TRIBUNAL COMPETENTE
COMPETÊNCIA EM RAZÃO DA MATÉRIA
DIREITOS SOCIAIS
CESSÃO DE QUOTAS
TRIBUNAIS DE COMÉRCIO
JUÍZO CENTRAL CÍVEL
Sumário

(da responsabilidade do relator)
O Juízo Central Cível é materialmente incompetente para preparar e julgar uma acção em que a A. pede que:
a) seja “declarada a inexistência da cessão das três quotas” de que é titular numa sociedade comercial e o cancelamento do respectivo registo, com base na falsidade da deliberação e da acta que a documenta;
b) a declaração de ineficácia dos negócios, realizados com base nessa deliberação inexistente, de constituição de hipoteca, compra e venda e dação em cumprimento tendo por objecto uma fracção autónoma propriedade daquela sociedade comercial, cancelamento dos respectivos registos e subsequente restituição da fracção à sociedade, e
c) o pagamento de uma indemnização à A. pelo prejuízo para si decorrente da privação dos lucros dessa sociedade, ocasionada pela referida cessão de quotas.

Texto Integral

Acordam os juízes na 8.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
1.1. R, LDA., intentou no Juízo Central Cível de Lisboa acção declarativa com processo comum contra G, LDA., GS, LDA., J e mulher M, M, S.A., e S, LDA., na qual formulou os seguintes pedidos:
«…deve a presente acção ser julgada procedente, por provada, e, em consequência:
a) Ser declarada a inexistência da cessão das três quotas nos valores nominais de 350,00€ (trezentos e cinquenta euros), 1.100,00€ (mil e cem euros) e outra no montante de 1.050,00€ (mil e cinquenta euros), perfazendo o valor total de 2.500,00€ (dois mil e quinhentos euros), o que representa metade do capital social da empresa, que a A. é detentora na sociedade R. G, Lda., através da atuação do R. J para a sociedade R. GS, Lda.;
b) Ser ordenado o cancelamento das menções de depósito Dep. 2506, 2507 e 2508 de 11/03/2013 - transmissão de quotas, a favor da R. GS, Lda.;
c) Ser ordenada aos RR. G, Lda., GS, Lda., J e mulher M a restituição à A. das quotas que detém na empresa R. G, Lda.;
d) Ser declarada a ineficácia da constituição de hipoteca unilateral e da compra e venda relativa à fracção autónoma designada pela letra “E”, correspondente a loja n.º 2, no piso zero – comércio ou serviços, com os parqueamentos n.º 20 e 21 no piso menos dois, sita em …, Rua …, n.º .. a ..-H e Av. … n. 20 e 20-A, da freguesia de …, … e …, concelho de Oeiras, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n.º …. da referida freguesia e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …., em que foi interveniente a R. G, Lda., através da actuação do R. J, a favor das RR. M, S.A. e S, Lda., respetivamente;
e) Ser declarada a ineficácia da dação em cumprimento relativa à fracção autónoma designada pela letra “E”, correspondente a loja n.º 2, no piso zero – comércio ou serviços, com os parqueamentos n.º 20 e 21 no piso menos dois, sita em …, Rua ..., n.º .. a ..-H e Avenida …, n.º  20 e 20-A, da freguesia …, … e …, concelho de Oeiras, descrito na Segunda Conservatória do Registo Predial de Oeiras sob o n.º … da referida freguesia e inscrito na respetiva matriz predial urbana sob o artigo …, em que foi interveniente a R. S, Lda. a favor da R. M, S.A.;
f) Ser ordenado o cancelamento registal da inscrição Ap. 3928 de 2018/12/05 (constituição de hipoteca voluntária) a favor da R. M, S.A. e da Ap. 1108 de 2020/05/21 (aquisição) a favor da R. S, Lda.;
g) Ser ordenado o cancelamento registal da inscrição Ap. 1917 de 2021/08/24 (dação em cumprimento) através da atuação dos RR. J e S, Lda. a favor da R. M, S.A.;
h) Ser ordenado a todos os RR. a restituição da posse à R. G, Lda. da fracção autónoma designada pela letra “E”, acima identificada;
i) Ser ainda as RR. G, Lda., GS, Lda., J e M condenadas solidariamente no pagamento de indemnização à A. a liquidar em execução de sentença pela privação de recebimento de eventuais lucros do exercício».
