.
No que concerne aos factos respeitantes ao pedido de indemnização civil formulado pela companheira e pelo filho da vítima, o tribunal valorou os documentos juntos aos autos, as declarações das assistentes BB e CC, vívidas, sentidas e verdadeiras e os depoimentos das testemunhas LL, amiga do casal, MM, filha da assistente BB e NN, irmã da assistente BB, as quais confirmaram a relação em regime de união de facto havida entre a vítima e BB, a convivência tida pela vítima com o seu filho menor, que residia habitualmente com a mãe, mas mantinha contactos regulares com o pai, e os fortes laços de afecto que unia a vítima à sua companheira e ao seu filho, e que atestaram a dor e sofrimento sentidos por aqueles aquando do seu falecimento, nas circunstâncias trágicas dadas como provados, sendo a dor e desgosto sentidos decorrência de tal natureza trágica e imprevisível da morte prematura do companheiro e pai.
Relativamente à prova da dor física que precedeu a morte e a percepção da mesma, entende o tribunal que tal resultou provado.
Com efeito, o arguido referiu que quando se aproximou da vítima este se encontrava ainda a respirar, mas em delírio, sem lograr especificar em que consistia tal facto, a testemunha FF referiu que o mesmo se encontrava com os olhos abertos. No entanto, os militares da GNR que foram chamado de imediato ao local, referiram que encontraram a vítima já sem vida, sendo que, em face das lesões constantes do relatório de autópsia surge plausível a ocorrência de uma situação de morte rápida mas não imediata. Em face disto e cabendo o ónus da prova de tal sofrimento e percepção aos demandantes, impõe-se concluir pela prova de tal facto, sendo certo que sendo os momentos de queda sequencial (embate, queda sobre um gradeamento e arrastamento pelo alfalto) que precederam a morte naturalmente foram percecionados pela vítima, incapaz e escapar a tal infortúnio em face de se encontrar presa por um arnês..
Para prova do alegado no pedido de indemnização civil formulado pela A..., S.A., o tribunal o depoimento da testemunha OO, gestora do sinistro em causa nos autos junto da seguradora A..., referiu que tendo tido o acidente também natureza laboral, e trabalhando a vítima para a D..., sua segurada, corroborou o teor da sentença proferida pelo Tribunal do Trabalho, nos autos de Processo por Acidente de Trabalho n.º 3564/17.6T8AVR, confirmando os pagamentos já efectuados por parte da Seguradora, nos termos dados como provados em 67., decorrendo o demais dado como provado em 63.a 66. da análise dos elementos documentais juntos aos autos.
Relativamente à restante factualidade provada e não provada e que vinha alegada nos pedidos de indemnização e contestações apresentadas pelos demandados, o tribunal valorou igualmente a globalidade da provada produzida.
Quanto ao vínculo existente entre o arguido e a empresa E..., Lda., temos as declarações prestadas pelo arguido e pela testemunha II, que referiram que o mesmo se encontrava ao serviço da referida empresa para realização do transporte dos equipamentos desde a ... até ao ..., formando-se, assim, convicção, que o arguido, apesar de prestador de serviços, se encontrava sob as ordens, instruções e direcção da E..., Lda. no momento da ocorrência do acidente.
Os restantes factos não provados resultaram da total ausência de prova produzida no sentido do alegado ou dúvida sustentada no sentido da sua afirmação, que se decide a favor do arguido, em obediência ao princípio in dúbio pro reo.
Para prova dos factos relativos à personalidade do arguido e características pessoais e laborais o tribunal valorou o teor do relatório social junto aos autos, conjugado com as suas próprias declarações e o depoimento da testemunha QQ, amigo do arguido há mais de 20 anos e que depôs de forma entendida por séria quanto ao seu comportamento social e ao seu empenho profissional.
Por fim, foi valorado o teor certificado do registo criminal do arguido, tendo sido atestada a ausência de antecedentes criminais a valorar nos termos expostos em sede de despacho proferido em acta datada de 22 de Março de 2023”.
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Qualificação Jurídica
“Vem o arguido acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º n.º1 e 69.º n.º1 alínea a) do C.P.
Dispõe aquele tipo legal que “Quem matar outra pessoa por negligência é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”
(...)
Na verdade, debruçando-nos sobre o caso sub iudice, de entre as atividades perigosas salienta-se, inequivocamente, a condução automóvel, atividade que, como é consabido, por força do seu potencial lesivo de bens jurídicos penalmente relevantes – como a vida ou a integridade física das pessoas – é sujeita a uma infinidade de normas legais impositivas e proibitivas de determinados comportamentos aos condutores, com o intuito de minimizar/ evitar os riscos que lhe são inerentes.
Nestes domínios, como tal, o mais importante elemento concretizador do dever objetivo de cuidado exigido acaba por derivar, naturalmente, da análise dessas normas impositivas de comportamentos, cuja violação, porque geradora do perigo que visam evitar, constitui indício, por excelência, de uma contrariedade ao cuidado objetivamente devido e, como tal, indício fulcral de conduta negligente.
Como se infere dos factos constantes da matéria dada como provada ao arguido imputar-se-á a violação, em nexo causal com o cometimento de um crime de homicídio negligente, das regras impositivas insertas no Código da Estrada sob o 56.º, n.º 2 e 3, alínea f) que prevê que “2 - É proibido o trânsito de veículos ou animais carregados por tal forma que possam constituir perigo ou embaraço para os outros utentes da via ou danificar os pavimentos, instalações, obras de arte e imóveis marginais. 3 - Na disposição da carga deve prover-se a que: f) Não seja excedida a altura de 4 m a contar do solo”, sendo que Quem infringir o disposto no n.º 3 é sancionado com coima de (euro) 120 a (euro) 600, se sanção mais grave não for aplicável, podendo ser determinada a imobilização do veículo ou a sua deslocação para local apropriado, até que a situação se encontre regularizada.
(…)
Revertendo tais considerações ao caso concreto, provou-se que o arguido não se apercebeu da presença de DD na parte superior do poste, manteve o andamento do veículo que dirigia inalterado e não desviou a sua trajectória nem deteve a sua marcha no espaço livre e visível à sua frente, colocando-o sem com ele contender e embateu-lhe, com isso causando-lhe a sua morte.
Tal factualidade é susceptível de integrar o elemento objectivo do tipo legal de crime de que vem acusado.
Porém, não se provou que o arguido não viesse atento à condução; que tenha agido com incúria e imprudência na condução do veículo, ao seguir desatento sendo certo que omitiu um dever de cuidado e atenção que sobre si impendia respeitante à violação da altura máxima da carga que transportava e que lhe era exigível na condução do veículo mas que não representou e não previu como possível que tal poderia dar origem a um acidente e, por via disso, causar lesões ou até a morte a outras pessoa que na via que seguia se apresentavam, em trabalhos juntos de postes com cabos aéreos acoplados. Falece, pois, o requisito da previsibilidade prevista na situação de negligência.
Por conseguinte, constata-se o não preenchimento do elemento subjectivo do tipo legal de crime de que o arguido vem acusado.
Impõe-se, assim, concluir pela absolvição do arguido da prática do crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137.º do Código Penal, de que vinha acusado”.
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Indemnização Civil
VI. Do pedido de indemnização civil formulado pelos assistentes BB e CC, representante legal de DD contra a Seguradora B..., S.A
Nos termos do disposto no art. 129.º do Código Penal, “A indemnização de perdas e danos emergentes de crime é regulada pela lei civil”.
O princípio geral em matéria de responsabilidade civil extra contratual encontra-se no art. 483° do Código Civil: “Aquele que com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação”.
Do referido preceito resulta serem pressupostos da responsabilidade civil extra contratual: o facto ilícito; o dano; o nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano; e a culpa.
Facto ilícito é o facto voluntário – a acção ou omissão – que viola o direito de outrem ou deveres impostos por lei que visem a defesa dos interesses particulares, sem contudo conferir, correspectivamente, quaisquer direitos subjectivos.
O dano consiste na ofensa de bens ou interesses alheios protegidos pela ordem jurídica, podendo revestir natureza patrimonial ou não patrimonial.
O nexo de causalidade entre o facto ilícito e o dano representa a imputação objectiva dos resultados danosos ao comportamento do agente, de maneira a determinar-se quais os danos verdadeiramente causados por este e nessa medida indemnizáveis (art. 563.° do C.C.).
Finalmente, a culpa representa a imputação subjectiva do facto ao agente e traduz uma determinada posição ou situação censurável deste perante o facto ilícito, podendo assumir a forma de negligência ou de dolo.
No caso em apreço, é inegável a ocorrência de um facto ilícito do qual resultaram danos, entre os quais, a perda do direito à vida da vítima GG.
Cumpre, pois, apreciar se estão verificados os pressupostos para a responsabilização da sociedade seguradora demandada pelo ressarcimento dos mesmos, tendo-se já adiantado que a absolvição do arguido do crime que lhe vinha imputado não impede a sua condenação nos pedidos cíveis, nos termos supra expostos.
Dos autos resulta que, à data dos factos, o arguido AA se encontrava a prestar serviço de transporte de equipamento contratado pela sociedade E..., Lda., por meio de condução do tractor de mercadorias de matrícula ..-..-PT que acoplava o semirreboque de matrícula L-......, em que era transportada, entre o mais, uma máquina escavatória giratória, ambos os veículos propriedade da referida sociedade. Assim, era às ordens, instruções e direcção da sociedade E..., Lda. que o arguido devia obediência, em tudo o que respeitasse à execução do trabalho.
Ora, dispõe o artigo 500.º n.º1 do C.C. que “Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar.”
Desde logo, independentemente de estar ou não demonstrada a relação de comissão, tendo o tribunal concluído inexistindo obrigação de indemnizar por parte do arguido e, não haverá responsabilidade por parte do comitente ao abrigo desta norma.
No que concerne ao artigo 503.º n.º1 do C.C., dispõe aquele normativo que “Aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em circulação.”
Estamos aqui já no âmbito de uma responsabilidade objectiva do comitente.
A relação de comissão pressupõe, como referimos, a realização de actos de carácter material ou jurídico e se integram numa tarefa ou função confiada a uma pessoa diversa do interessado, implicando uma relação de dependência entre o comitente e o comissário, agindo este mediante ordens ou instruções daquele.
Ora, ficou demonstrado que o arguido tripulava o tractor de mercadorias sob as ordens, instruções e direcção da sociedade E..., Lda.
E, nessa medida, será esta sociedade comitente para os efeitos previstos no artigo 503.º n.º1 do C.C.
Ademais, o tractor de mercadorias é, no caso vertente e indubitavelmente, um veículo de circulação terrestre, tendo aqui inteira aplicação o disposto no citado normativo.
Assim, sobre sociedade E..., Lda. impende a responsabilidade objectiva decorrente do n.º 1 do artigo 503.º do C.C.
Como anotam Pires de Lima e Antunes Varela (“Código Civil Anotado”, Vol. I, 3ª ed., pág. 485 e 486), “Tem correntemente a direcção efectiva do veículo o proprietário, o usufrutuário, o adquirente com reserva de propriedade, o comodatário, o locatário, o que o furtou, o condutor abusivo e, de um modo geral, qualquer possuidor em nome próprio. (…) A fórmula, aparentemente estranha, usada na lei - ter a direcção efectiva do veículo - destina-se a abranger todos aqueles casos em que, com ou sem domínio jurídico, parece justo impor a responsabilidade objectiva, por se tratar das pessoas a quem especialmente incumbe, pela situação de facto em que se encontram investidas, tomar as providências para que o veículo funcione sem causar dano a terceiros. (…) O segundo requisito – utilização no próprio interesse – visa afastar a responsabilidade objectiva daqueles que, como o comissário utilizam o veículo, não no seu próprio interesse, mas em proveito ou às ordens de outrem.”.
Estão verificados os pressupostos da responsabilidade objectiva da sociedade E..., Lda.
Porém, dispõe o art. 505.º do C.C. que “Sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.”
Em anotação ao artigo 505.º do Código Civil, Pires de Lima e Antunes, in “Código Civil Anotado”, afirmam: “No artigo 570º prevê-se a concorrência de culpas, para atribuir ao tribunal, nesse caso, a faculdade de conceder totalmente a indemnização, reduzi-la ou mesmo excluí-la. Neste artigo 505.° supõe-se, por exclusão, ter sido o acidente apenas imputável ao lesado ou a terceiro ou resultante de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, para excluir a responsabilidade fixada no nº1 do art. 503º”.
Aí se dá conta que Vaz Serra era de opinião contrária, segundo estudo publicado na RLJ, Ano 99, págs. 364, nota 1, e 373, nota 2 e Revista dos Tribunais, Ano 85º, págs. 439-441.
Depois de afirmarem que a posição de Vaz Serra não encontra amparo na aplicação analógica do art. 570.º do Código Civil, porque a hipótese está prevista no art. 505º, não havendo lacuna, nem caso omisso, afirmam: “Contra a doutrina de Vaz Serra pode extrair-se um argumento do próprio artigo 570º; se a culpa do lesado, nos termos do nº2 deste preceito, exclui o dever de indemnizar quando a responsabilidade se funda na presunção de culpa (e não na culpa realmente provada), por maioria de razão a deverá excluir quando ela assentar na simples ideia do risco.”
Este entendimento perdurou largos anos, como doutrina dominante e tese clássica, sendo quase constante essa a perspectiva jurisprudencial, no sentido da impossibilidade da concorrência das duas responsabilidades, subjectiva do lesado e objectiva do condutor do veículo.
No entanto, a partir do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 4/10/2007, P.º 07B1710 (www.dgsi.pt), a doutrina tradicional foi posta em crise, já que se entendeu aí que as duas responsabilidades podiam concorrer, o que mereceu o aplauso de Calvão da Silva em douto estudo publicado na RLJ, Ano 137º, nº3496.
