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CRIME DE DIFAMAÇÃO
PRESSUPOSTOS
DIREITO À HONRA
DIREITO DE CRÍTICA
DIREITOS FUNDAMENTAIS
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
CONTEXTUALIZAÇÃO
Sumário
I - Importa conciliar o direito à honra com o direito à critica. Sendo direitos fundamentais, não são absolutos, impondo-se uma operação de compressão mútua, de molde a retirar de cada um a máxima eficácia, o que irá suceder, tendo por referência o princípio constitucional da proporcionalidade e da intervenção mínima do direito penal. II - A expressão “Estes emails revelam um QI inferior ao dos vermes que rasteiam no subsolo da minha quinta no …. Que pobre de espírito” evidencia um tom jocoso, com intuito de ridicularizar a assistente, de lhe atribuir um desempenho intelectual inferior à média, mas sem nunca perder o contacto com o problema que motiva a discussão – desacordo quanto à gestão do condomínio, concretamente a existência de um caixote alegadamente colocado no hall pela arguida – e sem lhe imputar factos indignos, desonestos ou vergonhosos. III - Ao proferir a mencionada expressão a arguida não atinge o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana. A arguida está a reclamar e a criticar, o que surge já num clima de conflitualidade e como tantas vezes sucede nas relações de condomínio. IV - Estamos, então, perante uma expressão provocatória, que denota falta de educação por parte de quem a escreveu, censurável do ponto de vista social, mas que não assume dignidade legitimadora da intervenção do Estado, por não atingir a honorabilidade ou respeitabilidade da assistente. V - Esta expressão, no contexto em que foi proferida (demais texto do mail e conflito na relação de condomínio), não ultrapassa o nível da indelicadeza ou grosseria, sem apresentar uma carga axiologicamente negativa suscetível de preencher o ilícito da difamação.
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
I – Relatório 1. No âmbito do processo comum, com intervenção de tribunal singular, foi a arguida AA, com os demais sinais dos autos: - Absolvidada prática de um crime de difamação p. p. no art. 180º, n.º 1 e 183º, n.º 1 alínea a) do Código Penal. - Condenadacomo autora material de um crime de difamação p. p. no art. 180º, n.º 1 e 183º n.º 1 alínea a) do Código Penal, na pena de 60 dias de multa à taxa diária de €7,00, perfazendo um total de €420,00. - Condenadaa pagar à demandante a quantia de €500,00, a título de danos não patrimoniais.
2. Inconformada com esta decisão, a arguida interpôs recurso, reclamando a respetiva revogação e finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões: 1. Como resulta das atas da audiência de discussão e julgamento (28/02/2024; 05/03/2024; 03/04/2024 e 17/04/2024), a arguida não prestou, em momento algum, contrariamente ao que refere a sentença recorrida, declarações sobre os factos que lhe eram imputados. 2. A única posição assumida pela arguida em relação à acusação particular deduzida pela assistente é a que consta da sua Contestação de 31/10/2023, na qual, note-se, assume a autoria dos emails de 31/10/2021 e 24/11/2021, negando, porém, que os tenha dirigido à assistente. 3. Não podia o tribunal a quo, naturalmente, ter atendido, para prova dos factos, a declarações da arguida que, de facto, nunca foram prestadas. 4. A sentença recorrida padece de uma deficiente fundamentação/motivação da matéria de facto, já que se limita a remeter, de forma genérica, quanto ao grosso dos factos provados, para os documentos; para as declarações prestadas pela arguida (que, como se disse, nem existiram) e pela assistente/demandante; bem como para os depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas. 5. O tribunal a quo apenas concretiza os meios de prova que teve em conta para dar como provado o ponto 7), relativo aos conflitos existentes entre arguida e assistente, a saber: declarações da própria assistente; declarações da arguida (inexistentes, como já supra exposto); e depoimentos das testemunhas BB (administradora do condomínio) e CC. 6. A sentença recorrida não esclarece o que disseram a assistente, a arguida (alegadamente) ou as testemunhas sobre os demais factos. 7. A sentença recorrida deixa a arguida e os demais intervenientes processuais a adivinhar que concretas declarações da assistente ou trechos dos depoimentos das testemunhas foram considerados, pelo tribunal a quo, para sustentar a prova de determinados factos, coartando-lhes, assim, a desejável amplitude do seu direito de recurso. 8. O tribunal a quo não fez a análise critica das provas que se impunha, nem especificou os fundamentos tidos como decisivos para a convicção formada, limitando-se a remeter, sem critério, para toda a prova produzida. 9. O tribunal a quo não fez, sequer, uma análise do próprio email que está na base da condenação, transcrito no ponto 9) dos factos provados, chegando a referir, em sede de enquadramento jurídico-penal, que é “despiciendo tecer considerações sobre o carácter objetivamente difamatório das afirmações, dado o mesmo ser patente e moldado de forma a causar na pessoa do assistente ultraje à sua honra e consideração pessoal”. 10. Afirmar que é despiciendo tecer considerações sobre o teor de determinado meio de prova (no caso, o email transcrito no ponto 9) dos factos provados) é recusar fazer o exame crítico do mesmo, o que não se concebe e viola o n.º 2 do art.º 374.º do CPP. 11. Da leitura da sentença não resulta, com clareza, que concretas afirmações/imputações do email da arguida de 31/10/2021 é que o tribunal a quo considera que colocaram em causa o carácter e a dignidade pessoal da assistente. 12. Ainda que se especule, por se encontrar a negrito no ponto 9) dos factos provados, que o tribunal a quo quis referir-se ao trecho “Estes emails revelam um QI inferior ao dos vermes que rasteiam no subsolo da minha quinta no .... Que pobre de espírito”, a verdade é que tal nunca é dito expressamente, e, além disso, não há uma única palavra, sequer, sobre a concreta interpretação feita de tais palavras, designadamente, de molde a enquadrá-las na previsão do n.º 1 do art.º 181.º do Código Penal. 13. Não há qualquer desconstrução, pelo tribunal a quo, dos emails da arguida de 31/10/2021 e 24/11/2021, sendo que “remeter para o valor probatório dos documentos juntos aos autos é o mesmo que nada dizer” (STJ, 24.07.2003). 14. Ao motivar, o tribunal tem de dar a conhecer “as razões – necessariamente racionais e objetivas – da decisão (…) O tribunal dará cumprimento à norma, tendo em conta o art. 205º da CRP, ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência e ao expor as razões de forma objetiva e precisa porque é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e porque é que outras não serviram (…) Ela destina-se a justificar, de forma racional e objetiva, a convicção formada” (Sérgio Poças, Sentença Penal – Fundamentação de Facto, Rev. Julgar, nº3). 15. O tribunal a quo deveria ter explicado como se comprovaram os factos e, para tanto, apreciar, desde logo, a versão apresentada pela arguida nos artigos 9.º e 11.º da sua Contestação (explanando as razões do seu crédito ou descrédito), em que afirma que os seus emails não eram dirigidos à assistente. 16. No caso, a motivação de facto não se apresenta, nem “suficientemente clara para poder ser identificada e contestada em sede de recurso” (TC 258/2001), nem percetível para o próprio tribunal de recurso, independentemente dessa contestação. 17. O tribunal motivou a decisão de facto de forma insuficiente e incompleta nos pontos acabados de assinalar, não explicitando a convicção de modo percetível e objetivado no que respeita à prova dos factos que considerou como tal. 18. Face ao exposto, a sentença enferma de nulidade por falta/deficiência de fundamentação da matéria de facto (art.º 379.º/1 a) do Código de Processo Penal), devendo ser substituída por outra que proceda ao exame, nos moldes referidos, de todas as provas produzidas e/ou examinadas em audiência, particularmente o email da arguida de 31/10/2021, cujo teor está na base da condenação. 19. Estão incorretamente julgados os pontos 9), 11), 13), 15) e 15B) (há, certamente por lapso derivado da numeração automática, um ponto entre o 15 e o 16 que foi numerado como “1)”, ao qual, por facilidade, se atribui a numeração de 15B)) dos factos provados. 