I - As alterações que a Lei n.º 13/2019, de 12-02, nos termos do n.º 2 do seu art. 14.º, introduziu ao art. 1069.º do CC, aplicam-se não apenas aos contratos futuros, mas também aos contratos celebrados em data anterior à entrada em vigor da lei, nos termos da regra geral sobre aplicação da lei no tempo prevista no n.º 2 do art. 12.º, na medida em que tais normas contendem com o conteúdo de relações jurídicas abstraindo dos factos que lhe deram origem.
II - A exigência da forma escrita para os contratos de arrendamento, constante do art. 1069.º, n.º 1, do CC, é meramente ad probationem.
III - Pretendendo o arrendatário fazer prova da existência de contrato de arrendamento, terá de alegar e demonstrar a utilização do locado sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda pelo período de seis meses.
VI - Não seria conforme com o princípio da proporcionalidade, em conjugação com a proteção que a lei confere aos arrendatários, penalizar a ré pela não alegação e prova de que a falta da forma escrita se devia aos senhorios, tendo a mesma alegado que tal se não devia a culpa sua.
V - É ao tribunal da Relação que incumbe aquilatar se dispõe ou não de elementos para apreciar as questões prejudicadas, ou seja, conhecer das questões se estiver na posse de todos os elementos, ou providenciar pela sua obtenção nos termos gerais, tendo presente o disposto no art. 665.º do CPC, não incumbindo tal tarefa ao recurso de revista, nos termos do plasmado no art. 679.º do CPC.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
6ª. Secção
1-Relatório:
AA e BB, intentaram ação declarativa de condenação com processo comum contra ..., pedindo a sua condenação a:
a) Declarar os Autores legítimos e exclusivos proprietários e possuidores do prédio descrito no art.º 1º da petição inicial, com todas as legais consequências;
b) Condenar a Ré a reconhecer os Autores como legítimos proprietários do prédio em causa;
c) Condenar a Ré a restituir aos Autores a parte do rés-do-chão com entrada pelo nº 256 que ilicitamente ocupa;
d) Condenar a Ré a pagar aos Autores o montante mensal de 1.200,00 € pela ocupação do imóvel desde a sua aquisição em 30/06/2020 e até efetiva desocupação, acrescido de juros vencidos e vincendos até efetivo e integral pagamento.
Caso assim se não entenda, se o Tribunal vier a considerar que a Ré ocupa o local legitimamente com base em contrato de arrendamento, pede a título subsidiário;
a) Que seja decretada a resolução do respetivo contrato de arrendamento nos termos conjugados dos artigos 1083º, nº3 e 1084º do Código Civil, por falta de pagamento das rendas que se venceram desde julho de 2020 até à presente data;
b) Que seja a Ré condenada a proceder à desocupação do imóvel locado, devendo o mesmo ser restituído aos Autores, devoluto de pessoas e bens;
c) Que seja a Ré condenada no pagamento de todas as rendas vencidas até à presente data, que se cifram em 6.736,00 €, bem como das vincendas até à efetiva desocupação do locado, acrescidas dos juros de mora até efetivo e integral cumprimento;
d) Que seja a Ré condenada a pagar uma indemnização aos Autores, à luz do disposto no art.º 1045º, nº2 do Código Civil.
Para tanto, invocaram em síntese, que são donos e legítimos proprietários do prédio urbano sito na Rua do ..., composto por casa de rés-do-chão e andar destinando-se o rés-do-chão, com entrada pelos números 250 e 256 a comércio e o andar, com entrada pelo número 252, a habitação.
Os autores adquiriram este prédio na venda judicial operada por leilão eletrónico em processo de execução que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto.
Uma parte do rés-do-chão com entrada pelo do n.º 256 encontra-se ocupado pela Ré, a qual tem lá instalado um estabelecimento de restauração e bebidas denominado “café ...”.
Por carta datada de 11/09/2020, os AA. instaram a Ré a demonstrar que possuía um título bastante que lhe permitia o gozo do local que ocupa e que lhes fosse oponível.
Na resposta, por carta de 10/11/2020, a Ré invocou a existência de um contrato de arrendamento, alegando, no entanto, que não dispunha de uma cópia do mesmo.
A Ré não apresentou nem a cópia do contrato de arrendamento, nem qualquer outro título que lhe permitisse o gozo daquele local.
Foi então instada a desocupar o local, o que até hoje não fez.
A haver um contrato de arrendamento, sobre a Ré recai a obrigação de pagar a respetiva renda, mas a Ré até hoje não entregou qualquer pagamento aos AA.
Citada a Ré veio esta contestar:
a) Pedindo que pela procedência das exceções invocadas, seja absolvida dos pedidos contra si formulados; b) Pedindo que a ação seja julgada improcedente, por não provada; c) Pedindo a condenação dos Autores no pagamento de uma indemnização, no valor a arbitrar pelo tribunal e numa multa a determinar, enquanto litigantes de má-fé.
Cumulativamente que seja a reconvenção julgada procedente, por provada e em consequência: i) Sejam os Autores condenados a reconhecerem a qualidade de arrendatária da ré e nessa qualidade a proporcionarem à Ré o gozo do espaço referente ao rés-do-chão do nº 256 da ..., em ...; ii) Sejam ao Autores condenados, na qualidade de senhorios a realizarem as obras necessárias à eliminação das infiltrações, designadamente procedendo à revisão/substituição de toda a rede de águas pluviais, com substituição das caleiras e tubos de queda.
Para tanto, alegou em síntese, que a ré tem instalado, no rés-do-chão um café Snack Bar, cuja atividade comercial vem sendo desenvolvida nesse prédio.
A ré efetivamente desconhece o paradeiro do contrato de arrendamento. Desde 2009 até à presente data vem ocupando o referido espaço, ocupação que fazia com autorização e consentimento dos então proprietários e senhorios, o que resulta desde logo da receção das rendas e da emissão dos respetivos recibos de renda.
A Ré liquidou todas as rendas vencidas desde julho de 2020 até à presente data, quer pelos depósitos à ordem do processo executivo, quer pelo depósito em conta da CGD, depósitos à ordem do Autor.
A Ré, no prazo da contestação, fez um depósito condicional, no valor de 505,20€ (421€ + 20%) renda vencida a 01/09/2020.
A ré informou o autor da ocorrência de infiltrações de águas pluviais no teto do estabelecimento, que a obrigou a encerrar, temporariamente, todo o estabelecimento.