Ali se afirmou, em decisão de forma precursora em termos jurisprudenciais, que “O Prof. CALVÃO DA SILVA vem, no seu ensino universitário, entendendo que o texto do art. 505º, devidamente interpretado, expressa a doutrina seguinte Cfr. a sua anotação ao Ac. STJ de 01.03.2001, na RLJ ano 134º, págs. 112 e ss, e designadamente, quanto a este ponto, págs. 115/118.: Sem prejuízo do concurso da culpa do lesado, a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.
Ora, no caso concreto, atestámos a verificação de uma outra circunstância/causa para a produção do sinistro que provocou a morte à vítima GG, a saber a altura dos cabos aéreos de telecomunicações que atravessavam a via onde seguia o arguido a uma altura de pelo menos 4,80m e não os 6 metros regulamentares.
Tais cabos eram pertença da C..., terceira nestes autos.
Não estamos perante causa de acidente imputável em exclusivo à C..., pelo que entendemos não ser aplicável a exclusão de responsabilidade prevista no artigo 505.º do Código Civil. O artigo 505.º supõe a exclusão da responsabilidade quando o acidente seja apenas imputável a terceiro, sendo que não se apurou a natureza de tal responsabilidade.
do Supremo Tribunal de Justiça de 1/06/2017, P.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1 (www.dgsi.pt).
No caso em apreço, a factualidade provada descreve, em nosso entendimento, uma situação de concorrência entre risco da circulação do veículo e responsabilidade de terceiro (proprietário dos cabos de telecomunicações).
Vejamos.
Segundo resultou demonstrado nos autos, o acidente que vitimou GG ocorreu em consequência de duas circunstâncias que concorreram para a sua produção: por um lado, o facto de a carga transportada pelo arguido exceder a altura regulamentar de 4 metros e mesmo, caso a licença especial de autorização de altura de carga estivesse válida para 4,60m, essa mesma licença; por outro, a conduta do proprietários dos cabos de telecomunicações aéreos que atravessam a via rodoviária onde o arguido transitava e a vítima laborava e que se encontravam abaixo dos 6 metros devidos a partir do solo e pelo menos a 4,80m do solo.
No caso dos autos, os riscos próprios de circulação daquele concreto veículo foram determinantes para a produção do acidente. Não fora a existência de uma carga a altura indevida e superior a 4 metros e o condutor não teria colidido com os cabos aéreos.
Temos assim que tais características do veículo em causa foram, em nosso entendimento, decisivas para a produção do acidente. Mas também assim concluímos relativamente à conduta de terceiro. Com efeito, como já tivemos oportunidade de afirmar supra, o comportamento do proprietário dos cabos de telecomunicações que, não verificou que os mesmos se encontravam a altura abaixo da legalmente devida, não constitui uma mera imprudência de relevo diminuto, visto que, caso os cabos se encontrassem à altura regulamentar de 6 metros, o acidente não se produziria.
Estamos, assim, perante uma concausalidade adequada à produção do acidente para o que concorreram os riscos próprios do veículo e o incumprimento das normas de altura dos cabos de telecomunicações por parte do proprietário dos mesmos, terceiro em relação a estes autos. Cabe, assim, ao tribunal, de acordo com critérios de adequação e proporcionalidade determinar a medida em que cada uma destas circunstâncias contribuiu para a produção do acidente à luz dos critérios acima enunciados, o que se relega para final.
Em face do exposto, concluímos que à sociedade E..., Lda. caberia a responsabilidade pelos danos decorrentes do acidente em causa nos autos, na proporção a fixar.
Aqui chegados, cumpre verificar a existência de transferência da responsabilidade civil por parte da sociedade E..., Lda para a demandada B..., S.A. em virtude de um contrato de seguro cuja existência e validade não é colocada em crise nestes autos.
Estamos perante acidente abrangido por seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel.
O Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto (vigente à data dos factos) aprova, conforme consta do seu artigo 1.º, o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e transpõe parcialmente para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de Maio, que altera as Directivas n.º72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Directiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis.
Dispõe o artigo 4.º n.º1 do referido diploma que “Toda a pessoa que possa ser civilmente responsável pela reparação de danos corporais ou materiais causados a terceiros por um veículo terrestre a motor para cuja condução seja necessário um título específico e seus reboques, com estacionamento habitual em Portugal, deve, para que esses veículos possam circular, encontrar-se coberta por um seguro que garanta tal responsabilidade, nos termos do presente decreto-lei.”
Nos termos do n.º 4, “A obrigação referida no número um não se aplica às situações em que os veículos são utilizados em funções meramente agrícolas ou industriais.”
No caso concreto, o veículo conduzido pelo arguido não estava afecto a funções meramente industriais, estando por isso sujeito a seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, o qual havia sido efectivamente celebrado e necessariamente para tais fins, sendo a seguradora B...– Companhia de Seguros, S.A. responsável pelos danos decorrentes do sinistro na medida da responsabilidade da sociedade E..., Lda.
Dos danos
a) dos danos não patrimoniais reclamados
O dano não patrimonial é o que tem por objecto um interesse não patrimonial, isto é, um interesse não avaliável em dinheiro - neste sentido se refere o BMJ, n.º 83, pág. 69.
Nos danos não patrimoniais, “a grandeza do dano só é susceptível de determinação indiciária fundada em critérios de normalidade. É insusceptível de medida exacta, por o padrão ser constituído por algo qualitativo diverso como é o dinheiro, meio da sua compensação" – neste sentido Leite Campos, in A Indemnização do Dano Morte, p. 12.
Com efeito, com bem defende Delfim Maya de Lucena, in Danos Não Patrimoniais, Coimbra, 1985, página 22, “No domínio dos danos não patrimoniais, atendendo a que a reconstituição natural não é possível, como o não é a tradução em números do volume de dores, angústias e desilusões, o legislador manda logo julgar de acordo com a equidade (cfr. art.° 496°, n° 3 do C.C. que remete para o art.° 494° do mesmo diploma), devendo o juiz procurar um justo grau de "compensação"».
Embora tendo de assentar a apreciação dos danos de natureza não patrimonial na respectiva gravidade a aferir do concreto circunstancialismo envolvente, deve operar sob um critério objectivo, num quadro de exclusão, tanto quanto possível, da subjectividade inerente a alguma particular sensibilidade humana, na medida em que esta sensibilidade não pode ser apanágio exclusivo do julgador que no caso concreto deve fixar o “quantum” indemnizatório, sob pena de situações com estreita afinidade poderem ser tratadas de modos muito díspares emergentes da diversidade individual de cada juiz e sob pena de se violar o art.º 8.º n.º 3 do C.C.
Certo que o julgador não está, nestes casos, subordinado aos critérios normativos fixados na lei, por uma razão de justiça relativa, deve também procurar casos semelhantes decididos na jurisprudência e ver quais os valores então atribuídos a título indemnizatório, comparando os valores entre si e com o valor pedido no caso dos autos.
A jurisprudência tem vindo a evoluir no sentido de considerar que a indemnização por danos não patrimoniais, para poder constituir uma efectiva possibilidade compensatória, tem de ser significativa, viabilizando um lenitivo para os danos suportados e, porventura, a suportar.
Desde há muito vem decidindo o Supremo Tribunal de Justiça que “(...) no caso dos danos não patrimoniais, a indemnização reveste uma natureza acentuadamente mista, pois “visa reparar, de algum modo, mais que indemnizar os danos sofridos pela pessoa lesada”, não lhe sendo, porém, estranha a “ideia de reprovar ou castigar, no plano civilístico e com os meios próprios do direito privado, a conduta do agente »; e que a quantia devida por estes danos não tem por fim «a reconstrução da situação anterior ao acidente, mas principalmente compensar o demandante, na medida do possível, das dores e incómodos que suportou e se mantém como resultado da situação para que foi arrastado, e deve a mesma ser calculada pondo em confronto a situação patrimonial do lesado (real) e a que teria se não tivessem existido danos”, jurisprudência que se mantém actual conforme as inúmeras decisões que se podem consultar a propósito no caderno de jurisprudência temática disponível no site do STJ – vide a tal propósito acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 30/10/1996, in BMJ 460, pág. 444, de 26/01/1994 in CJSTJ, Tomo I, pág.65 e de 16/12/1993, in CJSTJ, Tomo III, pág.181 e de 19-05-2009, disponível in www.dgsi.pt .
No caso dos danos não patrimoniais em geral é manifesta a impossibilidade de reparação natural do dano.
Por outro lado, tem de se reconhecer uma certa incompatibilidade de correspondência económica entre o dano e a sua expressão monetária por se estar diante de planos valorativos diferentes: por um lado o plano dos valores e, por outro, o plano material da expressão monetária. Tendo em conta essa dificuldade o legislador estabeleceu que no cálculo da indemnização por danos não patrimoniais deve-se recorrer à equidade, tendo em conta os danos causados, o grau de culpa, a situação económica do lesante e do lesado e as demais circunstâncias do facto (artigos 496.º n.º 3 e 494.º).
São indemnizáveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito (cfr. artigos 496.º n.º 1 do C.C.).
O montante da indemnização correspondente aos danos não patrimoniais deve ser calculado segundo critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à situação económica do lesante e do lesado e proporcionado à gravidade dos danos, tomando em conta na sua fixação todas as regras de boa prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida (neste sentido Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, pág. 500).
É de ter em conta, além do grau de sofrimento inerente às lesões, a condição económica dos titulares do direito, a desvalorização da moeda desde os danos até ao encerramento da discussão (momento mais recente atendível) e ainda aos padrões seguidos pela jurisprudência para casos idênticos – Antunes Varela, Obrigações, ed.1970, 499 e Ac.do S.T.J. de 27/5/79, in B.M.J.287,292
“O julgador deve ter em conta todas as regras de boa prudência, do bom sendo prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, sem esquecer que semelhante reparação tem natureza mista, já que visa reparar o dano e também punir a conduta” – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/08/1998, publicado na C.J.-STJ, Tomo I, pág.65.
Prevê o artigo 496.º do Código Civil que “2 - Por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes, aos pais ou outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem. 3 - Se a vítima vivia em união de facto, o direito de indemnização previsto no número anterior cabe, em primeiro lugar, em conjunto, à pessoa que vivia com ela e aos filhos ou outros descendentes.”
Acrescenta o n.º 4 do mesmo normativo que “O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.”
Não há dúvida também que a morte, em si mesma, como perda do direito à vida por parte da vítima, é passível de reparação pecuniária, sendo a respectiva obrigação originada pela acção (ou omissão) de que a morte é consequência.
Segundo cremos, apesar de a doutrina, no começo da vigência do actual C.C., não ser uniforme em relação à questão, após o Supremo Tribunal de Justiça ter uniformizado jurisprudência sobre o assunto, o mesmo tornou-se absolutamente pacífico.
Tem-se entendido doutrinária e jurisprudencialmente, maxime, após o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, tirado em reunião de secções para uniformização de jurisprudência, de 17-03-1971, in BMJ 205, 150, que do art. 496.º n.º 2 e 3 do Código Civil, resultam três danos não patrimoniais indemnizáveis:
- O dano pela perda do direito à vida;
- O dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte;
- O dano sofrido pela vítima antes de morrer, variando este em função de factores de diversa ordem, como sejam o tempo decorrido entre o acidente e a morte, se a vítima estava consciente ou em coma, se teve dores ou não, e qual a sua intensidade, se teve ou não consciência de que ia morrer.
Questão fortemente debatida pela doutrina e jurisprudência é o de saber-se se os direitos não patrimoniais derivados da perda do direito à vida por banda da vítima, se radicam na esfera jurídica deste e depois se transmitem, por via sucessória, para os seus herdeiros, de acordo com as regras de sucessão ou se, pelo contrário, esses direitos nascem de iure proprio por direito originário, no património das pessoas a que se refere o n.º 2 do artigo 496.º. O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9/05/1996 (in BMJ 457, 275) tomou posição sobre a questão decidindo-se por este último entendimento, ou seja de que os ditos direitos nascem de iure proprio. Como se menciona neste aresto “a este respeito a doutrina tem-se dividido, defendendo: uns, que tais direitos de indemnização cabem primeiramente ao de cujus e depois se transmitem sucessoriamente para os seus herdeiros legais ou testamentários (Galvão Telles Direito das Sucessões, 1971, págs. 83 a 87); outros, que tais direitos após terem cabido ao de cujus se transmitem sucessoriamente para as pessoas mencionada no nº 2 do artigo 496º do Código Civil (Vaz Serra, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 103º, pág. 172; Leite Campos, A Indemnização do Dano da Morte, 1980, pág. 54), e ainda outros que esses direitos de indemnização são adquiridos directa e originariamente pelas pessoas indicadas no nº 2 do artigo 496º do Código, não havendo lugar por isso a transmissão sucessória (Antunes Varela, Direito das Obrigações, vol. I, 6.ª ed., pág. 583; Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. I, 4ª ed., pág. 500. Nesta polémica doutrinal (e também jurisprudencial, cfr. acórdãos deste Supremo Tribunal de 16 de Março de 1973, Boletim do Ministério da Justiça nº 225, pág. 216, e de 13 de Novembro de 1974, Boletim do Ministério da Justiça, nº 241, pág. 204), propendemos para a orientação que os danos não patrimoniais sofridos pelo morto nascem, por direito próprio, na titularidade da pessoas designadas no nº 2 do artigo 496.º, segundo a ordem e nos termos em que nesta disposição legal são chamadas. Esta adesão radica-se na argumentação utilizada quer por Antunes Varela - ob. cit., pág. 585 - quer por Capelo de Sousa - Lições de Direito das Sucessões, vol. I, 3ª ed., págs. 298 a 304 - argumentação esta sólida no que se refere aos trabalhos preparatórios do Código, os quais revelam, em termos inequívocos, que o artigo 496º, na sua redacção definitiva, tem a intenção de afastar a natureza hereditária do direito a indemnização pelos danos morais sofridos pela própria vítima (Capelo de Sousa, op. cit., 298, nota 433)”.