20. Não resultou provado que os emails da arguida de 31/10/2021 e 24/11/2021 tinham como destinatária a assistente e/ou se referiam a prévios escritos desta, nem, portanto, que a arguida tenha pretendido, perante terceiros, proferir palavras ofensivas da honra e consideração da assistente – sendo que, em todo o caso, as ditas palavras nunca seriam de molde a alcançar esse desiderato. 21. Era habitual e frequente que os emails relativos a questões do condomínio fossem trocados com o conhecimento de todos os condóminos (4) e da administradora. 22. O email da arguida de 31/10/2021 surge, precisamente, na sequência de uma longa troca de comunicações entre condóminos, na qual se inclui, de facto, um email da assistente de 27/10/2021, dirigido à administradora do condomínio, BB, dando conta da existência da uma caixa no hall do 4.º andar, há vários dias, e solicitando que dali fosse retirada – cfr. documento junto na sessão de julgamento de 05/03/2024, com a referência Citius 457968305. 23. Porém, o email da arguida de 31/10/2021 não é uma resposta ao email da assistente de 27/10/2021, tanto mais que a primeira frase que ali pode ler-se é “Só agora tomei conhecimento destes emails”, ou seja, “plural” e não “singular”. 24. Há, além de outros, na troca de comunicações que deu origem ao email da arguida de 31/10/2021, um email da assistente de 27/10/2021, às 22h45; um email da testemunha BB de 28/10/2021, às 6h50; um novo email da testemunha BB. 25. A razão pela qual a assistente surge como destinatária do email da arguida de 31/10/2021 (e não qualquer dos outros condóminos ou a administradora do condomínio, que apenas se encontram em cópia) não é difícil de explicar: é que, quando existe uma troca de comunicações entre várias pessoas e alguém seleciona a opção “responder a todos” no último email recebido, é o remetente deste último email que aparecerá, nessa resposta, como destinatário (ficando os demais envolvidos nessa troca de comunicações em cópia). 26. O tribunal a quo ignorou o facto de o email da arguida de 31/10/2021 nunca aludir à assistente, mais tendo ignorado que parte do mesmo contraria, de resto, a conclusão de que se tratou de uma resposta ao email da assistente de 27/10/2021. 27. Note-se que a arguida escreve, a determinado ponto do seu email de 31/10/2021, “é falta de educação estar continuamente a incomodar os vizinhos portugueses com emails tão fúteis (e este com a brilhante conclusão que o caixote era meu)”. 28. Não há, porém, no email da assistente de 27/10/2021 (ou num outro da autoria dela), qualquer conclusão de que o caixote era da arguida, pelo que é inconsistente a conclusão de que o de 31/10/2021 era uma resposta àquele, sendo que a própria assistente foi incapaz de - confrontada com esse facto - esclarecer porque razão assumiu que o email da arguida de 31/10/2021 lhe era dirigido (ou se referia aos seus emails anteriores) – cfr. declarações prestadas pela assistente na sessão de 05/03/2024, minutos 13:15 a 17:05. 29. É abusiva e carece de fundamento a conclusão de que o email da arguida de 31/10/2021 foi uma resposta ao email da assistente de 27/10/2021. 30. É abusivo concluir e carece de fundamento a conclusão de que o email da arguida de 24/11/2021 foi uma resposta ao email dirigido pela assistente à administrador do condomínio em 21/11/2021, no qual se queixava do barulho proveniente de obras no prédio durante o fim-de-semana. 31. Além de ter sido dirigido à administradora do condomínio, estando os demais condóminos (DD, CC e a arguida), tão-somente, em cópia, o email da arguida de 24/11/2021 surge, tal como o de 31/10/2021, na sequência de uma longa troca de comunicações entre condóminos, sendo que aquela se dirige a estes e à administradora (“Exmos. Senhores”), nunca se referindo, em particular, à assistente – cfr. doc. 1 junto com a contestação apresentada pela arguida 31/10/2023, com a referência Citius 37121036. 32. Não se pode considerar que o tero do email da arguida de 31/10/2021 dissesse respeito à assistente, tanto mais que a frase “Estes emails revelam um QI inferior ao dos vermes que rasteiam no subsolo da minha quinta no .... Que pobre de espírito” consiste na caracterização de determinados emails, i.e., daquilo que eles revelam ou do que deles se pode extrair, não tendo como sujeito qualquer pessoa, nomeadamente, a assistente. 33. Não poderia o tribunal a quo ter dado como provados os factos vertidos nos citados pontos 9), 11), 15) e 15B), que devem, pelo contrário, ser dados como não provados. 34. Caso assim não se entenda, o que só por mera hipótese académica se admite, deverão os factos vertidos nos pontos 9), 11) e 15) ser dados como provados, tão-somente, com a seguinte redação: 9) Chegada ao conhecimento da arguida uma troca de comunicações entre os condóminos e a administradora, na qual se inseria o email da assistente de 27/10/2021, esta dirigiu aos já previamente envolvidos na troca de comunicações, em 31/10/2021, um email com o seguinte teor: “Só agora tomei conhecimento destes emails. E deteto que há uma moradora que destila ódio noite e dia, que ainda não sabe que é falta de educação estar continuamente a incomodar os vizinhos portugueses com emails tão fúteis (e este com a brilhante conclusão que o caixote era meu). Estes emails revelam um QI inferior ao dos vermes que rasteiam no subsolo da minha quinta no .... Que pobre de espírito”. 11) Apesar de tais comunicações não lhe terem sido pessoalmente dirigidas, reportando-se a questões do Condomínio, a arguida dirigiu um email à Administradora, em 24/11/2021, com conhecimento de todos os condóminos. 15) Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar supra referidas, a arguida proferiu, de forma escrita, as expressões referidas em 9). 35.Andou mal o tribunal a quo, também, ao dar como provados os factos vertidos no ponto 13). 36.Note-se que, quando falamos dos condóminos e da administradora, estamos a falar de 5 pessoas (4 condóminos e 1 administradora), sendo 2 delas a própria arguida e a assistente; e os proprietários DD (que, não tendo sido ouvida em audiência de discussão e julgamento, não se pode afirmar que viu e leu os emails da arguida) e CC (que disse, em audiência de discussão e julgamento, não se recordar de ter visto e lido os emails e, inclusivamente, que era habitual desligar-se e não ler, sequer, as comunicações que recebia por essa via com referência aos problemas do condomínio) – cfr. depoimento prestado pela testemunha CC na sessão de 03/04/2024, minutos 7:42 a 10:50. 37.Também a administradora do condomínio, BB, disse não se recordar de ter recebido os emails da arguida (o que denota que, mesmo a tê-los recebido, não lhes deu a menor importância), sendo que, não obstante a grande insistência do mandatário da assistente, a testemunha apenas confirmou recordar-se da “história” (e não dos emails) - cfr. depoimento prestado pela testemunha BB em 05/03/2024, minutos 2:03 a 5:21. 38.Não foi feita prova de que os emails da arguida de 31/10/2021 e 24/11/2021 foram vistos e lidos por todos os condóminos e pela administradora. 39.Demonstrando-se, como se defende, que o teor dos emails da arguida não tinha como destinatária a assistente nem versava sobre as comunicações por ela remetidas, terá de se concluir, inevitavelmente, que a arguida não praticou, com o envio do seu email de 31/10/2021 (ponto 9) dos factos provados), o crime de difamação pelo qual foi condenada. 40. Mas, mesmo que se considere – por mera hipótese académica - que o email da arguida de 31/10/2021 tinha como destinatária a assistente e queria reportar-se aos emails por esta remetidos em momento prévio, não são as palavras ali contidas (“Estes emails revelam um QI inferior ao dos vermes que rasteiam no subsolo da minha quinta no .... Que pobre de espírito”), particularmente no contexto em que foram proferidas, suscetíveis de integrar a prática de um crime de difamação. 41.A arguida limita-se, no seu email de 31/10/2021, a dizer que várias comunicações (emails) anteriores eram fúteis, tendo uma delas concluído, inclusivamente, de forma errada, que o caixote era seu. 42.Em nada no email da arguida de 31/10/2021 se encontra factos, mesmo que sob a forma de suspeita, ou mesmo palavras, ofensivas da honra ou consideração da assistente (que nunca é mencionada), mas apenas a expressão de juízo sobre factos e atuações de determinada pessoa (nomeadamente, o envio de emails). 