A representante da ré remeteu ao A. que a recebeu, a carta, datada de 21.10.2020, solicitando a realização de obras para eliminar as infiltrações.
Face à falta de resposta e inercia do autor a representante da ré tomou algumas diligencias cautelares e executou os seguintes trabalhos para reduzir ou eliminar as infiltrações obrigando-a a suportar um custo de 72,56€:
Até à presente data o A. não realizou qualquer trabalho apesar de para tal ter sido instado.
Os autos prosseguiram os seus termos, vindo a ser proferida sentença, onde se julgou a ação parcialmente procedente, por provada, e, em consequência:
a) Se declarou que os Autores são proprietários do imóvel situado na Rua do ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ... e inscrito na matriz da União das Freguesias de ... sob o artigo ...; e condena-se a Ré a reconhecer os Autores como proprietários desse imóvel;
b) Se condenou a Ré a entregar aos Autores a parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256, livre de pessoas e bens;
c) Se condenou a Ré a pagar aos Autores a quantia de € 6.736,00; bem como a quantia mensal de € 421,00, a partir do mês de novembro de 2022, inclusive, até à entrega aos Autores da parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256, quantias a que acrescerão os juros de mora, à taxa legal;
d) Se absolveu a Ré do demais que foi peticionado a título indemnizatório;
e) Se absolveram os Autores do pedido reconvencional deduzido pela Ré, sob a alínea i) da contestação/reconvenção.
Inconformada a ré interpôs recurso para o Tribunal da Relação do Porto, onde foi proferido acórdão, com o seguinte teor a final:
«Pelo exposto, concede-se provimento ao presente recurso alterando-se nos seguintes termos a decisão proferida:
Julga-se a ação parcialmente procedente, por provada, e em consequência:
a) Confirma-se a mesma decisão na parte em que declarou que os Autores são proprietários do imóvel situado na Rua do..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ... e inscrito na matriz da União das Freguesias de ... sob o artigo ...; e condena-se a Ré a reconhecer os Autores como proprietários desse imóvel;
b) Absolve-se a Ré do pedido de entrega aos Autores da parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256, livre de pessoas e bens;
c) Absolve-se a Ré do pedido de condenação no pagamento aos Autores da quantia de € 6.736,00, bem como a quantia mensal de € 421,00, a partir do mês de novembro de 2022, inclusive, até à entrega aos Autores da parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256, quantias a que acrescerão os juros de mora, à taxa legal;
d) Confirma-se a decisão na parte em que absolveu a Ré do demais que foi peticionado a título indemnizatório;
e) Condenam-se os Autores a reconhecerem a qualidade de arrendatária da Ré e nessa qualidade a proporcionarem à mesma o espaço referente ao rés-do-chão do nº256 da Rua de ...».
Inconformados recorreram os autores de revista, concluindo as suas alegações:
A) Os Autores (ora, Recorrentes) propuseram a presente ação formulando o seguinte pedido principal:
a) Que se declarasse que os AA. são legítimos e exclusivos proprietários e possuidores do prédio urbano sito na Rua do ..., composto por casa de rés-do-chão e andar, destinando-se o rés-do-chão, com entrada pelos números 250 e 256 a comércio, e o andar, com entrada pelo número 252, a habitação descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º.../..., inscrito na matriz da União das Freguesias de ... sob o artigo ...;
b) Condenar-se a Ré (ora, Recorrida) a reconhecer os AA. como legítimos proprietários do prédio em causa;
c) Condenar-se a Ré a restituir aos AA. a parte do rés-do-chão com entrada pelo do n.º 256 que ilicitamente ocupa;
B) Sendo esta uma ação de reivindicação, a causa de pedir assentou no facto dos AA. serem legítimos proprietários do prédio em questão e a Ré não possuir um título que lhes pudesse opor.
C) Para o caso de decair no pedido principal, se a Ré viesse a demonstrar que possuía um contrato de arrendamento válido, os AA. formularam o seguinte pedido subsidiário: a) Fosse decretada a resolução do respetivo contrato de arrendamento, nos termos conjugados dos artigos 1083.º, nº 3, e 1084.º do Código Civil, por falta de pagamento das rendas que se venceram desde julho de 2020 até à presente data;
b) Condenar-se a Ré a proceder à desocupação do imóvel locado, devendo o mesmo ser restituído aos AA., devoluto de pessoas e bens;
c) Condenar-se a Ré no pagamento de todas as rendas vencidas até à presente data, que se cifram em 6.736,00 €, bem como das vincendas até à efetiva desocupação do locado, acrescidas dos juros de mora até ao efetivo e integral cumprimento;
d) Condenar-se a Ré a pagar uma indemnização aos AA. à luz do disposto no artigo 1045.º, nº 2, do Código Civil.
D) O Tribunal de 1.ª instância entendeu que a Ré não provou que tinha um contrato de arrendamento válido para opor aos AA., pelo que provado que estava o direito de propriedade dos mesmos sobre o prédio em causa, julgou a ação procedente, condenando a Ré a entregar aos AA. a parte do rés-do-chão do imóvel, livre de pessoa e bens.
E) Condenou, ainda, a Ré a pagar a indemnização peticionada no pedido principal.
F) Desta decisão recorreu a Ré para o Tribunal da Relação do Porto, o qual entendeu que Ré demonstrou ser arrendatária da parte do prédio em questão nos presentes autos, pelo que deu provimento ao recurso, alterando a decisão do Tribunal de 1.ª instância, absolvendo a Ré do pedido de entrega da parte do prédio e condenando os AA. a reconhecerem a sua qualidade de arrendatária.
G) Em 1987, ano em que a Ré alega que foi concedido o gozo temporário do local, o artigo 1029.º, na alínea b), do n.º 1, determinava que os contratos de arrendamento para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, deveriam ser reduzidos a escritura pública.
H) Com a entrada em vigor do Regime do Arrendamento Urbano (RAU) aprovado pelo D.L. 321-B/90, de 15 de outubro, e com as alterações do Decreto-Lei n.º 64-A/2000, de 22 de abril, para os contratos de arrendamento para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal passou a ser exigível somente a forma escrita para a sua celebração.
I) O Novo Regime do Arrendamento Urbano (NRAU) aprovado pela Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, revogou o RAU e alterou vários diplomas, entre os quais o Código Civil.
J) Relativamente ao Código Civil, entre outras disposições, esta Lei 6/2006 alterou o artigo 1069.º, o qual manteve a obrigatoriedade da redução a escrito dos contratos de arrendamento.