Para tanto, alegou, em síntese, que:
- a A. foi constituída em 10.04.2000 e teve como único sócio e gerente R, até à data da sua morte (14.02.2013);
- a A. era titular, desde 11.12.2007, de três quotas da sociedade 1.ª R., correspondentes a metade do respectivo capital social, sendo a outra metade pertencente ao 3.º R. J;
- o actual legal representante da A. tomou, recentemente, conhecimento que, no dia 11.03.2013, foi registada a cessão daquelas três quotas de que a A. era titular na sociedade 1.ª R. a favor da sociedade 2.ª R. (cujos únicos sócios são os 3.º RR. e o gerente o 3.º R. marido);
- a referida cessão de quotas foi feita através de uma deliberação de 07.02.2013, que nunca existiu, não tendo o referido R deliberado essa cessão de quotas, nem tendo a A. recebido qualquer valor pela cessão;
- tal deliberação está contida numa acta n.º 17, que é falsa e que contém a assinatura falsificada do único sócio, à data, da A. (R), o que foi levado a cabo pelo 3.º R. J;
- com base nessa acta falsificada, o 3.º R. J instruiu o pedido de registo comercial da referida cessão de quotas, passando a ter o controlo total e efectivo das duas sociedades 1.ª e 2.ª RR.;
- e, em 30.11.2018, o referido J, em representação da 1.ª R., constituiu hipoteca unilateral a favor da 4.ª R. sobre uma fracção autónoma propriedade da 1.ª R.;
- posteriormente, o referido J, em representação da 1.ª R., vendeu aquela fracção à 5.ª R. (empresa do seu filho);
- a 5.ª R., para concretização da hipoteca referida, deu a mesma fracção em dação em cumprimento à 4.ª R.
Concluiu que, não existindo deliberação, não ocorreu transmissão das três quotas da A., pelo que as referidas hipotecas, compra e venda e dação em cumprimento foram realizadas sem a deliberação dos verdadeiros sócios da 1.ª R. (a A. e o R. J), sendo que a alienação e a oneração de imóveis dependem de deliberação dos sócios (art.º 246.º, n.º 2 al. c) do CSC).
1.2. A R. M, S.A., contestou, arguindo as excepções dilatórias da ilegitimidade activa e da nulidade do processado por ineptidão da petição inicial, invocando a existência de abuso de direito e impugnando parte da factualidade alegada.
13. Os RR. G, LDA., GS, LDA., J e mulher M e S, LDA., também contestaram e, para o que ora releva, invocaram a excepção dilatória da incompetência absoluta do tribunal, alegando que a A. pretende declarar a inexistência de cessões de quotas de que a A. era detentora na sociedade 1.ª R., o que tem reflexos no contrato de sociedade desta 1.ª R., que seria alterado, passando a A. a figurar como sócia da 1.ª R. ao invés da actual titular das referidas participações sociais (a 2.ª R.), sendo que, nos termos do art.º 128.º, n.º 1, al. b), da LOSJ, compete aos juízos de comércio preparar e julgar as acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade.
1.4. A A. replicou, defendendo que, em face do pedido formulado pela A., ficam afastadas, por não terem aplicação, as alíneas a), b), d), e), f), g) e i) do art.º 128.º, n.º 1 da LOSJ, pelo que a verificação da competência material dos tribunais de comércio estaria limitada à previsão das alíneas c) e h), sendo que o simples facto de uma acção estar sujeita a registo comercial não constitui fundamento de atribuição de competência material aos tribunais de comércio.
