CRIME
PENA ACESSÓRIA
NATUREZA
CRITÉRIOS
PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
EXECUÇÃO
INÍCIO
PENA DE PRISÃO
COMPATIBILIDADE
Sumário

I - Constituindo uma verdadeira pena criminal, a determinação da pena acessória deve operar-se mediante recurso aos critérios gerais constantes do art.º 71º do CP – portanto, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção -, e tem como finalidade primordial prevenir a perigosidade do agente, ainda que se lhe assinale também um efeito de prevenção geral.
II - Tal como as penas principais, as penas acessórias estão subordinadas ao princípio da legalidade, estando, por isso, vedado o recurso à analogia ou interpretação extensiva.
III – A execução das penas acessórias de proibição de contactos com a vítima, incluindo o afastamento da residência e do local de trabalho, e de uso e porte de armas durante o período de 5 anos (art.º 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal), não ficando dependente de qualquer comunicação do tribunal ou ato de terceiros (por exemplo, da instalação de meios fiscalização à distância), inicia-se com o trânsito em julgado da decisão condenatória.
IV - Em matéria de execução das penas (principais ou acessórias) rege o princípio da execução contínua das penas. A pena determinada na sentença, cuja execução deva prolongar-se no tempo, quer seja principal ou acessória, deve ser cumprida continuadamente, a não ser que a lei estipule regime diverso.
V – A condenação em prisão efetiva, decorrente da prática pelo arguido de um crime de violência doméstica, não obsta à imposição, em simultâneo, da pena acessória de proibição de contactos, com afastamento da residência ou do local de trabalho da vítima, pena esta que permanece eficaz «quando e durante o tempo em que ele está em liberdade, seja por via da sua colocação em posição de não cumprimento da pena – após o trânsito em julgado da sentença, não se entrega voluntariamente, dificulta ou impede a sua detenção – seja através de licenças de saída precária e da concessão da liberdade condicional».

(Da responsabilidade da relatora)

Texto Integral

PROC. N.º 1061/21.4GBVNG-D.P1





Acordam, em conferência, na 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto.

I – Relatório

No processo comum supra identificado, que corre termos pelo Juízo Central Criminal de Vila Nova de Gaia, foi o arguido AA condenado, por decisão já transitada em julgado, pela prática de crimes de violência doméstica, de violação de domicílio e de violação, na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão, imposta pelo Supremo Tribunal de Justiça, na sequência de recurso do Ministério Público.

Neste acórdão, manteve-se a decisão proferida pelo tribunal de primeira instância relativamente às penas acessórias de proibição de contactos com a vítima BB durante o período de 5 anos, incluindo o afastamento da residência e do local de trabalho (art.º 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal), e de proibição de uso e porte de armas durante o período de 5 anos (art.º 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal).

Entretanto, na sequência de promoção do Ministério Público quanto à data do início da execução das penas acessórias aplicadas (cf. referência citius 461737573), proferiu-se despacho, datado de 3/7/2024 (cf. referência citius 461785079), nos termos do qual foi indeferida a pretensão ali formulada e decidido que o início de contagem do prazo das referidas penas acessórios ocorreu na data do trânsito em julgado do acórdão condenatório.

Notificado de tal despacho e com ele não se conformando, interpôs o Ministério Público o presente recurso, visando a respetiva revogação.

Baseia-se o recurso nos fundamentos descritos na respetiva motivação e contidos nas seguintes “conclusões”, que se transcrevem:

«a) Nos presentes autos foi o arguido condenado pela prática, além do mais, de 4 (quatro) crimes de violência doméstica previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2, al. a) do Código Penal (na redação introduzida pela Lei n.º44/2018, de 9/8), na pena única de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão. Contudo, para além dessa pena, foi ainda condenado em duas penas acessórias, nos seguintes termos: na pena acessória de proibição de contactos com a vítima BB durante o período de 5 (cinco) anos incluindo o afastamento da residência e do local de trabalho – art. 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal; na pena acessória de proibição de uso e porte de armas durante o período de 5 (cinco) anos – art. 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal.

b) Veio o TEP solicitar informação nos autos sobre a indicação da data do termo do(s) período(s) da(s) pena(s) acessória(s) imposta(s) no quadro da previsão do artigo 152.º, n.º 4, do CP.

