Os tribunais/secções de comércio são os competentes para executar as suas próprias decisões, pelo que são os competentes para a execução instaurada a partir do título executivo formado, no processo de insolvência, pela conjugação da sentença homologatória do plano de pagamentos com a sentença de verificação de créditos (cfr. art. 233.º/1/c) do CIRE).
A Caixa Geral de Depósitos, S.A., instaurou, no Juízo de Execução de ..., execução contra Armazéns Madiver - Materiais de Construção, S.A., pedindo o pagamento da quantia global de 2.725.861,24€ (capital e juros) emergente de crédito concedido à Executada no âmbito de diversos empréstimos e operações bancárias e apresentando como título executivo certidão da sentença homologatória de plano de insolvência e da sentença de verificação de créditos proferidas no âmbito do processo de insolvência com o n.º 1285/12.5... (onde havia sido declarada a insolvência da Executada por sentença de 22/10/2012).
Por despacho de 06/03/2023, foi determinada a notificação da Exequente para se pronunciar sobre a incompetência em razão da matéria do Juízo de Execução onde a execução havia sido instaurada, tendo em conta o título executivo apresentado e o disposto no artigo 128.º/1/a) e 3 da LOSJ.
A Exequente respondeu, sustentando a competência do Juízo de Execução em questão.
Foi então proferida decisão, em 18/04/2023, a julgar verificada a exceção de incompetência absoluta, em razão da matéria, e a determinar a absolvição da Executada da instância.
Inconformada com tal decisão, interpôs a exequente recurso de apelação, o qual, por Acórdão da Relação de Coimbra de 04/06/2024, foi julgado parcialmente procedente, decidindo-se:
“ (…) Confirmar a decisão recorrida no segmento em que julgou verificada a exceção de incompetência absoluta;
Revogar a decisão recorrida no segmento em que decidiu absolver a Executada da instância, substituindo-se essa decisão por outra que, com fundamento naquela exceção e ao abrigo do disposto nos artigos 99.º, n.º 1, 577.º, alínea a), e 726.º, n.º 2, alínea b), do CPC, indefere liminarmente o requerimento executivo. (…)”
Ainda inconformada, interpõe agora a exequente o presente recurso de revista, visando a revogação do Acórdão da Relação e a sua substituição por decisão “que julgue competente para a tramitação da presente ação executiva o Juízo de Execução de ... (…) e, sem conceder, caso venha a existir decaimento da recorrente, atento o valor da presente ação executiva ser superior a 275.000,00 €, ser dispensado o pagamento do remanescente da taxa de justiça (…).
Terminou a sua alegação com as seguintes conclusões:
“(…)
1.ª O título executivo dado à execução é um título composto (cfr., prescrito concertadamente na alínea d), do n.º1, do artigo 703.º, do C. P. Civil, e na alínea c), do n.º1, do artigo 233.º, CIRE), integrado pelo plano de insolvência apresentado e votado no processo principal de insolvência onde veio a ser homologado, por douto acórdão proferido em 01/04/2014, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, transitado em julgado em 21/04/2014, aresto esse que se encontra autuado no apenso F (recurso em separado), bem como pela sentença de verificação de créditos, transitada em julgado em 14/12/2015, proferida no apenso D (reclamação de créditos);
2.ª O legislador não pretendeu com o disposto na alínea c), do n.º1, do artigo 233.º, CIRE), transformar os Tribunais de Comércio que se dedicam a promover as execuções universais, através dos processos de insolvência, em juízos de execução destinados a executar créditos individuais face ao não cumprimento, pelos devedores, do pagamento dos diversos créditos reestruturados pelos planos de insolvência;
3.ª O prescrito no artigo 233.º, n.º1, alínea c), do CIRE, visou antes a criação de um título executivo que pudesse vir a ser utilizado pelos diversos credores depois do encerramento do processo de insolvência e em vista do exercício, pelos mesmos, dos seus direitos contra os devedores, evitando duplicações desnecessárias de procedimentos declarativos para verificação dos seus créditos;
4.ª Não existe pelo Tribunal de Comércio a aquisição de qualquer conhecimento especial dos créditos, que justifique a aplicação do disposto no artigo 128.º, n.º 1, alínea a), e no n.º 3, da LOSJ, tendo-se limitando o Tribunal de Comércio a verificar os créditos, como o da CGD, integrados pelo Administrador de Insolvência na lista de credores reconhecidos a que alude o n.º2, do artigo 129.º, do CIRE, por força do disposto no n.º 3, do artigo 130.º, do CIRE, que determina que, se não houver impugnações é de imediato proferida sentença de verificação em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador de insolvência;