1.5. Foi, então, proferido despacho saneador, que julgou improcedente a excepção da incompetência material do tribunal, com a seguinte fundamentação:
«(…)
Estipula o artigo 81.º da Lei n.º 62/2013, de 26.08 (Lei de Organização do Sistema Judiciário - LOSJ), que os tribunais de comarca podem desdobrar-se em instâncias centrais e locais e naquelas secções de competência especializada, entre as quais, de Comércio (al. f).
Dispõe o artigo 117.º, n.º 1, da LOSJ que:
“1 - Compete aos juízos centrais cíveis:
a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50.000,00;
b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50.000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;
c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;
d) Exercer as demais competências conferidas por lei”.
Segundo estatui o artigo 128.º, n.º 1 da LOSJ, compete aos tribunais de comércio preparar e julgar:
“a) os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) as acções de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) as acções relativas ao exercício de direitos sociais;
d) as acções de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) as acções de liquidação judicial de sociedades;
f) as acções de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) as acções de dissolução de sociedades gestores de participações sociais;
h) as acções a que se refere o Código do Registo Comercial; e
i) as acções de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras. (…).”.
Em face dos pedidos deduzidos pela A., verificamos que ficam facilmente afastadas, por aqui não terem aplicação, as alíneas a), b), d), e), f), g) e i) deste último normativo.
Desta forma, a verificação da competência material dos tribunais de comércio para conhecerem da presente acção está limitada à previsão das alíneas:
c) as acções relativas ao exercício de direitos sociais; e,
h) as acções a que se refere o Código do Registo Comercial;
Face ao exposto, conclui-se que o simples facto de uma acção estar sujeita a registo comercial não constitui fundamento de atribuição de competência material aos tribunais de comércio, ao abrigo da alínea h) acima transcrita.
Assim sendo, improcede a excepção, sendo o Tribunal competente em razão da nacionalidade, da matéria e da hierarquia».

1.6. Inconformados apelaram os RR. G, LDA., GS, LDA., J e mulher M e S, LDA., pedindo que tal decisão seja revogada e se declare o tribunal a quo incompetente, formulando as seguintes conclusões:
«a) O tribunal a quo é materialmente incompetente para conhecer da presente acção;
b) Pelo facto de atento a matéria em crise, a acção dever correr os seus termos no Tribunal de Comércio.
c) A presente acção é de registo obrigatório - artigo 9, alínea b), conjugado com o artigo 3, n.º 1, alínea c) e artigo 15, n.º 5, todos do Código do Registo Comercial;
d) Está em discussão matéria ligada à actividade societária das RR, de génese comercial – cessões de quotas e deliberações societárias.
e) De acordo com o disposto na al. b) e h), do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ, considerada a matéria em discussão nos presentes autos, o tribunal competente é o especializado, in casu, de comércio.
f) O tribunal a quo é incompetente materialmente, por violação do disposto nas alínea b) e h), do n.º 1 do artigo 128 da LOSJ – incompetência absoluta é de conhecimento oficioso – artigos 577, alínea a) e 578, ambos do CPC, pelo que, apesar de a incompetência por violação da alínea h) não ter sido invocada no petitório, vai agora atravessada, com as demais consequências legais..
g) Violou a decisão recorrida as alíneas b) e h), do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ, bem como a alínea a) do artigo 96 do CPC,
h) Pelo que deve ser revogada e substituída por outra que declare a incompetência absoluta do tribunal a quo, com as demais consequências legais – artigos 577, alínea a) e 578, ambos do CPC».
1.7. Não foram apresentadas contra-alegações.
1.8. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II – DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO
Decorre do disposto nos arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1 do CPC, que as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial (cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pág. 105 a 106), sendo que o tribunal ad quem não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (cf. art.º 5.º, n.º 3 do CPC).