K) A Ré alegou a sua qualidade de arrendatária, afirmando que havia um contrato escrito de arrendamento, mas que, no entanto, não sabia do seu paradeiro.
L) Até ao encerramento da discussão e julgamento a Ré não apresentou qualquer documento que titulasse o contrato de arrendamento que demonstrasse a sua qualidade de arrendatária.
M) Assim, não ficou provada a existência de um documento que titulasse o contrato de arrendamento invocado pela Ré.
N) A Ré não apresentou qualquer documento que titulasse o contrato de arrendamento que invocou existir, pelo que caber-lhe-ia alegar factos que demonstrassem a existência do contrato por outros meios.
O) Contudo, a Ré para demonstrar a existência de um contrato de arrendamento limitou-se a dizer que “Efetivamente a ré não dispõe de qualquer exemplar do contrato de arrendamento do espaço que ocupa, desconhecendo o seu paradeiro pelas razões acima descritas, contudo a ausência de contrato escrito ou da celebração de escritura publica, caso fosse exigível à data da outorga, como prova da formalização da relação de arrendamento, a verificar-se não poderá ser imputável à arrendatária, mas sim ao senhorio que então lhe cedeu o gozo, mediante uma contrapartida monetária, dando-lhe quitação, sem lhe exigir a formalização dessa mesma ocupação” – artigo 49.º da contestação.
P) Ou seja, apenas alegou que a falta da formalização da relação de arrendamento não poderá ser imputável à arrendatária, mas sim ao senhorio que então lhe cedeu o gozo.
Q) Não alegou os factos que a lei determina que deverão ser alegados e provados para que seja demonstrada a existência do título, na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento, nos termos do artigo 1069.º, n.º 1, do Código Civil), ou seja, que:
a) Utiliza o locado sem a oposição do senhorio; e
b) Efetuou o pagamento da respetiva renda mensal por um período de seis meses.
R) Como referido, a Ré apenas alegou que a falta da formalização da relação de arrendamento não poderá ser imputável à arrendatária, mas sim ao senhorio que então lhe cedeu o gozo.
S) Não alegou, e por isso não provou, os factos que preenchessem os requisitos estatuídos no artigo 1069.º, n.º 2, do Código Civil.
T) Por isso, não demonstrou a existência do título que lhe conferisse a qualidade de arrendatária.
U) A Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, ao alterar o artigo 1069.º, veio permitir ao arrendatário a demonstração da existência do título por qualquer forma admitida em direito, na falta de documento escrito, estabelecendo os respetivos requisitos, supra referidos.
V) Esta alteração abrangeu, além dos contratos celebrados após a entrada em vigor desta lei, também os arrendamentos existentes anteriormente a essa data, nos termos estatuídos do nº 2 do artigo 14º deste último diploma, o qual tem a seguinte redação: “O disposto no n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil, com as alterações introduzidas pela presente lei, aplica-se igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma.”
W) Por força do nº 2 do artigo 14º da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, esta disposição aplica-se ao caso sub judice.
X) Abrangendo a referida alteração, não apenas os contratos celebrados após a entrada em vigor da Lei nº 13/2019, mas também os arrendamentos existentes anteriormente a essa data, nos termos do nº 2 do art. 14º deste diploma”.
Y) Entendeu, no entanto, o Tribunal da Relação que neste caso será de aplicar o artigo 1029.º do Código Civil, em vigor no ano de 1987.
Z) Tanto naquela data de 1988, como agora, a lei permitia ao arrendatário fazer prova do contrato por qualquer meio.
AA) Apenas com a diferença seguinte:
a) O nº 3 do artigo 1029.º do Código Civil permitia ao arrendatário fazer a prova do contrato por qualquer meio, sem impor os requisitos que essa prova deveria obedecer;
b) O atual artigo 1069.º, n.º 2, do Código Civil, continua a permitir ao arrendatário fazer a prova do contrato por qualquer meio, mas impondo-lhe que deverá alegar e provar que utiliza o locado sem a oposição do senhorio e que efetuou o pagamento da respetiva renda mensal por um período de seis meses.
BB) Ou seja, o legislador não alterou o regime relativamente à exigência de forma para a validade do contrato de arrendamento na perspetiva do arrendatário.
CC) Apenas introduziu os requisitos da prova para a demonstração do contrato de arrendamento.
DD) Prova essa que continuou a poder ser feita por qualquer meio.
EE) Assim, esta lei nova não diminui as garantias do arrendatário relativamente ao seu direito de demonstrar a existência do contrato por qualquer meio.
FF) Apenas precisou os factos que carecem de ser demonstrados (utilização do locado sem a oposição do senhorio; e o pagamento da renda mensal por um período de seis meses).
GG) O nº 2 do artigo 14º da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro ao estatuir que “O disposto no n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil, com as alterações introduzidas pela presente lei, aplica-se igualmente a arrendamentos existentes à data de entrada em vigor da mesma.”, determinou que os contratos de arrendamento existentes, independentemente da época da sua celebração, passaram a ser disciplinados pelo artigo 1069.º, n.º 2, do Código Civil.
HH) O Tribunal Recorrido ao dar provimento ao recurso de apelação interposto pelo Ré, aplicando o regime estabelecido mo artigo 1029.º, nº 3, do Código Civil, em vigor em 1988, violou o estatuído no artigo 14º, nº 2, da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, a qual imperativamente estabeleceu que o novo regime se aplica a arrendamentos existentes à data da sua entrada em vigor.
II) Ora, aplicando-se este regime criado pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, a ação deverá proceder, pois a Ré não logrou provar os requisitos estabelecidos no n.º 2 do artigo 1069.º do Código Civil.
JJ) Tanto mais que os AA. provaram os requisitos a que devem obedecer as ações de reivindicação:
a) A titularidade do direito de propriedade sobre a coisa reivindicada;
b) A sua ocupação pela demandada.
KK) O Tribunal de 1.ª instância entendeu que a Ré não possuía um título que pudesse opor aos AA., pelo que não conheceu dos pedidos subsidiários, como se pode ler na página 30 da sentença: Atendendo ao supra exposto, considera-se prejudicado o conhecimento dos pedidos subsidiários formulados pelos Autores (artº. 608.º, n.º 2 do Código de Processo Civil).