43. Os crimes de difamação e injúria supõem a imputação de factos ou a formulação de juízos sobre uma pessoa, não a formulação de juízos sobre factos ou atuações, encontrando-se estes cobertos pela liberdade de expressão e critica, não constituindo a prática de qualquer crime – cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19/04/2017, proferido no processo n.º 16391/15.6T9PRT.P1. 44. O tipo objetivo de difamação estará preenchido com a imputação de factos, palavras ou juízos desonrosos, desonestos ou vergonhosos, a par do dolo genérico, em qualquer uma das suas modalidades. 45. As afirmações proferidas pela arguida, nas apuradas circunstâncias, não revestem dignidade penal, isto é, a atuação da arguida não é ilícita, em termos de essa ilicitude atingir bens jurídico-penalmente protegidos – no caso, a honra e consideração da assistente. 46. Nenhuma das expressões/afirmações contidas nos emails da arguida de 31/10/2021 e 24/11/2021 é suficientemente forte para atingir o reduto mínimo de dignidade e bom nome de que a assistente legitimamente pode reclamar, pois que se situam no terreno da crítica por parte da arguida e no uso do princípio da liberdade de expressão, donde estará excluída a ilicitude, senão ao abrigo do disposto no artº 180º nº2 do Cód. Penal, ao abrigo do disposto no artº 31º nº2 do mesmo diploma legal. 47. À arguida não lhe pode ser assacada a intenção de denegrir a imagem, o bom nome e reputação da assistente, pois que a sua atuação não atingiu o segmento da dignidade pessoal e/ou profissional da assistente de forma desproporcionada (desde logo porque, como se disse, tais expressões nem lhe eram, sequer, dirigidas). 48. Em todo o caso, as expressões da arguida não se revelam absolutamente gratuitas, desproporcionadas, nem ultrapassam manifestamente a necessidade própria do exercício do seu direito de crítica e de liberdade de expressão, não podendo deixar de se enquadrar na esfera da atipicidade ou como enquadrando situação de exclusão da ilicitude ou de causa de não punibilidade, não se verificando os elementos constitutivos do crime de difamação pelo qual foi condenada. 49. O direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere a suscetibilidade do visado, só o podendo fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. 50. Se bem que ninguém goste que lhe verberem comportamentos, atitudes ou mesmo simples intenções, ou fustigue a sua personalidade ou carácter, sobretudo quando feito de forma desabrida e caustica, o incómodo daí resultante e suscetibilidade do visado não bastam para que se considere desde logo atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa se tenha como socialmente realizada. (…) 51. Não cabe aos tribunais avaliar se uma afirmação é justa, razoável ou grosseira. Não se pode pretender que as conversas discordantes tenham todas um discurso sereno, com adjetivação civilizada e detentoras de uma argumentação racional, pois isso seria privar do direito de manifestar o seu desagrado aos menos dotados do ponto de vista retórico, das boas maneiras, até da capacidade de raciocínio, recorrendo-se aos tribunais para punir tais excessos e ficando a discordância confinada ao grupo de pessoas polidas. 52. As expressões proferidas pela arguida no circunstancialismo acima caracterizado, não têm, sem mais, a virtualidade de ser consideradas ações típicas de um crime de difamação, pois não vemos como se pode depreender que, em resultado delas, a honra da assistente ficasse abalada ou ofendida. 53. Da redação do art.º 181.º/1 do CP resulta que os crimes de difamação supõem a imputação de factos ou a formulação de juízos sobre uma pessoa, não a formulação de juízos sobre factos, atuações, obras, prestações ou realizações. 54. As expressões escritas no email da arguida de 31/10/2021 configurariam, quanto muito, um juízo sobre a atuação da assistente e não um juízo sobre a pessoa desta, também não se tratando de uma imputação de factos eventualmente desonrosos, mas de um juízo sobre uma atuação objetiva. 55. A critica da arguida, por muito injusta, hostil ou desagradável que seja, encontra-se fora do âmbito judicial e jurídico-criminal. 56. Além disso, sempre haveria de ter sido considerada (o que o tribunal a quo não fez), para efeitos de enquadramento no contexto geral em que a arguida escreveu os emails de 31/10/2021 e 24/11/2021, a linguagem habitualmente usada pela própria assistente para se dirigir aos demais condóminos, como fez com a arguida em 25/10/2016, quando lhe remeteu email, com conhecimento aos demais condóminos e o seguinte teor: “Prezados srs e sras, o último email da sra AA explicita o nível de xenofobia dessa sra. com comentários ofensivos e preconceituosos. Xenofobia é uma expressão de atraso intelectual e emocional, condenado internacionalmente. A referida mensagem – além do tom ameaçador – demonstra a incapacidade dessa sra de viver em um condomínio, reiterando o que disse antes: onde o bem estar e a segurança de todos, em consenso e com bom senso são princípios básicos. Atenciosamente, EE” – cfr. doc. 2 junto com a contestação da arguida e declarações prestadas pela assistente na sessão de 05/03/2024, minutos 1:05 a 2:20. 57.É que o contexto geral em que são proferidas determinadas afirmações é essencial para se aquilatar da sua gravidade e, consequentemente, da necessidade de intervenção do direito penal. 58.E ainda que fosse de considerar – o que só por mera hipótese académica se admite – o efetivo cometimento, pela arguida, de um crime de difamação, nunca poderia este considerar-se agravado pela publicidade, nos termos da alínea a) do n.º 1 do art.º 183.º do CP. 59.Por fim, cumpre referir, desde já, que a interpretação feita pelo tribunal a quo de que as expressões “Estes emails revelam um QI inferior ao dos vermes que rasteiam no subsolo da minha quinta no .... Que pobre de espírito” são, no contexto em que foram proferidas, enquadráveis na prática de um crime de difamação (p. e p. nos artigos 181.º/1 e 183.º/1 a) do Código Penal), é, além de errada, violadora do disposto no art.º 37.º da Constituição da República Portuguesa, já que aquelas correspondem, apenas, ao exercício do direito à liberdade de expressão. 60.Isto posto, pugna-se pela revogação da sentença recorrida (que condenou a arguida pela prática de um crime de difamação, com agravação da publicidade, previsto e punido nos artigos 181.º/1 e 183.º/1 a) do Código Penal, na pena de 60 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, o que perfaz o montante de € 420,00; e, bem assim, no pagamento da quantia de € 500,00 a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela demandante/assistente), com a consequente substituição por outra que absolva a arguida do crime de difamação pelo qual foi condenada e do respetivo pedido de indemnização cível.
3. O Ministério Público na 1ª instância respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado, tendo formulado as seguintes conclusões: I – A matéria fáctica dada como provada na douta Sentença, teve por base os documentos dos autos, mormente os documentos de fls. 9 a 26, 73, 82, 83, 113, 114 e os relatórios periciais de fls. 141 e seguintes e 158 e seguintes e assentos de 178 e 179, tendo a Mm.ª Juiz efetuado um detalhado exame crítico da prova produzida, o qual permite identificar claramente a logicidade da formação do processo conducente à decisão obtida e o raciocínio que presidiu a essa formação e do mesmo resulta ainda de forma expressa que a decisão não foi o resultado de uma ponderação arbitrária das provas, nem de uma valoração inaceitável das mesmas. II- Inexistem quaisquer vícios na douta sentença recorrida, designadamente factos incorretamente julgados, insuficiência da matéria de facto para a decisão e/ou erro notório na apreciação da prova e bem ainda qualquer violação do princípio in dúbio pro reo, contrariamente ao que alega a recorrente, pois a matéria fáctica dada como provada assenta na análise da prova documental e da sua conjugação entre si. III- A douta decisão recorrida fez, pois, uma correta interpretação dos normativos legais e não violou qualquer disposição legal ou constitucional.
4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.