c) O Ministério Público nestes termos: “Nos presentes autos foi aplicada ao condenado, além do mais, na pena acessória de proibição de contactos com a vítima BB durante o período de 5 (cinco) anos incluindo o afastamento da residência e do local de trabalho – art. 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal e na pena acessória de proibição de uso e porte de armas durante o período de 5 (cinco) anos – art. 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal, sendo que, encontrando-se o condenado em reclusão, o seu início, s.m.o. apenas ocorrerá quando lhe for concedida liberdade.

d) Decidiu o tribunal o seguinte: “no que se refere à pena acessória de proibição de contactos, com afastamento da residência ou do local de trabalho da vítima pelo prazo de 5 anos, o seu prazo deve iniciar-se com o trânsito em julgado do acórdão proferido nestes autos, precisamente para que a mesma seja eficaz em caso de licenças de saída precária ou da concessão da liberdade condicional. Acresce ainda que para efeitos de visitas no E.P. e de contactos telefónicos a partir do mesmo é também relevante a sua manutenção desde o trânsito em julgado do acórdão; No que se refere à pena acessória de proibição de uso e porte de armas durante o período de 5 (cinco) anos, pelas mesmas razões – para que a mesma seja eficaz em caso de licenças de saída precária ou da concessão da liberdade condicional, deve também contar-se o seu início desde o trânsito em julgado do acórdão proferido nestes autos.”.

e) É este despacho que se contesta.

f) Seguimos também de perto o douto aresto indicado pelo tribunal recorrido – o Acórdão da Relação de Coimbra de 15.04.2020 -.

g) Entendeu-se nesse acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra que se a dita pena acessória é ineficaz enquanto o condenado está num regime de real reclusão, o mesmo não sucede quando e durante o tempo em que ele está em liberdade, seja por via da sua colocação em posição de não cumprimento da pena – após o trânsito em julgado da sentença, não se entrega voluntariamente, dificulta ou impede a sua detenção – seja através de licenças de saída precária e da concessão da liberdade condicional.

h) Ou seja, o entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra é o de que, enquanto o condenado estiver preso, a pena acessória não é cumprida, sendo que, o seu cumprimento apenas ocorre em momentos de liberdade daquele.

i) Lê-se nesse acórdão “Não se questiona que, estando o arguido em reclusão, a cumprir pena de prisão efetiva está confinado ao estabelecimento prisional e, por isso, impedido de se aproximar da vítima, bem como, está sujeito ao controlo dos guardas prisionais que prevenirão os contactos à distância com a assistente. Como se mostra indiscutível que a pena acessória de proibição de contactos, com afastamento da vítima, constituem medidas de proteção desta, para os casos em que o arguido esteja em liberdade e não no cumprimento de pena de prisão em estabelecimento prisional”.

j) Isto para dizer que, o tribunal recorrido invoca essa decisão do tribunal superior, com a qual concorda (e o MP também), mas depois retira uma conclusão contrária a esse entendimento.

k) Na verdade, o que ali se considerou - e o MP também considera -, foi que a pena acessória não deve ser executada enquanto o condenado se encontrar em reclusão, pois, neste caso, não é imprescindível à proteção da vítima, devendo antes considerar-se o seu cumprimento quando e enquanto o condenado estiver em liberdade, seja em liberdade condicional, liberdade definitiva ou licença de saída do estabelecimento prisional.

l) Só aí, nessas situações de liberdade do condenado, é que a vítima corre riscos que importa acautelar, pois, só nesses casos, pode o condenado procurá-la pessoalmente, contactá-la e continuar a exercer sobre ela violência.

