DUPLA CONFORME
ADMISSIBILIDADE DA REVISTA
REVISTA EXCECIONAL
Sumário


Uma vez aferida positivamente a dupla conformidade das decisões das instâncias no segmento decisório impugnado em revista (art. 671º, 3, CPC), assim como os requisitos gerais de recorribilidade, a revista excepcional interposta implica a remessa para apreciação da Formação do STJ (art. 672º, 3, do CPC), sem prejuízo do conhecimento superveniente do objecto recursivo não afectado pela inadmissibilidade em revista normal, activado pelo exercício do art. 672º, 5, do CPC.

Texto Integral


Processo n.º 19009/19.4T8LSB.L2.S1

Tribunal recorrido – Relação de ..., 2.ª Secção


Acordam em conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. «Ageas Portugal – Companhia de Seguros de Vida, S.A» intentou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA, pedindo: “a) Ser decretada a resolução do contrato de arrendamento, sendo o Réu condenado à entrega imediata do locado, livre e devoluto de pessoas e bens; b) Ser declarada válida e eficaz a actualização da renda para o valor de € 959,11 (novecentos e cinquenta e nove euros e onze cêntimos), com efeitos retroactivos a maio de 2015; c) Ser o Réu condenado ao pagamento de todas as rendas vencidas, no valor actual de € 36.108,85 (trinta e seis mil cento e oito euros e oitenta e cinco cêntimos); d) Ser o Réu condenado ao pagamento da indemnização prevista no n.º 2, do artigo 1045.º, do C.C. até entrega efectiva do locado, tudo acrescido de juros de mora até efectivo e integral pagamento.”

Foi proferido despacho saneador, com dispensa de audiência prévia e fixação do valor da causa em € 64.882,15, transitado em julgado (13/7/2020).

Na pendência da acção foi requerida pela Autora e deferida a ampliação do pedido formulado em c) para o montante de € 60.535,03 quanto a rendas vencidas, reportado a 26/01/2023, conforme despacho de 6/2/2023.

2. Após primeira sentença proferida em 2/2/2022 e acórdão em apelação proferido em 23/6/2022, decidindo anular a sentença recorrida e ordenando a realização de novo julgamento, realizando-se nova audiência final após baixa dos autos à 1.ª instância, o Juiz ... do Juízo Central Cível de ... prolatou sentença (23/7/2023) que julgou procedente a acção e determinou o seguinte dispositivo:

“a) Declara resolvido o contrato de arrendamento celebrado entre A. e R. datado de 17/02/1972, com efeitos a 01/03/1972, e melhor identificado no artº 1º da petição inicial;

b) Declara válida e eficaz a actualização da renda para o valor de € 959,11 com efeitos retroactivos a 01/06/2015;

c) Condena o R. na entrega imediata à A. do locado, livre e devoluto de pessoas e bens;

d) Condena o R. pagar à A. o montante de € 67.011,48, correspondente ao valor em dívida relativamente às rendas vencidas desde 01/06/2015 até à data da prolação da presente decisão;

e) Condena o R. a pagar à A. a quantia de € 1.918,22/mensais desde a presente data até à entrega da fracção livre e devoluta de pessoas e bens;

f) Absolve a A. do pedido por litigância de má fé.”

3. Inconformado, o Réu interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que, identificadas as questões de reapreciação da decisão sobre a matéria de facto e as questões de direito alegadas quanto à actualização de renda, resolução do contrato de arrendamento e abuso de direito do direito de resolução, conduziu a ser proferido acórdão (8/2/2024), no qual se julgou parcialmente procedente a apelação, alterando-se a sentença em matéria de facto – modificação dos factos provados 10., 13.a), 13.g), 13.h), 16. e 19. – e as als. c) e d) do dispositivo, “condenando “d)... o R. pagar à A. a quantia correspondente ao valor das rendas vencidas e em dívida desde 01/06/2015 e vincendas até à data do trânsito em julgado da presente decisão. e)... o R. a pagar à A. a quantia de € 959,11/mensais desde o trânsito em julgado desta decisão até à entrega da fração livre e devoluta de pessoas e bens (n.° 1, do art.º 1045.°, do C. Civil), elevada ao dobro a partir da constituição em mora (n.° 2, do art.º 1045.°, do C. Civil)”, absolvendo-o da restante quantia decorrente da al. e) da parte decisória da sentença, no mais confirmando a sentença recorrida”.

