QUALIFICAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
INSOLVÊNCIA CULPOSA
APLICAÇÃO DA LEI NO TEMPO
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
JUNÇÃO DE PARECER
PRAZO PERENTÓRIO
CONTAGEM DE PRAZOS
INTEGRAÇÃO DE LACUNAS
NULIDADE DE ACÓRDÃO
ARGUIÇÃO DE NULIDADES
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
Sumário


O prazo de quinze dias, do artigo 188.º, 1 do CIRE, para o administrador da insolvência requerer a abertura do incidente de qualificação da insolvência, é um prazo preclusivo.

Texto Integral


Processo 40/21.6T8EVR-C.E1.S1

6.ª SECÇÃO


***


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

***


AA, administradora da Insolvência (AI), veio, ao abrigo do artigo 188.º, 3 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE), apresentar parecer de qualificação da insolvência de R..., S.A., tendo concluído que aquela deveria ser qualificada como culposa e serem afectados pela qualificação os administradores BB e CC.

O Ministério Público acompanhou o parecer da AI.

Os administradores impugnaram os factos apresentados pela AI. Pediram que a insolvência fosse qualificada como fortuita.

A AI manteve o seu parecer.

Foi proferida decisão que qualificou a insolvência como culposa, julgou afectados pela qualificação ambos os requeridos, declarou-os inibidos para o exercício do comércio pelo período de 3 (três) anos e inibidos, por igual período, para a ocupação de qualquer cargo de titular de órgão de sociedade comercial ou civil, associação ou fundação privada de actividade económica, empresa pública ou cooperativa; bem como, inibidos para administrar patrimónios de terceiros, por igual período, determinou a perda de quaisquer créditos sobre a insolvência ou sobre a massa insolvente detidos pelos requeridos, condenando-os na restituição de quaisquer bens ou direitos já recebidos em pagamento desses créditos e ainda a indemnizar os credores da sociedade insolvente, no montante dos créditos não satisfeitos, correspondente ao valor dos créditos reconhecidos, deduzido do montante que foi ou vier a ser pago no âmbito do processo da insolvência, até às forças dos respectivos patrimónios.

Os requeridos interpuseram recurso, concluindo, entre outras conclusões, que o prazo fixado no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE tem natureza peremptória, pelo que o parecer da AI enferma de vício de caducidade por efeito de extemporaneidade.

O Tribunal da Relação de Évora considerou que «ao tempo do oferecimento da alegação do administrador de insolvência tendente à abertura do incidente de qualificação e à afectação dos ora apelantes pela qualificação da insolvência como culposa, já se extinguira a possibilidade de um tal acto ser praticado. E, consequentemente, que tal deveria ter sido reconhecido pelo tribunal, ao invés de ter sido decretada a abertura do incidente de qualificação, com toda a respectiva tramitação e ulterior decisão final».

Consequentemente, o segundo grau revogou a decisão recorrida, que substituiu por outra que, reconhecendo a extemporaneidade do incidente, reconheceu igualmente a extemporaneidade da abertura do incidente de qualificação de insolvência, decretando o seu arquivamento.

Inconformada, interpôs a AI competente recurso de revista, cuja minuta conclui da seguinte forma:

«I. A douta decisão recorrida não deixa margem para surgimento de factos supervenientes que possam implicar a abertura do incidente de qualificação após o seu conhecimento, ponderação e reunião da respetiva prova, mesmo nos encontramos perante um processo de excepcional complexidade e durante um dos períodos mais difíceis da historia contemporânea mundial, mais concretamente a pandemia (COVID 19);

II. Originando deste modo uma decisão que não é justa, até porque, como se sabe, esses factos novos foram de tal forma relevantes que vieram a determinar a qualificação da insolvência como culposa, afectando os Recorridos.

III. Assim, não se pode concordar com a posição do Venerado Tribunal da Relação de Évora vertida no Acórdão que agora se recorre, uma vez que este Venerado Tribunal não contempla, nomeadamente, no seu raciocínio, os n.º 3 e o n.º 5 do artigo 188.º, em conjugação com o n.º 1, todos do CIRE em vigor à data dos factos em causa nos presentes autos.