m) E foi também esse o entendimento do acórdão desse mesmo Tribunal da Relação de Coimbra de 2.02.2022, igualmente disponível para consulta em www.dgsi.pt, onde se pode ler o seguinte: “(…) E, se, como defende o Recorrente, a pena acessória não deve ser aplicada, quando o arguido estiver em reclusão efetiva, porque não será, nesse caso, imprescindível à proteção da vitima, o mesmo não se diga, quando e enquanto o arguido estiver em liberdade, o que pode suceder, além do mais, se o arguido se colocar em posição de não cumprir a prisão efetiva, não se entregando voluntariamente, dificultando ou fugindo da efetiva detenção, durante o tempo que mediar entre o trânsito em julgado da sentença e a efetiva reclusão, nas licença de saída do estabelecimento prisional e liberdade condicional. Nestas situações de liberdade, a vitima fica à mercê do arguido, podendo este contactá-la e continuar a exercer violência sobre a mesma». Donde a proibição de contactos e o afastamento constituem meio adequado e legal de proteção da vítima, mesmo nos casos em que seja aplicada prisão. As penas acessórias foram aplicadas, considerando o âmbito da saída do arguido do Estabelecimento Prisional”.

n) Ou seja, também aí se considerou que a execução da pena acessória apenas ocorreria sempre e enquanto o condenado estivesse em liberdade.

o) Concordamos, integralmente, com esse entendimento jurídico.

p) Em reclusão, o condenado não consegue, por via desse mesmo confinamento, aproximar-se da vítima nem consegue, muito menos, deter naquele local armas de fogo, pelo controlo que ali é efetuado pelos guardas prisionais.

q) O que significa que as penas acessórias que foram aplicadas, ao contrário do entendimento plasmado no despacho recorrido, apenas poderão ser executadas/cumpridas no âmbito da saída do arguido do Estabelecimento Prisional, ou seja, se e quando o condenado for colocado em liberdade.

r) E não se diga, como se disse no despacho recorrido que ainda que para efeitos de visitas no E.P. e de contactos telefónicos a partir do mesmo é também relevante a sua manutenção desde o trânsito em julgado do acórdão, já que é possível que os contactos telefónicos de um recluso sejam objeto de controlo presencial, por despacho fundamentado do diretor, quando coloquem em perigo as finalidades da execução, quando exista fundada suspeita da prática de crime ou tal se imponha por justificadas razões de proteção da vítima do crime ou de ordem e segurança, tal como decorre do disposto nos artigos 7º, n.º 1, al. e, 70º e 71º, n.º 1 do Código de Execução de Penas.

s) Ademais, os objetos do recluso são fiscalizados aquando do seu ingresso em meio prisional, assim, como toda correspondência que lhe é dirigida e os objetos que pode ter na sua posse, pelo que, jamais, em tempo algum, poderá o condenado ter qualquer arma, em reclusão, tal como resulta dos artigos 16º, n.º 6, 26º, n.º 6, 28º, n.ºs 1 a 3, al. a), 68º e 69º do mesmo diploma legal.

t) O que corrobora o entendimento de que, apenas em liberdade, poderão ser executadas tais penas acessórias.

u) O tribunal a quo violou o disposto no artigo 499º do C.P.P. e o disposto no artigo 152º, n.ºs 4 e 5 do C.P.

Nestes termos, deverá o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que determine que o cumprimento das penas acessórias aplicadas ao condenado apenas se inicie se e quando o condenado for colocado em liberdade, com o que fará, JUSTIÇA».


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O recurso foi admitido para subir de imediato, em separado e sem efeito suspensivo.

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O arguido não apresentou resposta ao recurso.

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Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer, no qual pugnou pela improcedência do recurso, com a consequente confirmação da decisão recorrida, concluindo nos seguintes moldes: «Em suma, não estando legalmente previsto o cumprimento das penas acessórias de proibição de contactos com a vítima e de proibição de uso e porte de armas apenas após o cumprimento de pena de prisão efetiva nem estando, também, legalmente previsto o respetivo cumprimento descontínuo ou intermitente, ou seja apenas durante visitas ao condenado/recluso ou saídas precárias, parece-nos que o contínuo cumprimento daquelas penas se iniciou com o trânsito em julgado da condenação».

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Cumprido o disposto no art.º 417º, nº 2, do Código do Processo Penal, foi apresentada resposta ao parecer pelo arguido, aderindo à posição ali expressa pela Exma. Procuradora-Geral Adjunta.

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Procedeu-se a exame preliminar e foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.

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II - Fundamentação

É pelo teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigos 412.º, n.º 1 e 417.º, n.º 3, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente, como sucede com os vícios a que alude o art.º 410.º, n.º 2 ou o art.º 379.º, n.º 1, do CPP (cf., por todos, os acórdãos do STJ de 11/4/2007 e de 11/7/2019, disponíveis em www.dgsi.pt).

