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PROCEDIMENTO CAUTELAR
ARROLAMENTO
DIVÓRCIO
JUSTO RECEIO
BEM COMUM
Sumário
I- O arrolamento especial previsto no art.º 409.º n.º 1 do CPC tem subjacente a rutura das relações conjugais e os efeitos inerentes. II- Tais razões, subjacentes à dispensa da alegação e prova do justo receio, colhem de igual forma nos casos em que o arrolamento é incidental do inventário subsequente a divórcio, pelo que, a esse arrolamento é aplicável o art.º 409.º n.º 1 e 3 do CPC. III- Deve ser considerado bem comum do casal, para efeitos desse arrolamento, a moradia construída na constância do casamento, pelos cônjuges, em terreno próprio de um deles.
Texto Integral
Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:
I- Relatório
S, instaurou, por apenso ao processo de inventário que, em ...5.20.., já havia instaurado e que, por sua vez, corre por apenso ao processo de divórcio, o presente procedimento cautelar de arrolamento contra L, seu ex-marido, pedindo que seja decretado o arrolamento do prédio urbano, em propriedade total, sem andares sem divisões suscetíveis de utilização independente, com tipologia de moradia com 2 pisos, T4, sito na rua…., na União das Freguesias……, concelho de …, inscrito na matriz predial sob o artigo matricial …, com o valor patrimonial de €, descrito na 1.ª Conservatória de Registo Predial de …, sob o número…, da dita freguesia.
Alegou, em síntese, que foi decretado o divórcio entre requerente e requerido, mas existe património comum; aquando das conversações para a partilha, tomou conhecimento que, para o requerido, ela não teria direitos sobre a casa onde residiram e onde ainda a ora requerente reside, pelo facto, de a mesma ter sido construída em bem próprio do requerido - lote adquirido, por este, em ../11/2002 – antes, por isso, do casamento ocorrido em ... de Agosto de 2003; a requerente instaurou Inventário Judicial, e nele indicou o imóvel; tomou conhecimento de que requerido manifestou intenção de vender o imóvel, e o mesmo reforçou-lhe que vende o imóvel a quem bem entender sem a sua permissão. A única solução, para salvaguardar o seu direito é o presente procedimento, já que a requerente sempre teve como certo que a habitação também seria sua, visto ter sido construída após casamento, com esforço financeiro de ambos e o regime de casamento (bens adquiridos). Conclui que o imóvel é um bem comum sem prejuízo de compensação do património comum ao património próprio do requerido), nos termos do disposto no artigo 1726.º CC.
No seguimento dos autos foi proferido, após ter sido dispensada a audiência prévia do requerido, despacho que termina com o seguinte dispositivo: V - Decisão Nos termos atrás expostos e tendo em consideração as disposições legais citadas, julgo o presente procedimento cautelar procedente e, em consequência, decreta-se o arrolamento do seguinte bem: a) Prédio urbano sito na Rua ………, lote 3, , concelho de…, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de …, freguesia de…., sob o n.º …e inscrito na matriz urbana sob o artigo …. da União de freguesias de …..
É desta decisão que vem interposto pelo requerido o presente recurso, que termina com as seguintes conclusões: “I – Vem o presente recurso interposto da douta Decisão de fls., proferida pela Meritíssima Juiz dos autos, que, no mais considerou: “Nos termos atrás expostos e tendo em consideração as disposições legais citadas, julgo o presente procedimento cautelar procedente e, em consequência, decreta-se o arrolamento do seguinte bem: b) Prédio urbano sito…., lote 3, concelho de…, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de…, freguesia de…, sob o nº ….e inscrito na matriz urbana sob o artigo …. da União de freguesias…..” II - Não pode o Recorrente, conformar-se de maneira alguma com a douta Decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, pelo que recorre da mesma, pelos motivos que de seguida passa a expor. III – O presente procedimento cautelar de arrolamento foi deduzido por apenso, como incidente ao processo de Inventário em curso, conforme consta do Requerimento Inicial. IV – Conforme consta da Decisão proferida, foram indiciariamente considerados provados nos autos de arrolamentos os seguintes factos: 1. Requerente e Requerido casaram catolicamente a ../08/2003 sem convenção antenupcial, portanto sob o regime de comunhão de bens adquiridos 2. O casamento entre Requerente e Requerido foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida a ../11/2022. 3. Mostra-se registado por aquisição na data de ../11/2002 (data anterior ao casamento), a favor do Requerido, ora recorrente o prédio urbano designado como Lote …, sito…., descrito na 1ª CRP de ….com o nº …. da freguesia de…, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo … da União de freguesias de…., o qual foi objeto da decisão de arrolamento da qual se recorre 4. No referido imóvel encontra-se registada pela AP. … de ../06/2007 hipoteca voluntária a favor do Banco…., sendo os sujeitos passivos o Requerido e a Requerente 5. No referido imóvel encontra-se registada pela AP. … de ../06/2012 alteração do loteamento com destino à construção de moradia 6. O referido imóvel constituiu a casa de morada de Família (CMF) de Requerente e Requerido e o seu uso foi atribuído a ambos na ação de divórcio até à venda ou partilha. V – O imóvel arrolado pela decisão em recurso está registado na Conservatória do Registo Predial apenas em nome do Recorrente, conforme se verifica da certidão predial junta com o Requerimento Inicial (RI) dos autos de Arrolamento. VI – A ../09/2002 o Requerido, ora Recorrente, no estado de solteiro, maior, comprou o lote de terreno para construção, designado por Lote …, da freguesia de…., concelho de…, descrito na 1ª CRP de ….com o nº….. VII – A ../08/2003 o Recorrente casou com a Recorrida, e, já casados Recorrente e Recorrida construíram no lote de terreno do Recorrente, identificado no nº 6 supra, uma moradia que passou a ser a sua CMF. VIII – A ../07/2007 o Recorrente e a Recorrida celebraram com o Banco ….mútuo com hipoteca sobre o terreno do Recorrente acima descrito, para construção de moradia sobre o referido lote de terreno .., que passaram a usar como a sua CMF. IX – Ora, o identificado imóvel titulado pelo Recorrente foi arrolado nos autos “a quo”, tendo o arrolamento sido deduzido como incidental ao processo de inventário que se encontra em curso para partilha dos bens