4. Sem se resignar, o Réu interpôs recurso de revista para o STJ:

(i) normal, quanto à sindicação do exercício dos poderes atribuídos pelo art. 662º do CPC e exercidos no acórdão recorrido aquando da reapreciação da decisão sobre a matéria de facto (art. 674º, 1, b), CPC) – Conclusões iii., xxi. a xliv. –, assim como do decidido relativamente ao segmento decisório b), se se entendesse não se preencher a “dupla conformidade” decisória como impedimento colocado pelo art. 671º, 3, do CPC, o que sustenta a título principal – Conclusões iv., 2.ª parte, e xlv. a lviii..

(ii) excepcional, estribada no art. 672º, 1, a), b) e c), do CPC, indicando como acórdão fundamento da respectiva oposição jurisprudencial o aresto do TRLisboa de 29/6/2023, e requerendo ulteriormente a junção aos autos da respectiva certidão comprovativa, com (após correcção) nota de trânsito em julgado (18/4 e 6/5/2024, ref.as CITIUS 686554 e 689608), no que respeita ao segmento decisório sob b), a título subsidiário – Conclusões v. a xiii. e lix. a cxxvii;

(iii) arguindo ainda nulidade por omissão de pronúncia nos termos do art. 615º, 1, d), do CPC – Conclusões iv., 1.ª parte, e xiv. a xx.



A Autora apresentou contra-alegações, sustentando a existência de “dupla conformidade” impeditiva da admissão do recurso e a inadmissibilidade alternativa da revista excepcional invocada pelo Recorrente Réu e, em caso de admissão, a improcedência do recurso nas suas vertentes de impugnação da decisão sobre a matéria de facto e da decisão sobre a actualização da renda à luz do regime do art. 30º, b), do NRAU, para além da inexistência de qualquer nulidade do acórdão recorrido; mais requereu o indeferimento da junção da certidão do acórdão fundamento para efeito da interposição da revista excepcional e seu desentranhamento.


5. Verifica-se que ambas as partes se pronunciaram nas suas alegações sobre a verificação ou não no caso do art. 671º, 3, do CPC, como impedimento ou não à admissibilidade da revista normal.

6. Subidos os autos ao STJ, foi proferido despacho pelo aqui Relator:

(i) Julga-se não tomar parcialmente conhecimento do objecto do recurso de revista normal quanto à parcela de impugnação de direito do segmento decisório sob b) da sentença proferida em 1.ª instância (Conclusões iv., 2.ª parte, xxxv. a xlviii.) [assim indicadas sem renumeração: em rigor, xlv. a lviii.];

(ii) Ordena-se a remessa dos autos à Formação prevista no art. 672º, 3, do CPC, para análise e verificação prévia da admissibilidade da revista excepcional quanto ao segmento decisório impugnado e não conhecido em revista normal;

(iii) Admite-se a junção aos autos da certidão comprovativa com nota de trânsito em julgado do acórdão fundamento para efeitos da sindicação do art. 672º, 1, c), do CPC (art. 652º, 1, e), ex vi art. 679º, CPC).”

7. A Recorrente deduziu Reclamação para a conferência, nos termos dos arts. 652º, 3, e 679º, do CPC. Reiterou as alegações de revista e alegou a falta de coincidência da fundamentação das decisões das instâncias.

A Recorrida apresentou Resposta, pugnando pela confirmação do despacho reclamado e, portanto, pelo indeferimento da presente Reclamação.



Foram dispensados os vistos nos termos legais.

Cumpre apreciar e decidir.

II) APRECIAÇÃO

1. Uma vez verificados os requisitos gerais de admissibilidade do recurso ordinário (arts. 629º, 1, 631º, 1, CPC) e os requisitos especiais de admissibilidade da revista enquanto espécie (art. 671º, 1, CPC) no que respeita ao segmento decisório b) da sentença de 1.ª instância, confirmado pelo acórdão recorrido, foi proferido despacho com as decisões sob (i) e (ii).