No presente caso, o objeto do recurso prende-se com a aferição do despacho proferido pelo tribunal de primeira instância, datado de 3/7/2024, e consiste em determinar o início e o modo (contínuo ou intermitente) de execução das penas acessórias impostas ao condenado.

O despacho recorrido tem o seguinte teor:

«Ref.ª 39492212:

Informe o TEP que não se mantém (para além do trânsito em julgado da decisão condenatória) o(s) estatuto(s) de vítima(s), determinada(s) no âmbito do preceituado no artigo 24.º, n.º 2, da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro.

Quanto às penas acessórias aplicadas ao arguido:

a) Como referimos no acórdão proferido nestes autos, acompanhando a jurisprudência constante do Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 15.04.2020, disponível em www.dgsi.pt:

I – A condenação em prisão efetiva, decorrente da prática pelo arguido de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art. 152.º, n.º 1, al. b), do CP, não obsta à imposição, em simultâneo, da pena acessória de proibição de contactos, com afastamento da residência ou do local de trabalho da vítima, contida nos n.ºs 4 e 5 do mesmo artigo.

II – De facto, se a dita pena acessória é ineficaz enquanto o condenado está num regime de real reclusão, o mesmo não sucede quando e durante o tempo em que ele está em liberdade, seja por via da sua colocação em posição de não cumprimento da pena – após o trânsito em julgado da sentença, não se entrega voluntariamente, dificulta ou impede a sua detenção – seja através de licenças de saída precária e da concessão da liberdade condicional.

Assim, no que se refere à pena acessória de proibição de contactos, com afastamento da residência ou do local de trabalho da vítima pelo prazo de 5 anos, o seu prazo deve iniciar-se com o trânsito em julgado do acórdão proferido nestes autos, precisamente para que a mesma seja eficaz em caso de licenças de saída precária ou da concessão da liberdade condicional. Acresce ainda que para efeitos de visitas no E.P. e de contactos telefónicos a partir do mesmo é também relevante a sua manutenção desde o trânsito em julgado do acórdão.

No que se refere à pena acessória de proibição de uso e porte de armas durante o período de 5 (cinco) anos, pelas mesmas razões – para que a mesma seja eficaz em caso de licenças de saída precária ou da concessão da liberdade condicional, deve também contar-se o seu início desde o trânsito em julgado do acórdão proferido nestes autos».


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Síntese dos dados processuais relevantes para a decisão do presente recurso:
1) Por acórdão já transitado em julgado, na sequência de recurso interposto para o STJ pelo Ministério Público e julgado parcialmente provido, foi o arguido condenado pela prática de crimes de violência doméstica, de violação e de violação do domicílio, na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão (em substituição da pena conjunta de 8 anos e 6 meses de prisão determinada pelo tribunal de primeira instância).
2) Do acórdão condenatório proferido pelo tribunal de primeira instância consta o seguinte segmento, mantido inalterado pelo Supremo Tribunal de Justiça:
«8. Condenam o arguido AA na pena acessória de proibição de contactos com a vítima BB durante o período de 5 (cinco) anos incluindo o afastamento da residência e do local de trabalho – art. 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal.
9. Condenam o arguido AA na pena acessória de proibição de uso e porte de armas durante o período de 5 (cinco) anos – art. 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal».
3) Na sequência de pedido de informação dirigido pelo TEP quanto à «data do termo do(s) período(s) da(s) pena(s) acessória(s) imposta(s) no quadro da previsão do artigo 152.º, n.º 4, do CP» (cf. o ofício do TEP datado de 1/7/2024 e despacho anexo), com data de 2/7/2024 foi emitido despacho do MP com o seguinte teor:
«Nos presentes autos foi aplicada ao condenado, além do mais, na pena acessória de
proibição de contactos com a vítima BB durante o período de 5 (cinco) anos incluindo o afastamento da residência e do local de trabalho – art. 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal e na pena acessória de proibição de uso e porte de armas durante o período de 5 (cinco) anos – art. 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal, sendo que, encontrando-se o condenado em reclusão, o seu início, s.m.o. apenas ocorrerá quando lhe for concedida liberdade».
4) Nessa sequência, o tribunal a quo proferiu o despacho atrás transcrito, que constitui o objeto do presente recurso.
5) O arguido encontra-se preso ininterruptamente à ordem dos autos desde 17/5/2023 (em situação de prisão preventiva até ao trânsito em julgado do acórdão proferido pelo STJ, ocorrido em 16/5/2024, altura em que iniciou o cumprimento da pena), prevendo-se o termo da pena de prisão para 14/11/2032 (cf. o despacho de liquidação de 13/6/2024 e a promoção de 29/5/2024).