do dissolvido casal, o qual corre termos com o processo nº …..pelo Juízo de Família e Menores de ….. da Comarca de….. X – Ou seja, o arrolamento neste caso é dependência da ação de Inventário que está em curso, na qual interessa especificar ou provar a titularidade dos bens comuns do casal a partilhar, apenas existindo fundamento para arrolar bens que interesse especificar ou provar a titularidade ou partilhar no Inventário em curso entre Requerente e Requerido, ou seja, bens que sejam do casal e que possam ser objeto de partilha. XI – Porém, o bem arrolado é um bem próprio do Recorrente o qual não será objeto de partilha no inventário em curso, pelo que inexiste qualquer fundamento para o seu arrolamento, tendo andado mal a Mmª Juíz “a quo” quando decidiu arrolá-lo. XII – É claro dos factos indiciariamente provados na decisão em recurso que Recorrida e Recorrente foram casados no regime da comunhão de adquiridos, e, que o Recorrente adquiriu o imóvel arrolado antes do casamento com a Recorrida, XIII – E, no regime de comunhão de adquiridos, são bens próprios “os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento” (art.º 1722º, alínea a) do Código Civil), pelo que, se o terreno já pertencia ao Recorrente antes do casamento, mantém a natureza de bem próprio, não se compreendendo nem se aceitando que este tenha sido arrolado. XIV – Mais, a “A moradia construída pelos cônjuges no terreno que é bem próprio de um deles constitui benfeitoria” ou seja, não se coloca aqui a questão da acessão, pois entende-se que a construção da moradia não é efetuada em terreno alheio, resultando antes da valorização de um prédio por ambos os cônjuges, em razão do vínculo do casamento, pelo que, o imóvel no seu todo continuará, assim a ser bem próprio do marido, havendo eventualmente e a requerimento da parte interessada lugar a compensação por benfeitorias realizadas (com a construção da moradia), em caso de dissolução do casamento por divórcio. XV – Assim, reitera-se que o bem imóvel arrolado pela decisão em recurso é um bem próprio do Recorrente o qual não será objeto de partilha no inventário em curso, pelo que inexiste qualquer fundamento para o seu arrolamento, tendo andado mal a Mmª Juíz “a quo” quando decidiu arrolá-lo, pelo que, deve ser cancelado o seu arrolamento. XVI – Assim, este bem não deve ser relacionado no Inventário, e, tanto assim é que nos autos de Inventário em curso o imóvel arrolado não faz parte da relação de bens apresentada pelo CC, aqui Recorrente – a qual se junta como DOC 1, pois o imóvel em causa, mesmo após a construção da CMF, não é um bem comum do casal, que deva ser partilhado entre os ex cônjuges, não tendo a Recorrida qualquer direito sobre o mesmo. XVII – Quanto muito a Recorrida poderia ser eventualmente titular de um direito de crédito, mas o qual deveria ter relacionado no Inventário, o que não fez. XVIII – Assim, inexiste qualquer fundamento para o arrolamento do imóvel dos autos pois este não vai ser objeto de partilha nos Inventário, devendo a Decisão proferida ser revogada e proferida nova Decisão que indefira o arrolamento do Prédio urbano sito …., lote…, ….., concelho de…., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de…., freguesia de….., sob o nº …..e inscrito na matriz urbana sob o artigo ….da União de freguesias de…, o que desde já se requer muito respeitosamente a V.Exªs. XIX – De acordo com o disposto no artigo 403º do CPC o arrolamento constitui uma providência cautelar de garantia ou de caráter conservatório que visa impedir o extravio, a ocultação ou a dissipação de bens, móveis ou imóveis, ou de documentos litigiosos, sendo dependente de uma ação à qual interesse a especificação dos bens ou a prova da titularidade dos direitos relativos às coisas a arrolar, sendo os seus requisitos cumulativos os seguintes: a) A probabilidade da existência de um direito sobre bens; e b) O justo receio (“periculum in mora”) de extravio, ocultação ou dissipação de bens ou de documentos (o receio justificado de que tais bens ou documentos possam ser extraviados ou dissipados, devendo o requerente alegar factos concretos e objetivos dos quais se possa extrair a conclusão de que esse receio é real e efetivo, não bastando simples temores ou receios meramente subjetivos). XX – Ora, a decisão em recurso não se fundamenta a existência de nenhum destes requisitos, pois: - menciona que o imóvel se encontra registado em nome do Recorrente, mas, não menciona a existência de qualquer direito da Recorrida sobre o imóvel arrolado, e, apenas decide arrolá-lo sem fundamento. - quanto ao “periculum in mora” a decisão em recurso não considera indiciariamente provado o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação do bem arrolado, e, apenas afasta a necessidade deste requisito no arrolamento como preliminar ou incidente de ação de divórcio, mas nada menciona quanto ao arrolamento como preliminar ou incidente de ação de inventário, que é a situação aqui aplicável, pois este arrolamento foi deduzido como incidente de ação de Inventário, não tendo sido produzida qualquer prova quanto à verificação deste requisito porque a Mmª Juiz “a quo” entendeu que este justo receio se presume, entendendo o Recorrente que não está correto, pois este justo receio tinha de ter sido provado, e, não o tendo sido não pode decidir-se que este se verifica, e, não se verificando, falta um requisito essencial para decretamento do arrolamento. XXI – Na realidade, atento o exposto não se verifica qualquer dos fundamentos legalmente exigidos para o decretamento o arrolamento do imóvel constante da decisão em recurso, quer porque: * não existe nem é referido que exista qualquer relação/direito da Recorrida sobre o imóvel arrolado, que é um bem próprio do Recorrente e que por isso não será objeto de partilha no processo de inventário; * não se reconhece a existência de justo receio de extravio, ocultação ou dissipação do bem arrolado. XXII – Pelo que, não estando preenchido nenhum dos requisitos legalmente exigidos para o arrolamento do bem imóvel arrolado na decisão em recurso, deve a Decisão proferida ser revogada e proferida nova Decisão que indefira o arrolamento do Prédio urbano …., lote…, …., concelho de …., descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de…, freguesia de…., sob o nº ….e inscrito na matriz urbana sob o artigo …. da União de freguesias de …, o que desde já se requer, muito respeitosamente, a V.Exªs.”