IV. Não releva, ainda, os factos supervenientes carreados para os autos pela Sra. Administradora Judicial. E assim sendo, o douto Acórdão é nulo por aplicação da al. d) do n.º 1 do artigo 615.º ex vi artigo 666.º, ambos do Cód. Proc. Civil, uma vez que os Venerados Juízes Desembargadores deixaram “(…) de pronunciar-se sobre questões que devesse(m) apreciar (…)”, questões estas essenciais, de facto e de direito, em que aquelas centralizaram o presente litígio. E ainda, considera que este prazo não é meramente ordenador relativamente ao Administrador Judicial, o que vai contra o que tem sido jurisprudência maioritária, como superiormente foi sumariamente transcrito;

V. Ora, no caso sub judice, foi apresentado o parecer de qualificação, nos termos do n.º 3 e n.º 1 do supracitado preceito legal (artigo 188.º do CIRE) em vigor à data, visto que foram carreados para os autos factos supervenientes, que do entender da Ex.ma Sra. Administradora Judicial, davam por verificadas as várias alíneas do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE.

VI. Factos estes conhecidos supervenientemente porque, como já explanado em sede de contra-alegações, vivíamos, há data, tempos dificílimos, mais concretamente: no meio da pandemia com sucessivas suspensões dos prazos, adiamentos de atos e diligências, conforme lei e portarias que ora se escusa a indicar, porque de leis sabe este Venerado Tribunal, na incerteza constante e todos nos sabemos a dificuldade que passamos a ter para exercer as mais simples funções, da vida corrente; como para nos deslocarmos para ir buscar documentos físicos, para elaboração do parecer, reuniões, presenciais que deixaram de acontecer e tivemos todos que nos adaptar a uma era digital como nunca visto e que não estávamos preparados.

VII. Tudo isto aleado à complexidade dos presentes autos, foram praticados múltiplos atos complexos e que hoje todos nós conhecemos, praticados pelos Recorridos, que implicaram uma análise por uma equipa multidisciplinar, tendo ainda sido necessário realizar-se uma perícia, que tinha de ser autorizada previamente, em reunião da comissão de credores que por sua vez teve de ser nomeada e constituída. Situação factual que foi atendida na decisão proferida pelo Tribunal de Primeira Instância.

VIII. Dito de outro modo, chegaram ao conhecimento da Administradora, situações que impunham que se analisasse uma possível qualificação da insolvência como culposa, designadamente os factos constantes das alíneas b), d), f), g) do n.º 2 do artigo 186.º do CIRE. O que ocorreu antes do momento da M. Juiz encerrar o processo, atendendo ainda que tinha que se pronunciar pelo caráter fortuito ou culposo da insolvência, impediu que o Tribunal a quo efetuasse uma decisão automática do caráter fortuito da insolvência quando existiam alguns indícios que exigem uma outra ponderação e reunião de provas.

IX. Podemos sempre falar, no limite, na existência de uma lacuna, uma vez que estamos perante uma situação que o legislador não previu, pelo que seria sempre de aplicar o n.º 3 do artigo 10.º do Cód. Civil: “Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro doespírito do sistema.” Situação esta que o Venerando Tribunal da Relação de Évora nem sequer considerou no Acórdão que agora se recorre.

X. Assim, a norma que integra a lacuna existente é no sentido de que o incidente de qualificação de insolvência poder ser aberto, a requerimento nomeadamente do Administrador Judicial, até ao encerramento do processo de insolvência se o tribunal entender que há fundamento para tal, que no caso considerou existir.

XI. Neste mesmo sentido foi designadamente o Venerado Tribunal da Relação do Porto, no douto Acórdão de 09/01/2020, no proc. 991/12.9TYVNG-D.P1, em que foi Relator o Juiz Desembargador Sr. Dr. João Venade, cujo sumario foi superiormente transcrito e aqui por mera economia processual se dá por integralmente reproduzido;