5.ª A ser entendido que, por força do disposto no artigo 128.º, n.º 1, alínea a), e no n.º 3, da LOSJ, a presente ação executiva tinha de ser instaurada no Tribunal de Comércio este rapidamente se converteria num tribunal de execuções, contrariando o espirito do legislador ao criar um Tribunal de competência especializada em matéria executiva;
6.ª Na fixação do conteúdo da norma, ou seja, da interpretação restritiva que deve ser dada ao n.º3, do artigo 128.º, da LOSJ, não deve ser tida em consideração apenas a apreensão literal do texto da norma, mas ser a mesma integrada por elementos de ordem sistemática e teleológica, elementos esses que, no entender da recorrente, justificam a exclusão do título executivo composto, formado pela sentença de verificação de créditos em conjugação com a sentença homologatória do plano de insolvência, do normativo previsto naquele n.º3, do artigo 128.º, da LOSJ;
7.ª A recorrente acompanha ainda o douto entendimento perfilhado, no douto acórdão recorrido, em voto de vencido, pela Juiz Desembargadora Maria João Areias, no sentido de que o legislador, para acautelar os créditos que não venham a ser satisfeitos no processo de insolvência, a fim de os dispensar de novos procedimentos declarativos para a verificação dos seus créditos, veio atribuir, em conjugação, à sentença de verificação de créditos e à sentença homologatória do plano de insolvência a força de título executivo e que a atribuição desses efeitos executivos se destinava a, uma vez encerrado o processo de insolvência, facultar aos credores, detentores de créditos não satisfeitos no processo de insolvência, um meio expedito de realizarem os seus direitos, pelo que a insaturação de ação executiva em causa nos autos não se integra no conceito de “execução de sentença”, caindo fora do âmbito de aplicação do artigo 128.º, n.º3., da LOSJ.
8.ª A recorrente entende que não é aplicável a execução por ela proposta o disposto o n.º3, do artigo 128.º, da LOSJ, dado que sendo o Juízo de Execução de ... um juízo de execução especializado com competência na área da localização da sede da sociedade executada, conforme disposto no n.º 1, do artigo 89.º, do C.P.C, é este o competente e nele teria a presente ação executiva de ser proposta, como o foi;
9.ª Sendo o título executivo dado à execução, previsto no artigo 233.º, n.º 1, alínea c), do CIRE, um título composto por duas decisões distintas, proferidas em processos distintos, uma no processo principal de insolvência e outra no apenso de reclamação de créditos, também por essa razão não lhe deve ser aplicado o disposto no artigo 85.º, n.º 1, do CIRE, nem o disposto no n.º3, do artigo 128.º, da LOSJ, sendo antes de considerar, por via do disposto n.º2, do artigo 85.º, do C.P.C, como competente para a presente ação executiva o juízo de execução de ..., por se tratar de um juízo especializado de execução com competência no concelho de ... a que pertence a freguesia onde está localizada a sede da empresa executada.
10.ª Sem conceder, caso venha a existir decaimento da Recorrente em sede do presente recurso, nos termos do disposto no n.º7, do artigo 6.º, do Regulamento das Custas processuais, estando em causa uma execução cujo valor é superior a 275.000,00 €, atenta a falta de complexidade da causa, a qual se restringe à apreciação feita, pelo Tribunal de 1.ª Instância, do conteúdo do requerimento executivo, bem como, pelo Tribunal da Relação de Coimbra, da matéria relativa ao recurso de apelação que foi proposto pela Recorrente e do presente recurso de Revista cuja apreciação agora é requerida, atenta a boa conduta processual da Recorrente entende esta que se encontram preenchidos os requisitos necessários para ser dispensado o pagamento do remanescente da taxa de justiça, o que requer. (…)”
Não foi apresentada qualquer resposta.
Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.
Estamos, na presente revista, perante uma questão de competência: discute-se se é o Juízo de Execução ou o Juízo de Comércio o tribunal competente para a execução instaurada.
E qual é a execução instaurada?