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A requerente alegou no recurso, concluindo da seguinte forma: a) julgou, e bem, a nosso ver, o Tribunal a quo, o presente procedimento cautelar procedente, tendo sido, por consequência, decretado arrolamento do prédio urbano sito na Rua……, lote …., A…, concelho de…, descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de…., freguesia de…., sob o n.º ….e inscrito na matriz urbana sob o artigo …. da União de freguesias de ….. b) O Recorrente diz: “não se verifica quaisquer fundamentos legalmente exigidos para o decretamento do arrolamento (…)” porque “o imóvel arrolado [lote] (…) está registado na Conservatória do Registo Predial apenas em nome do Requerido, (…)”. Ora, c) tal assim é, cf. documento predial, resultado da não atualização do registo após a construção da habitação, e dúvidas não restam que a mencionada moradia [construída após o matrimónio] existe e está implantada no mencionado lote, tal qual informação constante na Caderneta Predial junta aos autos. d) O arrolamento será a forma adequada para acautelar/proteger o eventual direito de propriedade da Recorrida, por ser bem comum do casal, posição, por nós, defendida, assim como, e) a medida de carácter conservatório, destinada a assegurar a manutenção desse bem, cuja natureza jurídica e titularidade, in casu, se discutem no processo de Inventário. f) A benfeitoria, enquanto integradora de um crédito, não está sujeito a registo no âmbito de arrolamento, portanto, g) para a efetiva tutela do direito de propriedade da ex-cônjuge sobre o referido imóvel, há que proceder ao seu arrolamento - como imóvel -, h) arrolamento esse que estará sujeito a registo obrigatório – arts. 3.º n.º1 d) e e) e 8.º-A, n.º1 b) do Código do Registo Predial – e do qual, por sua vez, decorrerão, como previsto nos arts. 1.º e 5.º deste mesmo diploma, os respetivos efeitos de publicidade e de oponibilidade a terceiros relativamente a qualquer oneração ou transmissão daquele imóvel que possa vir, entretanto, a ocorrer. i) Somos a concluir, por conta da interposição do presente recurso, pelo reforço da existência do “periculum in mora” – justo receio de dissipação do bem, na medida que, j) a habitação em causa foi atribuída aos dois como CMF, até partilha dos bens do casal e são os dois depositários dos imóveis, logo, k) o ora Recorrente, não está limitado no uso do bem, exceto na transmissão. Como tal, l) À luz do conhecimento geral e pelas particularidades do caso concreto, existe um risco sério e real de dissipação do bem em causa – a habitação - enquanto não estiver, efetivamente, determinada a sua natureza, i.e., se bem comum do casal ou se benfeitoria. m) Segundo Douto Acórdão de Tribunal Superior - [Ac. STJ 32/22.8T8BRGA.G1.S1 – 7.ª Secção, de 13/10/2022] – não estaremos perante benfeitoria, mas antes, perante uma nova realidade jurídica e que resultou de uma inovação (a construção da casa), o que importa uma alteração substancial do prédio, passando a ser (lote e moradia) um todo, um bem único e individual, n) A moradia terá o maior valor, tal qual, o juízo do homem médio, mas mais, o) poder-se-á chegar, igualmente, a essa conclusão visto que o outro bem imóvel, que é propriedade dos dois, comprado após matrimónio, é lote pegado à habitação em causa, logo, exatamente com as mesmas características, nomeadamente, o tamanho, e que tem como valor patrimonial € 49.592,90, cf. documento já junto, a moradia, tem valor patrimonial de € 159.927,37, tal qual caderneta predial. p) Ficará salvaguardada, claro está, a compensação do património comum ao património próprio (do Requerido), nos termos do disposto no artigo 1726.º CC. Em conclusão, q) poderá o imóvel em causa revestir, com forte probabilidade, a natureza de bem comum, e por isso, será imperiosa a tutela judicial, assegurando a conservação do bem aqui discutido até à conclusão da partilha entre os interessados, a Requerente e o Requerido, só sendo tal possível pelo Arrolamento.
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Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir
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Objecto do recurso/questões a decidir:
Sendo o objeto do recurso balizado pelas conclusões apresentadas, nos termos conjugados dos arts. 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do CPC, sem prejuízo das questões de que o tribunal possa conhecer oficiosamente (art.º 608.º, n.º 2, in fine, em conjugação com o art.º 663.º, n.º 2, parte final, ambos do CPC), prefiguram-se no presente caso as seguintes questões a decidir:
- saber se é aplicável no presente arrolamento o art.º 409.º n.º 1 do CPC;
- saber se, para efeitos do presente arrolamento, o imóvel cujo arrolamento é pedido deve ser considerado bem comum do casal.