5. Foi cumprido o disposto no artigo 417º, n.º2 do Código Processo Penal.
II- Questões a decidir
No recurso em análise, em face das conclusões apresentadas importa apreciar e decidir as seguintes questões:
- atipicidade da conduta da arguida – suas consequências.
III- Fundamentação
1. Proferida sentença, o tribunal recorrido considerou provados e não provados os factos que se elencam (transcrição):
“De relevante e com interesse para a discussão da causa, resultou provado o seguinte circunstancialismo fáctico:
1) A assistente EE é cidadã brasileira.
2) Desde 11/12/2014 que é proprietária de um apartamento em Portugal, sito no 4º andar do prédio que corresponde ao nº ..., da Rua ..., no Porto.
3) Em face disso, tendo embora residência habitual no Brasil, a assistente desloca-se com regularidade a Portugal, aqui passando longas temporadas.
4) A arguida AA é também proprietária de uma fração autónoma no identificado prédio da Rua ..., embora não seja essa a sua residência habitual.
5) A arguida desloca-se com frequência à sua propriedade, intervindo ativamente nas questões relativas à gestão do Condomínio, comparecendo em todas as reuniões de Condomínio e toma posição, no dia a dia, sobre as questões colocadas pelos condóminos.
6) O prédio em questão tem condomínio organizado, sendo gerido pela sociedade “A..., Lda.” - a quem os condóminos reportam, na pessoa da Sra. Dra. BB, além do mais, por via do seguinte email: ..........@......
7) Assistente e arguido encontram-se desavindas, nomeadamente, com relação aos assuntos do condomínio do prédio em referência.
8) Em 27.10.2021, a assistente enviou um email à Administradora do condomínio, BB, dando conta da existência de uma caixa no hall do 4º andar, há vários dias, e solicitando que dali fosse retirada.
9) Chegado o dito email ao conhecimento da arguida, esta dirigiu à assistente a seguinte resposta, em 31/10/2021, também por email, com conhecimento da Administradora e dos restantes condóminos: ”Só agora tomei conhecimento destes emails. E deteto que há uma moradora que destila ódio noite e dia, que ainda não sabe que é falta de educação estar continuamente a incomodar os vizinhos portugueses com emails tão fúteis (e este com a brilhante conclusão que o caixote era meu). Estes emails revelam um QI inferior ao dos vermes que rasteiam no subsolo da minha quinta no .... Que pobre de espírito”;
10) Semanas mais tarde, a assistente dirigiu novo email à Administradora do Condomínio a queixar-se de barulho proveniente de obras no prédio durante o fim-de-semana.
11) Apesar de tais comunicações não lhe terem sido pessoalmente dirigidas, reportando-se a questões do Condomínio, a arguida respondeu à assistente, através de email de 24/11/2021, que dirigiu à Administradora, com conhecimento de todos os condóminos.
12) Fê-lo nos seguintes termos: “Exmos. Senhores
Valores de tolerância e boa vizinhança é inútil pedir, quando neste condomínio existe uma brasileira de mau caráter e mal educada que como agora massacra o nosso condómino maioritário, assim já me torturou, chegando a enviar-me por dia 10 emails fúteis, repelentes e ofensivos. Nessa altura movi-lhe um processo em tribunal que o meritíssimo juiz mandou arquivar, alegando que assuntos de condomínio devem ser resolvidos em reuniões de condomínio. Esta condómina nunca aparece em reuniões de condomínio, manda por vezes uma advogada, que até já perdi a conta das advogadas que já conheci. Perante estes factos, a minha tolerância é zero. Nós os portugueses vizinhos e condóminos merecemos trabalhar e viver em paz e sossego. Se estes emails continuarem a ser enviados, exijo que em reunião de condomínio, se cumpra a ordem do meritíssimo juiz. Certamente, vamos ter de recorrer ao Ministério da Administração Interna (Serviços de Estrangeiros e Fronteiras) para nós portugueses retomarmos a nossa paz bem merecida”;
13) Estes emails foram vistos e lidos por todos os condóminos e pela Administradora.
14) Estes emails são da autoria da arguida.
15) Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar supra referidas, a arguida, referindo-se à assistente EE, proferiu, de forma escrita – expressão referida em 9), perante terceiros, palavras ofensivas da honra e consideração da assistente, o que aquela bem sabia, mas não se absteve de agir do modo descrito, o que quis.
15´) A arguida atuou de modo livre e consciente, tendo perfeito conhecimento da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.
16) Com a expressão referida em 9) a assistente sentiu-se desrespeitada e humilhada na sua honra e consideração.
17) A assistente e arguida são pessoas integras, bem formadas, educadas e respeitadas.
18) À data dos factos a assistente contava com 71 anos de idade.
19) A arguida não tem antecedentes criminais.
20) A arguida encontra-se aposentada há cerca de 10 anos auferindo mensalmente cerca de €2.300,00 líquidos; tem duas filhas maiores de idade; tem duas habitações próprias e paga a título de mútuo a quantia mensal de €1.200,00.”
2. O tribunal a quo considerou não provados os factos que se elencam (transcrição): “Com interesse para a decisão da causa não resultaram provados os seguintes factos: A) Desde 2016 que a arguida assume uma postura de confronto e rebaixamento da assistente, questionando as posições por si assumidas e discordando das suas opiniões quanto às matérias do Condomínio e da gestão das partes comuns do prédio. B) Dirige-lhe, de forma habitual e reiterada, expressões discriminatórias e xenófobas, em virtude da sua nacionalidade. C) Tal clima de animosidade extremou-se quando a assistente reivindicou a realização de obras no telhado do prédio, devido a infiltrações no seu apartamento. D) A arguida não se coíbe de manifestar o seu desagrado, pessoalmente ou via email, diretamente ou por interposta pessoa, em relação a qualquer pretensão da assistente no que diz respeito ao Condomínio. E) Atacando-a e afrontando-a, sempre com referência à sua nacionalidade. F) Bem sabia a arguida que, ao “espalhar a palavra” justamente no local de residência da assistente geraria contra esta anticorpos por parte dos restantes proprietários e moradores. G) A demandada quis — e conseguiu! — acicatar a opinião dos destinatários das suas comunicações, com o fito, malicioso e gratuito, de desacreditar a pessoa da aqui demandante, denegrindo a sua imagem. H) A assistente provoca a arguida quando a encontra. Não resultaram provados com interesse para a decisão da causa quaisquer outros articulados factos ou alegados em sede de audiência quer por se encontrarem em contradição com os presentes, quer por constituírem simples conceitos de direito ou meros juízos conclusivos.”
3. O tribunal a quo motivou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição): “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei (art. 125.º e 127.º do Código de Processo Penal), sendo certo que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador. Esta convicção é formada pelos dados objetivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas; pela análise conjugada das declarações e depoimentos, atendendo a fatores vários a elas referentes e que transpareçam na audiência, a saber o comportamento das testemunhas e dos arguidos, a imparcialidade ou parcialidade, a coerência, as contradições, a serenidade, as hesitações, devendo por tal dar-se relevância à perceção que a oralidade e a imediação conferem ao julgador. No que concerne aos factos provados – o tribunal atendeu ao conjunto da prova efetuada em sede de audiência de julgamento, nomeadamente, atendendo aos emails juntos aos autos. A arguida admitiu a autoria dos emails e confirmou ter escrito os mesmos, no entanto, entende não terem os mesmos um conteúdo ofensivo. Assim, o Tribunal, para a convicção positiva da prova, atendeu ao teor dos documentos já referidos conjugados com as declarações prestadas pela própria arguida e assistente/demandante, bem como aos depoimentos prestados pelas testemunhas inquiridas. Das declarações prestadas pela própria assistente, arguida e testemunhas - também resulta evidente os conflitos existentes e que decorreram da frequência de queixas junto do condomínio, por parte da ora assistente – como o relataram de forma clara e credível a testemunha BB, administradora do condomínio e da testemunha CC. Dos danos morais provocados nenhuma outra prova foi feita que não as declarações da assistente –que se valoraram nos factos dados como provados, dado irem ao encontro das regras da experiência comum, para quem lê as expressões dirigidas e contidas no ponto 9) da matéria assente. Para aferir da situação socioeconómica da arguida o Tribunal atendeu às suas próprias declarações. A convicção negativa da prova, para além do que já ficou dito supra, resultou da ausência total de prova admissível ou credível.”