Aderimos a esta posição, a qual é também a maioritária na nossa jurisprudência.
Significa isto que o grupo de familiares a que se refere o nº 2 e 3 do artigo 496º, devem ser considerados como titulares originários do direito à indemnização.
No mesmo sentido, vide o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24/05/2007, P.º 07B1359 (www.dgsi.pt), no qua se afirma que: “A indemnização pela perda do direito à vida cabe, não aos herdeiros da vítima por via sucessória, mas aos familiares referidos e segundo a ordem estabelecida no nº 2 do art. 496º C.Civil, por direito próprio neste sentido pode ver-se, entre outros, o ac. S.T.J., de 1999/03/16, in B.M.J485º-386 . Ao lado do dano morte e dele diferente, há o dano sofrido pela própria vítima no período que mediou entre o momento do acidente e a sua morte.
Pode acontecer, e segundo os recorrentes isso aconteceu no caso vertente, que a vítima não tenha morte imediata e durante período de tempo que sobreviva ao acidente passe por um quadro deveras doloroso.
Este dano vivido pela vítima antes da sua morte é passível de indemnização, estando englobado nos danos não patrimoniais sofridos pela vítima a que se refere o n.º 3 do mencionado art.º 496º.
Estes danos nascem ainda na titularidade da vítima. Mas, como expressivamente refere a lei, também o direito compensatório por estes danos cabe a certas pessoas ligadas por relações familiares ao falecido. Há aqui uma transmissão de direitos daquela personalidade falecida, mas não um chamamento à titularidade dos bens patrimoniais que lhe pertenciam, segundo as regras da sucessão, como também se refere no ac. S.T.J., de 2005/06/16 in www.dgsi.pt/jstj.
Quis-se chamar essas pessoas, por direito próprio, a receberem a indemnização pelos danos não patrimoniais causados à vítima de lesão mortal e que a ela seria devida se viva fosse.
Naquele n.º 3 incluem-se ainda os danos não patrimoniais sofridos pelos familiares da vítima com a sua morte, danos próprios desses familiares.
Temos, pois, que a demandante BB, na qualidade de unida de facto com a vítima, tem direito à atribuição de danos não patrimoniais.
Dano da perda do direito à vida
Quanto aos danos não patrimoniais, vêm os demandantes/assistente, reclamar a quantia de 200.000,00€, a título de indemnização pelo direito à vida deste.
Com efeito, resulta inquestionável que a morte da vítima foi consequência directa e necessária do acidente em discussão no âmbito dos presentes autos.
O direito à vida, como direito absoluto inerente à condição humana deve, em abstracto, obter a mesma valoração.
A indemnização do dano vida deve aferir-se como defende Leite Campos (citado por Sousa Dinis, in Dano Corporal em Acidentes de Viação, in CJSTJ, 2001, ano IX, tomo 1) “pelo valor da vida para a vítima enquanto ser” e como “o prejuízo é o mesmo para todos os homens, bem pode defender-se que a indemnização deve ser a mesma para todos”. Acrescenta ainda que “porque a morte absorve todos os outros prejuízos não patrimoniais, o montante da sua indemnização deve ser superior à soma de todos os outros danos imagináveis” (in A vida, a morte e a sua indemnização, BMJ, n.º 365, pág.15).
A propósito da indemnização pela morte de alguém, importa salientar que os montantes de que tanto se fala na nossa doutrina e jurisprudência, por mais elevados que possam ser, são sempre muitíssimo escassos face ao valor supremo que representa a vida humana.
Mas a verdade é que, por mais difícil ou até impossível que possa parecer, existe a necessidade de traduzir em números o dano “morte”, com a certeza de que, para quem recebe estas quantias, não há dinheiro algum que possa compensar a vida dos seus entes queridos.
Na verdade, com todas as indemnizações, não se pretendem fazer desaparecer os prejuízos, concreta ou abstractamente considerados, eliminando-os na sua própria materialidade ou substituindo-os por um equivalente da mesma natureza, mas sim proporcionar aos autores meios económicos susceptíveis de lhes propiciarem alguma satisfação e que, de algum modo, minimizam o desgosto sofrido.
Vem-se consolidando na jurisprudência o entendimento de que o dano pela perda do direito à vida, direito absoluto e do qual emergem todos os outros direitos, deve situar-se, com algumas oscilações, entre os € 50.000,00 e os € 80.000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a € 100.000,00 – cfr. entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 31/01/2012, P.º 875/05.7TBILH.C1.S1, de 10/05/2012, P.º 451/06.7GTBRG.G1.S2, de 12/09/2013, P.º 1/12.6TBTMR.C1.S1, de 24/09/2013, P.º 294/07.0TBETZ.E2.S1, de 19/02/2014, P.º 1229/10.9TAPDL.L1.S1, de 09/09/2014, P.º 121/10.1TBPTL.G1.S1, de 11/02/2015, P.º 6301/13.0TBMTS.S1, de 12/03/2015, P.º 185/13.6GCALQ.L1.S1, de 12/03/2015, P.º 1369/13.2JAPRT.P1S1, de 30/04/2015, P.º 1380/13.3T2AVR.C1.S1, de 18/06/2015, P.º 2567/09.9TBABF.E1.S1 e de 16/09/2016, P.º 492/10.OTBB.P1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt.
E, note-se, os critérios e valores constantes da Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio, com as alterações introduzidas pela Portaria n.º 679/2009, de 25 de Junho, não são vinculantes para os tribunais nem visam a fixação definitiva dos valores indemnizatórios devidos, reportando-se estas, apenas, a um conjunto de regras e princípios que permita agilizar a apresentação extrajudicial de propostas razoáveis destinadas a indemnizar o dano corporal – neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 28/11/2013, P.º 177/11.0TBPCR.S1, e de 15/09/2016, P.º 492/10.0TBBAO.P1.S1 (www.dgsi.pt).
No caso vertente, a vítima tinha 42 anos, era divorciado e tinha um filho menor. Vivia com a sua companheira, em regime de união de facto, e mantinha com a mesma e com o filho menor ligações afectivas muito fortes, sendo deles muito próximos, sentimentos esses recíprocos. Provou-se que o convívio entre eles era frequente e marcado por traços de grande alegria, proximidade e envolvência afectivas, estando unidos por laços de amor e amizade. Resultou ainda demonstrado que era uma pessoa saudável, trabalhadora, activa e comunicativa, com uma grande alegria de viver.
Perante esta facticidade, tendo presente a idade do arguido e expectativa de vida, o seu papel na família e na sociedade e as circunstâncias da ocorrência dos factos, julga-se adequado, dentro dos limites da razoabilidade e adequação, fixar o valor indemnizatório pelo dano de perda do direito à vida em 80.000,00€ (oitenta mil euros).
Dano que antecedeu a morte / dano intercalar
Reclamam também os demandantes a quantia de 50.000,00€, a título de dano não patrimonial sofrido pelo próprio falecido antes de morrer.
Dispõe o artigo 496.º n.º 4 do C.C. que “O montante da indemnização é fixado equitativamente pelo tribunal, tendo em atenção, em qualquer caso, as circunstâncias referidas no artigo 494.º; no caso de morte, podem ser atendidos não só os danos não patrimoniais sofridos pela vítima, como os sofridos pelas pessoas com direito a indemnização nos termos dos números anteriores.”
No caso em apreço, trata-se do chamado dano intercalar, que constitui a conversão económica da dor e angústia sofridas pela vítima durante o período que mediou entre o acidente e a morte, variando em função de factores de diversa ordem, como sejam o tempo decorrido entre o acidente e a morte, se a vítima se manteve consciente ou inconsciente, se teve ou não dores, qual a intensidade das mesmas, a existirem, se teve consciência de que ia morrer – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/02/2013, P.º 269/09.5GBPNF.P1.S1 (www.dgsi.pt).
Não se devendo confundir a equidade com a pura arbitrariedade ou com a total entrega da solução a critérios assentes em puro subjectivismo do julgador, devendo a mesma traduzir “a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei", devendo o julgador "ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida.” – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/02/1998, CJ S., T. 1, p. 65 e P. Lima e A. Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, p. 501.
Ademais, neste tipo de dano e seguindo novamente os ensinamentos de Sousa Dinis “pode estabelecer-se entre o limite zero (caso da morte instantânea, sem qualquer sofrimento ou caso de coma profundo desde o acidente até à morte) e aquele outro situado em plano aquém do que for entendido como adequado pela perda do direito à vida. Tudo depende do sofrimento e da respectiva duração, da maior ou menor consciência da vítima sobre o seu estado e da aproximação da morte” (in ob. e loc. citados).
Como se referiu no Acórdão da Relação do Porto, de 29 de Junho de 2015, no Processo n.º 1626/14.0TBPRD.P1, a compensação a arbitrar pelos danos não patrimoniais sofridos pela própria vítima entre o evento e morte que sobreveio há de ponderar, num juízo de equidade e no dever equilibrador de uniformização das decisões jurisprudenciais mais recentes, as concretas circunstâncias do evento e das suas consequências e atender, nomeadamente, ao tempo que decorreu entre aquele e a morte, à perceção desta e aos sofrimentos e angústias da vítima. Para lá de que há que ter em conta que a indemnização por danos não patrimoniais tem de assumir um papel significativo, devendo o juiz, ao fixá-la segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de “compensação” (...).
Acrescentamos ainda que, tratando-se de um dano indemnizável, o ónus de alegação e de prova dos mesmos compete aos demandantes – cfr. art. 342.º n.º1 do C.C.
Ora, tendo presente a matéria de facto em causa nos autos, resultou demonstrado que, em consequência do acidente de que foi vítima, pelas 16h24m, o falecido sofreu, directa e necessariamente, entre o mais, as lesões traumáticas meningo-encefálicas, faciais e cervico-torácicas (incluindo raqui – meningo medulares dorsais), descritas no relatório da autópsia médico-legal a fls. 84-88. Estas lesões traumáticas, foram causa directa, necessária e adequada, da sua morte, ocorrida pelas 16h55m do mesmo dia, no local.
Temos que entre o acidente e a declaração de óbito mediaram 31 minutos mas que antes de tal declaração, a vítima já se encontrava em paragem cardio-respiratória não respondendo a manobras de reanimação. Julgamos demonstrado, em face do declarado em audiência de julgamento, pelo arguido, que a vítima sobreviveu alguns minutos ao acidente, dado que respirava e parecia estar em delírio.
Acresce que a forma como se desenvolveu o acidente demonstra que resulta das regras da normalidade e da experiência comum que a vítima se tenha apercebido da sua queda iminente, a tenha sentido e a forma como a mesma ocorreu demonstra o sofrimento de dores e a sua consciência e percepção da morte. As regras da experiência igualmente nos dizem que a vítima teve, necessariamente, dores físicas relevantes. Tudo aponta para que o mesmo tenha sofrido morte rápida mas não imediata, como ressalta das extensas lesões físicas sofridas pelo mesmo.
Em face do exposto e atenta a factualidade dada como provada em 36. e 38. tal permite-nos concluir pela verificação do aludido dano intercalar, cujo montante indemnizatório a este título se fixa em € 20,000,00 (vinte mil euros).
Danos não patrimoniais dos demandantes
Ora, estabelece o artigo 496.º n.º 2 do Código Civil (doravante, C.C.) que “por morte da vítima, o direito à indemnização por danos não patrimoniais cabe, em conjunto, ao cônjuge não separado judicialmente de pessoas e bens e aos filhos ou outros descendentes; na falta destes aos pais e outros ascendentes; e, por último, aos irmãos ou sobrinhos que os representem”.
Pretendem ainda os demandantes ser indemnizados dos danos não patrimoniais por si sofridos pela morte do seu companheiro e do seu pai, o qual computam em 75.000,00€ para cada um dos demandantes civis.
Neste tipo de indemnização “há que considerar o grau de parentesco, mais próximo ou mais remoto, o relacionamento da vítima com esses seus familiares, se era fraco ou forte o sentimento que os unia, enfim, se a dor com a perda foi realmente sentida e se o foi de forma intensa ou não. É que a indemnização por estes danos traduz o “preço” da angústia, da tristeza, da falta de apoio, carinho, orientação, assistência e companhia sofridas pelos familiares a quem a vítima faltou” - Sousa Dinis, in Dano Corporal em Acidentes de Viação, CJSTJ 1997, tomo 2, pág. 13.
A jurisprudência dos Tribunais Superiores, em matéria de danos não patrimoniais, tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização ou compensação deve constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista. In casu, sendo os demandantes companheira há cerca de 2 anos, com projecto de vida formado com o falecido e filho menor deste, com 9 anos, respectivamente existindo uma ligação muito forte entre estes e tendo-se ainda provado que com tal perda os demandantes se sentiram profundamente chocados, tristes e angustiados pela sua morte, o que lhes provocou e ainda provoca grande dor, consideramos justo e adequado atribuir a cada um dos demandantes a quantia de 30.000,00€ (trinta mil euros) a título de danos não patrimoniais sofridos.
B) dos lucros cessantes reclamados pelos demandantes enquanto perda da capacidade de ganho/produtiva (danos de natureza patrimonial)
Resulta demonstrado que:
- a vítima auferia rendimento anual de € 11.200,00.
- À assistente BB foi fixada uma pensão anual e vitalícia correspondente a 30% da remuneração, no valor de € 3.360,00.