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II- Fundamentação
2.1- Fundamentação de facto:
2.1.1- Na decisão objeto de recurso constam como provados os seguintes factos: 1. Requerente e Requerido casaram catolicamente na data de .. de Agosto de 2003, sem convenção antenupcial. 2. O casamento entre Requerente e Requerido foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida a .. de Novembro de 2023. 3. Mostra-se registado por aquisição na data de 07/2/11/2002, a favor de L., o lote …, de natureza urbana, situado em…., registado na matriz predial urbana sob o artigo …. e descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de…, freguesia de …sob o número….. 4. Mostra-se registada hipoteca voluntária pela Apresentação .., de 2007/06/.., onde consta como sujeito activo o Banco, SA e como sujeitos passivos L. casado com S. 5. Mostra-se registado pela Ap. …de 2012/06/.., a alteração de loteamento a tal prédio, passando a constar como lote um com 590,30m2, destinado à construção de moradia unifamiliar isolada, 1 fogo, 2 pisos acima da cota da soleira e anexo. 6. Tal prédio urbano, sito na Rua …, Lote …, …, ..., constituiu a casa de morada de família dos Requerente e Requerido e encontra-se atribuída a ambos até à venda ou partilha, no âmbito da acção que decretou o divórcio.
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2.2- Fundamentação de direito:
São duas as questões que o presente recurso convoca como já acima se viu.
Em primeira linha invoca o recorrente que o tribunal a quo entendeu que o presente arrolamento é incidental da ação de divórcio, mas o mesmo foi instaurado como incidente do processo de inventário, pelo que, não devia ter sido aplicado ao caso o disposto no art.º 409.º do CPC, dependendo o decretamento da providência da prova do justo receio e na decisão recorrida não constem provados factos que o integrem.
O art.º 409.º do CPC, sob a epigrafe “arrolamentos especiais” dispõe: “1- Como preliminar ou incidente da ação de separação judicial de pessoas e bens, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento, qualquer dos cônjuges pode requerer o arrolamento de bens comuns, ou de bens próprios que estejam sob a administração do outro. 2 - Se houver bens abandonados, por estar ausente o seu titular, por estar jacente a herança, ou por outro motivo, e tornando-se necessário acautelar a perda ou deterioração, são arrecadados judicialmente, mediante arrolamento. 3 - Não é aplicável aos arrolamentos previstos nos números anteriores o disposto no n.º 1 do artigo 403.º.”
Nos casos previstos no artigo acabado de transcrever, não sendo aplicável o n.º 1 do art.º 403.º, norma esta que exige que haja justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, o arrolamento pode ser decretado sem que o requerente tenha que alegar e demonstrar a verificação desse justo receio. E como ressalta do n.º1 tal situação ocorre quando o arrolamento é instaurado como preliminar ou incidental de ação de divórcio.
Entende o recorrente no caso concreto que o arrolamento não é preliminar nem incidental da acção de divórcio, mas incidental do inventário, contrariamente ao que, diz, foi entendido na decisão recorrida. No relatório da decisão recorrida fez-se constar que o arrolamento foi requerido “como apenso à da acção de divórcio e de inventário”, e como dela consta também, entendeu aplicável o art.º 409.º. O que se constata, desde logo da consulta dos processos relacionados com o presente, e já se evidenciava do facto deste processo estar identificado pelo número e letra C, é que o processo principal é a acção de divórcio à qual foram apensados quer o inventário, que assumiu a letra B, quer o arrolamento que assumiu a letra C. Existe, assim, naturalmente, conexão com a acção de divórcio que determina que os demais corram por apenso, sendo certo, ainda, que correm, em regra, por apenso, os processos que, não obstante puderem ter autonomia processual (por a eles se aplicar uma determinada regulação processual própria) têm origem ou decorrem de um processo principal com o qual estão, também, via de regra, funcionalmente conexos. E na petição da presente providência a requerente disse apenas que vinha por apenso ao processo de inventário, pelo que, de igual modo não discorreu nem tomou posição sobre se o procedimento era incidental do inventário ou da acção divórcio, sabido que todos correm por apenso a esta. Porém, concede-se que tal realidade consubstanciada na apensão de todos os processos à ação de divórcio, não responde completamente à questão que nos ocupa.
Estes arrolamentos especiais têm subjacente a rutura das relações conjugais e os efeitos inerentes. De facto, “A especificidade da sociedade conjugal, a relação de mútua confiança que supõe, a natural conjugação de esforços para vida comum ou a necessidade de garantir a subsistência do agregado familiar determinam de jure ou de facto um estado de coisas que rapidamente se desmorona quando emergem conflitos que desencadeiam processos destinados a por termo à sociedade conjugal. Ora como a experiência o demonstra, o surgimento dos conflitos conjugais reflecte-se sobremaneira no modo como cada um dos cônjuges passa a comportar-se relativamente aos bens comuns ou aos bens do outro colocados sob a sua administração. (…) É o arrolamento que garantirá a justa partilha dos bens, logo que o divórcio ou a separação judicial sejam concretizados. Por isso se compreende que, nestas circunstâncias, a lei tenha prescindido da alegação e prova do justo receio (…).” (António Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, IV Volume (2.ª edição revista, Almedina, pág. 284/285).