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Narrados os elementos e atos processuais fundamentais para compreensão do despacho recorrido [1], analisemos os fundamentos do recurso.

Como vimos, o arguido foi condenado, a par de uma pena principal de 9 anos e 6 meses de prisão, resultante do cúmulo jurídico de múltiplas penas parcelares de prisão, nas seguintes penas acessórias: proibição de contactos com a vítima BB durante o período de 5 anos, incluindo o afastamento da residência e do local de trabalho (art.º 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal); e proibição de uso e porte de armas durante o período de 5 anos (art.º 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal),

Considerou o tribunal a quo que a contagem do prazo das penas acessórias iniciou-se com o trânsito em julgado do acórdão, posição da qual diverge o Ministério Público /recorrente, sustentando que tal prazo deve contar-se unicamente a partir da libertação do condenado.

Vejamos se lhe assiste razão.

Estabelece o art.º 152.º, do Código Penal, no segmento com relevo para o caso concreto, o seguinte:

«4 - Nos casos previstos nos números anteriores, incluindo aqueles em que couber pena mais grave por força de outra disposição legal, podem ser aplicadas ao arguido as penas acessórias de proibição de contacto com a vítima e de proibição de uso e porte de armas, pelo período de seis meses a cinco anos, e de obrigação de frequência de programas específicos de prevenção da violência doméstica.

5 - A pena acessória de proibição de contacto com a vítima deve incluir o afastamento da residência ou do local de trabalho desta e o seu cumprimento deve ser fiscalizado por meios técnicos de controlo à distância».

Como o próprio nome indica, a pena acessória está dependente da aplicação ao agente de uma pena principal. Além disso, não constituindo um efeito automático da condenação na pena principal, torna necessário que o juiz comprove, no facto, um particular conteúdo do ilícito, que justifique materialmente a aplicação da pena acessória [2].

Constituindo uma verdadeira pena criminal, a determinação da pena acessória deve operar-se mediante recurso aos critérios gerais constantes do art.º 71º do CP – portanto, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção -, e tem como finalidade primordial prevenir a perigosidade do agente, ainda que se lhe assinale também um efeito de prevenção geral. A pena acessória desempenha, assim, uma função preventiva adjuvante da pena principal, cuja finalidade não se esgota na intimidação da generalidade, mas dirige-se, também, à perigosidade do agente, reforçando e diversificando o conteúdo penal sancionatório da condenação.

Tal como as penas principais, as penas acessórias estão subordinadas ao princípio da legalidade, estando, por isso, vedado o recurso à analogia ou interpretação extensiva, sob pena de violação do princípio da legalidade em matéria de penas criminais (artigo 1.º do Cód. Penal e 29.º, n.ºs 3 e 4, da CRP), como justamente assinala a Exma. Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer.

Como resulta do disposto no art.º 467.º do Código de Processo Penal, as decisões penais condenatórias são exequíveis a partir do trânsito em julgado da decisão. Assim, e em regra, a data a considerar para o início de execução de qualquer pena (principal ou acessória) é a do trânsito em julgado da decisão condenatória.

O início de execução das penas de prisão fixa-se na data em que é cumprido o mandado de condução do condenado ao estabelecimento prisional (art.º 478.º CPP). O início de execução das penas acessórias que dependem de comunicação a entidades de quem depende a execução, fixa-se no momento em que a entidade respetiva receber a comunicação do tribunal da condenação. Relativamente às sanções acessórias cuja execução não está dependente de qualquer comunicação do Tribunal ou da prática de um qualquer ato pelo condenado, o cumprimento de pena acessória inicia-se com o trânsito em julgado da decisão condenatória.