Assim, atendendo às conclusões supra transcritas, a questão essencial a decidir consiste em saber se o Juízo Central Cível de Lisboa é ou não competente para preparar e julgar a presente acção.
III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Os factos relevantes a atender para efeitos de apreciação do objecto do presente recurso são os que dimanam do antecedente relatório (ponto I deste acórdão).
IV – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
4.1. Conforme se referiu, a questão essencial a decidir consiste em saber se o Juízo Central Cível de Lisboa é ou não competente para preparar e julgar a presente acção.
O tribunal a quo entendeu que era competente, por, em face dos pedidos deduzidos pela A., não terem aplicação as als. a), b), d), e), f), g) e i) do n.º 1 do art.º 128.º do CPC, e por ter entendido que o facto de uma acção estar sujeita a registo comercial não constitui fundamento de atribuição de competência material aos tribunais de comércio, ao abrigo da alínea h) acima transcrita.
Nada refere o tribunal a quo sobre a previsão da al. c) do artigo mencionado.
Vejamos.
É incontroverso que a apreciação da competência material dos tribunais afere-se em função do pedido e da causa de pedir, tal como são configurados na petição inicial, em confronto com as normas delimitadoras da competência, sendo irrelevante o juízo de prognose que possa fazer-se quanto à viabilidade da acção, por se tratar de questão atinente com o mérito da pretensão (cfr. por exemplo, Manuel A. Domingues de Andrade, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, p. 91, e Artur Anselmo de Castro, in Lições de Processo Civil, II, 1970, p. 379).
Ora, a competência material dos juízos de comércio mostra-se definida pela norma atributiva de competência contida no art.º 128.º da LOSJ (Lei n.º 62/2013, de 26.08), onde se dispõe que:
«1 - Compete aos juízos de comércio preparar e julgar:
a) Os processos de insolvência e os processos especiais de revitalização;
b) As ações de declaração de inexistência, nulidade e anulação do contrato de sociedade;
c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais;
d) As ações de suspensão e de anulação de deliberações sociais;
e) As ações de liquidação judicial de sociedades;
f) As ações de dissolução de sociedade anónima europeia;
g) As ações de dissolução de sociedades gestoras de participações sociais;
h) As ações a que se refere o Código do Registo Comercial;
i) As ações de liquidação de instituição de crédito e sociedades financeiras.
2 - Compete ainda aos juízos de comércio julgar as impugnações dos despachos dos conservadores do registo comercial, bem como as impugnações das decisões proferidas pelos conservadores no âmbito dos procedimentos administrativos de dissolução e de liquidação de sociedades comerciais.
3 - A competência a que se refere o n.º 1 abrange os respetivos incidentes e apensos, bem como a execução das decisões».
Por sua vez, a competência dos juízos centrais cíveis encontra-se prevista no art.º 117.º da LOSJ:
«1 - Compete aos juízos centrais cíveis:
a) A preparação e julgamento das ações declarativas cíveis de processo comum de valor superior a (euro) 50.000,00;
b) Exercer, no âmbito das ações executivas de natureza cível de valor superior a (euro) 50.000,00, as competências previstas no Código do Processo Civil, em circunscrições não abrangidas pela competência de juízo ou tribunal;
c) Preparar e julgar os procedimentos cautelares a que correspondam ações da sua competência;
d) Exercer as demais competências conferidas por lei».
Atentemos, pois, nos pedidos formulados pela A. e nos respectivos fundamentos.
4.2. Começa a A. por pedir, sob a alínea a) do petitório, que seja «declarada a inexistência da cessão das três quotas (…) que a A. é detentora na sociedade R. G, Lda.».
Não obstante tal redacção, decorre, inequivocamente, da petição inicial que o que a A. coloca em causa é a própria existência de deliberação social relativa à cessão de quotas (por não ter sido tomada pelo sócio único da A., cuja respectiva assinatura terá sido falsificada).