A acima referida realidade e suas potenciais consequências, subjacentes à dispensa da alegação e prova do justo receio, devem, a nosso ver, orientar-nos quanto à questão de saber se -, ainda que o arrolamento seja instaurado quando o divórcio já foi decretado por decisão transitada em julgado, e mesmo que se entenda, que, nesse caso, também, no maior rigor dos princípios, não é já o arrolamento incidental da mesma, - colhem de igual forma as razões que reclamam aquela dispensa, com aplicação do n.º 1 do art.º 409.º do CPC.
No caso concreto, tendo corrido ação de divórcio, com divórcio decretado em …11.2022, vindo a requerente a instaurar o subsequente inventário em …5.2023, a correr por apenso àquela e, subsequentemente, este arrolamento pelas razões que invoca inerentes ao fim da sociedade conjugal, considerando ainda que o arrolamento visa a justa partilha dos bens (evitando a dissipação e/ou ocultação de bens) após divórcio, e que tal desiderato se liga, por natureza, ao inventário que tem a sua génese no divórcio decretado na ação de divórcio, afigura-se-nos que essa ligação funcional e interdependência, reclama que se considere aqui aplicável o disposto no art.º 409.º n.º1 do CPC.
Perfilhamos, pois, - sabido que não há completa unanimidade nesta matéria - a corrente jurisprudencial que tem considerado aplicável tal normativo em semelhantes situações. Assim, cfr. Ac. TRG de 31.1.2019 (Paulo Reis), em cujo sumário se exara “ –A finalidade do arrolamento como preliminar ou incidente do processo de divórcio é idêntica à do arrolamento como preliminar ou incidente do processo de inventário subsequente a divórcio, mantendo-se até à subsequente partilha do património comum dos ex-cônjuges; II - Justifica-se a aplicação do regime especial previsto no artigo 409.º, n.º 3, do CPC quanto à dispensa da necessidade de alegação e de prova do justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens, ou de documentos, ao arrolamento requerido após o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio e enquanto preliminar do inventário instaurado para partilha do património comum dos ex-cônjuges, porquanto nesses casos ocorre situação merecedora de idêntica tutela.”, e, porque relevante e elucidativa, ainda a seguinte passagem do mesmo acórdão “A questão de saber se a dispensa da verificação do requisito previsto no n.º 1 do artigo 403.º do CPC (periculum in mora), estatuída no artigo 409.º, n.º 3, CPC se aplica ao arrolamento requerido por ex-cônjuge como preliminar ou incidente de processo de inventário para partilha do património comum do casal, após a dissolução do casamento por divórcio tem sido objecto de controvérsia jurisprudencial, invocando a recorrente, no sentido da posição que defende, o Ac. do TRP de 17-11-2009 (relator: Maria Eiró) p. 2186/06.1TBVCD-A.P1, e o Ac. do TRL de 18-09-2014 (relator: Teresa Pais) p. 2170/14.1TBSXL.L1-8, ambos publicados em www.dgsi.pt (2). Em sentido divergente, encontramos o Ac. do TRL de 17-07-2000 (relator: Sampaio Beja) p. 070091 cujo sumário se encontra disponível em www.dgsi.pt, e o Ac. do TRP de 2-05-2005 (relator: Sousa Lameira) publicado em www.dgsi.pt. Ora, conforme se refere no Ac. do TRE de 19-11-2015 (3) “Embora o legislador tenha concebido os arrolamentos especiais previstos no art.º 409º, nº 1, do CPC, como preliminares ou incidentes das acções aí referidas, não pode deixar de se reconhecer que a finalidade última deste tipo de arrolamentos não é tanto o desfecho da acção, mas os actos subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, onde sobressai a partilha do património comum. O arrolamento não se esgota na acção de divórcio, separação ou anulação, mas mantém-se e subsiste até se mostrar efectuada a partilha, uma vez que, até lá, não obstante o divórcio decretado, permanece o perigo de dissipação e extravio dos bens”. Em face dos argumentos antes enunciados justifica-se cabalmente a aplicação do regime especial previsto no artigo 409.º do CPC ao arrolamento requerido após o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio e enquanto preliminar do inventário instaurado para partilha, porquanto, nesses casos, ocorre situação igualmente merecedora de tutela especial, justificando o desvio às regras gerais na tramitação da providência, ou seja, no que se reporta à dispensabilidade de alegação e demonstração de um dos seus requisitos: o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens (4). Acresce que, tal como se elucida no Ac. do TRL de 10-03-2016, antes citado, dir-se-á então que a norma do artigo 409º, n.º 3 “sem contrariar substancialmente o princípio (…) contido” na regra geral do artigo 403º, n.º 1, “a adapta a um domínio particular”. Confrontando-nos, pois, no artigo 409º, n.º 3 – e diversamente do julgado na decisão recorrida – com uma regra especial, como tal passível de aplicação analógica, quando na situação nela prevista e no caso omisso exista “um núcleo fundamental (…) que exige a mesma estatuição.”, cfr. artigo 10º do Código Civil. O que ocorre tendencialmente no arrolamento de bens por dependência de ação de divórcio…e no arrolamento de bens depois de decretado o divórcio, por dependência de inventário (especial) em consequência daquele. A este propósito, sublinha Marco Carvalho Gonçalves (5), “visando o arrolamento conservar os bens comuns do casal até que se verifique a sua partilha, afigura-se que o regime previsto no art.