LL) Prevenindo a possibilidade de procedência da apelação, os AA. formularam o seguinte pedido nas suas contra-alegações do recurso: Procedendo o recurso, o que se admite por mera hipótese argumentativa, deverá ser ordenada a apreciação do pedido subsidiário do Recorrentes, designadamente, o de ser decretada a resolução do contrato de arrendamento.
MM) O Tribunal da Relação entendeu não apreciar o pedido subsidiário, nos seguintes termos:
E ao requerido pelos autores/apelantes também não pode, em nosso entender, ser aplicado o regime previsto no art.º 665º, nº2 do CPC.
E isto porque, salvo melhor opinião, consideramos não ter ao nosso dispor os elementos de facto e de direito que são necessários, para que o conhecimento da questão suscitada se mostre possível.
NN) Estabelece o n.º 2 do artigo 608.º do Código de Processo Civil que “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.”.
OO) É certo que o Tribunal de 1.ª instância não conheceu do pedido subsidiário por o pedido principal ter procedido.
PP) Contudo, o Tribunal da Relação ao alterar decisão não poderia deixar de apreciar o pedido subsidiário, nos termos do artigo 665.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
QQ) Sobre a garantia de acesso aos tribunais, estabelece o artigo 2.º, n.º 1, do Código de Processo Civil que “A proteção jurídica através dos tribunais implica o direito de obter, em prazo razoável, uma decisão judicial que aprecie, com força de caso julgado, a pretensão regularmente deduzida em juízo, bem como a possibilidade de a fazer executar.”
RR) Assim, tinham os AA. o direito de ver apreciado o seu pedido subsidiário.
SS) Não o tendo feito o tribunal de primeira instância, por desnecessário face à solução dada a outras questões, o Tribunal da Relação, ao alterar a decisão, não poderia deixar de garantir o direito dos AA. de ver apreciada a sua pretensão formulada como pedido subsidiário.
TT) Até porque tal lhe foi pedido expressamente.
UU) E se considerava não ter ao dispor os elementos de facto e de direito necessários, então deveria ordenar que Tribunal de 1ª instância decidisse o pedido subsidiário, face á improcedência do pedido principal.
VV) Aliás, tinha a obrigação de notificar as partes para, em 10 dias, se pronunciarem, tendo em conta a alteração da decisão e a necessidade de apreciar o pedido subsidiário (artigo 665.º, n.º 3, do Código de Processo Civil).
WW) Ao rejeitar a apreciação do pedido subsidiário violou os artigos 2.º, n.º 1, 608.º, n.º 2, e 665.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Civil.
Por seu turno, contra-alegou a ré, pugnando pela manutenção do acórdão da Relação do Porto.
Foram colhidos os vistos.
2- Cumpre apreciar e decidir:
As conclusões do recurso delimitam o seu objeto, nos termos do disposto nos artigos 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, todos do Código de Processo Civil.
Da admissibilidade do recurso
O recurso de revista nos termos do nº. 1 do art. 671º do CPC., cabe do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1ª. instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos e tem como fundamento, nos termos do nº. 1 do art. 674º do mesmo normativo, a violação de lei substantiva, nas modalidades de erro de interpretação, de aplicação, da determinação da norma aplicável, ou a violação da lei processual, incluindo aquela de que possa resultar alguma nulidade de decisão prevista no art.º 615, ex vi art.º 666, n. º1.
No caso vertente estão preenchidos os requisitos gerais de admissibilidade do recurso ordinário e os requisitos especiais de admissibilidade da revista enquanto espécie (arts 629º, nº.1, 631º, nº 1 e 671º, nº.1, todos do CPC).
As questões a dirimir consistem em aquilatar:
- Da existência de contrato de arrendamento válido oponível aos autores.
- Do não conhecimento do pedido subsidiário.
A matéria de facto delineada nas instâncias foi a seguinte:
1) Encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..., um imóvel situado na Rua do ..., composto por casa com 130 m2, dependência com 6 m2, e quintal com 183,5 m2, inscrito na matriz da União das Freguesias de ... sob o artigo ....
2) Pela apresentação n.º 54, de 15-07-2020, foi definitivamente inscrita a aquisição, a favor dos ora Autores AA e BB, do imóvel descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ....
3) Os ora Autores adquiriram este imóvel na venda judicial operada por leilão eletrónico no processo de execução que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do ..., Juízo de Execução do ..., sob o n.º 85..., tendo a decisão de adjudicação do imóvel sido proferida pela Sra. Agente de Execução em 30-06-2020.
4) O referido imóvel é composto por dois pisos, rés-do-chão e andar destinando-se o rés-do-chão, com entrada pelos números 250 e 256 a comércio, e o primeiro andar, com entrada pelo número 252, a habitação.
5) A parte do rés-do-chão do referido imóvel, com entrada pelo n.º 256 é utilizada pela ora Ré ..., a qual tem aí instalado um estabelecimento de café e snack-bar denominado Café ....
6) O ora Autor remeteu a CC uma carta datada de 11-09- 2020, que foi por esta recebida, com o teor que consta do documento 3 apresentado com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.
7) CC remeteu ao ora Autor uma carta datada de 21-10- 2020, que foi por este recebida, com o teor que consta do documento 16 apresentado com a contestação, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.
8) O ora Autor remeteu à ora Ré uma carta datada de 30-10-2020, que foi por esta recebida, com o teor que consta do documento 17 apresentado com a contestação, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.
9) A ora Ré remeteu ao ora Autor uma carta datada de 10-11-2020, que foi por este recebida, com o teor que consta do documento 4 apresentado com a petição inicial, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.
10) A utilização pela ora Ré ... da parte do rés-do-chão do referido imóvel, com entrada pelo n.º 256, impede os Autores de disporem dessa parte do imóvel.
11) O valor locativo da parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256, que é utilizada pela Ré, é de, pelo menos, € 421,00.
12) A sociedade ..., ora Ré, tem o capital social de € 5.000,00 e foi constituída em 1986.
13) Em 28-07-2009, entre, por um lado DD, e por outro lado CC e EE, foi celebrado um acordo intitulado «CESSÕES DE QUOTAS», com o teor que consta do documento 7 apresentado com a contestação, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido.
14) Encontra-se inscrita no registo comercial, desde 28-07-2009, a aquisição a favor de EE de uma quota da sociedade ..., com o valor nominal de € 2.500,00.
15) Encontra-se inscrita no registo comercial, desde 28-07-2009, a aquisição a favor de CC de uma quota da sociedade ..., com o valor nominal de € 2.500,00.
