COMPETÊNCIA MATERIAL DO JUÍZO DE FAMÍLIA E MENORES
UNIÃO DE FACTO
Sumário

I - O segmento normativo previsto no art.º 122º, nº 1, al. g), da LOSJ, “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família” reporta-se às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto.
II - Os juízos de família e menores são competentes, em razão da matéria, para uma ação declarativa cível em que é pedido o não reconhecimento judicial de união de facto duradoura.

Texto Integral

Processo nº 2138/24.0T8MTS.P1-Apelação

Origem: Tribunal Judicial da Comarca do Porto-Juízo de Família e Menores de Matosinhos-J2

Relator: Des. Dr. Manuel Fernandes
1º Adjunto Des. Drª Anabela Mendes Morais
2º Adjunto Des. Dr. António Mendes Coelho
5ª Secção
Sumário:
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I-RELATÓRIO
Acordam no Tribunal da Relação do Porto:

Intentou a Caixa Geral de Aposentações, IP no Tribunal Judicial da Comarca do Porto/ Família e Menores de Matosinhos-J2 a presente ação contra AA pedindo que seja declarada a inexistência de uma união de facto entre a Ré e BB.
Para o efeito alega que BB, guarda prisional, era utente da Caixa Geral de Aposentações correspondendo-lhe o número ... e faleceu no dia 25 de maio de 2022; que em 6 de Junho de 2022, AA, na qualidade de companheira do falecido BB, veio habilitar-se à pensão de sobrevivência, juntando Atestado da União ..., ... e ... que, com base no depoimento de duas testemunhas, atesta que viveu em união de facto com o falecido de 15 de abril de 2007 até 25 de maio de 2022; que em 8 de Julho de 2022, CC, igualmente na qualidade de companheira do falecido BB, veio habilitar-se à pensão de sobrevivência e entre outros documentos, juntou um atestado da Junta de Freguesia ... que, com base no depoimento de duas testemunhas, atesta que viveu em união de facto como o falecido desde 31 de maio de 200 a 25 de maio de 2022 na Rua ..., Porto; que em 17 de outubro de 2022 foi enviado um ofício à Ré informando-a do provável indeferimento do seu pedido por existirem fundadas dúvidas relativamente à alegada união de facto; em 25 de Outubro de 2022, CC veio igualmente reiterar ter vivido em união de facto com BB; por despacho de 6 de Janeiro de 2023, proferido pela Direção da Caixa Geral de Aposentações ao abrigo de delegação de poderes publicada no Diário da Republica, II Série, nº 244, de 19 de Dezembro de 2019, foi indeferido o pedido de atribuição da pensão de sobrevivência apresentado pela Ré; que a Ré invocou junto da Caixa Geral de Aposentações ter vivido em união de facto com BB, mas CC também invocou ter vivido em união de facto com o falecido; as dúvidas referidas impedem o reconhecimento do direito à pensão de sobrevivência e obrigam a Caixa Geral de Aposentações, enquanto entidade responsável pelo pagamento das prestações em causa, a promover a competente ação judicial com vista à comprovação da união de facto alegada pela Ré.