Em processo de insolvência que correu termos contra a aqui executada, devedora-insolvente em tal processo de insolvência, a aqui exequente reclamou, em tal processo, o crédito que aqui executa, crédito esse que foi reconhecido pela sentença de verificação de créditos ali proferida, após o que, prosseguindo o processo de insolvência, veio o mesmo a terminar com o trânsito em julgado da sentença de homologação do plano de insolvência; sucedendo – daí a execução – que a executada1, segundo a exequente, não vem procedendo ao pagamento do crédito reconhecido na sentença de verificação de créditos e alvo de modificação (quanto a juros e prazos de pagamento) no plano de insolvência homologado por sentença.
Temos pois – nisto não há qualquer discussão – que a execução se funda no disposto no art. 233.º/1/c) do CIRE, segundo o qual “os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor sem outras restrições que não as constantes do eventual plano de insolvência e plano de pagamentos e do n.º 1 do artigo 242.º, constituindo para o efeito título executivo a sentença homologatória do plano de pagamentos, bem como a sentença de verificação de créditos (…).”
Significa isto que o título executivo “dado” à execução é constituído/composto pela sentença homologatória do plano de pagamentos e pela sentença de verificação de créditos, porém, por ser composto, não significa que seja, como a exequente refere no final do seu requerimento executivo, da espécie referida no art. 703.º/1/d) do CPC.
Há, é certo, uma disposição a dizer que a conjugação da sentença homologatória do plano de pagamentos com a sentença de verificação de créditos constitui título executivo, mas tal é dito para dissipar dúvidas sobre a executoriedade do que conjugadamente resulta de decisões judiciais que reconhecem créditos e estabelecem o modo como devem ser pagos (que é o que a sentença de verificação de créditos e a sentença homologatória do plano respetiva e conjugadamente reconhecem e estabelecem), isto é, a situação prevista no art. 233.º/1/c) do CIRE não é comparável à de um título executivo de formação processual (de que são exemplos os arts. 650.º/4, 721.º/5, 776.º/4, 777.º/3, 792.º73 ou 944.º/5, todos do CPC), nem às situações previstas em lei especial (como é o caso das atas das reuniões de condóminos ou do art. 14.º-A do NRAU).
Enfim – é onde se pretende chegar – o que está sob execução são sentenças, cujo conteúdo condenatório resulta conjugadamente das duas sentenças: a sentença de verificação de créditos declara/certifica direitos (e, no processo de insolvência, habilitava os credores a aceder à fase do pagamento), sendo que a sentença homologatória do plano, ao homologar o plano, representa a condenação do devedor-insolvente a cumpri-lo nos exatos termos aprovados.
Estamos pois perante a espécie de título executivo prevista no art. 703.º/1 do CPC (sentença condenatória), não podendo assim ser ultrapassada a regra, em termos de competência, decorrente dos arts. 129.º/2 e 128.º/3 da LOSJ, ou seja, a regra que diz que os tribunais/secções de comércio são os competentes para executar as suas próprias decisões.
A LOSJ admite que, dentro das instâncias centrais, sejam criadas diversas seções de competência especializada, designadamente, a secção de execução (art. 81.º/2/g) da LOSJ), a qual tem uma muito ampla competência, em sede executiva, nos termos do art. 129.º/1 da LOSJ, competência essa que, porém, não é para toda e qualquer execução, na medida em que mantêm competência exclusiva própria para a execução das suas decisões o tribunal de propriedade intelectual (art. 111.º/2 da LOSJ), o tribunal da concorrência, regulação e supervisão (art. 112.º/2 da LOSJ), o tribunal marítimo (art. 113.º/2 da LOSJ), as secções de família e menores (art. 122.º da LOSJ), as seções de trabalho (art. 126.º/1/m) da LOSJ) e as seções de comércio (art. 128.º/3 da LOSJ), bem como as secções criminais no tocante à execução de sentenças por elas proferidas que, nos termos da lei processual penal, não devam correr perante uma seção cível (como se diz no art. 129.º/2 da LOSJ).
É o caso: trata-se de uma decisão do tribunal/secção de comércio2 e, por conseguinte, cabe-lhe a competência exclusiva própria para a sua execução.
Não se podendo dizer – convocando para a interpretação do art. 128.º/3 da LOSJ o argumento teleológico e racional – que o legislador não pode ter pretendido transformar os tribunais de comércio em juízos de execução destinados a executar créditos individuais, na medida em que o legislador, como se acabou de referir, não atribuiu idêntica competência apenas em relação aos tribunais/seções de comércio, antes a atribuindo – para a execução das decisões próprias – a outros e diversos tribunais e secções de tribunais.