XII. Ainda nesse sentido, a propósito da Proposta de Lei nº 39/XII, que esteve na base da Lei n.º 16/2012, de 20 de Abril, veja-se ainda o Parecer apresentado pela Ordem dos Advogados, onde se refere que o prazo de 15 dias era insuficiente porque muitas vezes, nem os credores nem o administrador de insolvência dispõem de informações relevantes para efeitos de qualificação da insolvência dentro do prazo actualmente previsto. Sugere-se por isso que se preveja a possibilidade de (re)abrir o referido incidente durante todo o processo, desde que o interessado prove que apenas teve conhecimento do(s) facto(s) após decorrido o prazo previsto artigo 188.º, n.º 1, do CIRE. Note-se que, por exemplo, os actos resolúveis, nos termos do artigo 120.º e seguintes do CIRE por vezes chegam ao conhecimento do administrador de insolvência e/ou credores depois de decorrido o referido prazo, podendo tais actos justificar a eventual qualificação da insolvência como culposa”.

XIII. Na mesma proposta acabada de referir, é de notar ainda o Parecer apresentado pela CIP-Confederação Empresarial de Portugal: “(…) em processos de maior dimensão, foi necessário recorrer a consultoras especializadas, para apurar e auditar contas e procedimentos, e que esses trabalhos demoram meses, resulta impossível conciliar e realizar tais actividades com o prazo legal estabelecido»; e ser «de relevar a dificuldade que qualquer credor tem em aceder aos documentos ou à “vida” da empresa, em momento anterior à insolvência, pelo que, também por esta situação, não se como é que o prazo legal cumpre a sua função (…)”.

XIV. Tudo isto foi sempre alegado pela Recorrente, como se pode ver designadamente no requerimento de 22/11/2021, com a referência Citius ...90, que aqui se dá por integralmente por reproduzido por uma questão de mera economia processual;

XV. O que é certo é que o Tribunal de Primeira Instância atendeu aos factos supervenientes carreados para os autos e até os considerou como relevantes para a tomada de decisão, que como sabemos veio a determinar a qualificação de insolvência como culposa dos Recorridos;

XVI. Assim, a 28/05/2021, no processo Principal, foi proferido o douto Despacho no sentido de a “… AI, querendo, dar origem ao incidente supra referido, dirigindo aos processo requerimento, que será autuado por apenso.” (Itálico, negrito e sublinhado nosso).

XVII. Ou seja, há questões sobre a qual o douto Acórdão não se debruça, especificamente o seguinte segmento da douta Sentença que fundamenta a tempestividade ao abrigo do n.º 1, em conjugação com os n.º 3 e n.º 5 do artigo 188.º do CIRE na redação em vigar à data, bem como ainda da existência de fatos supervenientes carreados para os autos:

XVIII. Dito de outro modo, a Ex.ma Administradora Judicial teve conhecimento de factos supervenientes, que foram carreados para os autos e que determinaram o douto Despacho de abertura do incidente de qualificação. Em consequência, teve a possibilidade de apresentar o seu parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, no prazo de 20 dias, ao abrigo dos n.º 3 e n.º 1 do artigo 188.º na redação dada pelo DL n.º 84/2019, de 28/06.

XIX.Ainda é relevante ressalvar que estávamos perante um prazo meramente ordenador. Isto porque a Senhora Administradora de Insolvência é uma colaboradora do Tribunal e não uma parte do processo e, como tal, o parecer de qualificação de insolvência é um dever funcional que está submetido ao controlo jurisdicional. Sendo que o Tribunal da Relação no Acórdão agora em crise decide ao contrário, contrariando assim a Jurisprudência dominante.

XX. A este respeito veja-se o douto Acórdão do Venerado Supremo Tribunal de Justiça, de 13/07/2017, no proc. 2037/14.3T8VNG-E.P1.S2, em que foi Relator o Juiz Conselheiro Sr. Dr. João Camilo, cujo sumario foi superiormente transcrito e aqui por mera economia processual se dá por integralmente reproduzido;

XXI. No mesmo sentido, vai o douto Acórdão do Venerado Tribunal da Relação de Évora, de 14/07/2020, no proc. 538/16.8OLH-E.E1, em que foi Relator o Juiz Desembargador Sr. Dr. José Manuel Barata, cujo sumario foi superiormente transcrito e aqui por mera economia processual se dá por integralmente reproduzido;