16) CC é, desde 05-08-2009, a única gerente da sociedade ..., ora Ré.
17) A sociedade ..., ora Ré, explora um estabelecimento de café e snack-bar na parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256, desde, pelo menos, setembro de 1987;
18) …E desde, pelo menos, setembro de 1987, os proprietários do imóvel anteriores aos Autores, concederam o gozo temporário da parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256, mediante retribuição.
19) Até ao ano de 2015 a renda foi paga em casa do anterior proprietário, o Sr. FF, e, a partir de certo momento, numa conta bancária que para o efeito foi indicada à Ré.
20) No âmbito do processo de execução n.º 85..., CC foi notificada, em nome pessoal, para proceder ao depósito de rendas relativas à ocupação da parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256 e para, querendo, exercer o direito de preferência.
21) A partir de setembro de 2015, a renda foi paga para a referência multibanco comunicada pela Sra. Agente de Execução a CC, em nome pessoal, no âmbito do processo de execução n.º 85...
22) Através da mencionada referência multibanco, foram pagas as rendas referentes até ao mês de setembro de 2020, inclusive.
23) Antes de adquirirem o referido imóvel, na venda judicial operada por leilão eletrónico no processo de execução que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do..., Juízo de Execução ...3, sob o n.º 85..., os ora Autores sabiam da ocupação da parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256, por um estabelecimento de café.
24) À data da instauração da presente ação, os Autores sabiam da ocupação pela Ré da parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256.
25) Em setembro de 2020, o Autor deslocou-se ao estabelecimento de café e snack-bar denominado Café ..., que funciona na parte do rés-do-chão do referido imóvel, com entrada pelo n.º 256, tendo aí conversado com CC.
26) Inexiste documento escrito que consubstancie um acordo estabelecido entre, por um lado os Autores ou os anteriores proprietários do imóvel supra referido em 1) e 4), e, por outro lado, a Ré, quanto à parte do rés-do-chão do referido imóvel, com entrada pelo n.º 256, utilizada pela ora Ré, a qual tem aí instalado um estabelecimento de café e snack-bar denominado Café ..., pela qual os Autores ou os anteriores proprietários do imóvel concederam à Ré o gozo temporário de tal parte do imóvel, mediante retribuição.
27) Em 11-05-2021, a Ré procedeu ao depósito da quantia de € 2.526,00, tendo em vista o pagamento de rendas relativas a vários meses de 2020 e 2021.
28) A ora Ré remeteu ao ora Autor uma carta datada de 15-05-2021, que foi por este recebida, com o teor que consta da primeira página do documento 19 apresentado com a contestação, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido, carta essa que foi acompanhada do talão de depósito com o teor que consta da segunda página do documento 19 apresentado com a contestação, o qual se dá aqui por integralmente reproduzido;
29) …Não tendo o Autor respondido à carta acabada de referir, não tendo o Autor impugnado o depósito mencionado no talão de depósito que acompanhou essa carta e não tendo o Autor notificado a Ré para proceder ao pagamento da renda por outra forma.
30) Em 08-06-2021, a Ré procedeu ao depósito da quantia de € 315,75, tendo em vista o pagamento de um mês de renda.
31) Em 08-07-2021, a Ré procedeu ao depósito da quantia de € 315,75, tendo em vista o pagamento de um mês de renda.
32) Em 09-08-2021, a Ré procedeu ao depósito da quantia de € 315,75, tendo em vista o pagamento de um mês de renda.
33) Em 08-09-2021, a Ré procedeu ao depósito da quantia de € 315,75, tendo em vista o pagamento de um mês de renda.
34) Em 08-10-2021, a Ré procedeu ao depósito da quantia de € 315,75, tendo em vista o pagamento de um mês de renda.
35) Em 08-11-2021, a Ré procedeu ao depósito da quantia de € 315,75, tendo em vista o pagamento de um mês de renda.
36) Em 07-12-2021, a Ré procedeu ao depósito da quantia de € 315,75, tendo em vista o pagamento de um mês de renda.
37) Em 09-12-2021, a Ré procedeu ao depósito da quantia de € 505,20, tendo em vista o pagamento de um mês de renda.
Factos dados como não provados:
I) No âmbito do processo de execução n.º 85..., a Ré foi notificada da penhora da renda, para proceder ao depósito de rendas e para, querendo, exercer o direito de preferência.
II) Era do conhecimento da Sra. Agente de Execução que interveio no processo de execução n.º 85... a ocupação pela Ré da parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256, e a sua qualidade de arrendatária.
III) Sem prejuízo para o supra referido em 21) e 22), na pendência do processo de execução n.º 85..., foi a Ré quem procedeu ao pagamento, para a referência multibanco comunicada pela Sra. Agente de Execução a CC, da quantia a título de renda pela ocupação pela Ré da parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256.
IV) Sem prejuízo para o supra referido em 23), os Autores sabiam, antes de adquirirem o referido imóvel, na venda judicial operada por leilão eletrónico no processo de execução que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do ..., Juízo de Execução do ..., sob o n.º 85..., que a parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256, era ocupada pela Ré.
V) Antes da instauração da presente ação, os Autores tiveram conhecimento de que a Ré nunca foi questionada pelos anteriores proprietários quanto à ocupação da parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256, e de que, pelo menos desde 2009, a ocupação dessa parte do imóvel foi consentida e autorizada pelos anteriores proprietários.
VI) Quando adquiriram o referido imóvel, na venda judicial operada por leilão eletrónico no processo de execução que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do ..., Juízo de Execução do..., sob o n.º 85..., os ora Autores sabiam que se encontrava penhorada à ordem desse processo a renda relativa à ocupação da parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256.
VII) À data da instauração da presente ação, os Autores sabiam que a Ré liquidava a quantia de € 421,00 a título de renda pela ocupação da parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256.
VIII) À data da instauração da presente ação, os Autores sabiam da qualidade de arrendatária Ré quanto à parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256.
IX) Sem prejuízo para o referido em 11), o valor locativo da parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256, que é utilizada pela Ré, é de € 1.200,00.
X) Sem prejuízo para o supra referido em 25), o Autor iniciou conversações com a gerente da Ré com vista à cessação do contrato de arrendamento, por acordo, com a promessa do pagamento de uma indemnização pela cessação, invocando que iria proceder à reabilitação do prédio, tendo-lhe referido que não precisava de liquidar a renda de Setembro de 2020, nem as subsequentes, porquanto tais valores seriam acertados com a receção da indemnização a liquidar pelo Autor, comprometendo-se este a formalizar uma proposta;
XI) Tendo a gerente da Ré ficado a aguardar por uma proposta concreta do Autor quanto às condições da possível cessação, montantes da indemnização ou à indicação da sua conta bancária para liquidação da renda.