- Ao filho DD, que à data do sinistro tinha 9 anos de idade, foi fixada uma pensão anual temporária correspondente a 20% da remuneração, no valor de € 2.240,00, até atingir a maioridade ou, se continuar os estudos, até perfazer 25 anos.
Mais alegam que a companheira ficou a receber essa quantia não beneficiando do valor total que reclama a título de lucros cessantes.
Podendo a vítima trabalhar até aos 75 anos, requer a atribuição à assistente BB de lucros cessantes no valor de € 147.840,00 (com desconto do valor que receberá a título de pensão e 30% da remuneração pessoal que a vítima afectaria a gastos pessoais)
Por seu turno, o filho DD deverá receber € 89,600,00 a título de lucros cessantes, com os mesmos critérios de fixação supra elencados.
Este segmento da indemnização reclamada pelos demandantes e assistentes vem epigrafadas de lucros cessantes.
Julgamos que, da forma como vêm os referidos danos peticionados, se trata da reclamação de pedido indemnizatório, a título de danos patrimoniais futuros, na perspectiva de perda da capacidade de ganho.
Lê-se no artigo 564.º, n.º 2 do Código Civil que, na “fixação da indemnização pode o tribunal atender aos danos futuros, desde que sejam previsíveis”. Precisa-se, antes de mais, que nestes danos futuros tanto se contêm os danos emergentes como os lucros cessantes. Precisa-se ainda que, tal como resulta expressamente da letra da lei, a indemnização respectiva depende de duas condições cumulativas: a respectiva previsibilidade e determinabilidade.
Como exemplo frequente de dano patrimonial futuro encontramos a perda da capacidade de ganho, resultante de dano biológico, reportado a toda a violação da integridade físico-psíquica da pessoa, com tradução médico-legal, ou como diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com repercussão na sua vida pessoal e profissional, aqui por dele decorrer precisamente perda ou diminuição de proventos laborais.
“Contudo, a jurisprudência vem entendendo que esta perda da capacidade de ganho que se pretende valorar, nem mesmo depende da efectiva perda ou diminuição de remuneração por parte do lesado (v.g. por ser menor, ou se encontrar desempregado, ou não exercer qualquer profissão remunerada), compreendendo antes este dano patrimonial uma ideia de frustração de utilidades futuras e de frustração de expectativas de aquisição de bens. (…) Vem ainda a jurisprudência entendendo que, em caso de morte da vítima, «está-se perante um direito a indemnização por danos patrimoniais futuros, a título de lucros cessantes, próprio da vítima, a que podem aceder os respectivos herdeiros, traduzido na compensação da perda absoluta/definitiva da capacidade aquisitiva de ganho da vítima, da privação total de rendimentos de trabalho, resultantes da morte do lesado imediato». Aqui, a indemnização «assenta no próprio facto da perda absoluta e definitiva de rendimentos de trabalho, que seriam realizados pelo prestador falecido, não fosse o seu decesso». (vide Acórdão do Tribunal da relação de Guimarães, de, disponível para consulta em www.dgsi.pt )
Igualmente se tem vindo a diferenciar, em sede de tais danos patrimoniais futuros, a perda de direito a alimentos, que se trata de um direito próprio reconhecido a um terceiro, lesado indirecto (não reclamado pelos demandantes) da perda de capacidade da ganho, enquanto lucros cessantes, que corresponde “à perda da capacidade aquisitiva de ganho, é um dano do lesado directo, que reverterá para o próprio, em caso de sobrevivência por mera incapacidade para o trabalho, e para terceiro, na funesta hipótese de o lesado falecer, sendo a aquisição por via sucessória» (Ac. do STJ, de 08.03.2012, Raúl Borges, Processo nº 26/09.9PTEVR.E1.S1. No mesmo sentido, admitindo esta outra possibilidade, Ac. do STJ, de 05.05.2005, Araújo de Barros, Processo nº 05B521, onde se lê que, “noutra perspectiva, a própria vítima - que só veio a falecer posteriormente à lesão que a vitimou - integrou na sua esfera jurídica o direito a indemnização por danos futuros derivados da perda de rendimento de trabalho que, por direito sucessório, se transmitiu aos respectivos sucessores (artigo 2024.º do Código Civil).
Em face do exposto, importa aferir da legitimidade da demandante BB para reclamar a quantia peticionada a título de lucros cessantes.
Na qualidade de unida de facto, assistir-lhe-ia o direito de reclamar os alimentos que podia exigir ao falecido e a que este estava vinculado, mas já o mesmo não se poderá dizer do pedido indemnizatório, a título de lucros cessantes.
Nos termos do n.º 3, do artigo 495.º, do Código Civil, dispõe-se que têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.
Como se vem entendendo, no citado n.º 3 contempla-se, em caso de morte da vítima, o direito a indemnização por danos patrimoniais futuros, jure proprio, por perda de alimentos, cuja prestação incumbia à vítima, compreendendo-se entre as pessoas a quem se prestava alimentos no cumprimento de uma obrigação natural, a pessoa que com outrem vivia em união de facto, sendo que esse direito não nasce em virtude da herança da vítima, antes do dever imposto por lei ao lesante, e à margem, pois, do direito sucessório.
Ora, o membro sobrevivo de união de facto não é herdeiro do companheiro falecido, pois na ordem jurídica portuguesa são inexistentes os direitos sucessórios no âmbito das uniões de facto. A união de facto não tem efeitos sucessórios. (vide Francisco Pereira Coelho em "Os factos no casamento e o direito na união de facto: breves observações". In Textos de Direito da Família – para Francisco Pereira Coelho, 77-106. Coimbra, Portugal, 2016.)
Razão pela qual a lei concede às pessoas que podiam exigir alimentos ao lesado só, e apenas, o direito de indemnização do dano da perda dos alimentos- que este, lesado, lhes teria de prestar, se vivo fosse. Excluindo-se qualquer outro direito patrimonial futuro, como seja, a título de lucros cessantes.
Os lucros cessantes correspondem à perda da capacidade aquisitiva de ganho da vítima, da privação total de rendimentos de trabalho, resultantes da morte do lesado. E por ser um dano directo do lesado, a ele acedem, ou podem aceder, os respectivos herdeiros, entre os quais não se encontra a assistente BB.
Assim concluímos que uma vez que são reclamados danos pela perda da capacidade de ganho do lesado, a vítima GG, não detendo a sua companheira, unida de facto, a qualidade de herdeira legal, legítima ou legitimária, não detém a mesma legitimidade para reclamar tal segmento indemnizatório, o que de declara, ao invés do seu filho, herdeiro da vítima falecida, nos termos do disposto no artigo 2133.º do Código Civil.
Posto isto, importa aferir o molde de cálculo dos referidos danos a fixar ao filho da vítima.
Neste particular, seguiremos de perto a jurisprudência do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 21 de Junho de 2022, do relator Isaías Pádua, disponível para consulta em www.dgsi.pt. (ainda que o mesmo se refira não ao ano morte mas a situação de incapacidade permanente)
“VII - Dano patrimonial futuro (vg. na vertente de lucro cessante) esse cuja indemnização, quando decorra da perda ou diminuição da capacidade aquisitiva, motivada pelo défice funcional de que o lesado ficou afetado, deve, como regra, ser calculada em atenção ao tempo provável de vida do lesado, ou seja, à esperança média da sua vida, e não apenas em função da duração da sua vida profissional ativa (vg. prevista até à sua reforma), de forma a representar um capital produtor de rendimento que cubra a diferença entre a situação anterior e a atual até final desse período. VIII - Consabidas que são as dificuldades que existem em tal domínio, devido à ausência de regras legais que concretamente enunciem objetivamente os critérios a seguir e não podendo ser averiguado o valor exato dos danos – sendo certo que aqueles constantes das Portaria nº. 377/2008, de 26/05, com ou sem as alterações introduzidas pela Portaria nº. 679/2009, de 25/06, não vinculam os tribunais, não derrogando, a esse respeito os princípios insertos nos Código Civil, pois que apenas visam facilitar e acelerar a regularização extrajudicial do sinistros em matéria de acidentes rodoviários -, devem os mesmos ser sempre, em última instância, apurados à luz da equidade, emergente caso concreto, devendo o recurso as quaisquer tabelas matemáticas ou financeiras servir, quando muito, como meios auxiliares de orientação com vista a atingir a tal desiderato equitativo da indemnização do dano.
IX- Porém, na determinação equitativa desse dano patrimonial futuro do lesado, há uma panóplia de tópicos ou elementos referenciais que poderão/deverão ainda ser considerados, tais como:
- A idade do autor lesado à data do acidente; - A remuneração mensal auferida pelo lesado à data do acidente e/ou outros rendimentos por si usufruídos;
- A evolução profissional perspetival, ou não, e os reflexos a nível remuneratório, quer se trabalhe por conta própria ou de outrem, ou até em simultâneo;
- A taxa média de inflação e a taxa de rentabilidade do capital, baseadas num juízo de previsibilidade.
- A gravidade das lesões e as suas consequências, e a atribuição do grau de incapacidade ou de défice funcional.
- O recebimento de uma só vez do todo capital/rendimento futuro que é antecipado.”
No mesmo sentido, prescreve o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça datado de 03-12-2009 (disponível para consulta em www.dgsi.pt ) que: “O cálculo destes danos é sempre uma operação delicada, de solução difícil, porque obriga a ter em conta a situação hipotética em que o lesado estaria se não houvesse sofrido a lesão, o que implica a previsão, pouco segura, sobre dados verificáveis no futuro. É por isso que tais danos se devem calcular segundo critérios de verosimilhança ou de probabilidade, de acordo com o que, no caso concreto, poderá vir a acontecer, seguindo as coisas o seu curso normal e, se mesmo assim, não puder apurar-se o seu valor exacto, deverá o tribunal julgar segundo a equidade, em obediência ao critério enunciado no artigo 566.º, n.º 3 do Código Civil.
O princípio base de que se deve partir é o de que o cálculo de frustração de ganho deverá conduzir a um capital que considere a produção de um rendimento durante todo o tempo de vida activa da vítima, adequado ao que auferiria se não fora a lesão correspondente ao grau de incapacidade e adequado a repor a perda sofrida.
Dito de outro modo, a indemnização do lesado por danos futuros decorrente de incapacidade permanente deve corresponder a um capital produtor do rendimento que o lesado não irá auferir e que se extinga no fim da vida provável da vítima e que seja susceptível de garantir, durante essa vida, as prestações periódicas correspondentes ao rendimento perdido.
Uma indemnização justa, neste domínio, reclama a atribuição de um capital que produza um rendimento mensal, que cubra a diferença entre a situação anterior e a actual, durante o período de vida profissional do lesado, sem esquecer a necessidade de se ter em conta a sua esperança de vida. (…) Com base nestes factores, tem-se a jurisprudência socorrido de cálculos de natureza matemática, designadamente com recurso às tabelas para formação de rendas vitalícias; tabelas correspondentes a acidentes de trabalho e remição de pensões, tabelas financeiras para a determinação de uma renda periódica correspondente a um juro legal de 4%, ou outro, ou os juros passivos da banca comercial, ou ainda tabelas usadas para a avaliação do direito de usufruto. Porém, a utilização de tais tabelas financeiras, como qualquer outro método que seja expressão de um critério abstracto, constitui um método de cálculo de valor meramente auxiliar. Nenhum dos aludidos critérios é absoluto, devendo ser aplicados como índices ou parâmetros temperados com a aplicação de um juízo de equidade.
Mais recentemente, a Portaria n.º 377/2008, de 26/05, em consagração do anteriormente previsto, nomeadamente, no DL 291/2007, de 21 de Agosto, veio estabelecer tabelas para as indemnizações dos danos corporais.
Porém, como se salienta no respectivo preâmbulo, tais tabelas “não visam a fixação de valores indemnizatórios, mas, nos termos do n.º 3 do artigo 39º do DL n.º 291/2007, de 21 de Agosto, estabelecer um conjunto de regras e princípios que permitam agilizar a apresentação de propostas razoáveis, possibilitando, ainda, a razoabilidade das propostas apresentadas”.
Significa isto que aquela Portaria n.º 377/2008 veio fixar, tão-só, os critérios e valores orientadores para efeitos de apresentação aos lesados por acidente de automóvel proposta razoável para indemnização de dano corporal, não estando os tribunais limitados nem vinculados aos valores indemnizatórios ali previstos. (…)”.
Tratando-se de dano de natureza patrimonial consagra o artigo 562.º do Código Civil que “quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”.
Logo, haverá que indemnizar o lesado dos danos experimentados e advindos do evento que obriga à reparação, de forma a reconstituir-lhe a situação que existiria se não houvesse ocorrido o facto lesivo.
Assim, e quanto aos danos patrimoniais (susceptíveis de avaliação pecuniária, porque incidem sobre interesses de natureza material ou económica, reflectindo-se no património do lesado), sendo possível a reposição natural, será por ela que se deverá optar, uma vez que mais cabalmente assegura a reparação devida. No entanto, sendo a reconstituição natural impossível de efectivar, há que lançar mão do da teoria da diferença, prevista nos arts. 562.º e 566.º, nº 2 do Código Civil., segundo a qual a indemnização deve concretizar-se pela diferença entre a situação actual hipotética do património do lesado (no momento em que se efectiva a operação diferencial e a situação real), e a situação em que o seu património se encontraria se a conduta que obriga à reparação não tivesse sido praticada. Assim, a indemnização operar-se-á mediante a entrega duma quantia em dinheiro, equivalente ao valor em que o património atingido diminuiu em consequência do dano sofrido, sem culpa deste.
Tem-se entendido que “a indemnização a pagar ao lesado deve, neste caso, representar um capital que se extinga no fim da sua vida activa e seja susceptível de garantir, durante esta, as prestações periódicas correspondentes à sua perda de ganhos” (Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª edição revista e actualizada, Coimbra Editora, Limitada, 1987, p. 580,).