A A. não alega sequer a existência de qualquer negócio jurídico de transmissão das quotas propriamente dito (cuja destruição ou declaração de inexistência pretendesse), referindo-se sempre à inexistência de deliberação nesse sentido e à falsidade da acta que documenta tal deliberação.
 Mais: a A. alega, inclusivamente, que foi com base nessas deliberação e acta que foi pedido e conseguido o registo da cessão de quotas, nunca aludindo ou juntando aos autos qualquer documento formalizador do negócio de cessão (ao contrário do que fez relativamente aos negócios a que alude nas alíneas d) e e) do petitório), que, por isso, se desconhece se existiu e qual o seu conteúdo.
Ora, interpretando o referido pedido à luz de tudo quanto foi alegado na petição inicial e das boas regras de interpretação da declaração, impõe-se, quanto cremos, concluir que, ao pedir que seja «declarada a inexistência da cessão das três quotas», a A. mais não pretende que se declare a inexistência de deliberação nesse sentido, pois que constituiria um absurdo entender que a A. pede a declaração de inexistência de um negócio jurídico que nunca invocou naquela petição inicial.
A al. d) do n.º 1 do art.º 128.º da LOSJ, ao referir “acções de anulação de deliberações sociais”, pretende, evidentemente, abranger todas as acções que visem o reconhecimento de que determinada deliberação é contrária à lei, aos estatutos ou ao contrato, entendendo-se o conceito de “ilegalidade” num sentido amplo, por forma a abarcar quer as deliberações nulas e as anuláveis, quer ainda as ineficazes e as afectadas pelo vício da inexistência jurídica.
Cremos, por isso, que o conhecimento do primeiro pedido formulado pela A. cabe aos juízos de comércio, por força do disposto no art.º 128.º, n.º 1, al. d) da LOSJ, uma vez que o efeito jurídico-prático pretendido é, precisamente, que seja reconhecida e declarada a inexistência da deliberação documentada na acta n.º 17, por não ter sido tomada pelo sócio único da A. e por falsificação da sua assinatura (cfr. neste sentido, em situação similar, o acórdão da RL de 21.03.2023, in www.dgsi.pt).
4.3. Acresce que, sob a alínea b) do petitório, a A. peticiona o cancelamento do registo da referida cessão de quotas.
Não desconhecemos que a jurisprudência maioritária vem fazendo uma interpretação restritiva da al. h) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ, no sentido de que a simples sujeição de determinada acção judicial a registo comercial não é factor de atribuição de competência material aos tribunais de comércio, para conhecimento dessa acção (cfr., por exemplo, os acórdãos da RP de 04.11.2019 e da RG de 23.03.2023, in www.dgsi.pt).
Sucede que essa interpretação restritiva, apenas, exclui do âmbito da referida al. h) as acções sujeitas a registo cujo escopo nada tenha que ver com a competência em razão da matéria dos tribunais de comércio, abrangendo, todavia, as acções em que se discute, por exemplo, questões respeitantes ao contencioso das sociedades comerciais.
Ora, de acordo com aquela al. h), compete aos tribunais de comércio preparar e julgar as acções a que se refere o Código do Registo Comercial.
Nos termos previstos no art.º 9.º, n.º 1, al. b), do Código do Registo Comercial, estão sujeitas a registo «as acções que tenham como fim, principal ou acessório, declarar, fazer reconhecer, constituir modificar ou extinguir qualquer dos direitos referidos nos art.º 3.º a 8.º».
Por sua vez, preceitua o art.º 3.º, n.º 1, al. c), do mesmo Código que estão sujeitos a registo «a unificação, divisão e transmissão de quotas de sociedades por quotas, bem como de partes sociais de sócios comanditários de sociedades em comandita simples».