º 409.º, n.º 1, deve igualmente ser aplicado, por interpretação analógica e extensiva, aos casos em que o arrolamento seja requerido como preliminar ou incidente do processo de inventário subsequente à dissolução patrimonial ou pessoal do vínculo conjugal, pois que é possível presumir que, mesmo após essa dissolução, a conflituosidade entre os ex-cônjuges continuará a existir até à concretização da partilha do património comum”. Daí que seja de sufragar o entendimento no sentido de que a dispensa da verificação do requisito previsto no n.º 1 do artigo 403.º do CPC (periculum in mora), estatuída no artigo 409.º, n.º 3, CPC é aplicável ao arrolamento requerido por ex-cônjuge como preliminar ou incidente de processo de inventário para partilha do património comum do casal, após a dissolução do casamento por divórcio.” (acessível em www.dgsi.pt). No mesmo sentido Ac. TRG de 26.5.2022 (António Figueiredo de Almeida), com o seguinte sumário: “1) A circunstância de se afirmar que o arrolamento é intentado como incidente de divórcio, que já se encontrava proferido por sentença, transitada em julgado, nessa ocasião, não é impeditivo que se considere que o mesmo é preliminar do processo de inventário para partilha dos bens do casal; 2) O arrolamento não se esgota na ação de divórcio, separação ou anulação, mas mantém-se e subsiste até se mostrar efetuada a partilha, uma vez que, até lá, não obstante o divórcio decretado, permanece o perigo de dissipação e extravio dos bens; 3) Justifica-se a aplicação do regime especial previsto no artigo 409º do NCPC ao arrolamento requerido após o trânsito em julgado da decisão que decretou o divórcio, como preliminar do inventário instaurado para partilha, porquanto, nesses casos, ocorre situação igualmente merecedora de tutela especial, justificando o desvio às regras gerais na tramitação da providência, no que se refere à dispensa de alegação e demonstração de um dos seus requisitos: o justo receio de extravio, ocultação ou dissipação de bens.”; no mesmo sentido Ac. TRL de 28.6.2018 (António Valente), com o seguinte sumário “No caso do arrolamento especial, previsto no art.º 409º do CPC, o requerente não tem de comprovar o risco de extravio, ocultação ou dissipação dos bens, já que os mesmos se presumem juris e de jure.n- No caso de inventário para partilha de bens do ex-casal, após divórcio decretado por sentença transitada em julgado, deve entender-se aplicável o disposto no art.º 409º, nomeadamente o seu nº 3, dada a similitude do respectivo fundamento, centrado na conflitualidade pessoal entre as partes envolvidas.” (acessíveis em www.dgsi.pt)Em idêntico sentido, socorrendo-nos da resenha feita no Ac. TRL de 13.10.2020 (Ana Rodrigues da Silva), onde se exara, após identificar a questão: “A questão em apreço – determinar se o disposto no art.º 409º do CPC se aplica ao arrolamento requerido por ex-cônjuge como preliminar ou incidente de processo de inventário para partilha do património comum do casal, após a dissolução do casamento por divórcio – tem recebido respostas divergentes na jurisprudência, (…). Assim, defendendo essa admissibilidade, veja-se, entre outros, (…), os Acs. TRE de 19-11-2015, proc. 1423/15.6T8STR.E1, relator Bernardo Domingos, e de 11-01-2018, proc. 3440/17.2T8FAR.E1, relator Ana Margarida Leite, Ac. do TRP de 17-11-2009, proc. 2186/06.1TBVCD-A.P1, relator Maria Eiró, Acs. do TRL de 19-12-2013, proc. 7669/12.1TCLRS-C.L1-7, relator Graça Amaral, de 18-09-2014, proc. 2170/14.1TBSXL.L1-8, relator Teresa Pais, de 28-06-2018, proc. 21568/17.7T8SNT.L1-8, relator António Valente, podendo ser apontados, em sentido contrário, por mais significativos, o Ac. do TRL de 17-07-2000, proc. 0070091, relator Sampaio Beja, o Ac. do TRP de 2-05-2005, proc. R0551713, relator Sousa Lameira e o Ac. TRL de 11-09-2018, proc. 2787/17.2T8LSB-B.L1, relator Dina Monteiro.”. (acessível em ww.dgs.pt.).
Desta feita, entendendo-se admissível a aplicação ao caso dos autos do disposto no art.409.º n.º1 do CPC, não sendo exigida a prova dos factos que integram o justo receio, não merece censura nessa parte a decisão recorrida.
Vejamos agora a segunda questão atinente a saber se deve ser considerado bem comum para efeitos do presente arrolamento, tal como está entendido na decisão recorrida, o imóvel em causa, ou seja, a moradia que foi implantada, já na constância do casamento, no lote de terreno que era bem próprio do requerido, como é passível de se extrair da conjugação dos factos vertidos em 5) e 6) da decisão recorrida.
E também quanto a esta questão a jurisprudência diverge, embora se creia, mais recentemente, maioritário o entendimento que vem defendendo dever considerar-se essa nova realidade, bem comum.
Têm-se prefigurado neste âmbito essencialmente três posicionamentos: a) o que considera, tal como defende o recorrente, que essa construção deve considerar-se uma benfeitoria feita no terreno, com aplicação do respetivo regime; b) o que aplica ao caso as regras da acessão; c) o que, considerando que, estamos em presença de uma nova realidade, da qual decorre, não raro, alteração da natureza do imóvel de rústico para urbano, a reconduz ao bem comum, sem prejuízo da compensação devida pelo património comum ao património próprio do cônjuge único titular do terreno.
Avancemos que perfilhamos o terceiro posicionamento.