Contudo, torna-se necessário proceder ao cálculo de redução do benefício que normalmente advém do facto de se receber de uma só vez o capital correspondente a prestações mensais que se iria recebendo, proteladas no tempo, sabida a remuneração paga hoje por aquele capital (o que se traduziria num enriquecimento injustificado).
Trata-se de tarefa complexa porquanto os únicos dados objectivos a atender serão os da idade da vítima e a sua esperança média de vida ou de vida activa e o dano efectivamente sofrido, sendo que todos os demais critérios a atender não detêm esse mesmo carácter objectivo.
Daí que pugnemos que o critério a aplicar na fixação d etal valor indemnizatório será o da equidade, nos termos do disposto no artigo 566.º, n.º 3 do Código Civil, sendo os referidos critérios e valores orientadores da Portaria nº 377/2008, de 26 de Maio meios auxiliares de determinação de valor real a atender.
Nestes termos:
Ficou demonstrado nos autos:
- a capacidade da vítima GG gerar rendimento de trabalho auferindo o seu vencimento mensal de € 800,00,
- que faleceu com a idade de 42 anos, - que o seu tempo provável de vida activa até aos 70 anos, dado que era pessoa trabalhadora e activa
- que contribuía com pensão de alimentos para o filho que não vivia consigo, em valor não concretamente apurado,
- que à data do falecimento do pai, o DD tinha a idade de 9 anos, sendo previsível tal contributo monetário para o seu sustento e educação, por parte da vítima, até aos 25 anos, termo da sua preparação académica e profissional, momento em que previsivelmente adquirirá a sua autonomia de vida.
Assim, os lucros cessantes do demandante DD ascenderem à quantia que se fixa equitativamente em €38.500,00 (trinta e oito mil e quinhentos euros)
DO VALOR INDEMNIZATÓRIO
Em face do que ficou decidido, o tribunal fixou os seguintes montantes indemnizatórios: 80.000,00€ a título do dano da perda do direito à vida; 20.000,00€ pelo dano intercalar que antecedeu a morte e € 30.000,00 em danos não patrimoniais sofridos por cada um dos demandantes; e a título de lucros cessantes/perda da capacidade de ganho devido ao filho DD, o valor de € 38.500,00.
Porém, isto antes de fazer funcionar o critério de repartição do dano, dado que verificamos que o acidente não é totalmente imputável a conduta do arguido, tendo concorrido culpa de terceiro.
Cabe ao tribunal, de acordo com critérios de adequação, determinar a medida em que cada uma das já referidas circunstâncias contribuiu para a produção do acidente à luz dos critérios enunciados.
Embora no concurso de causas – o risco e o facto de terceiro – a actuação do terceiro também tenha tido um peso significativo na produção do dano, considerada a gravidade que encerra o atropelo das regras de colocação e manutenção dos cabos de telecomunicações aéreos, a justificar, por isso, a redução significativa da indemnização, afigura-se-nos, no plano de uma adequada ponderação de interesses, que a justiça do caso concreto, em que a equidade se funda, não pode perder de vista o contributo dos riscos próprios do veiculo, que circulava com carga em altura excessiva. Assim, entende o tribunal fixar a contribuição dos riscos próprios do veículo para a produção do acidente em 50% e a contribuição da culpa de terceiro em 50%. Nessa medida, a indemnização acima aludida deve ser objecto de redução em 50% do seu valor, entendendo-se conforme à equidade fixá-la:
- em 40.000,00 € (quarenta mil euros) a título de danos não patrimoniais devidos aos demandantes;
- em 10.000,00 € (dez mil euros) pelo dano intercalar que antecedeu a morte;
- € 15.000,00 (quinze mil euros) em danos não patrimoniais sofridos por cada um dos demandantes;
- em € 19.250,00 (dezanove mil duzentos e cinquenta euros) a título de lucros cessantes/perda da capacidade de ganho devidos apenas ao filho DD.
Por tais valores indemnizatórios é responsável a demandada B... – Companhia de Seguros, S.A., para a qual se achava transferida, pela proprietária dos veículos tripulados pelo arguido, por contrato de seguro válido à data do acidente, a responsabilidade civil emergente de acidentes de viação.
DOS JUROS
No final do pedido de indemnização civil em apreço são reclamados juros de mora legais, desde a data da citação/ notificação dos demandados e até integral pagamento.
Tal pretensão tem fundamento, atento o disposto nos artigos. 805.º n.º3, 806.º n.º1 e 2 e 559.º, todos do Código Civil.
Porém, tendo as quantias arbitradas a título de compensação pelos danos não patrimoniais sido objecto de cálculo actualizado apenas serão devidos os juros moratórios, à respectiva taxa legal, (no caso de 4%, por força da Portaria n.º 291/2003, de 8 de Abril) que se vencerem a partir da presente decisão (cfr. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2002, publicado no D.R. 1 Série-A de 27/6/2002, que a respeito da actualização da indemnização e respectivos juros de mora, veio sufragar a regra do cálculo actualizado da indemnização por facto ilícito ou pelo risco nos termos do art.566.º n.º2, vencendo-se os juros a contar da decisão actualizadora e não da citação).
Quanto às quantias arbitradas a título de danos patrimoniais, os juros serão devidos desde a data de citação/notificação da demandada B... – Companhia de Seguros, S.A. para contestar o pedido de indemnização civil em causa”.
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Colhidos os Vistos, efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que a Seguradora “B... – Companhia de Seguros, S.A.” pretende suscitar as seguintes questões:
Em matéria de facto
- Invoca-se erro notório na apreciação da prova, e simultaneamente, pretende-se impugnar o decidido quanto ao facto n.º 69 da matéria provada e al. n) da não provada;
Em matéria de Direito
Pretende-se que a “responsabilidade” seja atribuída toda ao “responsável ou responsáveis pela instalação dos cabos”, com a sua consequente absolvição do pagamento de qualquer indemnização;
Subsidiariamente
Pretende a redução em 50% da indemnização fixada à outra Seguradora, A... S.A..
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que a Demandante cível BB pretende suscitar as seguintes questões:
Questões formais
Falta de fundamentação da Sentença recorrida;
Matéria de Direito
Repartição das responsabilidades “para a produção do acidente”;
Valores da indemnização pela perda do direito à vida, danos sofridos pela vítima antes de morrer, e danos sofridos pelos familiares da vítima;
Indemnização devida a título de lucros cessantes e respectivo valor.
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Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o Demandante cível DD (representado pela sua mãe CC), pretende suscitar as seguintes questões:
Questões formais
Falta de fundamentação da Sentença recorrida;
Matéria de Direito
Repartição das responsabilidades “para a produção do acidente”;
Valores da indemnização pela perda do direito à vida, danos sofridos pela vítima antes de morrer, e danos sofridos pelos familiares da vítima.
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A decisão da 1.ª Instância transitou em julgado em matéria penal, não estando em causa a apreciação da responsabilidade penal do arguido.
Os recursos, e consequentemente o objecto desta decisão, circunscrevem-se à apreciação da responsabilidade civil, e valores da indemnização a que têm direito os demandantes, na acção cível enxertada, por força do art.º 71, do CPP, que consagra uma regra geral de adesão obrigatória (ou enxerto, noutra terminologia) da acção cível de indemnização fundada em factos que constituam crime.
Relembrando-se a esse respeito que o procedimento da acção cível enxertada, é regulado pela Lei Processual Penal, mas é a Lei Civil, por remissão do art.º 129º do CP, que regula os pressupostos e a determinação do quantitativo da indemnização.
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Sendo una a Decisão e três os recursos (com algumas questões comuns), ir-se-á apreciá-los pela sua ordem lógica de precedência, começando-se pelas questões formais, seguindo-se as questões atinentes à matéria de facto, e finalizando-se com as questões de Direito.
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Recursos da BB e do DD
Questão formal da falta de fundamentação da Sentença recorrida:
Em ambos os recursos surge suscitada a questão formal de falta de fundamentação da Sentença recorrida, sendo pois uma questão comum.
Assim, no recurso da BB, a propósito dos valores da indemnização civil, alude-se à nulidade da Sentença, nos termos do art.º 615 do C.P.C, porque o Tribunal formulou “conclusões claramente contraditórias face à factualidade assente, verificando-se, assim, que os fundamentos utilizados estão em clara contradição com a derradeira decisão”.
Mais à frente, a propósito dos danos patrimoniais futuros, acaba-se por afirmar novamente o “vício de falta de fundamentação, assentando toda a tese decisória em premissas desprovidas do mínimo de fundamento legal, o que, nos termos do plasmado no artigo 615.º, nº 1, alínea b) do C.P.C remete para a nulidade da sentença”.
No recurso interposto em representação do DD, a propósito da diminuição da responsabilidade da Seguradora (em substituição do arguido), também se atribui à Sentença vício de falta de fundamentação, invocando o art.º 615, n.1, al) b do C.P.C., invocação que repete a propósito da distância dos cabos do solo.
Como facilmente se alcança da sua simples leitura, na realidade o que se expressa nos recursos não é a falta de fundamentação, mas sim uma discordância acerca dessa fundamentação (discordância essa que irá ser objecto de apreciação).
E, efectivamente, fundamentação existe, resta saber se está certa e em que medida (ir-se-á ver).
Acrescente-se que, do ponto de vista substancial, para o que aponta a argumentação no recurso da BB, é para uma “contradição” na fundamentação e não para uma ausência dela (essa fundamentação irá ser apreciada, na medida do necessário, mais adiante nesta decisão).
Acrescente-se que o artigo do Código de Processo Civil invocado nunca teria aplicação neste caso.
Isto porque ao procedimento da acção cível enxertada em acção penal é aplicável – como já referido – a Lei Processual Penal, e não a Lei Processual Civil.
E, o Código de Processo Penal tem o seu próprio regime de nulidades da Sentença, que aqui se não torna necessário analisar, dado o inicialmente referido (leia-se o art.º 379 e suas remissões).
Improcede, pois, esta suscitada questão comum.
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Recurso da B... – Companhia de Seguros, S.A.
Invocado erro notório na apreciação da prova, e em simultâneo, impugnação do decidido quanto ao facto n.º 69 da matéria provada e al. n) da não provada:
Em matéria de facto, confunde-se no recurso da Seguradora a revisão restrita da decisão sobre a matéria de facto, com base no texto da decisão, para detecção dos vícios previstos no art.º 410º, n.º 2, do C.P.P., com a revisão alargada, baseada na análise da prova pericial, documental e oral produzida ou analisada em Audiência.
Assim, começa-se por invocar erro notório na apreciação da prova, para, mais à frente se apelar às fotografias juntas, ao relatório pericial do NICAV e ao depoimento do HH (de que se fornece uma transcrição).
No entanto, os factos que coloca em causa, restringem-se ao n.º 69 da matéria provada e al. n) da não provada:
“69. Os cabos referidos em 6. atravessavam a via a uma distância do solo de pelo menos 4,80m.
n) os cabos que embateram na carga do veículo atravessavam a via a uma distância do solo inferior a 4,80m.”
Portanto, a única questão que a Seguradora coloca em matéria de facto é se os cabos de telecomunicações aéreos da “I..., SA” (na decisão designada por “C....”), em que a máquina escavadora se prendeu, derrubou e arrastou, estavam a uma altura de pelo menos 4,80 m do solo, ou a altura inferior a esses 4,80 m.
Alega que “não é possível afirmar se o ponto de impacto ocorreu a uma altura superior aos 4,60 metros correspondentes à licença do veículo (caducada há meros 5 meses antes do acidente) ou se o ponto de embate foi superior aos 4 metros permitidos por lei”.
No entanto, notório e manifesto é que não tem razão:
Se o que pretendia era a revisão alargada, a prova que indica (de forma, aliás, incompleta e pouco concretizada) não levaria — bem pelo contrário — a decisão diversa da recorrida.
A prova documental junta é concordante, no sentido de que os cabos não estariam a uma distância do solo inferior a 4,80 m.
No Inquérito de acidente de trabalho, realizado pela ACT, conclui-se que “os cabos se encontravam a uma distância do solo, pelo menos, de 4,8 metros”.
Na Sentença do Tribunal do Trabalho também se consigna que “os cabos de telecomunicações estavam a uma altura não superior a 4,8 m”, nunca se aventando a hipótese de estarem a uma altura inferior a essa.
No relatório do NICAV da GNR, considera-se que “o transporte que o arguido efectuava tinha 4,80 metros de altura (anexo A), sendo a máxima permitida de 4 metros”, e que “os cabos da C... não estavam à distância mínima do solo, 6m”, mas nunca se aponta uma altura inferior a 4,80 m.
Quanto ao depoimento do HH, militar da GNR, autor do relatório do NICAV, o que se verifica é que respondeu várias vezes à mesma questão, sendo as perguntas repetidas e sugestivas, até se lograr alguma contradição — o art.º 138, n.º2, do C.P.P. foi completamente ignorado (assim como o art.º 323).
Ainda assim, não é verdade que alguma vez tenha afirmado — de forma inequívoca — que os cabos se encontravam a menos de 4,80 m, depreendendo-se apenas do seu depoimento que não foi possível efectuar uma medição rigorosa, dado que o poste tinha sido derrubado.
Se o que pretendia era a revisão restrita da matéria de facto, do texto da decisão, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, resulta evidente não se verificar — a esse respeito — qualquer erro de raciocínio lógico-dedutivo (pelo contrário, é formulado o raciocínio correcto e adequado).
Com efeito surge explicado o raciocínio que leva a concluir que os postes estariam a pelo menos 4,80m, com base nas seguintes premissas:
“— O ponto mais alto da máquina escavadora distava do chão a 4,80 metros porque essa medição foi efectuada logo após o acidente.