Assim, nas “acções a que se refere o Código do Registo Comercial” incluem-se  as previstas na al. b) do n.º 1 art.º 9.º daquele Código, ou seja, aquelas que têm “como fim, principal ou acessório, declarar, fazer reconhecer, constituir modificar ou extinguir qualquer dos direitos referidos nos arts. 3.º a 8.º”.
Destarte, temos que concluir que o pedido formulado pela A. sob a alínea b) do petitório, que tem uma finalidade acessória do pedido deduzido sob a al. a) para efeitos de registo, integra a al. h) do n.º 1 do art.º 128.º da LOSJ, incumbindo, pois, aos juízos de comércio o seu conhecimento.
Veja-se, neste sentido, o acórdão da RL de 21.03.2023 já citado, onde se escreveu: «…”in casu” os pedidos formulados e que se encontram aqui em causa respeitam à declaração de nulidade da divisão e cessão da quota do apelado (sendo os pedidos de declaração de nulidade do registo de tal divisão e cessão e dos registos posteriores meramente consequência daquele), motivo pelo qual se trata de uma acção a que se refere o Código do Registo Comercial. E diremos mais: Os dois pedidos formulados em c) e d) seriam ainda enquadráveis no art.º 9º al. f) do Código do Registo Comercial, por serem pedidos de “declaração de nulidade ou anulação de um registo (comercial) ou do seu cancelamento».
4.4. No que concerne aos pedidos formulados pela A. sob as alíneas c) (restituição das quotas cedidas à A.), als. d) a g) (declaração de ineficácia da hipoteca, da compra e venda e da dação em cumprimento que teve por objecto uma fracção autónoma propriedade da 1.ª R. e cancelamento dos respectivos registos), al. h) (restituição dessa fracção à 1.ª R., sua proprietária) e al. i) (indemnização à A. pela privação de eventuais lucros do exercício), os mesmos respeitam, salvo melhor opinião, ao exercício de direitos sociais.
Ora, de acordo com o disposto na al. c) do n.º 1 do 128.º da LOSJ, «compete aos juízos de comércio preparar e julgar: (…) c) As ações relativas ao exercício de direitos sociais».
A lei não define o que sejam “direitos sociais”, para efeitos de enquadramento na referida al. c).
O acórdão do STJ de 24.02.2022, disponível em www.dgsi.pt., cujo entendimento acompanhamos, considerou que «A expressão exercício de direitos sociais, utilizada pelo legislador na alínea c), do n.º 1, do artigo 128.º, da LOSJ, para delimitar a competência dos tribunais de comércio, não deve ser equiparada a direitos dos sócios, mas sim a direitos específicos do regime do direito das sociedades, competindo àqueles tribunais decidir os litígios emergentes de relações jurídicas conformadas pela legislação que especificamente rege as sociedades comerciais, designadamente o Código das Sociedades Comerciais».
Escreveu-se, de forma lapidar e sagaz, neste aresto que:
 «A criação dos juízos do comércio foi orientada pelo objetivo de melhorar a administração da justiça quando os conflitos emergem de aspetos específicos do direito comercial, incluindo o direito das sociedades comerciais, não existindo quaisquer razões que justifiquem que apenas os direitos dos sócios e não quaisquer outros que emergem da aplicação de normas que regem especificamente as sociedades comerciais possam beneficiar de uma apreciação e tratamento tecnicamente especializado.
Daí que, pese embora a noção jurídica societária de direitos sociais surja, por vezes, no direito substantivo, reportada aos direitos dos sócios, essa expressão utilizada pelo legislador na alínea c), do n.º 1, do artigo 128.º, da LOSJ, não deva ser equiparada, para efeito de determinação da competência dos tribunais de comércio, a direitos dos sócios, mas sim a direitos específicos do regime do direito das sociedades, competindo àqueles tribunais decidir os litígios emergentes de relações jurídicas conformadas pela legislação que especificamente rege as sociedades comerciais, designadamente o Código das Sociedades Comerciais.