2. Não vemos razões para que não se confirme o despacho reclamado, aderindo à sua fundamentação.

2.1. O art. 671º, 3, do CPC, determina a existência de “dupla conformidade decisória” entre a Relação e a 1.ª instância como obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso de revista normal ou regra junto do STJ, em relação aos segmentos decisórios e seus fundamentos com eficácia jurídica autónoma (objecto de impugnação) relativamente aos quais se verifica identidade de julgados sem voto de vencido, ou em que a decisão recorrida, no ou nos segmentos decisórios recorridos e seus fundamentos atendíveis, se revela mais favorável, qualitativa ou quantitativamente, à parte recorrente (ainda que vencida, total ou parcialmente).

2.2. Verifica-se que o objecto do recurso, no que respeita às questões de direito, incide sobre o segmento decisório relativo à declaração da validade e eficácia da comunicação de actualização da renda, por parte da Autora senhoria, com efeitos reportados a 1/6/2015, para o valor de € 959,11, de acordo com a materialidade apurada e a interpretação e aplicação (em sede de transição de regime locatício aplicável) dos arts. 30º (em especial al. b)), 31º, 32º, 33º, 35º e 36º (em especial n.º 2) do NRAU (Lei 6/2006, de 27 de Fevereiro), e sua consequência sobre a extinção resolutiva do contrato de arrendamento e demais julgado: arts. 635º, 2 a 4, 639º, 1 e 2, do CPC – o recorrente aspira à reapreciação da “regularidade do processo de atualização da renda” (Conclusão xliv.).

2.3. No que respeita ao objecto do recurso delimitado como precede, verifica-se que a revista normal não é admissível, tendo em conta a existência de “dupla conformidade decisória” na fundamentação essencialmente coincidente das instâncias no que toca ao processo de actualização da renda devida, objecto de impugnação e de reapreciação pela Relação, sem prejuízo, no âmbito do mesmo regime legal aplicável do NRAU, do desenvolvimento argumentativo e detalhe interpretativo apresentados em 2.ª instância, considerando o alegado na Apelação pelo aqui Recorrente (v., em especial, quanto à decisão de 1.ª instância, págs. 36 a 43, e, quanto ao acórdão recorrido, referente às 19.ª a 21.ª questões analisadas, págs. 58 a 60), sem voto de vencido, nos termos do art. 671º, 3, do CPC: Conclusões iv., 2.ª parte, e xlv. a lviii. (renumeradas).

2.4. Não obstante, o Recorrente desde logo interpõe recurso de revista excepcional quanto ao referido segmento decisório impugnado, se afectado pelo obstáculo recursivo do art. 671º, 3, do CPC, com a consequente alegada repercussão, desde logo, no segmento decisório sob a): Conclusões v. a xiii. e lix. a cxxvii. (renumeradas).

2.5. Assim se legitima processualmente a remessa dos autos para apreciar e decidir previamente se se verificam os pressupostos específicos de admissibilidade da revista excepcional (admitidos no n.º 1 do art. 672º do CPC), o que, não sendo líquido haver razões para a rejeição liminar, compete exclusiva e preliminarmente à Formação Especial do STJ prevista no art. 672º, 3, do CPC, sem prejuízo da aplicação subsequente do art. 672º, 5, do CPC, quanto à impugnação admissível parcialmente em sede de revista normal.

2.6. A nulidade arguida nos termos do art. 674º, 1, c), do CPC é fundamento acessório e dependente do conhecimento e apreciação do fundamento principal objecto da revista e em função do objecto que e se for admitido em revista excepcional (art. 615º, 4, 617º, 5, 666º, 1, 679º, CPC): Conclusões iv., 1.ª parte, e xiv. a xx. (renumeradas).

Nestes termos, sufragando-o, recai sobre o despacho o acórdão agora proferido, com as demais consequências na tramitação.

III) DECISÃO

Em conformidade, acorda-se em julgar improcedente a Reclamação.

Custas pela Reclamante, que se fixa em taxa de justiça correspondente a 3 UCs.

STJ/Lisboa, 17/10/2024

Ricardo Costa (Relator)

Maria Olinda Garcia

Maria do Rosário Gonçalves

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)