— Embora não tivesse sido efectuada essa medição, os cabos prenderam no ponto mais alto da máquina escavadora, como é possível concluir através da análise fotográfica.
— Assim, esses cabos estariam a pelo menos 4,80 m do solo, caso contrário não se teriam prendido (não se encontravam a 6 m de altura como alegaram os assistentes, nem se encontravam a menos de 4,80 m como alegou a Seguradora).”
E nessa parte a Decisão mostra-se certa.
Em conclusão, improcede o recurso da B... – Companhia de Seguros, S.A., em matéria de facto.
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Recursos em matéria de Direito
Repartição das responsabilidades pelo acidente
Na Sentença, com a argumentação que a seguir analisaremos, reparte-se a responsabilidade “para a produção do acidente” entre o arguido e “terceiro”, na percentagem de 50% para cada um.
E, com base nisso reduz-se cada uma das indemnizações parcelares fixadas em 50% (ou seja, só se atribui aos demandantes metade do valor previamente fixado).
Em relação a este segmento da Sentença, verifica-se unanimidade dos recorrentes na discordância.
Porém, como é claro, discordam por motivos diferentes e com objectivos opostos.
Discorda a Seguradora “B...”, pretendendo que a responsabilidade seja atribuída toda ao “responsável ou responsáveis pela instalação dos cabos” (não referindo sequer com clareza qual seria essa entidade), o que a eximiria de pagar qualquer indemnização pela morte da vítima (ainda assim, subsidiariamente, concede que seja mantida em 50%).
Argumenta que “da factualidade apurada apenas podemos concluir que a circulação do veículo pesado nas condições apuradas não pode ser vista como causa adequada do acidente, sendo que apenas a atuação ilícita do responsável ou responsáveis pela instalação e manutenção dos cabos que procediam à travessia daquela via foi a causa adequada do acidente em causa nos autos e subsequentes danos”.
Discordam os recorrentes BB e DD, pretendendo a atribuição da responsabilidade total ao arguido (por “sua culpa exclusiva”, lê-se no primeiro dos recursos), ou, caso assim se não entenda a atribuição de um grau de responsabilidade de 90% (lê-se no segundo dos recursos).
Alega-se no recurso da BB que “o arguido foi negligente, e não fora a sua negligência o sinistro não teria ocorrido”, o acidente ocorre “por culpa exclusiva” daquele, “o veiculo por conta e sob as ordens e orientações do dono do veiculo - provado o pressuposto da culpa na relação comitente comissario nos termos do art.ºs 500, 503 ambos do C.C.” e “violando assim os art.ºs 468, 503 e 499 todos do C.C.”
Alega-se no recurso do DD que “o arguido omitiu diversos deveres de cuidado: primeiramente, enganou-se no seu percurso, iniciando o mesmo por estradas locais, quando deveria ter circulado pela auto-estrada; como é consabido, não verificou previamente a altura máxima da carga que transportava e descurou que a licença que detinha para transportar a dita carga já havia caducado; por último, não se apercebeu que havia provocado a queda de uma pessoa, que se encontrava a 4,80 metros de altura, assim protelando uma eventual assistência à vítima”.
Reforça-se que as lesões sofridas pela vítima que lhe causaram a morte “surgiram e foram causadas pela conduta directa e exclusiva do condutor (e não pela altura dos cabos), pelo que, salvo melhor entendimento, resulta cristalino que o nexo de causalidade entre a conduta do arguido e a produção do acidente (e as consequentes lesões sofridas pela vítima e bem ainda na derradeira morte) é directo, em nada tendo contribuído a actuação da p.t.”.
Em ambos os recursos se contesta a obrigatoriedade legal dos cabos deverem distar do solo pelo menos 6m, alegando-se que isso “foi arbitrariamente entendido “que as exigências previstas no decreto-regulamentar n.º 90/84, de 26 de dezembro deveria também ser aplicável para as companhias de telecomunicações”, não se tendo concretizado a norma em que se baseia”.
Vejamos:
Tal como referido, a Decisão da 1.ª Instância em matéria penal transitou em julgado.
Porém, isso não impede que a responsabilidade civil delitual, extra-contratual ou aquiliana do arguido AA, seja objecto de apreciação.
Com efeito, pode haver responsabilidade civil sem existir responsabilidade criminal, dispondo o art.º 377, n.º 1, do CPP – como corolário da adesão obrigatória, consagrada no art.º 71 – que a Sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil, sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no art.º 82, n.º 3, do CPP (remessa das partes para os Tribunais Cíveis …).
Veja-se, a esse respeito, o ensinamento de Vaz Serra, na revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 111, pág. 171: “embora não haja responsabilidade criminal, pode existir responsabilidade civil; ou seja, o demandado pode ter tido culpa que o constitua em responsabilidade civil, conquanto não tenha tido culpa que implique responsabilidade criminal da sua parte”.
Não contraria este ensinamento o Assento do STJ nº7/99, de 17/06: «Se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no art. 377º, nº 1 do CPP, ou seja na absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual.».
E é nesta parte que reside o primeiro erro na aplicação do Direito da Decisão recorrida.
Após a decisão de absolvição criminal, determinando-se – e bem – o prosseguimento dos Autos para conhecimento dos pedidos de indemnização civil, ao abrigo do art.º 377, n.º 1, do CPP, afasta-se liminarmente a apreciação da culpa do arguido (como comissário) enveredando-se apenas pela responsabilidade objectiva, pelo risco (da comitente), aplicando o art.º 503, n.º 1, do C.C..
Com efeito, considera-se estar perante “uma responsabilidade objectiva do comitente” (a empresa “E..., Lda.”, para a qual o arguido trabalhava), com o pressuposto da inexistência “de obrigação de indemnizar por parte do arguido”, AA.
Ora, complementando-se o já referido, ainda que se considere que os factos provados não integram o tipo criminal em causa, os mesmos podem ser geradores de responsabilidade civil, na medida em que sejam factos ilícitos, violadores de direitos de outrém ou de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, praticados com culpa ou mera culpa.
A ilicitude dos factos e a sua violação do bem máximo, a vida humana, é aceite por todos (na Sentença, é considerada “inegável a ocorrência do facto ilícito e dos danos”).
A transferência da responsabilidade civil subjectiva ou pelo risco para a Seguradora “B... – Companhia de Seguros, S.A.”, estando o acidente abrangido pelo seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, é também aceite.
O que se impõe ser analisada – visto o decidido – é a conduta do arguido, especificamente se actuou com mera culpa.
É esta a acepção utilizada no art.º 483, do C.C., que estabelece os princípios gerais da responsabilidade civil por acto ilícito (“Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrém, ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios, (…)”).
Regista-se aqui uma diferença de terminologia entre o Código Civil e o Código Penal, utilizando-se no primeiro o termo “mera culpa” e no segundo o termo “negligência”; no entanto, as expressões são sinónimas, e no Código Civil é usada para designar a culpa, quando a esta se quer contrapor o dolo.
O Julgador acaba por admitir a existência de alguma culpa, embora – permita-se a expressão – no local errado da Sentença, fazendo-o a propósito da motivação da decisão sobre a matéria de facto, e com considerandos que se adequariam mais à matéria de Direito, por vezes não condizentes.
Concretizando:
Afirma-se que “o arguido não se apercebeu da presença da vítima no poste nem dos cabos ligados ao mesmo se encontrarem a “altura passível de colisão” com a máquina que transportava”, «nem se apercebeu sequer do que tinha ocorrido, só parando quando “foi alertado por um condutor em sentido contrário”».
E, a seguir, formula-se esta confusa asserção: “o facto de “não se ter apercebido do embate não é de molde a afirmar que o mesmo circulava de forma desatenta ou distraída (ou como referia o libelo acusatório sem a atenção e concentração necessárias)”.
A conclusão deveria ser exactamente a contrária, não se ter apercebido do embate e ter continuado a marcha até outro condutor o alertar, é forte sinal de que estava desatento e distraído.
Apelando ao que chama de “regras da normalidade”, considera que “a atenção na condução se prende e se fixa, em regra, na via onde se circula, nos demais veículos em circulação na mesma faixa e na faixa contrária e nos limites da via onde se transita”, e que “não resulta da habitualidade, conduzir com atenção ao que passe na zona acima do campo de visão necessário a assegurar o acto de condução na via, de forma correcta”.
A conclusão devia ser exactamente a contrária, a condução de um camião com aquela carga e altura, numa localidade, exigia – tal como já referido – uma condução especialmente cuidadosa e atenta aos possíveis obstáculos, em termos de altura (v.g. túneis, ou, justamente, cabos aéreos que atravessassem a via).
Sempre em sede de motivação da matéria de facto, reconhece-se que “o arguido não cuidou de verificar, como se lhe impunha, a altura da carga que transportava face ao solo”.
Logo a seguir, afirma-se resultar “das regras da experiência, que em face do tipo de transporte que realizava, considerando o facto de não ter cuidado de apurar, em concreto, qual a altura efectiva da carga transportada e o facto de circular no interior de uma localidade, com maior exigência e cuidado de circulação, terá o condutor de adoptar especiais cuidados para salvaguardar a presença de pessoas ou objectos no decurso da sua trajectória”.
Considera-se resultar “até da experiência que todos os condutores – seja de camiões ou de quaisquer outros veículos – estão sujeitos a um especial dever de cuidado de se assegurar de que, transportando carga especial acondicionada, adoptam os comportamentos necessários a salvaguardar o seu transporte sem possibilidade de queda ou colisão”.
Independentemente destes considerandos aqui caracterizados, da matéria de facto provada resulta que:
o arguido violou regras do Código da Estrada, especificamente os n.ºs 2 e 3, alínea f), do art.º 56.º, que proíbem, respectivamente, o trânsito de veículos carregados por tal forma que possam constituir perigo ou embaraço para os outros utentes da via, ou instalações, e a imposição de não exceder a altura de 4 metros na disposição da carga (cfr. n.º 13 da matéria provada);
pretendendo dirigir-se para uma auto-estrada, enganou-se e entrou na localidade da ... (cfr. n.º 5);
circulava numa rua dessa localidade “(…) quando o braço da máquina escavatória giratória que transportava prendeu dois cabos de telecomunicações aéreos da C..., que atravessavam a faixa de rodagem, derrubando consequentemente os postes que os sustentavam e arrastando-os” (cfr. n.º 6).
Não obstante isso, “só imobilizou o seu veículo após ter sido advertido por outro veículo que circulava em sentido oposto, cujo condutor lhe chamou a atenção para o derrube dos postes” (cfr. n.º 26).
A empresa para a qual trabalhava não possuía autorização para transportar carga com 4.80m de altura, tendo apenas uma licença, já caducada, para transporte de carga com a altura máxima de 4.60m (cfr. n.º 31), o que tinha de ser do conhecimento do arguido (refira-se, que este facto deveria ter sido descrito de forma mais completa, perante o relatório da GNR que menciona expressamente que “O arguido estava alertado para o facto do topo da máquina estar a mais de 4m de altura, e não tinha autorização especial de transito válida para o transporte de máquina”, e o testemunho do outro trabalhador que seguia no camião, “julga ter comentado com o arguido que deveriam ter atenção à altura”);
Para além da máquina escavadora, o camião transportava também uma cabine WC e um cilindro de compactar (cfr. n.º 24), o que também tinha de ser do conhecimento do arguido (aliás, tal como consta da prova documental constituída pelo Inquérito de Acidente de Trabalho realizado pela ACT e pela Sentença do Tribunal de Trabalho, era o transporte de mais esse material que fez com que o braço da escavadora não estivesse totalmente retraído, e tivesse no seu ponto mais elevado, uma altura de 4.80m, facto que também deveria constar da matéria provada, resultante da discussão da causa, a complementar o descrito no n.º ...).
Perante estes factos tem, desde logo, de se ter na devida conta que a violação das supra-referenciadas regras da condução rodoviária, é por si só, fortíssimo indício de uma conduta culposa, a título de mera culpa, isto é, sem o cuidado e diligência exigíveis.
Mas não só, perante estes factos e deduções que dos mesmos se retiram, tem de se concluir que o arguido demonstrou em toda a sua conduta uma ausência de cuidado, uma omissão da atenção que lhe era exigível, ao conduzir um veículo com aquelas características e altura, numa localidade, para onde se dirigira por engano (era para ir pela auto-estrada, via adequada à circulação de tais veículos).
Acrescente-se que é do conhecimento comum serem as localidades atravessadas por cabos aéreos, o que lhe impunha um acrescido e especial cuidado e precaução, considerando a altura da máquina que transportava.
É, por estas razões, intenso o grau de omissão dos deveres de cuidado, atenção e precaução que lhe eram exigíveis.
Actuou com mera culpa, foi negligente.
É, pois, a responsabilidade civil delitual ou aquiliana que aqui deve funcionar e não apenas a responsabilidade pelo risco.
Isto decidido, tem de se analisar agora a repartição das responsabilidades.
Na Sentença reparte-se a responsabilidade “para a produção do acidente” entre o arguido e “terceiro”, na percentagem de 50% para cada um.
E, com base nisso reduz-se cada uma das indemnizações parcelares fixadas em 50% (ou seja, só atribui aos demandantes metade do valor previamente fixado).
Depois de fixar os valores dos danos indemnizáveis, faz o Julgador “funcionar” (é esse o termo utilizado) o “critério de repartição do dano”, considerando que “o acidente não é totalmente imputável à conduta do arguido, tendo concorrido culpa de terceiro”.
Este entendimento tem como pressuposto o que já tinha sido considerado, a propósito da responsabilidade criminal, no sentido de que para o acidente “concorreram, pelo menos, duas circunstâncias: por um lado a altura irregular da carga transportada pelo arguido e, por outro, a altura dos cabos aéreos que atravessavam a via em relação ao solo”.