Relativamente à aplicação do direito societário, não é compreensível atribuir aos tribunais especializados para apreciar as questões comerciais, competência para julgar exclusivamente as ações onde estivesse em discussão direitos dos sócios, excluindo os demais litígios tendo por tema o regime das sociedades comerciais, não se vislumbrando qualquer razão que justifique essa distinção. Tal posição restritiva traça, arbitrariamente, uma linha de fronteira artificial no interior de uma matéria com um espaço próprio, não havendo razões para imputar o desenho dessa linha ao legislador, uma vez que é indiferente na execução de uma política de justiça, a relação da distribuição dos processos judiciais entre tribunais pertencentes á mesma ordem jurisdicional, como são os tribunais cíveis e os tribunais de comércio.
Para determinar se os tribunais de comércio são os competentes para julgar esta acção, há, pois, que apurar se o pedido deduzido e a respetiva causa de pedir respeitam a matéria especificamente regida pelo direito societário».
No caso dos autos, através dos pedidos enunciados sob as alíneas c) a i) do petitório e da causa de pedir que os sustenta, teremos que concluir que a A. mais não pretende que exercer direitos sociais no sentido supra mencionado.
Com efeito, ao defender a inexistência de deliberação relativa à cessão de quotas, a A. apresenta-se (cfr. art.º 29.º da petição inicial) como sendo a verdadeira sócia da 1.ª R. (juntamente com o 3.º R. J) e, com os pedidos em causa, pretende fazer valer direitos de que é titular enquanto sócia da 1.ª R.
Ou seja, ao colocar em causa a transmissão de participações sociais e, inerentemente, a titularidade (propriedade) destas, a A. afirma continuar a ser sócia da sociedade 1.ª R. e, nessa qualidade, pretende destruir os negócios jurídicos celebrados com base naquela transmissão, reaver para a 1.ª R. o imóvel objecto desses negócios e ser ressarcida dos prejuízos relativos à privação de lucros que, como sócia, teria direito.
Está, pois, em causa o exercício de direitos sociais na acepção referida no acórdão o STJ de 24.02.2022.
Veja-se, em situação similar, o que se escreveu no acórdão da RL de 21.03.2023, já citado: «os recorridos afirmam na petição inicial que, “mediante consulta da situação registral da sociedade Ré, os A.A. tomaram conhecimento de que o Autor havia, supostamente, cedido a sua quota, não sendo, actualmente, sócio da sociedade Ré”. Mais referem que, “em 28.02.2018, foi levada a registo, pelas Apresentações, por depósito, 1 e 2, duas transmissões de quotas, resultantes da prévia divisão da quota do Autor” e “assim, verifica-se que foram levadas a registo duas cessões de quotas, a favor do segundo e terceiro réus, pelos números 1 e 2, respectivamente, cada uma no valor de € 25.000,00, resultantes de uma prévia divisão da quota detida pelo Auto, no valor nominal de € 50.000,00, em duas quotas de valor nominal igual”. Alegam também que, “por consulta da base de dados registral, apuraram os A.A. que o documento que suportou esta suposta divisão e cessão de quotas, foi uma acta que supostamente deveria ter sido assinada pelo Autor e que contém uma assinatura com o nome do Autor”, “mas que, na realidade, nunca o foi, contendo aquela Acta (…) uma assinatura aposta por alguém que não o Autor, contendo, por isso, uma falsificação de assinatura, o que faz daquela acta um documento falso e nulo” (artigos 24º a 28º da petição inicial). Ao pedirem (pedido a)) a declaração de nulidade das deliberações que originaram o registo da cessão da quota do recorrido, implicitamente já estariam a pedir que este fosse reconhecido como sócio da sociedade recorrente, com uma quota de 50.000 €. E, assim, afigura-se-nos que, em última análise, quando um sócio acciona a sociedade pedindo que lhe seja reconhecida a sua qualidade de sócio, que de acordo com a sua versão apresentada em juízo, não perdeu, está em rigor no exercício de um direito social. Logo, é a pretensão deduzida em g) da petição inicial subsumível ao disposto no art.º 128º nº 1, al. c) da LOSJ, sendo os Tribunais do Comércio competentes para o seu conhecimento».