O art.º 216.º do C.C., no seu n.º1 diz-nos que se consideram benfeitorias todas as despesas feitas para conservar ou melhorar a coisa. E o n.º 2 esclarece que as benfeitorias podem ser necessárias, uteis ou voluptuárias. Desta feita, não concedemos, salvo o devido respeito por diferente opinião, dever reconduzir-se a benfeitoria a construção, em terreno/lote de terreno, (de um dos cônjuges), de uma moradia, porque, tal construção não se reconduz, a nosso ver, a despesa feita para conservar ou melhorar a coisa, ao invés, trata-se antes de uma inovação, entendida esta como a construção de um novo edifício e cujo desiderato é corresponder a uma finalidade própria e não aumentar o valor desse terreno ou conservá-lo.
Concordamos, por isso, com o entendimento e solução propugnada no Ac. do STJ de 13.10.2022 (Oliveira Abreu), aliás, citado por ambas as partes, embora, naturalmente, com diferentes ilações. Aí se sumariou: “I-A acessão industrial enquanto causa de aquisição originária retroativa do direito de propriedade sobre determinada coisa, compreende, na sua noção legal, o conceito de incorporação de uma coisa da titularidade de uma pessoa, numa outra coisa da titularidade de outra, exigindo para o seu reconhecimento o preenchimento cumulativo dos seguintes requisitos substantivos: i) a incorporação da construção em terreno alheio; ii) com materiais pertencentes ao seu autor; iii) de boa fé; iv) e que o valor trazido pelas obras ao prédio seja maior do que o valor que este tinha antes. II. A construção de uma moradia por ambos os cônjuges, na constância do matrimónio celebrado no regime da comunhão de adquiridos, num prédio composto por terreno destinado à construção, que é propriedade exclusiva de apenas um deles, não se subsume ao regime da acessão imobiliária por claudicar o requisito da boa-fé, mas também, ou sobretudo, porque o terreno não é coisa alheia em relação ao cônjuge que for o seu dono. III. Edificada construção em terreno, enquanto bem próprio do ex-cônjuge, a expensas de ambos os cônjuges, importa reconhecer que o regime jurídico aplicável à aludida construção não pode ser encontrado à luz do instituto das benfeitorias quando não se demonstre terem sido realizados trabalhos no terreno, com vista a conservá-lo ou melhorá-lo. IV. Estando em causa uma construção sobre um prédio composto por lote de terreno destinado à construção, tal importa inovação que altera substancialmente o prédio onde se edifica, provocando uma alteração substancial e jurídica deste, passando a constituir (lote de terreno e moradia) um todo uno e indivisível, dando origem a uma coisa nova, a uma nova realidade material e jurídica, constituindo um prédio urbano. V. O regime jurídico aplicável à construção de uma moradia, edificada a expensas dos cônjuges, entretanto divorciados, sobre um prédio composto por lote de terreno destinado à construção, bem próprio de um dos ex-cônjuges, decorre do regime matrimonial do casamento do extinto casal, sem deixar de salvaguardar que estamos perante duas pessoas que foram casadas entre si e que, nessa medida, a relação matrimonial influencia a generalidade das relações obrigacionais ou reais de que os cônjuges são ou foram titulares, daí resultando um regime diferente daquele que decorrerá da aplicação isolada do direito comum. VI. O espírito do sistema da comunhão de adquiridos é o de que ingressam no património comum todos os ganhos alcançados pelos cônjuges durante o casamento que não sejam excetuados por lei, daí que, sempre que os cônjuges, na constância do matrimónio, contraído no regime da comunhão de adquiridos, construam uma casa sobre um terreno que apenas é propriedade de um deles, momento em que o terreno deixou de ter individualidade própria, passando a ser um prédio urbano, impõe-se reconhecer que se a moradia mandada edificar pelos cônjuges for a parte mais valiosa comparativamente com o valor do terreno, esse prédio é bem comum de ambos os cônjuges, ficando sempre salvaguarda a compensação devida pelo património comum ao cônjuge proprietário do terreno, no momento da dissolução e partilha da comunhão.” E da respetiva fundamentação consta com interesse que “Estatui o art.º 1724º do CC que, no regime da comunhão de adquiridos, fazem parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges e os bens adquiridos por estes na constância do matrimónio, que não sejam excetuados por lei. Por sua vez, estabelece o art.º 1726º do mesmo Código que, “os bens adquiridos em parte com dinheiro ou bens próprios de um dos cônjuges e outra parte com dinheiro ou bens comuns revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações” (n.º 1), mas “fica, porém, sempre salva a compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àquele, no momento da dissolução e partilha da comunhão” (n.º 2).Debruçando-se sobre estes preceitos, defende Rita Xavier que, “o espírito do sistema da comunhão de adquiridos é o de que ingressam no património comum todos os ganhos alcançados pelos cônjuges durante o casamento que não sejam excetuados por lei” e que, dentro dessa filosofia, sempre que os cônjuges, na constância do matrimónio, contraído no regime da comunhão de adquiridos, construam uma casa sobre um terreno que apenas é propriedade de um deles, momento em que o terreno deixou de ter individualidade própria, passando a ser um prédio urbano, por aplicação do disposto no n.º 1 do art.º 1726º, se a moradia erigida pelos cônjuges for a parte mais valiosa comparativamente com o valor do terreno, esse prédio é bem comum de ambos os cônjuges, ficando sempre salvaguarda a compensação devida pelo património comum ao cônjuge proprietário do terreno, no momento da dissolução e partilha da comunhão. (…) a parte mais valiosa é a despendida por ambos os ex-cônjuges (apelante e apelada) na construção da moradia, durante a constância do casamento celebrado no regime da comunhão de adquiridos, mediante a utilização de meios financeiros de ambos, pelo que, nos termos do disposto no art.