Alude, depois, a um “concurso de causas – o risco e o facto de terceiro – a actuação do terceiro também tenha tido um peso significativo na produção do dano, considerada a gravidade que encerra o atropelo das regras de colocação e manutenção dos cabos de telecomunicações aéreos, a justificar, por isso, a redução significativa da indemnização”.
Incompreensivelmente, nunca menciona expressamente quem seria esse terceiro, com tanta importância que determinou a redução da indemnização (dando razão ao dito popular de que “a culpa morre solteira”).
Na matéria provada surge, no entanto, que se tratava de “cabos de telecomunicações aéreos da C...” (denominação insuficiente, mas que ainda assim, dá uma vaga ideia de quem seria).
É evidente que poderia (e deveria) ter sido muito melhor precisado quem era a proprietária dos cabos: da Sentença do Tribunal de Trabalho, e dos relatórios técnicos — meios de prova juntos aos autos — figura que “a proprietária dos postes e linhas de telecomunicações era a “I..., SA.”
O que para aqui interessa agora é que com base nas asserções acima reproduzidas quanto à repartição das responsabilidades, entendeu-se que as indemnizações deviam “ser objecto de redução em 50% do seu valor”.
Reside neste ponto o segundo erro da Sentença recorrida.
A vítima em nada contribuiu para o acto ilícito e para a produção do dano, atingindo até o senso comum a redução da indemnização em tal situação.
Do ponto de vista jurídico, confunde-se o concurso entre a culpa do lesante e a culpa do lesado, onde aí, sim, pode funcionar — mas não necessariamente — o critério da redução da indemnização na proporção da culpa, com o concurso de responsabilidades de terceiros que é, como iremos ver, o que se verifica no caso.
Com efeito, estamos perante uma situação de concausalidade, resultante da conduta do agente (o aqui arguido), e de terceiros, no caso a I..., SA, proprietária dos cabos e também a empresa para a qual trabalhava, a “E..., Lda.”.
A responsabilidade do arguido já foi acima analisada, concluindo-se pela actuação com mera culpa.
Indo à responsabilidade de outras entidades, verificamos que quanto à “I..., SA”, da matéria de facto provada resulta:
“A travessia da estrada por cabos deve respeitar uma distância mínima de 6 metros de altura ao solo” (n. 62).
“Os cabos referidos em 6. atravessavam a via a uma distância do solo de pelo menos 4,80m” (n.69).
A “I..., SA”, não respeitou a altura mínima de 6 m, a que os cabos deveriam estar.
Esta conclusão que respeita ao Direito aplicável e não à matéria de facto (embora na Decisão tenha sido tratada como tal), é contestada pelos recorrentes demandantes, e é aceite pela Seguradora.
Porém, quanto a esta matéria, não têm razão os demandantes.
O Decreto Regulamentar n.º 90/84 que estabelece disposições relativas ao estabelecimento e à exploração das redes de distribuição de energia eléctrica em baixa tensão, é aplicável nos termos do n.º 2 do art.º 2.º (campo de aplicação), às instalações de telecomunicação.
Tal como determina o art.º 73, n.º 1, daquele Decreto Regulamentar “as travessias aéreas de estradas, ruas ou caminhos, públicos ou particulares, com trânsito de veículos automóveis ou de tracção animal, a distância dos condutores ao solo não será inferior a 6 m”.
E tem toda a lógica que assim seja, uma vez que as razões (de segurança) justificativas de tal imposição para os cabos de energia eléctrica são exactamente as mesmas para os cabos de telecomunicações.
Daí que se tal Regulamento não fosse aplicável expressamente (e como vimos é), sê-lo-ia por analogia, nos termos do art.º 10.º do C.C., que estabelece regras interpretativas aplicáveis a todos os ramos do Direito.
É aliás uma regra que é seguida (sem contestação) na prática de tal actividade como se alcança do manual de “Normas Técnicas” usado pela própria “I...” e constante dos Autos como prova documental.
Finalmente, e quanto à “E..., Lda.”, empresa para qual o arguido trabalhava, da matéria de facto provada resulta:
“O veículo pesado de mercadorias (vulgo camião) que o arguido conduzia era propriedade da empresa “E..., Lda.” (n. 27).
“Possuía uma autorização especial de trânsito para o transporte máximo de carga com 4,60 de altura a contar do solo para o veículo pesado de mercadorias, cuja validade havia expirado” (n.31).
(…) “transportava também, para alem da máquina escavadora giratória referida em 3., uma cabine WC móvel e um cilindro de compactar” (n.24).
Destes factos se conclui que a empresa para a qual o arguido trabalhava não possuía a autorização especial do trânsito para o transporte de uma carga com a altura máxima de 4,60 m, sendo que ainda que a tivesse, não poderia transportar a máquina em causa que excedia essa altura.
Para além da escavadora, ainda fez transportar um WC móvel e um cilindro (tal como já referido, não figura na matéria provada, mas deveria figurar que esses outros equipamentos transportados impediram retração completa do braço da escavadora, levando a que a altura fosse de 4.80 m).
Isto visto, estamos, tal como já referido, perante a uma situação de concausalidade, em que várias causas concorrem para a produção do acidente.
“Verifica-se a figura da concausalidade sempre que o dano tem várias causas, concorrentes ou não. Quando na produção do resultado danoso o facto do agente concorre com um facto de terceiro”. Direito das Obrigações, 6ª ed.ª, Almeida Costa, p.ª 671.
Ora, nestes casos de concorrência entre o facto ilícito do agente e factos ilícitos de terceiros, a regra é a da responsabilidade solidária — cfr. art.ºs 497º e 507º do C.C..
E – aqui é que bate o ponto – o grau de culpabilidade apenas funciona entre eles, não em relação à vítima (ou aos seus familiares titulares do direito à indemnização).
Com efeito, e completando, nas causas concorrentes não se inclui a actuação da vítima que em nada contribuiu para o acidente: era operário de telecomunicações, ao serviço da sua empresa, encontrava-se a trabalhar num dos referidos postos, suspenso por um arnês, e em consequência do derrube dos postes, caiu sobre um gradeamento, e em seguida foi arrastado pelo pavimento cerca de 80 m.
Como considera Almeida Costa (obra citada): “Nesta hipótese de concorrência entre o facto ilícito do agente e um facto de terceiro a Lei determina uma responsabilidade solidária” (art.º 497º e 507º C.C.).
Assim o ensina também Galvão Telles (Direito das Obrigações, p.ª 336): “No domínio da responsabilidade extraobrigacional, se duas ou mais pessoas concorrerem culposamente para o evento ilícito, e tiverem pois de responder pelos danos produzidos, essa responsabilidade é solidária, o que significa que o lesado pode exigir de qualquer dos responsáveis o pagamento integral da indemnização, (art.º 497º, n.º1 e 512º, n.º1 do C.C.)”.
Por estas razões, a indemnização a fixar pelos diversos danos não patrimoniais sofridos, não será objecto de qualquer redução, devido a responsabilidade concorrente – com a do arguido – de terceiros.
Consequentemente, mostra-se improcedente o recurso da Seguradora “B...” (cuja pretensão de não pagar qualquer indemnização se mostra contra a mais elementar justiça), e mostram-se procedentes os recursos dos demandantes cíveis nesta matéria, embora com fundamentos diferentes dos alegados.
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Recurso da B... – Companhia de Seguros, S.A.
Subsidiariamente, pretende-se a redução em 50% da indemnização fixada à outra Seguradora, A... S.A..
Esta pretensão mostra-se praticamente destituída de fundamentação no recurso, e parte do errado pressuposto de que a repartição de responsabilidades entre o arguido e o “terceiro” se manteria em 50%.
Não se mantendo esse pressuposto, mostra-se improcedente o recurso da Seguradora, também neste segmento.
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Recursos da BB e do DD
Valores da indemnização pela perda do direito à vida, danos sofridos pela vítima antes de morrer, e danos sofridos pelos familiares da vítima.
Dano pela perda do direito à vida
A este respeito, na Decisão recorrida começa-se por estabelecer algumas considerações gerais e declarações de princípio do género “por mais elevados que possam ser, são sempre muitíssimo escassos face ao valor supremo que representa a vida humana”.
Quanto ao “valor do direito à vida” com base em Jurisprudência, conclui-se “que deve situar-se, com algumas oscilações, entre os € 50.000,00 e os € 80.000,00, indo mesmo alguns dos mais recentes arestos a € 100.000,00”.
De concreto, refere-se que “a vítima tinha 42 anos, era divorciado e tinha um filho menor. Vivia com a sua companheira, em regime de união de facto, e mantinha com a mesma e com o filho menor ligações afectivas muito fortes, sendo deles muito próximos, sentimentos esses recíprocos. Provou-se que o convívio entre eles era frequente e marcado por traços de grande alegria, proximidade e envolvência afectivas, estando unidos por laços de amor e amizade. Resultou ainda demonstrado que era uma pessoa saudável, trabalhadora, activa e comunicativa, com uma grande alegria de viver”.
Conclui-se depois que “tendo presente a idade do arguido e expectativa de vida, o seu papel na família e na sociedade e as circunstâncias da ocorrência dos factos, julga-se adequado, dentro dos limites da razoabilidade e adequação, fixar o valor indemnizatório pelo dano de perda do direito à vida em 80.000,00€ (oitenta mil euros)” (optando-se por uma espécie de média entre os valores mínimos e máximos que se entendeu referenciar).
No recurso da BB, no respeitante ao dano da perda do direito à vida, alega-se que “a vitima tinha em 2017 - 42 anos de idade festejava naquele mesmo dia o seu aniversário, atendendo ao facto de a esperança média de vida do homem português rondar os 79 (senta e nove) anos de idade, é possível concluir-se que este faleceu subitamente a «meio do seu tempo de vida»”.
Defende-se a atribuição “a título dano da perda do direito à vida, o quantum compensatório de valor nunca inferior a € 100.000,00 (cem mil euros), a cada um, no total de 200.000,00 euros”.
No recurso interposto em representação do DD quanto ao valor atribuído pelo dano morte “a quantia global de € 80.000,00 (oitenta mil euros), a título de danos pela perda do direito à vida (os chamados danos por morte), a qual foi reduzida a metade”, o Tribunal “socorreu-se do disposto na portaria n.º 377/2008, de 26 de maio, com as alterações introduzidas pela portaria n.º 679/2009, de 25 de junho, olvidando que na aludida portaria estão apenas contempladas as situações em que a regularização do sinistro ocorre no âmbito extrajudicial”, e os “os valores ali contemplados datam de 2009, ou seja, há 11 anos e são genéricos, abstractos, não estando adaptados às particularidades de cada caso”.
Afirma-se que o Tribunal “recorreu à Jurisprudência antiga”, e enumera-se outra mais moderna.
Não teve em conta a idade da vítima e que “em nada contribuiu para a produção do acidente do qual veio a resultar a sua morte e bem ainda a superioridade económica em que, presumidamente, se encontra a recorrida (seguradora) relativamente ao aqui recorrente, ressaltando-se que o filho do de cujus ainda é menor”.
“considerando a idade que o falecido tinha à data da sua morte, concretamente 42 (quarenta e dois) anos e atendendo ao facto de a esperança média de vida do homem português, à data do acidente (2017) rondar os 79 (senta e nove) anos de idade, é possível concluir-se que este faleceu subitamente a «meio do seu tempo de vida»”, pede o valor de 200.000 €.
Vejamos:
A respeito desta importantíssima área de actuação dos Tribunais é possível detectar-se na produção Jurisprudencial, quer a nível dos Tribunais Superiores, quer a nível da 1ª Instância um desenvolvimento paradoxal: se por um lado se anuncia a intenção de abandonar “os critérios miserabilistas” (num Ac. Do STJ de 3/11/2016 chega mesmo a ser qualificada de “extremamente avara”) com que se reconhece ser fixado o valor da indemnização pela perda do direito à vida, por outro continua a utilizar-se como referencial para a fixação desse valor os padrões adoptados em decisões anteriores.
É fácil de ver: se os critérios anteriores são “miserabilistas”, só serão abandonáveis se forem deixados de ser utilizados como referenciais, e se constitua um novo paradigma com base no desenvolvimento e densificação dos factores de fixação desses valores.
A Sentença aqui sob apreciação é disso um exemplo, se por um lado começa com uma frase eloquente aludindo “ao valor supremo que representa a vida”, por outro acaba por fazer uma média aritmética, fixando esse valor em 80.000.00€.
Isto é inaceitável.
Tal como afirma António Gaspar, “Os Direitos Humanos na incerteza do tempo presente: a expansão, o retrocesso e os limites da jurisdição”, CSM Boletim, Abril 2024, a propósito dos Direitos Humanos (de que o direito à vida é o bem máximo), “desligados de cada ser humano, colectivos, mas sem ligações de facto com suficiente capacidade de agregação e de determinação, os direitos humanos tornam-se abstrações que se não sentem, nem aplicam, e na sua função não protegem”.
A defesa da vida num Estado de Direito Democrático­ tem de ter — nos nossos tempos mais do que nunca — consequências práticas, não se bastando com declarações de princípio; e entre essas consequências, esses efeitos na realidade, mostra particular importância a sua devida valoração pelos Tribunais, nos casos de compensação aos familiares com esse direito, pela sua perda.
Esta vítima perdeu a vida de forma abrupta, totalmente inesperada, quando estava a trabalhar, no dia do seu aniversário, em substituição de um colega (portanto era para não ter ido trabalhar).
Em nada contribuiu para esse resultado, estava a cumprir a norma de segurança, preso por um arnês ao poste, tendo a queda e arrastamento do poste acontecido por causas que lhe são totalmente alheias.
Assim, o injusto perfila-se como consideravelmente elevado.