Vejamos:
Insurgem-se os autores/recorrentes relativamente ao acórdão da Relação do Porto, o qual julgou válido o contrato de arrendamento dos autos, com as inerentes consequências.
Alegam os recorrentes que o Tribunal recorrido ao dar provimento ao recurso de apelação interposto pela ré e ao aplicar o regime estabelecido no art. 1029º, nº 3 do Código Civil, em vigor em 1988, violou o estatuído no art. 14º, nº 2 da Lei nº. 13/2019, de 12 de fevereiro, a qual imperativamente estabeleceu que o novo regime se aplica a arrendamentos existentes à data da sua entrada em vigor.
E, dizem os autores, aplicando-se este regime a ação deverá proceder, pois a ré não logrou provar os requisitos estabelecidos no nº. 2 do art. 1069º do Código Civil.
No caso vertente, estamos perante a propositura de uma ação de reivindicação intentada pelos autores, onde não está em causa o reconhecimento de que os mesmos são proprietários do imóvel situado na Rua do ..., em ....
O que incumbe aqui aquilatar é se a ré dispõe de algum título admitido em direito, que inviabilize a entrega do imóvel.
Com efeito, invocou a ré que é arrendatária do rés-do-chão do imóvel, onde tem instalado um estabelecimento de café e snack-bar, desde pelo menos, setembro de 1987.
Mais invocou que os anteriores proprietários lhe concederam o gozo temporário do imóvel, mediante retribuição, mas inexistindo um documento escrito que materialize qualquer contrato de arrendamento.
Compulsada a factualidade apurada, consta da mesma o seguinte:
17) A sociedade ..., ora Ré, explora um estabelecimento de café e snack-bar na parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256, desde, pelo menos, setembro de 1987;
18) E desde, pelo menos, setembro de 1987, os proprietários do imóvel anteriores aos Autores, concederam o gozo temporário da parte do rés-do-chão do imóvel, com entrada pelo n.º 256, mediante retribuição.
Ora, os contratos de arrendamento para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal, conforme prescrevia a alínea b) do nº. 1 do art. 1029º do Código Civil deviam ser reduzidos a escritura pública.
Aquando da invocada existência do contrato de arrendamento dos autos, em setembro de 1987, atenta a vigência do Decreto-Lei nº. 67/75, de 19 de fevereiro, dispunha o nº. 3 do art. 1029º do Código Civil, que no caso da alínea b) do nº. 1 do art. 1029º do CC, a falta de escritura pública é sempre imputável ao locador e a respetiva nulidade só é invocável pelo locatário, que poderá fazer a prova do contrato por qualquer meio.
Esta disposição legal veio posteriormente a ser revogada pelo Decreto-Lei nº. 321-B/90, de 15 de outubro.
De acordo com o nº. 1 do art. 5º daquele diploma (RAU), o arrendamento urbano rege-se pelo disposto no presente diploma e, no que não esteja em oposição com este, pelo regime geral da locação civil, com as exceções plasmadas no nº. 2 do artigo.
Por seu turno, dispunha o art. 7º nº. 1 do RAU que, o contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.
Posteriormente, a Lei 6/2006, de 27 de fevereiro, veio revogar o art. 1029º do Código Civil e introduziu a seguinte redação:
Artigo 1069.º
Forma
O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito desde que tenha duração superior a seis meses.
A redação deste artigo 1069º do Código Civil foi alterada pela Lei nº. 31/2012, de 14 de agosto, dizendo então, que o contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.
E pela Lei 13/2019, de 12 de fevereiro o artigo 1069º. do C. Civil passou a dizer o seguinte:
1 - O contrato de arrendamento urbano deve ser celebrado por escrito.
2 - Na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não seja imputável ao arrendatário, este pode provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses.
De acordo com a disposição transitória plasmada no nº. 2 do artigo 14º desta Lei 13/2019, de 12 de fevereiro, o disposto no nº. 2 do artigo 1069º do Código Civil, com as alterações introduzidas pela presente lei, aplica-se igualmente a arrendamentos existentes à data da entrada em vigor da mesma (a lei entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação).
Como se escreveu na Revista Electrónica de Direito, GG - Fevereiro de 2020 – nº 1, vol. 21, pág. 95-95 «A disposição transitória do art. 14º da Lei 13/2019 apenas regula a aplicação da lei no tempo quanto ao disposto nos arts. 1041º, nº. 7 e 1069º, nº 2 e arts. 26º e 36º, nº.10 do NRAU, pelo que, quanto ao mais, o problema da sucessão das leis no tempo deve ser resolvido com recurso às normas gerais de direito.
Parece-nos que, regra geral, as normas imperativas previstas na Lei 13/2019 se aplicam não apenas aos contratos futuros, mas também aos contratos celebrados em data anterior à entrada em vigor da lei, nos termos da regra geral sobre aplicação da lei no tempo prevista no nº. 2 do art. 12º, na medida em que tais normas contendem com o conteúdo de relações jurídicas abstraindo dos factos que lhe deram origem».
No mesmo sentido se pronunciou HH, Alterações em matéria de Arrendamento Urbano introduzidas pela Lei 12/2019 e 13/2019, Julgar Online, março de 2019 «As alterações que a Lei nº. 13/2019 introduziu no Código Civil localizam-se nas Disposições Gerais sobre o arrendamento de prédios urbanos, nas Disposições Especiais sobre arrendamento para habitação e nas Disposições Especiais sobre arrendamentos para fins não habitacionais.
No que respeita à aplicação da lei no tempo, tais alterações aplicam-se não só aos contratos futuros, mas também aos contratos em curso, como decorre da regra geral do artigo 12º, nº 2 do Código Civil. Acresce que o legislador esclareceu expressamente que algumas alterações têm aplicação mesmo a situações constituídas antes da entrada em vigor da presente lei (artigo 14º). Assim acontece quanto à forma do contrato, previsto no nº. 2 do artigo 1096º. e quanto ao disposto no art. 1041º».
Implica tal, que os contratos de arrendamento urbano, aquando da versão da Lei nº. 13/2019, de 12 de fevereiro, independentemente da época da sua celebração, sejam disciplinados pelo art. 1069º. nº. 2 do Código Civil, prevalecendo sobre normas anteriores incompatíveis.