IV- Apreciação do recurso
1. Da atipicidade da conduta da arguida
Tendo em consideração a delimitação do objeto do recurso, a primeira das questões suscitadas prende-se com a falta e deficiente fundamentação da matéria de facto, a qual a verificar-se importará a nulidade da sentença, consequência que é expressamente peticionada pela arguida recorrente.
A recorrente suscita também o erro de interpretação na subsunção dos factos ao direito. Mesmo que se considere – por mera hipótese académica, refere a recorrente - que o email da arguida de 31/10/2021 tinha como destinatária a assistente e queria reportar-se aos emails por esta remetidos em momento prévio, não são as palavras ali contidas (“Estes emails revelam um QI inferior ao dos vermes que rasteiam no subsolo da minha quinta no .... Que pobre de espírito”), particularmente no contexto em que foram proferidas, suscetíveis de integrar a prática de um crime de difamação.
As expressões escritas no email da arguida de 31/10/2021 configurariam, quanto muito, um juízo sobre a atuação da assistente e não um juízo sobre a pessoa desta, também não se tratando de uma imputação de factos eventualmente desonrosos, mas de um juízo sobre uma atuação objetiva. A critica da arguida, por muito injusta, hostil ou desagradável que seja, encontra-se fora do âmbito judicial e jurídico-criminal. Pugna, por isso, pela sua absolvição da prática do crime de difamação, pelo qual foi condenada, bem como do correspondente pedido de indemnização civil.
Ora, muito embora a questão atinente à nulidade da sentença por falta e deficiente fundamentação devesse preceder a análise da questão de direito que também foi suscitada, o conhecimento desta será priorizado. Caso venha a ser entendido que a conduta da arguida, tal como foi dada como provada, não preenche a respetiva tipicidade objetiva, carece de utilidade a análise da fundamentação da sentença, tendo em consideração as consequências de decorrem da verificação do vício que foi apontado à sentença.
Efetivamente, a nulidade da sentença por falta e/ou deficiente fundamentação, considerando a consequência da sua eventual verificação, apenas deverá ser analisada se e na medida em que mantenha pertinência em face do que resultar da apreciação da questão de mérito do recurso, ou seja, caso se conclua que a conduta da arguida recorrente preenche a respetiva tipicidade.
Não podemos deixar de considerar que, sendo esta questão julgada procedente - não preenchendo a conduta da arguida a tipicidade objetiva do tipo, deverá ter-se por prejudicada a apreciação dos vícios da sentença, por não se justificar devolver os autos à primeira instância com o propósito de ser elaborada nova sentença que os venha a suprir. ●
Cumpre, pois, analisar se a conduta da arguida recorrente, tal como foi dada como provada pela primeira instância, é ou não objetivamente ofensiva da honra e da consideração devida à assistente.
Vejamos, então, o enquadramento legal do ilícito pelo qual a arguida foi condenada.
Comete o crime previsto no artº 181º do Cód. Penal, quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivos da sua honra ou consideração, não sendo exigível que o agente atue com a intenção exclusiva de atingir o património moral de outrem (isto é, com animus diffamandi), bastando genericamente que configure essa circunstância como resultado da sua conduta. Trata-se de num crime de perigo abstrato-concreto, no qual o dolo se basta com a consciência da genérica perigosidade da conduta ou do meio da ação previstos nas respetivas normas genéricas incriminadoras.
“À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão.” (artº 182º do Cód. Penal).
Prevê esta norma a proteção penal do direito fundamental consagrado no artigo 26°, nº1, da Constituição da República Portuguesa. Como explicam G. Canotilho e V. Moreira: “O direito ao bom nome e reputação consiste essencialmente no direito a não ser ofendido ou lesado na sua honra, dignidade ou consideração social mediante imputação feita por outrem, bem como no direito a defender-se dessa ofensa e a obter a competente reparação” (C.R.P., anotada, 2a ed., I. Vol., p. 195).
No nosso ordenamento jurídico a honra é vista como bem jurídico complexo que abrange o valor interior ou subjetivo de cada indivíduo, mas também a sua reputação ou consideração exterior.
A honra, na lição de Beleza dos Santos, “é aquele mínimo de condições, especialmente de natureza moral, que são razoavelmente essenciais para que um indivíduo possa com legitimidade ter estima por si, pelo que é e pelo que vale”, sendo a consideração “aquele conjunto de requisitos que razoavelmente se deve julgar necessário a qualquer pessoa, de tal modo que a falta de algum desses requisitos possa expor essa pessoa à falta de consideração ou ao desprezo público. (…) A honra refere-se ao apreço de cada um por si, à autoavaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral. A consideração ao juízo que forma ou pode formar o público no sentido de considerar alguém um bom elemento social, ou ao menos de o não julgar um valor negativo” (in "Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação e de Injúria", RLJ ano 92º, páginas 167 e 168).
Nas palavras de Faria Costa, com este tipo legal protege-se a honra, “como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior, traduzida na estima e respeito que a personalidade moral de alguém infunde aos outros e que vai sendo adquirida ao longo dos anos (probidade e lealdade de carácter.” O que se protege, continua este autor, "é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade", a qual encontra o seu "fundamento essencial" na "irrenunciável dignidade pessoal".
De todo o modo, assinala este professor, o bem jurídico honra tem menor densidade axiológica do que o grosso daqueles outros que a tutela do ser impõe. “Uma prova evidente de tal realidade pode encontrar-se nas molduras penais - de limites extraordinariamente baixos - que o legislador considerou adequadas para a punição das ofensas à honra. E a explicação para tal “estreitamento” da honra enquanto bem jurídico, para uma certa perda da sua importância relativa, pode justificar-se, segundo cremos, de diferentes modos e por diferentes vias. Por um lado, julgamos poder afirmar-se uma sua verdadeira erosão interna, associada à autonomização de outros bens jurídicos que até algumas décadas estavam misturados com essa pretensão a ser tratado com respeito em nome da dignidade humana que é o núcleo daquilo a que chamamos honra. Referimo-nos a valores como a privacidade, a intimidade ou a imagem, que hoje já têm expressão constitucional e específica proteção através do direito penal. Por outro lado, cremos ser também indesmentível a erosão externa, a que a honra tem sido sujeita, quer por força da banalização dos ataques que sobre ela impendem - tão potenciados pela explosão dos meios de comunicação social e pela generalização do uso da internet, quer por força da consequente consciencialização coletiva em torno do carácter inelutável de tais agressões e da eventual imprestabilidade da reação criminal” (in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, pág. 602 a 607).
Não existirá, é certo, uma solução predefinida na determinação dos factos imputados ou juízos de valor emitidos suscetíveis de constituir ofensa à honra e consideração pessoal do visado. Antes, a análise deverá ser casuística, ponderando o contexto em que foram proferidas, a condição do agente e do visado, qual o seu conteúdo, assim como as interpretações possíveis e as motivações subjacentes. A natureza difamatória de determinada palavra ou expressão depende do lugar ou ambiente em que foi proferida, das pessoas entre quem ocorre, do modo como ocorre, sendo essa qualificação indiferente à maior ou menor suscetibilidade ou melindre do visado, determinada a partir do senso e experiência comum.
Um facto ou juízo, para que possa ser havido como ofensivo da honra e consideração devida a qualquer pessoa, explica-se no ac. do TRE de 2/7/96, deve constituir “um comportamento com objeto eticamente reprovável, de forma a que a sociedade não lhe fique indiferente, reclamando a tutela penal de dissuasão e repressão desse comportamento. Supõe, pois, a violação de um mínimo ético necessário à salvaguarda sócio/moral da pessoa, da sua honra e consideração”. (in CJ 96, IV, 295).
Ofensivo da honra e consideração, nas palavras de Beleza dos Santos, é “aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores. (...). Aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena" (ob. cit., pág. 165 e 166).