Isto tem de ser conjugado com a sua expectativa de vida e o seu valor enquanto ser humano.
A vítima tinha 42 anos (portanto uma ainda alargada esperança de vida, se considerarmos que essa média se situa em Portugal, acima dos 80 anos).
Vivia com a companheira (a demandante BB) com quem mantinha um relacionamento afectivo gratificante para ambos, constituindo “um casal feliz e alegre”.
Tinha um filho de 9 anos (o demandante DD) com quem mantinha um relacionamento afectivo bastante próximo, sendo um pai presente.
Era um profissional responsável na sua área de trabalho (operário de telecomunicações), como decorre do facto de ter ido trabalhar no dia do seu aniversário.
Estes factos são suficientes para se concluir que a vida desta vítima revestia um considerável e especial valor.
Ponderados estes factores de medida da indemnização, enunciados e concretizados, e o inicialmente referido, mostra-se ajustado fixar a compensação pela sua perda em 120.000.00€, a repartir em partes iguais entre a BB e o filho da vítima DD.
O dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte
Quanto ao dano sofrido pelos familiares da vítima com a sua morte, considera-se que se “tem evoluído no sentido de considerar que a indemnização ou compensação deve constituir um lenitivo para os danos suportados, não devendo, portanto, ser miserabilista”.
No caso, “sendo os demandantes companheira há cerca de 2 anos, com projecto de vida formado com o falecido e filho menor deste, com 9 anos, respectivamente existindo uma ligação muito forte entre estes e tendo-se ainda provado que com tal perda os demandantes se sentiram profundamente chocados, tristes e angustiados pela sua morte, o que lhes provocou e ainda provoca grande dor”, considera-se “justo e adequado atribuir a cada um dos demandantes a quantia de 30.000,00€ (trinta mil euros) a título de danos não patrimoniais sofridos”.
No recurso da BB, alega-se que “a morte súbita e inesperada da vítima causou na sua companheira, ora recorrente, um profundo desgosto, traumatizando-a de forma profunda, de que dificilmente recuperará, acresce o facto de a vítima ter falecido no dia do seu próprio aniversário, data em que não era suposto ir trabalhar”, tendo a demandante sofrido “um forte abalo psicológico que ainda não conseguiu ultrapassar”, assim como o filho DD com 9 anos.
Defende-se uma indemnização “nunca inferior a 150.000,00 a repartir em partes iguais, entre a recorrente e o filho, DD” (é evidente que esta pretensão apenas pode ser apreciada na parte respeitante à BB, uma vez que tendo sido interpostos recursos separados, não há legitimidade para formular qualquer pretensão em relação ao DD).
No recurso do DD, questiona-se “como pode o Tribunal recorrido entender que a quantia de € 30.000,00 (trinta mil euros) se afigura suficiente para compensar este filho pela perda súbita e manifestamente violenta do seu pai?”.
Pede-se a atribuição de 75.000 € para cada um dos lesados (é evidente que também aqui não há legitimidade para formular qualquer pretensão em relação à BB).
Apreciando:
Na fixação da indemnização devida por esta categoria de danos, há que considerar o grau de parentesco ou equivalente (no caso, respectivamente companheiro de facto e pai), o relacionamento da vítima com os mesmos, e a dor e sofrimento sentidos com a perda.
A este respeito conclui-se da matéria provada que a BB mantinha uma relação gratificante (como já referido) com o companheiro, com quem tinha um projecto de vida.
Quanto ao filho DD, perdeu o pai aos 9 anos; pai presente com quem mantinha um relacionamento bastante próximo e de quem recebia “amor, amizade e carinho” (usando a expressão incluída na matéria provada).
Viu-se privado do acompanhamento do pai no seu crescimento e formação da personalidade, da sua presença, orientação e exemplo, perdas que sendo irreparáveis, podem (e devem) ser devidamente compensadas.
Apesar do dano sofrido pela BB ser considerável, não pode deixar de se ter em conta que o dano sofrido pelo DD é ainda em maior grau, pelo que as respectivas compensações têm de reflectir essa diferença.
Ponderados estes factores, mostra-se adequado fixar a compensação por este dano a receber pela BB em 35.000.00€, e a compensação a receber pelo DD em 50.000.00€.
No caso, o facto de serem co-titulares do direito, concredores, não implica que a compensação tenha de ser em partes iguais.
A expressão “em conjunto” empregue no nº. 2 do artº. 496º do C.C. (aplicável a todos os danos não patrimoniais por morte da vítima) não afasta que a repartição do montante indemnizatório possa ser aritmeticamente diferente, se a tal for aconselhado/exigido, “à luz da justiça do caso concreto” (cfr. Ac. do STJ 27/09/2022).
*
O dano sofrido pela vítima antes de morrer
Na Sentença, quanto ao dano sofrido pela vítima antes de morrer (que denomina também de “dano intercalar”), de concreto considera que “em consequência do acidente de que foi vítima, pelas 16h24m, o falecido sofreu, directa e necessariamente, entre o mais, as lesões traumáticas meningo-encefálicas, faciais e cervico-torácicas”, “entre o acidente e a declaração de óbito mediaram 31 minutos mas que antes de tal declaração, a vítima já se encontrava em paragem cardio-respiratória não respondendo a manobras de reanimação”, e “a vítima sobreviveu alguns minutos ao acidente, dado que respirava e parecia estar em delírio”.
Acrescenta depois que “resulta das regras da normalidade e da experiência comum que a vítima se tenha apercebido da sua queda iminente, a tenha sentido e a forma como a mesma ocorre”, com “o sofrimento de dores e a sua consciência e percepção da morte”, e “tudo aponta para que o mesmo tenha sofrido morte rápida mas não imediata”.
Com base nisto, “atenta a factualidade dada como provada em 36. e 38. tal permite-nos concluir pela verificação do aludido dano intercalar, cujo montante indemnizatório a este título se fixa em € 20,000,00 (vinte mil euros)”.
No recurso da BB alega-se que “os danos sofridos pela própria vitima desde o momento do sinistro, momento em que arranca o poste, e a vitima cai em cima do gradeamento e é posteriormente arrastado pela via publica 80 metros, tendo inclusive sido alvo de tentativas de reanimação, e o momento em que ocorre a morte cujo período foi nunca inferior a 31 minutos, pelas dores imensas e prolongadas que teve e a visualização da morte prespectivando o sofrimento em que ia deixar a sua companheira e o filho, deve ser arbitrada indemnização nunca inferior a 50.000,00 euros a repartir em partes iguais entre a companheira e o filho menor”.
No recurso do DD alega-se que foi arbitrada “uma mísera quantia de € 20.000,00 (vinte mil euros), valor este que mais tarde reduziu a metade, por entender que a responsabilidade pelo sinistro/acidente é imputável à seguradora condenada, ora recorrida, em apenas 50%”.
Foi desvalorizado “de forma flagrante e nociva todos o sofrimento físico e psicólogo que o falecido terá sofrido, nos últimos minutos que antecederam a sua fatídica morte”.
Fazendo-se referência ao relatório médico-legal que conclui ter-se tratado “de uma morte violenta”, “entre o início do acidente e a concomitante morte da vítima medeiam 31 (trinta e um) minutos”, a vítima sofreu “dores lancinantes e angústias próprias de quem se debate pela vida e acaba por sucumbir, com a percepção que a morte é iminente”.
Pede-se “a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), a repartir em partes iguais pelos dois demandantes DD e BB”.
Vejamos:
A este respeito está provado que a vítima em consequência do derrube do poste caiu sobre um gradeamento e, em seguida, foi arrastado cerca de 80 m, “sofreu um choque imenso, sofreu muitas dores e anteviu a sua morte, pois viu-se amarrado ao poste, este a ser arrancado do solo em queda e sem meio de se soltar”.
Embora “durante poucos minutos”, o sofrimento foi “atroz”.
Deduz-se da matéria de facto que teve consciência de que ia morrer, pois “sofreu dores lancinantes e angústias próprias de quem se debate pela vida e sabe que a morte é iminente”.
Perante estes factores mostra-se adequado fixar a indemnização pelo sofrimento físico da vítima e pela angústia sofrida em 40.000.00€, a repartir em partes iguais por cada um dos demandantes.
*
Recurso da BB
Indemnização devida a título de lucros cessantes e respectivo valor.
A este respeito na decisão recorrida, afasta-se o direito da BB a essa indemnização, considerando “que uma vez que são reclamados danos pela perda da capacidade de ganho do lesado, a vítima GG, não detendo a sua companheira, unida de facto, a qualidade de herdeira legal, legítima ou legitimária, não detém a mesma legitimidade para reclamar tal segmento indemnizatório, o que de declara, ao invés do seu filho, herdeiro da vítima falecida, nos termos do disposto no artigo 2133.º do Código Civil”.
No recurso da BB alega-se que deve ser reconhecida “à recorrente – BB, legitimidade para reclamar o dano patrimonial futuro ou lucros cessantes nos termos dos artºs 496.º nº3 e 2020.º do Código Civil”, e quanto ao valor afirma-se que com base nas “tabelas matemáticas que serviram de cálculo em direito e no processo de trabalho, e pelas quais os recorrentes deverão ser indemnizados”, “deve ser fixada à recorrente BB a título de dano patrimonial futuro/ lucro cessante quantia nunca inferior a 147.840,00 euros”.
Em relação a esta matéria tem a recorrente, parcialmente, razão.
Com efeito, tem de se considerar que a recorrente, que vivia em união de facto com a vítima, tem direito a indemnização pelo dano patrimonial futuro na perspectiva de perda de alimentos.
Assim se decidiu no Ac. do STJ de 8/03/2012 (Raúl Borges): “O direito a indemnização do dano patrimonial futuro previsível de perda de alimentos por parte de membro sobrevivo de união de facto, dissolvida por falecimento de um dos membros, configurando obrigação natural, é indemnizável, nos termos do art. 495.°, n.º 3, do CC.”.
Agora, quanto ao respectivo montante, temos de ter em conta os seguintes factores (levados em conta na fixação da indemnização devida ao filho DD):
A vítima auferia rendimento anual de € 11.200,00;
Faleceu com a idade de 42 anos, sendo o seu tempo provável de vida activa até aos 70 anos, dado que era pessoa trabalhadora e activa;
A estes acresce que:
À BB foi fixada uma pensão anual e vitalícia correspondente a 30% da remuneração, no valor de € 3.360,00;
Tem rendimentos próprios decorrentes da sua função de funcionária judicial.
Tendo em conta estes factores, e recorrendo a critérios de probabilidade e verosimilhança (pese embora a relação gratificante que mantinham, não é certo e seguro que durasse até ao final da vida activa de ambos), mostra-se adequado fixar a indemnização pela perda de alimentos em 12.000,00€.
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Em conclusão:
A indemnização pela perda do direito à vida é fixada em 120.000.00€, a repartir em partes iguais entre a BB e o filho da vítima DD;
A indemnização pelos danos sofridos pelos familiares da vítima é fixada em 35.000.00€, para a BB, e em 50.000.00€, para o DD;
A indemnização pelos danos sofridos pela vítima antes de morrer é fixada em 40.000.00€, a repartir em partes iguais por cada um dos demandantes;
A indemnização pelos danos patrimoniais futuros, a título de perda de alimentos, é fixada em 12.000,00€, para a BB.
A estes valores acresce o de 19.250,00€, fixados a título de lucros cessantes, perda da capacidade de ganho para o DD, cuja decisão não foi impugnada, nem pela Seguradora, nem pelo Demandante.
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O recurso interposto pela B... – Companhia de Seguros, S.A., mostra-se totalmente improcedente.
Os recursos interpostos pela BB e pelo DD, mostram-se parcialmente procedentes, na medida supra referida.
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Nos termos relatados, decide-se julgar:
Totalmente improcedente o recurso interposto pela B... – Companhia de Seguros, S.A.;
Parcialmente procedentes os recursos interpostos pela BB e pelo DD (representado pela sua mãe, CC), e em consequência altera-se o dispositivo da Sentença recorrida, pela seguinte forma:
“(…)
c) Julgar o pedido de indemnização civil formulado pelos demandantes e assistentes BB e CC, representante legal de DD parcialmente procedente, por parcialmente provado e condenar a demandada B... – Companhia de Seguros, S.A no pagamento:
Da quantia de 120.000.00€, a título de indemnização pela perda do direito à vida, a repartir em partes iguais entre os demandantes cíveis BB e DD;
Da quantia de 40.000.00€, a título de indemnização pelos danos sofridos pela vítima antes de morrer, a repartir em partes iguais por cada um dos demandantes cíveis BB e DD;
A título de indemnização pelos danos sofridos pelos familiares da vítima, da quantia de 35.000.00€ à demandante cível BB, e da quantia de 50.000.00€ ao demandante cível DD;
Estas quantias são acrescidas de juros, à taxa legal, contabilizados desde a data da Sentença até integral e efectivo pagamento;
Da quantia de 19.250,00 €, a título de lucros cessantes/perda da capacidade de ganho, ao demandante cível DD, acrescida de juros de mora, à taxa legal, devidos desde a citação da demandada do pedido de indemnização formulado nos autos;
Da quantia de 12.000,00€, a título de danos patrimoniais futuros/ perda de alimentos, à demandante cível BB, acrescida de juros de mora, à taxa legal, devidos desde a citação da demandada do pedido de indemnização formulado nos autos.
(…)”
Mantém-se em todo o restante o dispositivo da Sentença recorrida.
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Custas da respectiva improcedência pela recorrente B... – Companhia de Seguros, S.A, fixando-se a Taxa de Justiça devida em 5 UC’s.
Sem custas os recursos interpostos pela BB e em representação do DD, devido à parcial procedência.
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Porto, 16/10/2024
José Piedade
Elsa Paixão
Jorge Langweg