No presente caso, a execução das decretadas proibições de contactos com a vítima, incluindo o afastamento da residência e do local de trabalho, e de uso e porte de armas durante o período de 5 anos (art.º 152º, nºs 4 e 5 do Código Penal), não ficou dependente de qualquer comunicação do tribunal ou ato de terceiros (por exemplo, da instalação de meios fiscalização à distância), pelo que inelutavelmente se terá que concluir que o respetivo cumprimento se iniciou com o trânsito em julgado da decisão condenatória.

Deste modo, o acolhimento da pretensão do recorrente (início de execução das penas acessórias após libertação do condenado) contraria a específica natureza da pena acessória, intimamente ligada à pena principal, e redundaria no estabelecimento, para a pena acessória, de um regime sem suporte legal, violador, por isso, do princípio da legalidade.

O mesmo se diga quanto ao modo de execução das penas acessórias que especificamente nos ocupam. Com efeito, em matéria de execução das penas (principais ou acessórias) rege o princípio da execução contínua das penas [3]. A pena determinada na sentença, cuja execução deva prolongar-se no tempo, quer seja principal ou acessória, deve ser cumprida continuadamente, a não ser que a lei estipule regime diverso.

Ora, como bem observa a Exma. PGA no seu parecer, o legislador não previu, para as penas acessórias em causa, a possibilidade do seu cumprimento descontínuo ou intermitente (a executar, por exemplo, apenas no decurso de saídas precárias, do período de liberdade condicional ou no decurso de visitas ao condenado/recluso), diversamente do que ocorre com penas acessórias de distinta natureza (cf., a título exemplificativo, o disposto nos artigos 66.º, n.º 4 e 69.º, n.º 6, do Código Penal). Deste modo, relativamente às penas acessórias de proibição de contactos e de uso e porte de armas não existe qualquer exceção ao regime contínuo previsto na lei.

Impõe-se, assim, a conclusão de que a execução das penas acessórias estipuladas no artigo 152.º, nºs 4 e 5 do Código Penal inicia-se, obrigatoriamente, com o trânsito em julgado da sentença condenatória e processa-se de modo contínuo, por ser a única compatível com o regime legal aplicável e, por isso, com o princípio da legalidade que vigora em matéria de penas criminais.

Reconhece-se que esta solução legal diminui a eficácia preventiva das penas acessórias concretamente aplicadas no âmbito do crime de violência doméstica, encontrando-se o condenado em contexto de reclusão.

Contudo, e como é assinalado no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 15/4/2020 [4], a condenação em prisão efetiva, decorrente da prática pelo arguido de um crime de violência doméstica, não obsta à imposição, em simultâneo, da pena acessória de proibição de contactos, com afastamento da residência ou do local de trabalho da vítima, pena esta que permanece eficaz «quando e durante o tempo em que ele está em liberdade, seja por via da sua colocação em posição de não cumprimento da pena – após o trânsito em julgado da sentença, não se entrega voluntariamente, dificulta ou impede a sua detenção – seja através de licenças de saída precária e da concessão da liberdade condicional».

Nenhuma censura merece, por isso, o despacho recorrido, sendo manifestamente inviável, por falta de suporte legal, a pretensão do recorrente, o que determina a improcedência do presente recurso.


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III – Dispositivo

Pelo exposto, acordam os juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso, confirmando-se integralmente o despacho recorrido.

Sem custas do presente recurso, por delas estar isento o Ministério Público / recorrente (art.º 4.º, n.º 1, a), do RCP).

Notifique.


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(Elaborado e revisto pela relatora – art.º 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).

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Porto, 16 de outubro de 2024.

Liliana Páris Dias (Relatora)

Maria Dolores da Silva e Sousa (Adjunta)

Elsa Paixão (Adjunta)


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[1] Através da análise dos elementos constantes da certidão expedida para instruir o recurso e do processo principal, consultados a partir do “citius”.

[2] Cf. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas, Editorial Notícias, pág. 197).
[3] Cf., neste sentido, o acórdão do TRP de 19/12/2023 (relatado pela Desembargadora Eduarda Lobo, disponível em www.dgsi.pt) e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. III, 3. ª ed., 2009, pág. 395.
[4] Relatado pela Desembargadora Alcina da Costa Ribeiro e disponível para consulta em www.dgsi.pt.