Enformando tudo isto, a apreciação objetiva do conteúdo da expressão imputada deve enquadrar-se com o princípio da intervenção mínima do Direito Penal, na medida em que este se deve restringir às situações – atenta a sua natureza – em que a violação dos bens jurídicos e os interesses postos em causa não são suficientemente acautelados pela intervenção de outros ramos do Direito, legitimando a intervenção sancionatória do Estado através do Direito Penal.
Tal princípio, figurando perante o legislador na tipificação das condutas puníveis importa, perante o tipo legal do crime de difamação, o apelo a critérios mínimos objetivos que permitam a intervenção deste ramo do Direito face à gravidade da conduta que terá de ser objetivamente difamatória e integrada no mínimo de anti juridicidade que legitime a intervenção do Direito Penal. Nem tudo o que causa contrariedade, é desagradável, pouco ético, ou que “envergonha e perturba ou humilha, cabe na previsão das normas dos arts 180º e 181” (Oliveira Mendes, O Direito à Honra e a sua Tutela Penal, pág. 37).
Com efeito, a tutela penal não é extensível a comportamentos meramente indelicados ou, citando Oliveira Mendes, impertinentes.
A este respeito, a análise efetuada no acórdão proferido pela RP em 19.12.2007 é elucidativa: “nem todo o comportamento incorreto de um indivíduo merece tutela penal, devendo-se destrinçar as situações que traduzem, de facto, uma ofensa da honra de terceiros com dignidade penal, daquelas situações suscetíveis de revelar tão só indelicadeza, grosseirismo ou uma má educação do agente, sem repercussão relevante na esfera da dignidade ou do bom nome do visado. Importa ter em consideração que, por vezes, é normal algum grau de conflitualidade e animosidade entre os membros de uma comunidade, surgindo situações em que alguns deles se podem até expressar, ao nível da linguagem, de forma deselegante ou indelicada. Contudo, o direito não pode intervir sempre que a linguagem ou afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.” (in www.dgsi.pt)
Podemos afirmar que a identificação das situações em que a violação de um bem jurídico justifica a intervenção do direito penal socorre-se do critério constitucional da “necessidade social”, tendo em consideração que o direito penal corresponde à última ratio da política social.
Decorre do artº 18º, nº 2 da CRP o mencionado carácter subsidiário ou fragmentário do direito penal: “A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.”
Uma expressão degradante só assume o carácter de difamação, afirma Oliveira Mendes “quando nela não avulta em primeiro plano a discussão objetiva das questões mas antes o enxovalho das pessoas. Para além da crítica polémica e extremada tem de se visar o rebaixamento das pessoas (...). Só poderá falar-se de «difamação» quando o juízo de valor ou a crítica perdem todo o contacto com a obra, a prestação ou o problema que os motiva ou com a discussão das questões de interesse comunitário. E, em vez disso, passam a obedecer apenas ao propósito de rebaixamento de uma pessoa. Atingindo-a no sentimento de auto-estima ou ferindo-a na sua dignidade pessoal e consideração social" (ob.cit, pág. 43 e seg.).
No ac. da RP de 12/06/2002, melhor concretiza “É próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc., que provocam animosidade. E é normal que essa animosidade tenha expressão ao nível da linguagem. Uma pessoa que se sente prejudicada por outra, por exemplo, pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função”. (www.dgsi.pt).
É pois questão fulcral saber se as afirmações imputadas à arguida, nas circunstâncias em que o foram revestem dignidade penal, ou seja, se tais afirmações têm força e significado bastante para se terem por objetivamente difamatórias/injuriosas ou seja, se podem ser objectivamente vistas como lesivas da honra e consideração da assistente, se excedem a dimensão tolerada, tendo em conta todas as condicionantes e, concretamente, o princípio da intervenção mínima do direito penal.
Com tal desiderato e neste âmbito de análise importa considerar algumas das concretizações jurisprudenciais dos Tribunais Superiores, nas quais se tem acentuado o referido princípio da intervenção mínima, mesmo que sobre a sensibilidade:
“Não comete o crime de difamação, por não ser ofensivo da honra e consideração, dizer que alguém boicotou de forma indecente uma assembleia de condóminos, intentou processo jurídico e causou perturbações graves ao normal funcionamento de um condomínio, por não haver aqui a imputação de comportamentos desonestos, indignos ou imorais” (ac. RP de 19-01-2005, in www.dgsi.pt).
“As expressões “palhaço” e “camelo”, dirigidas a outrem, constituem, sem dúvida alguma, uma grosseria, mas não excedem o âmbito da mera falta de educação nem têm aptidão para ofender a honra e consideração do visado. Já o epíteto de “mentiroso”, dirigido a um agente da PSP no exercício das suas funções e por causa desse exercício, é manifestamente ofensivo da honra do visado.» (ac. RP de 09-09-2009, citado no ac. de 24.2.2016, in www.dgsi.pt).
“Não comete o crime de injúria quem profere a expressão “vocês são uns palhaços, não sei como o povo vos escolheu”, dirigida a um presidente de Junta de Freguesia no âmbito de uma contenda motivada por questões relacionadas com a atuação dos membros da autarquia, por a mesma se traduzir num juízo de valor em que se exerce o direito de crítica” (ac. RG de 17-02-2014, in www.dgsi.pt).
“Pode ser desagradável e causar desconforto ouvir alguém dizer-nos que somos um “farsola” ou “fingido” e que não acredita no que dizemos, mas isso não põe em causa aquele mínimo de qualidades morais exigidas para que cada um de nós mantenha a sua auto-estima e não seja considerado pelos outros como um mau elemento social. Cada um tem o direito de acreditar ou não acreditar no que quiser, e ser-se fingido, mesmo em sentido negativo, nada tem de vergonhoso, indigno ou desonesto.(…) Não sendo as ditas expressões ofensivas da honra ou consideração da assistente, não se preenche desde logo o tipo objetivo de ilícito do crime de injúria” (ac. STJ de 22-01-2015, in www.dgsi.pt).
“Em conformidade com as proposições anteriores, não comete o crime de injúria o arguido, Presidente de uma Cooperativa, que numa assembleia desta, perante a insistência do assistente, «de forma descontextualizada e provocadora», reiterando «insinuações» anteriores, em questionar o destino de determinada quantia, mesmo depois de tal explicação lhe ter sido outorgada, insistindo que a explicação «não correspondia à verdade», lhe dirige as expressões «você é burro», «não percebe nada disto», «não sabe ler»” (ac. TRE de 13.07.2017, in www.dgsi.pt).
“A expressão “burra da presidente” não é ofensiva da honra e consideração da ofendida no caso presente, pois o arguido usa o qualificativo “burra” de forma isolada e lateral face à centralidade da crítica ao desempenho autárquico da ofendida contida no texto, o que é tanto mais relevante quanto é ao nível da freguesia que as relações entre eleitos e eleitores serão mais próximas e igualitárias, sendo certo que “sem pluralismo, tolerância e espírito de abertura, não existe sociedade democrática”. (ac. RP de 23-01-2018, in www.dgsi.pt).
“Atento o contexto em que o arguido chamou ladrão ao assistente, no seio de uma discussão sobre a devolução àquele por parte deste de determinada quantia, inexiste crime de injúria, pois que tal expressão não é objetivamente ofensiva da honra e consideração do comum dos cidadãos, não excedendo o comummente aceitável como exercício de qualquer liberdade de expressão, designadamente enquanto legitimo direito de crítica e indignação.” (ac. RP de 19-10-2022, in www.dgsi.pt).
“Assim, numa relação de condomínio, em que se vivencia uma latente conflitualidade entre o assistente e as arguidas, estas enquanto condóminas e na qualidade de representantes do condomínio, ao manifestarem o seu desacordo quanto à gestão do condomínio exercida por aquele, recorrendo para o efeito a palavras escritas que podem ser tidas por azedas, acintosas ou agressivas, não cometem o imputado crime, porquanto não se trata da imputação ao assistente de factos indignos, desonestos ou vergonhosos.