Concluiu, por isso, este aresto que «para efeitos de integração da competência material do Tribunal de Comércio no art.º 128º nº 1, al. c) da Lei da Organização do Sistema Judiciário, deve-se entender que os “direitos sociais” aí referidos são todos aqueles que os sócios de uma determinada sociedade têm, pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à protecção dos seus interesses sociais, ou seja, são direitos que nascem na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, por força do contrato de sociedade, baseados nessa particular titularidade».
No mesmo sentido, o acórdão da RG de 23.03.2023 também já mencionado, decidiu que: «O conceito normativo de exercício de “direitos sociais”, para efeitos do artigo 128.º, n.º 1, al. c) da LOSJ, deve ser interpretado em sentido amplo, compreendendo não apenas o exercício de direitos dos sócios perante a sociedade, mas todos os direitos da sociedade, dos sócios, dos credores sociais e de terceiros que sejam conferidos pela lei societária ou pelo contrato de sociedade».
Enfim, a cessão de quotas sociais e a oneração e alineação de bens imóveis obedecem a regras específicas do direito societário, pelo que estamos perante a aplicação de um regime jurídico específico das sociedades comerciais, que exige especial preparação técnica, experiência e sensibilidade, suscitando a ultrapassagem de dificuldades e complexidades que podem repercutir-se na solução do caso.
Por isso, os juízos de comércio, a quem foi atribuída competência especializada nessa área, estão mais vocacionados que os tribunais cíveis para preparar e julgar a presente acção.
Concluímos, aqui também, que o Juízo Central Cível não é o tribunal, materialmente, competente para preparar e julgar a presente acção, o que impõe a absolvida de todos os RR. da instância (art.º 99.º, n.º 1, do CPC).
4.5. Na segunda réplica apresentada, a A. defende que «admitindo, sem conceder, estarmos perante um caso de incompetência absoluta do tribunal, nunca os Réus seriam absolvidos da instância. Porquanto, a decisão sobre a incompetência absoluta, apenas determina o envio do processo para o tribunal competente, no caso previsto no artigo 99º, n.º 2, do CPC, ou seja, quando a decisão for proferida após os articulados, e o demandante o requeira no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da decisão» e «…estando perante uma situação que preenche os requisitos previstos no citado artigo 99º, n.º 2 do CPC, a instância não se extingue (art.º 278º, n.º 1, a), e n.º 2, e segunda parte do n.º 2 do art.º 576º, ambos do CPC)».
Mas não tem, obviamente, razão.
A incompetência absoluta constitui, inequivocamente, uma excepção dilatória, de conhecimento oficioso, que determina absolvição do R. da instância, extinguindo-a (cfr. arts. 96.º al. a), 97.º, 99.º, n.º 1, 278.º, n.º 1 al. a), 576.º, n.º 2, 577.º al. a) do CPC).
O n.º 2 do art.º 99.º do CPC limita-se a prever a possibilidade de aproveitamento de parte do processado, nas condições aí previstas, pressupondo, contudo, o trânsito em julgado da decisão que absolve o R. da instância.  
Destarte, o recurso deve ser julgado procedente, com a consequente revogação do despacho recorrido.
V – DECISÃO
Pelos fundamentos expostos, acorda-se em julgar a apelação totalmente procedente, revogando-se a decisão recorrida e declarando-se o Juízo Central Cível de Lisboa materialmente incompetente para preparar e julgar a presente acção, com a consequente absolvição dos RR. da instância.
Custas da acção e da apelação pela A.
Notifique.

Lisboa, 10/10/2024
Rui Manuel Pinheiro de Oliveira
Amélia Ameixoeira
Amélia Puna Loupo