Resulta deste normativo que o contrato de arrendamento deve ser reduzido a escrito, mas também, a possibilidade de, não havendo contrato reduzido a escrito, o mesmo poder ser demonstrado por outros meios de prova admitidos em direito.
De toda esta sucessão de diplomas decorre uma regra comum, a qual consistia na necessidade de o contrato de arrendamento dever ser reduzido a escrito.
Na altura sinalizada nos autos, ou seja, em setembro de 1987, o contrato de arrendamento para o comércio estava sujeito, a escritura pública, conforme se dispunha na al. b) do nº. 1 do art. 1029º do Código Civil, exigência essa alterada pelo Decreto-Lei nº. 64-A72000, de 22 de abril.
Mas, abolindo-se a escritura pública para este tipo de contratos, não se aboliu a exigência da forma escrita.
A forma do contrato terá uma natureza inequivocamente ad probationem e o art. 1069º do Código Civil, ao admitir a prova do contrato de arrendamento por qualquer meio, evidencia que a forma do contrato tem aquela natureza.
A este respeito se escreveu no Ac. do STJ. de 12-1-2022, in www.djsi.pt.«A exigência da forma escrita para os contratos de arrendamento constante do artigo 1069.º, n.º 1, do Código Civil, é meramente ad probationem, pelo que, mesmo que não se demonstre que a falta de observância de forma é imputável ao senhorio, a celebração do contrato de arrendamento pode ser provada por confissão expressa, judicial ou extrajudicial, contanto que, neste último caso, a confissão conste de documento de igual ou superior valor probatório (artigo 364.º, n.º 2, do Código Civil).
Mas, não sendo a falta de redução a escrito do contrato de arrendamento imputável ao arrendatário, este poderá ainda provar a sua existência por qualquer forma admitida em direito.
Feito o enquadramento legal atinente aos sucessivos diplomas legais, vejamos o caso.
O acórdão recorrido entendeu que: «Independentemente da concreta articulação entre o art.º 1069º, na sua actual redacção, e o artigo 1029º, na redacção do D.L. 67/75, a verdade é que o contrato dos autos foi celebrado à luz de uma lei que ao arrendatário e no que toca à sua forma, a lei não lhe impunha qualquer responsabilidade.
E a ser assim é de toda a razoabilidade considerar que, inexistindo nos autos qualquer elemento de prova que justifique a razão pela qual o contrato não foi reduzido a escrito, tal omissão não deve de todo ser imputável à arrendatária.
Tudo porque só deste modo se respeita a vontade do legislador no D.L. nº13/2019 de protecção da posição do arrendatário.
Nestes termos e aderindo aos argumentos recursivos que sustentam o recurso da ré/apelante deve o contrato dos autos ser, pois, tido como válido».
Com efeito, resulta dos factos apurados que, desde, pelo menos, setembro de 1987, os proprietários do imóvel, anteriores aos Autores, concederam o gozo temporário da parte do rés-do-chão do mesmo, com entrada pelo n.º 256, mediante retribuição.
Face ao regime legal já explanado, aquando do período temporal da cessão daquele gozo do imóvel, a falta de formalização por escrito do contrato de arrendamento, não acarretava responsabilização do arrendatário, ou seja, a omissão em causa não lhe era imputável.
No caso dos autos, relativamente aos anteriores proprietários, nada ficou esclarecido sobre a razão pela qual, inexistia documento escrito que legitimasse a cessão do gozo do imóvel, nem a ré alegou circunstancialismo a tal atinente.
O que se descortinou foi que, os anteriores proprietários, se não opuseram ao gozo do rés-do-chão pela ré, tanto que, como contrapartida recebiam o inerente pagamento, ou seja, até ao ano de 2015 a renda foi paga em casa do anterior proprietário, o Sr. FF e, a partir de certo momento, numa conta bancária que para o efeito foi indicada à Ré.
Efetivamente, houve uma relação de locação, nos termos do disposto no art. 1022º do Código Civil, que perdurou no tempo, vindo a merecer a tutela da disposição transitória do artigo 14º da Lei nº 13/2019, de 12 de fevereiro.
O nº. 2 deste artigo 14º veio permitir que o arrendatário, na falta de redução a escrito do contrato de arrendamento que não lhe seja imputável, possa provar a existência de título por qualquer forma admitida em direito, demonstrando a utilização do locado pelo arrendatário, sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda por um período de seis meses.
Ora, não obstante, não se ter demonstrado o motivo pelo qual, os anteriores proprietários do imóvel não formalizaram por escrito o contrato, o certo é que também se não provou que houvesse alguma imputabilidade por banda da ré, relativa a tal omissão.
E a prova produzida confirma que os anteriores donos, não se opuseram ao gozo do bem pela ré e que esta, sempre procedeu naquele período temporal ao pagamento da correspondente renda mensal.
De acordo com o art. 1º da Lei 13/2019, de 12 de fevereiro, o seu objeto foi estabelecer medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade.
Com efeito, perante a consolidação temporal da relação existente entre os anteriores proprietários e a ré e, tendo ainda presente, o princípio da segurança jurídica, não seria conforme com o princípio da proporcionalidade, em conjugação com a proteção que a lei confere aos arrendatários, penalizar a ré pela não alegação e prova de que a falta da forma escrita se devia aos senhorios, tendo a mesma alegado que tal se não devia a culpa sua.
Aqui chegados, temos de concluir que a ré logrou demonstrar a sua qualidade de arrendatária, não obstante a inexistência de título escrito a titular o contrato de arrendamento, dando cumprimento ao desiderato legal do nº. 2 do art. 1069º do Código Civil, na redação dada pela Lei nº. 13/2019, de 12 de fevereiro.
Assim sendo, nos termos do disposto no art. 342º do Código Civil, a ré logrou provar a sua qualidade de arrendatária da parte do rés-do-chão do imóvel que ocupa, inviabilizando a procedência do pedido de restituição deduzido pelos autores.
Destarte, não merece censura o acórdão recorrido quando reconheceu a qualidade de arrendatária da ré e a absolveu do demais peticionado.