Tal interpretação está de acordo com o princípio do mínimo de intervenção do aparelho sancionatório do Estado, que subjaz ao direito penal, não podendo este intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere suscetibilidades do visado.” (ac. RL de 9-11-2023, in www.dgsi.pt).
“Os textos escritos pelo arguido de modo satírico, em que critica a postura de alguns médicos que se assumiram publicamente como negacionistas, entre eles a assistente, sobre a relevante questão da Covid e das políticas adotadas quanto a ela, numa altura de grave epidemia (Covid 19) que o país e o mundo viviam, ainda que podendo conter expressões de sentido depreciativo relativamente à pessoa da assistente, não alcançam o patamar de gravidade social, que lhes poderia conferir dignidade penal, não se inscrevendo por isso no âmbito do tipo incriminador objetivo do artigo 180.º do Código Penal.” (ac. RL de 7-152023, in www.dgsi.pt).
“Atento o contexto em que o arguido chamou ladrão ao assistente, no seio de uma discussão sobre a devolução àquele por parte deste de determinada quantia, inexiste crime de injúria, pois que tal expressão não é objetivamente ofensiva da honra e consideração do comum dos cidadãos, não excedendo o comummente aceitável como exercício de qualquer liberdade de expressão, designadamente enquanto legitimo direito de crítica e indignação.” (ac. RP de 19-10-2022, in www.dgsi.pt). ●
Tal como já explanamos teremos que conciliar o direito à honra com o direito à critica. Sendo direitos fundamentais, não são absolutos, impondo-se uma operação de compressão mútua, de molde a retirar de cada um a máxima eficácia, o que irá suceder, tendo por referência o princípio constitucional da proporcionalidade e da intervenção mínima do direito penal.
Na sentença recorrida concluiu-se que a arguida praticou os factos que integram um crime de difamação, o que se justificou com frugalidade: “torna-se indubitável que a arguida pretendeu, e conseguiu, difamar a assistente, imputando-lhe factos que podem consubstanciar a prática de um crime e que a desconsideram não só enquanto vizinha, mas também como pessoa. É despiciendo tecer considerações sobre o carácter objectivamente difamatório das afirmações, dado o mesmo ser patente e moldados de forma a causar na pessoa do assistente ultraje à sua honra e consideração pessoal.”
Não podemos partilhar esta conclusão, como já se infere das referências doutrinais e da jurisprudência que transcrevemos.
Tenhamos presente a factualidade considerada provada, bem como os pressupostos da incriminação em que se suportou a condenação da arguida recorrente.
Com relevo, o tribunal a quo deu como provado que a arguida e a assistente são, cada uma, proprietária de apartamento no mesmo edifício. A assistente e a arguida à data dos factos contavam com 71 anos de idade. São pessoas integras, bem formadas, educadas e respeitadas.
Estão desavindas, nomeadamente, com os assuntos do condomínio do referido prédio.
O mail onde foi proferida a expressão que o tribunal a quo considerou difamatória foi antecedido de um mail enviado pela assistente, dando conta da existência de uma caixa no hall do 4º andar, há vários dias, e solicitando que dali fosse retirada. Está provado que os mails foram enviados com conhecimento da administradora e dos restantes condóminos.
Nessa sequência a arguida escreveu (31.10.2021) que “Só agora tomei conhecimento destes emails. E deteto que há uma moradora que destila ódio noite e dia, que ainda não sabe que é falta de educação estar continuamente a incomodar os vizinhos portugueses com emails tão fúteis (e este com a brilhante conclusão que o caixote era meu). Estes emails revelam um QI inferior ao dos vermes que rasteiam no subsolo da minha quinta no .... Que pobre de espírito”.
Em momento posterior o barulho foi novamente motivo de discórdia da assistente, situação que também mereceu resposta da arguida, como consta dos factos provados (ponto 12.).
Foi, ainda, dado como provado que os mails foram vistos e lidos por todos os condóminos e pela administradora e são da autoria da arguida.
É pois questão fulcral saber se as afirmações imputadas à arguida, nas circunstâncias em que o foram revestem dignidade penal, ou seja, se tais afirmações têm força e significado bastante para se terem por objectivamente difamatórias/injuriosas, se podem ser objectivamente vistas como lesivas da honra e consideração da assistente, se excedem a dimensão tolerada, tendo em conta todas as condicionantes e, especificamente, o princípio da intervenção mínima do direito penal.
À luz da análise e das considerações tecidas, a expressão que se sindica foi proferida num contexto das relações de condomínio, criticando, com recurso à sátira, a conduta da ofendida relativa à existência de uma caixa no hall de entrada da casa da visada, bem como à antecedente troca de mails entre condóminos.
Sabemos, é certo, que a expressão “QI inferior ao dos vermes que rasteiam no subsolo da minha quinta no ...” quererá significar que “tem pouca inteligência” ou, tão só, um desempenho intelectual de nível inferior, reportando a arguida essa adjetivação aos mails que envia, concretamente aquele que sinaliza a existência de uma caixa no hall de entrada. Ou seja, utiliza a indicada expressão essencialmente com o intuito de criticar a atuação da visada. As atitudes e mails que tem enviado visam a atuação da assistente, enquanto proprietária de uma fração naquele edifício.
Não podemos também deixar de sinalizar que o conjunto de toda a expressão (“Estes emails revelam um QI inferior ao dos vermes que rasteiam no subsolo da minha quinta no .... Que pobre de espírito”) evidencia um tom jocoso, com intuito de ridicularizar a assistente, de lhe atribuir um desempenho intelectual inferior à média, mas, em nosso entender, sem nunca perder o contacto com o problema que motiva a discussão – desacordo quanto à gestão do condomínio, concretamente a existência de um caixote alegadamente colocado no hall pela arguida – e sem lhe imputar factos indignos, desonestos ou vergonhosos. Ou seja, ao proferir a mencionada expressão a arguida não atinge o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana. A arguida está a reclamar e a criticar, o que surge já num clima de conflitualidade, como resulta da factualidade provada e como tantas vezes sucede nas relações de condomínio.
Estamos, então, perante uma expressão provocatória, que denota falta de educação por parte de quem a escreveu, censurável do ponto de vista social, mas que não assume dignidade legitimadora da intervenção do Estado, por não atingir a honorabilidade ou respeitabilidade da assistente. Concluímos que esta expressão, no contexto em que foi proferida (demais texto do mail e conflito na relação de condomínio), não ultrapassa o nível da indelicadeza ou grosseria, razão pela qual não apresenta uma carga axiologicamente negativa suscetível de preencher o ilícito da difamação.
Como já referimos, a conduta pode ser reprovável em termos sociais e éticos, mas não o ser em termos penais, como sucede nos autos, porquanto existe um espaço de tolerância que a liberdade de expressão confere e que abrange, também, a liberdade de exteriorizar opiniões ou juízos.
Dispõe o artº 37º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa que “todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem descriminações”. E o artigo 10º, n.º 1 da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH) prescreve que: “qualquer pessoa tem direito à liberdade de expressão. Este direito compreende a liberdade de opinião e a liberdade de receber ou transmitir informações ou ideias (...)”.
O artº 19º da Declaração Universal dos Direitos do Homem dispõe que: “Todo o indivíduo tem direito à liberdade de opinião e de expressão, o que implica o direito de não ser inquietado pelas suas opiniões e o de procurar, receber e difundir, sem consideração de fronteiras, informações e ideias por qualquer meio de expressão.”
Ora, uma das manifestações do direito à liberdade de expressão e de opinião, consagrado, não apenas na nossa lei fundamental, mas também no plano internacional, é exatamente o direito que cada pessoa tem de divulgar a opinião e de exercer o direito de critica.
E já mencionamos que compressão deste direito só tem lugar quando, em observância do princípio constitucional da proporcionalidade e ao carácter subsidiário ou fragmentário do direito penal, os direitos de personalidade, maxime o direito ao bom nome e reputação (art. 26º CRP), sejam verdadeiramente postos em causa e de forma significativa.
Assim não sucede nos autos.