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Conclusos os autos foi proferida decisão que, julgando verificada a exceção de incompetência absoluta do juízo de família e menores para conhecer da ação absolveu a ré da instância.
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Não se conformando com o assim decidido veio a Autora interpor o presente recurso rematando com as seguintes conclusões:
1ª- O tribunal a quo é o tribunal competente para julgar a presente ação.
2ª- A jurisprudência mais recente tem considerado que a união de facto é legalmente reconhecida como uma relação jurídica familiar, ligada ao estado civil das pessoas, pelo que, materialmente, a ação de reconhecimento judicial da união de facto insere-se na competência do Juízo de Família e Menores, conforme a previsão da alínea g) do n.º 1 do art.º 122º da LOSJ, onde se determina que compete aos juízos de família e menores preparar e julgar as ações relativas ao estado civil das pessoas e família.
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Foram dispensados os vistos.
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II- FUNDAMENTOS
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso-cfr. artigos 635.º, nº 3, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.Civil.
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No seguimento desta orientação são as seguintes as questões que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido tem, ou não, competência material para conhecer do objeto da ação.
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A)- FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
A materialidade com relevo para o conhecimento do objeto do presente recurso é a que decorre no relatório que antecede e que aqui se dá integralmente por reproduzida.
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III. O DIREITO
Como supra se referiu é apenas uma a questão que importa apreciar e decidir:
a)- saber se o tribunal recorrido tem, ou não, competência material para conhecer do objeto da ação.
A competência é um pressuposto processual que se determina em conformidade com a configuração do pedido e respetiva causa de pedir, tal como são apresentadas pelo autor.
A sua determinação constitui, destarte, questão prévia ao conhecimento do mérito da causa e condiciona-o, uma vez que o juiz só pode conhecer de mérito se para tal lhe for reconhecida competência material.
A competência em razão da matéria afere-se pela relação material controvertida submetida à apreciação do Tribunal, nos precisos termos unilateralmente afirmados pelo autor da pretensão e pelo pedido formulado. Afere-se, por conseguinte, pelo “quid disputatum” ou “quid decidendum”, por oposição com aquilo que virá a ser o “quid decisum”.
A competência do tribunal não depende, pois, da legitimidade das partes nem da procedência da ação. É ponto a resolver de acordo com a identidade das partes e com os termos da pretensão do Autor (compreendidos aí os respetivos fundamentos), não importando averiguar quais deviam ser as partes e os termos dessa pretensão”.[1]
Por isso mesmo a competência dos tribunais judiciais fixa-se no momento em que a ação se propõe, sendo irrelevantes quer as modificações de facto que ocorram posteriormente, quer as modificações de direito, conforme dispõe o art.º 38.º n.º 1 da Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto (Lei da Organização do Sistema Judiciário-LOSJ).
Por outro lado, cabendo a causa aos tribunais comuns ou judiciais, e não aos tribunais pertencentes a outra ordem jurisdicional, a competência em razão da matéria determina-se por um critério residual, atribuindo-se a competência residual aos juízos locais cíveis para as causas que não sejam atribuídas a outros juízos ou tribunal de competência territorial alargada (art. 130.º, n.º 1, da LOSJ).
É inegável que a união de facto atingiu uma proeminência tal que a sua aceitação social como entidade familiar não pode já ser posta em causa, sobretudo a partir do momento em que, nos termos do n.º 1 do art. 36.º da CRP, passou a beneficiar de proteção constitucional, devendo, por isso, ser considerada uma relação familiar, apesar de não constar do elenco das fontes jurídico-familiares do art. 1576.º, do Código Civil.
Como anotam J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira[2] “[c]onjugando, naturalmente, o direito de constituir família com o de contrair casamento (n.º 1), a Constituição não admite todavia a redução de tal conceito à união conjugal baseada no casamento, isto é, à família “matrimonializada”: para isso apontam não apenas a clara distinção das duas noções do texto do n.º 1 daquele preceito (“constituir família” e “contrair casamento”), mas também o seu n.º4 sobre a igualdade dos filhos, nascidos dentro ou “fora do casamento” (e não fora da família)”, acrescentando logo a seguir que “[c]onstitucionalmente, o casal nascido da união de facto juridicamente protegida também é família”.
Ou, ainda, como se ponderou no Ac. TRC de 23/06/2020, processo n.º 610/20.0T8CBR-B.C1,[3]as soluções plasmadas pelo legislador desde a Reforma de 1977 (DL n.º 496/77, de 25.11) até ao presente foram no sentido da tendencial e progressiva equiparação, para diversos efeitos, entre as situações próprias do vínculo conjugal e as decorrentes da união de facto, com a efetiva proteção dos agregados familiares constituídos fora das normas do casamento».
Por isso, bem pode dizer-se que, num quadro de normalidade (que, repete-se, é o de a competência em razão da matéria estar regulada na lei de organização judiciária), a ação de reconhecimento judicial da união de facto insere-se na competência do Juízo de Família e Menores, conforme a previsão da alínea g) do n.º 1 do art.º 122º da LOSJ (aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.8) – “Compete aos juízos de família e menores preparar e julgar (…) outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família”.
Mais ainda, como se assinalou no acórdão de 26/04/2021, desta Relação e desta Secção, processo n.º 12397/20.1T8PRT.P1[4], era esse o entendimento prevalecente na jurisprudência.
Portanto, a leitura atualista da citada norma, ao referir-se a “outras ações relativas ao estado civil das pessoas e família” reporta-se às condições ou qualidades pessoais que têm como fonte as relações jurídicas familiares, incluindo as resultantes das uniões de facto (art.º 1576.º do Código Civil; Lei 23/2010, de 30/agosto, e as alterações legislativas daí decorrentes com destaque para a Lei 7/2001, de 11/maio).
O objeto da ação tem a ver, estruturalmente, com o não reconhecimento de uma alegada relação prolongada de união de facto–que se inclui no conceito moderno de família alargada.[5]
Destarte, entendemos, em linha com o já decidido nesta Relação, que resulta ser materialmente competente para a presente ação o Juízo de Família e Menores.
Aliás, o STJ vai neste exato sentido, trata-se do aresto de 16 de Novembro passado, onde, designadamente, se pode detetar um outro argumento: “o interesse público em combater a possibilidade de estarmos perante uma união de facto simulada unicamente com o objetivo de permitir a um cidadão estrangeiro a aquisição da nacionalidade portuguesa fica mais protegido se os tribunais competentes para julgar a causa tiverem mais experiência em analisar a prova. Ora, é indiscutível que são os juízos de família que estão mais preparados para este efeito.”[6]
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Desta forma, concluindo-se pela competência material do Juízo de Família e Menores para a ação em causa, há que revogar a decisão recorrida e ordenar o prosseguimento dos autos em tal tribunal.
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Procedem, assim, as conclusões 1ª e 2ª formuladas pela apelante e, com elas, o respetivo recurso.
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IV-DECISÃO
Pelos fundamentos acima expostos, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação procedente e, consequentemente, revogando-se a decisão recorrida ordena-se o prosseguimento da ação no Juízo de Família e Menores em que foi proposta, por ser o materialmente competente.
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Sem custas (artigo 527.º, nº 1 do CPCivil).
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Porto, 21/10/2024
Manuel Domingos Fernandes
Anabela Morais (dispensei o visto)
Mendes Coelho (dispensei o visto)
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[1] Cf. Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, página 91.
[2] In “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Vol. I, Coimbra Editora, 4.ª edição revista, pág. 561, anotação ao artigo 36.º.
[3] In www.dgsi.pt..
[4] In www.dgsi e de que foi relator o Desembargador Dr. A. Mendes Coelho aqui ora adjunto.
[5] Neste mesmo sentido, leia-se, por todos, o Ac. da Relação de Coimbra de 15/07/2020, processo nº160/20.4T8FIG.C1, em www.dgsi.
[6] Vide Acórdão STJ, processo nº 546/22.0T8VLG.P1.S1, disponível em dgsi.pt..