º 1726º, n.º 1 do CC, o prédio urbano composto por casa de cave, rés-do-chão, tipo T3, com logradouro, descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...07, da freguesia ... (...), inscrito na matriz sob o art.º ...37º (conforme certidões matricial e predial de fls. 11 verso a 14) é bem comum do extinto casal formado por apelante e apelado e, como tal, impõe-se o respetivo relacionamento pelo cabeça de casal a fim de ser partilhado. No entanto, o património conjugal a partilhar terá de nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 1726º, compensar a apelada AA, pelo valor do prédio composto por parcela de terreno, que lhe foi doado, onde foi implantada a dita casa, valor esse que naturalmente será sujeito a atualização, pelo que, deverá ser relacionado o valor do terreno no qual foi implanta a moradia como compensação devida pelo património conjugal ao património do ex-cônjuge AA.”. (acessível em www.dgsi.pt). Perfilhando idêntica solução, já havia o Ac. TRC de 12.10.2020 (Maria Teresa Albuquerque) com o seguinte sumário: I - A jurisprudência tem decidido, quase invariavelmente, que a construção pelos cônjuges casados em comunhão de adquiridos de um prédio urbano em terreno de um só deles, deve ser considerada uma benfeitoria, e que, por isso, esta deve ser descrita como bem comum no inventário consequente ao divórcio do casal, mantendo-se o terreno como bem próprio, conclusão a que chega, essencialmente, em função da orientação que distingue benfeitoria e acessão por via da relação jurídica com a coisa: basicamente são benfeitorias os melhoramentos feitos por pessoa relacionada juridicamente com a coisa; são acessões os melhoramentos feitos por pessoa não relacionada com a coisa.II – Será, no entanto, preferível que, para justificar o incremento de valor patrimonial em bem alheio, se utilize a orientação que se vale da função ou da finalidade dos regimes das benfeitorias e da acessão: basicamente, são benfeitorias os melhoramentos que não interferem na substância da coisa; são acessões os melhoramentos que alteram essa substância.III – Assim, na situação dos autos dever-se-á definir o regime a aplicar em função da ideia de que uma obra que resulta incorporada num terreno, passando a constituir com ele uma realidade incindível e provocando a sua alteração jurídica de prédio rústico para urbano, não pode fazer-se equivaler a uma benfeitoria, e que é o conceito de acessão, no que tem de essencial, que melhor satisfaz a compreensão daquele fenómeno.IV – Esta conclusão não obriga a que se aplique o regime da acessão industrial imobiliária como vem gizado no art.º 1339º e ss CC, mas a enquadrar a questão no direito matrimonial, que influencia a generalidade das relações obrigacionais ou reais de que os cônjuges são ou foram titulares, daí resultando um regime diferente daquele que decorreria da aplicação isolada do direito comum.V – A solução de considerar terreno e edifício nele construído como um bem comum, por via do disposto no nº 1 do art.º 1726º/CC, é a que quadra melhor às expetativas dos cônjuges e também aos interesses dos credores, a que não são alheias as normas dos arts 1721º e seguintes.VI – Desde o momento em que o valor do prédio urbano construído sobre o prédio rústico é maior do que o valor do terreno onde foi incorporado deve o cabeça de casal no inventário aditar como bem comum o imóvel rústico e o imóvel urbano e relacionar como crédito do cônjuge a quem pertencia o terreno o valor actualizado deste, nos termos e para o efeito do nº 2 do art.º 1726º CC.”
E no mesmo sentido Ac. TRG de 30.6.2022 “ 1- A construção de uma moradia, mediante recurso a trabalho e meios financeiros de ambos os cônjuges, durante a constância do casamento no regime da comunhão de adquiridos, num prédio composto por terreno destinado à construção, que é propriedade exclusiva de apenas um deles, não consubstancia benfeitoria, dado que a construção de uma moradia não se traduz numa obra destinada a conservar ou melhorar a parcela de terreno destinada a construção, mas trata-se de uma obra que provoca uma alteração substancial e jurídica desse prédio ao nele incorporar a moradia, dando lugar a uma nova coisa, a um prédio urbano. 2- A construção da referida moradia também não se reconduz à acessão, na medida em que, o cônjuge não proprietário do terreno onde a moradia foi edificada, tem perfeito conhecimento que está a construir aquela num terreno que não é sua propriedade, claudicando o requisito da boa fé do n.º 1 do art.º 1340º do CC, mas também, ou sobretudo, porque o terreno não é coisa alheia em relação ao cônjuge que for o seu dono. 3- Decretado o divórcio entre os cônjuges, no processo de inventário destinado a partilhar os bens comuns do extinto casal, a situação descrita terá de ser solucionada por recurso ao regime jurídico dos arts. 1724º e 1726º do CC, em função do qual, se o valor da construção da moradia for superior ao terreno em que aquela foi erigida, a nova realidade jurídica daí resultante (prédio urbano composto por moradia e terreno) é bem comum do casal e, como tal, tem de ser relacionado para efeitos de partilha, onde também terá de ser relacionado, a título de compensação - dívida - do património comum devida ao ex-cônjuge, anterior proprietário do terreno onde a moradia foi erigida, o valor desse terreno, devidamente atualizado.” (acessíveis em www.dgsi.pt).
Assim, há que considerar que o imóvel objecto do pedido de arrolamento, deve ser considerado bem comum do casal, para efeitos da decretação do mesmo arrolamento, e feita a prova sumária do direito da requerente (arts.405.º n.º1 e 409.º do CPC), ou seja, no caso, de que se trata de bem comum. Tendo sido decretado o arrolamento deve ser mantida a decisão recorrida.
III- Decisão:
Pelo exposto, acordam na 8.ª Secção Cível, em julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente.
Lisboa, 10.10.2024
Fátima Viegas
Marília dos Reis Leal Fontes
Amélia Ameixoeira