Do não conhecimento do pedido subsidiário:
Os recorrentes formularam aquando da propositura da ação, o seguinte:
- Caso assim se não entenda, se o Tribunal vier a considerar que a Ré ocupa o local legitimamente com base em contrato de arrendamento, pede a título subsidiário;
a) Que seja decretada a resolução do respetivo contrato de arrendamento nos termos conjugados dos artigos 1083º, nº3 e 1084º do Código Civil, por falta de pagamento das rendas que se venceram desde julho de 2020 até à presente data;
b) Que seja a Ré condenada a proceder à desocupação do imóvel locado, devendo o mesmo ser restituído aos Autores, devoluto de pessoas e bens;
c) Que seja a Ré condenada no pagamento de todas as rendas vencidas até à presente data, que se cifram em 6.736,00 €, bem como das vincendas até à efetiva desocupação do locado, acrescidas dos juros de mora até efetivo e integral cumprimento;
d) Que seja a Ré condenada a pagar uma indemnização aos Autores, à luz do disposto no art.º 1045º, nº2 do Código Civil.
A sentença da 1ª. Instância considerou prejudicado o conhecimento do pedido subsidiário formulado pelos autores, na medida em que os pedidos principais haviam procedido.
Aquando da apresentação das suas contra-alegações, no âmbito do recurso interposto para o Tribunal da Relação, requereram os autores, para a hipótese de o recurso da Ré ser provido, que fosse apreciado o pedido subsidiário com o decretamento da resolução do contrato de arrendamento.
A este propósito escreveu-se no acórdão recorrido:
«Perante o acabado de expor, resulta evidente que tal pretensão tem por base o disposto no nº1 do art.º 636º do CPC.
Ora sendo claro que tal possibilidade estava, em abstrato, ao alcance dos autores/apelados a verdade é que nestes casos a lei não se basta com a dedução desta pretensão nos termos simplistas em que esta formulada nos autos.
Ou seja, o funcionamento da regra da ampliação do recurso prevista no referido artigo exige que no corpo das contra-alegações seja alegada matéria que de forma suficiente permita a sua apreciação e decisão, o que no caso manifestamente não ocorreu.
E ao requerido pelos autores/apelantes também não pode, em nosso entender, ser aplicado o regime previsto no art.º 665º, nº2 do CPC.
E isto porque, salvo melhor opinião, consideramos não ter ao nosso dispor os elementos de facto e de direito que são necessários, para que o conhecimento da questão suscitada se mostre possível.
Em suma e concluindo como iniciamos, não pode ser apreciado o pedido de ampliação do âmbito do recurso que os autores/apelados aqui vieram apresentar».
Dispõe o nº. 1 do art. 636º do CPC., no que concerne à ampliação do âmbito do recurso a requerimento do recorrido, que no caso de pluralidade de fundamentos da ação ou da defesa, o tribunal de recurso conhecerá do fundamento em que a parte vencedora decaiu, desde que esta o requeira, mesmo a título subsidiário, na respetiva alegação, prevenindo a necessidade da sua apreciação.
Prevê-se aqui a possibilidade de a parte recorrida poder suscitar nas contra-alegações de recurso a reapreciação dos fundamentos em que tenha decaído, prevenindo os riscos de uma eventual resposta favorável do tribunal de recurso às questões que tenham sido suscitadas pelo recorrente.
Porém, situação diversa ocorre quando o tribunal nem sequer se pronuncia sobre determinadas questões suscitadas, julgando-as prejudicadas pela solução dada a outras.
Como alude António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, Almedina, 7ª. ed., pág.153 «Em tais circunstâncias, a tutela dos interesses do recorrido não passa pela ampliação do objeto do recurso, entrando em funcionamento o mecanismo prescrito pelo art. 665º, nº. 2, para o recurso de apelação».
Dispondo o nº. 2 do art. 665º do CPC. que, se o tribunal tiver deixado de conhecer certas questões, designadamente por as considerar prejudicadas pela solução dada ao litígio, a Relação, se entender que a apelação procede e nada obsta à apreciação daquelas, delas conhece no mesmo acórdão em que revogar a decisão recorrida, sempre que disponha dos elementos necessários.
Com efeito, é ao Tribunal da Relação que incumbe aquilatar se dispõe ou não de elementos para apreciar as questões prejudicadas, ou seja, conhecer das questões se estiver na posse de todos os elementos, ou providenciar pela sua obtenção nos termos gerais, tendo presente o disposto no art. 665º do CPC., não incumbindo tal tarefa ao recurso de revista, nos termos do plasmado no art. 679º do CPC.
Destarte, procede nesta parte o recurso, devendo os autos baixar ao Tribunal da Relação, para a apreciação do pedido subsidiário.
Sumário:
- As alterações que a Lei nº. 13/2019, de 12 de fevereiro, nos termos do nº. 2 do seu art. 14º, introduziu ao art. 1069º Código Civil, aplicam-se não apenas aos contratos futuros, mas também aos contratos celebrados em data anterior à entrada em vigor da lei, nos termos da regra geral sobre aplicação da lei no tempo prevista no nº. 2 do art. 12º, na medida em que tais normas contendem com o conteúdo de relações jurídicas abstraindo dos factos que lhe deram origem.
- A exigência da forma escrita para os contratos de arrendamento, constante do artigo 1069.º, n.º 1, do Código Civil, é meramente ad probationem.
- Pretendendo o arrendatário fazer prova da existência de contrato de arrendamento, terá de alegar e demonstrar a utilização do locado sem oposição do senhorio e o pagamento mensal da respetiva renda pelo período de seis meses.
- Não seria conforme com o princípio da proporcionalidade, em conjugação com a proteção que a lei confere aos arrendatários, penalizar a ré pela não alegação e prova de que a falta da forma escrita se devia aos senhorios, tendo a mesma alegado que tal se não devia a culpa sua.
- É ao Tribunal da Relação que incumbe aquilatar se dispõe ou não de elementos para apreciar as questões prejudicadas, ou seja, conhecer das questões se estiver na posse de todos os elementos, ou providenciar pela sua obtenção nos termos gerais, tendo presente o disposto no art. 665º do CPC., não incumbindo tal tarefa ao recurso de revista, nos termos do plasmado no art. 679º do CPC.
3- Decisão:
Nos termos expostos, acorda-se em:
- Julgar improcedente a revista, mantendo-se o acórdão proferido.
-Determinar a remessa dos autos ao Tribunal da Relação, para apreciação do pedido subsidiário.
Custas a cargo dos autores.
Lisboa, 17-10-2024
Maria do Rosário Gonçalves (Relatora)
Luís Espírito Santo
Luís Correia de Mendonça