Concluímos, pois, contrariamente à sentença recorrida, que a expressão “QI inferior ao dos vermes que rasteiam no subsolo da minha quinta no ...” não é ofensiva da honra e consideração da assistente no contexto em que a arguida a escreveu, prevalecendo o exercício do direito de expressão sobre a ofensa à honra que a assistente, interiormente, possa ter sentido.
Nesta perspetiva, tal expressão escrita pela arguida não assume dignidade legitimadora da intervenção do poder sancionatório do Estado face ao falecimento de outros mecanismos de intervenção exteriores, não se mostrando, por isso, preenchidos os elementos objetivos do ilícito típico de difamação agravada, previsto e punido pelos artigos 180º nº1 e 183º nº1, alínea a) do Código Penal, pelo qual a arguida vem condenada.
Assim, impõe-se a absolvição da arguida, com a consequente revogação da sentença recorrida. ●
O entendimento que acabamos de firmar a respeito da falta de preenchimento dos elementos objetivos do tipo de ilícito de difamação pelo qual foi a arguida condenada é incompatível com a prova dos factos referentes ao dolo, elencados sob os pontos 15. e 15´:
15) Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar supra referidas, a arguida, referindo-se à assistente EE, proferiu, de forma escrita – expressão referida em 9), perante terceiros, palavras ofensivas da honra e consideração da assistente, o que aquela bem sabia, mas não se absteve de agir do modo descrito, o que quis.
15´) A arguida atuou de modo livre e consciente, tendo perfeito conhecimento da censurabilidade e punibilidade da sua conduta.
Do exposto decorre que a sentença recorrida padece do vício de contradição insanável da fundamentação em matéria de facto, nos termos do artigo 410º nº2 b) do Código Processo Penal, razão pela qual, considerando o disposto no art. 431º do Código Processo Penal, decide-se alterar a matéria de facto provada, assim eliminando a apontada contradição.
O ponto 15. da matéria de facto provada passa a ter a seguinte redação:
15) Nas circunstâncias de tempo, modo e lugar supra referidas, a arguida, referindo-se à assistente EE, proferiu, de forma escrita – expressão referida em 9), perante terceiros.
Por sua vez, a segunda parte daquele ponto 15. e o ponto 15´ da factualidade provada, passam a integrar os factos não provados com a seguinte redação:
I) Que a arguida tivesse atuado de modo livre e consciente, tendo perfeito conhecimento da censurabilidade e punibilidade da sua conduta, bem sabendo que as a expressão referida em 9) era ofensiva da honra e consideração da assistente, o que quis. ●
A sentença recorrida condenou a arguida/demandada no pagamento da quantia de € 500,00 a título de compensação pelos danos não patrimoniais sofridos pela demandante/assistente. Contudo, alterada a matéria de facto e absolvida a arguida da prática do crime de difamação, a procedência do pedido cível não pode subsistir, como iremos ver.
Dispõe o n.º 1 do art. 377º do Código de Processo Penal que "a sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respetivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no n.º3 do artigo 82.º”.
Na interpretação do acórdão uniformizador de Jurisprudência n.º 7/99: “se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se basear em responsabilidade extracontratual ou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual” (D.R. I Série A, n.º179, de 03-08-1999).
Por sua vez, o acórdão do STJ de 10-07-2008, citado no ac. do TRG de
05-03-2018 analisa com profundidade esta temática, concretamente as circunstâncias em que existe uma base factual com autonomia suscetível de fundamentar a procedência do pedido de indemnização, ainda que o arguido seja absolvido:
“Aderindo ao processo penal, o pedido («a ação») para indemnização civil mantém, no entanto, alguma autonomia funcional, quer por regras procedimentais próprias a que está vinculada (artigo 73º e segs. do CPP), quer pela possibilidade de intervenção dos responsáveis meramente civis que, enquanto tais, seriam extraneus no processo penal.
A obrigatoriedade, como regra, da adesão (que só por exceção e nos casos enumerados cede – artigo 72º do CPP, permitindo-se, então, o uso autónomo dos meios processuais civis) determina, porém, para respeitar a finalidade funcional do princípio, que a autonomia qualitativa dos pressupostos se sobreponha e exija a continuidade instrumental do processo para apreciação do pedido de indemnização sempre que, cedendo por circunstâncias próprias a ação penal, se mantenham, ainda assim, em aberto as possibilidades de verificação dos pressupostos da reparação civil.
(…) A dimensão penal é, porém, apenas uma parte (porventura a parte mais qualificada) das possíveis relações de uma identificada unidade factual com a ordem jurídica.
(…) Consistindo, pois, a ilicitude penal numa «ilicitude qualificada», não está excluído que uma base factual, com autonomia e identidade próprias, que não atinja a dimensão «qualificada» do nível de ilicitude, não possa suportar ou exigir uma valoração de outro nível segundo uma outra fonte de antinormatividade, nomeadamente no plano dos pressupostos da responsabilidade civil.
Deste modo, se o arguido for absolvido de um crime, e se subsistir, apesar da absolvição, uma base factual com autonomia que suscite, ou permita suscitar, outros níveis de apreciação da normatividade como pressuposto ou fonte de indemnização civil (autonomia qualitativa dos pressupostos), haverá que considerar o pedido de reparação civil (dependência ou adesão especificamente processual) que se possa fundamentar nos mesmos factos – seja responsabilidade por facto ilícito, seja responsabilidade pelo risco (cfr., v. g., ac. do STJ de 25/1/96. CJ (STJ), IV, t. 1, pág. 89; de 2/4/98, CJ (STJ), VI, t. 2, p. 179).” (www.dgsi.pt).
Assim não se verifica no caso em análise.
A verificação da responsabilidade civil da arguida e demandada civil exige o preenchimento dos pressupostos contidos no art. 483º, n.º 1, do Código Civil. Concretizando, a existência de um facto (voluntário) do lesante, a ilicitude desse facto, o nexo de imputação do mesmo ao lesante (culpa), a existência de dano e o nexo de causalidade entre o facto e o dano.
O requisito da ilicitude, aquele que aqui nos importa, corresponde a uma contradição com o direito, quer enquanto violação do direito de outrem, que constitui a ofensa a um direito subjetivo, principalmente os direitos absolutos ou os direitos de personalidade, quer como violação de disposições legais destinadas a proteger interesses alheios, mas que não chegam a atribuir um direito subjetivo ao respetivo titular.
Ao titular da pessoa humana é juscivilisticamente reconhecido no art. 70º do Cód. Civil um feixe de verdadeiros poderes jurídicos de exigir dos demais sujeitos o respeito da sua personalidade, norma que consagra a protecção conferida face a ofensas ilícitas à personalidade jurídica dos indivíduos, estabelecendo, assim, uma protecção geral aos denominados direitos de personalidade que acompanham a pessoa humana, desde o seu nascimento completo e com vida até à sua morte.
Na situação em análise, por um lado, foi alterada a matéria de facto expressa nos ponto 15 e 15´.
Por outro lado, a expressão em causa não vai além do que a liberdade de expressão permite, tal como já referimos, não lhe sendo reconhecida uma carga desvaliosa suscetível de afetar o bom nome e a reputação do demandante e, como tal, ser um facto ilícito gerador de responsabilidade civil extracontratual nos termos dos art.s 483º, n.º 1, e 484º do Código Civil.
Não se verificação da ilicitude e culpa da conduta da arguida, impõe-se a sua absolvição também na parte cível, decaindo a obrigação de indemnizar.
V. Decisão
Pelo exposto acordam os Juízes da 4ª secção desta Relação em dar provimento ao recurso interposto pela arguida AA, e em consequência:
- absolver a arguida da prática de um crime de difamação p. p. no art. 180º, n.º 1 e 183º n.º 1 alínea a) do Código Penal;
- absolver a arguida demandada do pedido de indemnização que contra si foi formulado;
- condenar a assistente no pagamento das custas do processo, fixando a taxa de justiça em 4 UC;
- condenar a demandante no pagamento das custas do pedido de indemnização cível.
Porto, 2024-10-16
Isabel Matos Namora
Paula Pires
José Piedade