Em matéria de competência para as execuções, podemos dizer que a LOSJ estabelece, como regra, que a competência pertence à secção especializada de execução, regra essa que cede, quanto aos tribunais referidos no art. 129.º/2 da LOSJ, em relação à execução das decisões próprias de tais tribunais.
É quanto basta para considerar, como decidiram as Instâncias, o Juízo de Comércio o competente para a execução instaurada e para confirmar, como decidiu o Acórdão recorrido, o indeferimento liminar da execução.
Está em causa a aplicação do disposto no n.º 7 do artigo 6.º do Regulamento das Custas Processuais, segundo o qual, “nas causas de valor superior a € 275 000, o remanescente da taxa de justiça é considerado na conta a final, salvo se a especificidade da situação o justificar e o juiz de forma fundamentada, atendendo designadamente à complexidade da causa e à conduta processual das partes, dispensar o pagamento.”
Carateriza-se a taxa de justiça, como consta do preâmbulo do RCP, pela sua natureza sinalagmática, ou seja, traduz-se num montante pecuniário devido como contrapartida pela prestação de serviços de justiça (a cargo dos tribunais, no exercício da sua função jurisdicional).
Aliás, tratando-se dum tributo classificado como taxa, é o próprio art. 4.º/2 da Lei Geral Tributária a dizer que “assenta na prestação concreta de um serviço público, na utilização de um bem do domínio público ou na remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares”.
“(…) enquanto os impostos obedecem ao exigente princípio da legalidade fiscal e a sua medida tem por base o princípio da capacidade contributiva, as taxas bastam-se com a reserva à lei parlamentar do seu regime geral e a sua medida assenta no princípio da proporcionalidade taxa/prestação estadual proporcionada ou taxas/custos específicos causados à respetiva comunidade”3.
Temos pois que o critério (para a dispensa ou redução do remanescente da Taxa de Justiça na 2.ª Instância e neste Supremo4) passa pela aplicação de tal princípio da proporcionalidade, ou seja, tudo está em saber se o pagamento integral da taxa de justiça (na 2.ª Instância e neste Supremo) se afigura proporcional à atividade desenvolvida pelo Tribunal.
Em face do valor processual (fixado em € 2.725.961,24), a taxa de justiça remanescente da apelação e da revista ascende a € 15.147 por cada um dos recursos, tendo sido já pagos € 816,00 em cada um dos recursos.
Assim, face à complexidade da questão que esteve sob apreciação nos recursos e à conduta processual da exequente/recorrente, é de todo evidente que aqueles montantes se afiguram manifestamente excessivos e desproporcionais, não tendo qualquer correspondência com os serviços de justiça efetivamente prestados pelo Tribunal e usufruídos pelas partes.
Se pensarmos nos meios que a justiça teve que mobilizar/custear para prestar os serviços solicitados, as referidas somas exprimem uma desproporção flagrante, um insuportável desequilíbrio face ao que teve que ser prestado pelo sistema de justiça, pelo que, tudo ponderado, por apelo ao princípio da proibição do excesso, que sempre deve inspirar este tipo de “juízos”, reduz-se o remanescente da taxa de justiça do recurso da apelação e deste recurso de revista em 19/20, ou seja, só é devido, por cada recurso, 1/20 do remanescente da taxa de justiça (ao abrigo do referido art. 6.º/7 da RCP).
Nos termos expostos, nega-se a revista.
Custas pela recorrente/exequente; com a redução do remanescente da Taxa de Justiça (na 2.ª Instância e neste Supremo) em 19/20 (nos termos do art. 6.º/7 do RCP).
António Barateiro Martins (relator)
Maria de Deus Correia
Fátima Gomes
_______
1. Que retomou a sua atividade – cfr. art. 234.º/1 do CIRE.↩︎
2. Como resulta do requerimento executivo, é o crédito reconhecido na sentença de verificação de créditos e modificado no plano que a exequente vem executar; ou seja, a exequente não executa/repristina o crédito original.
3. Casalta Nabais, Direito Fiscal, 4.ª ed., pág. 21.
4. Tratando-se de uma execução, na 1.ª Instância não há remanescente da taxa de justiça.