XXII.Ainda no mesmo sentido veja-se ainda douto Acórdão do Venerado Tribunal da Relação de Évora, de 09/09/2021, no proc. 1859/20.0T8STR-H.E1, em que foi Relator Sr. Dr. José Manuel Barata, cujo sumário foi superiormente transcrito e aqui por mera economia processual se dá por integralmente reproduzido;

XXIII. Por estes motivos, ao abrigo dos n.º 1, 3 e n.º 5 do artigo 188.º do CIRE, em vigor à data, bem como existência de factos supervenientes, bem ainda, considerando o prazo aí constante como meramente ordenador relativamente à Ex.ma

Administradora Judicial, a douta Sentença afirma o seguinte: “O despacho que declarou aberto o incidente de qualificação de insolvência foi proferido em 16-06-2021. O qual não era passível de recurso, pelo que, transitou em julgado.” (Pág. 13 da douta Sentença). E assim sendo, tem de se considerar a abertura do incidente de qualificação de insolvência como tempestivo. Desde modo,

XXIV. A decisão recorrida, objeto do presente Recurso, não pode manter-se, pois efetuou uma errada aplicação e interpretação da lei, nomeadamente dos n.º 1, n.º 3 e n.º 5 do artigo 188.º do CIRE, na redação dada pelo DL n.º 84/2019, de 28/06, e n.º 3 do artigo 10.º do Cód. Civil quanto à integração de lacuna pela existência de factos supervenientes para efeitos de qualificação de insolvência, violando deste moto a al. d) do n.º 1 do artigo 615.º ex vi artigo 666.º, ambos do Cód. Proc. Civil, e ainda violando a jurisprudência maioritária, supra melhor identificada, devendo em consequência V./ Ex.ªas revogar a decisão e substituir por outra, que depois de analisar e decidir sobre as restantes questões suscitadas, decida pela confirmação da douta Sentença do tribunal a quo e qualifique a insolvência como culposa, afetando os aqui recorridos.

NESTES TERMOS E NOS MELHORES EM DIREITO, SEMPRE COM MUI SUPRIMENTO DE VOSSAS EXCELÊNCIAS, DEVERÃO REVOGAR A DOUTA DECISÃO RECORRIDA, E EM CONSEQUÊNCIA, DEVERÁ QUALIFICAR-SE A INSOLVÊNCIA COMO CULPOSA, NOS TERMOS DO DISPOSTO NAS ALÍNEAS B), D), F), G) DO 2 DO ARTIGO 186.º DO CIRE, TODAVIA FARÃO V/ EXCELÊNCIAS A ACOSTUMADA JUSTIÇA!

Os requeridos apresentaram contra-alegações em que pugnam pela confirmação do acórdão.


***


São questões decidendas saber:

1) se o acórdão é nulo por omissão de pronúncia ex 615.º, 1, al.d), 1.ª parte, do Código de Processo Civil (CPC);

2) se a nova redacção dada ao artigo 188.º, 1 pela Lei 9/2022, de 11 de Janeiro é aplicável ao caso;

3) qual a natureza do prazo a que alude o artigo 188.º, 1 do código da insolvência e da recuperação de empresas (CIRE), se peremptório ou se meramente ordenador;

4) se esse prazo é ou não preclusivo;

5) se o artigo 188.º contém uma lacuna carecida de integração;

6) se o acórdão recorrido deve ou não ser revogado.


***


São os seguintes os enunciados de dados de facto considerados assentes no primeiro grau:

1. A Insolvente R..., S.A., titular do NIPC ...16, tem sede na Rua ..., Freguesia e Concelho de ..., Distrito de ..., com o capital social de 1.497.000,00 Euros;

2. Tem como objeto social a «Fabricação e comercialização de alimentos compostos para animais»;

3. A CAE principal é «...12-R3», correspondente a «fabricação de alimentos para animais de criação (exceto para aquicultura)»;

4. A CAE secundário é «...00-R3», correspondente a «arrendamento de bens imobiliários»; 5. A constituição da sociedade e designação de membros de órgãos sociais encontra-se registada pela apresentação AP. 1/...21, sendo o Conselho de Administração constituído por “P..., S.A.”, que nomeou como administrador DD; EE, FF, GG e HH;

6. Encontra-se registada uma alteração ao contrato de sociedade, inscrita pela apresentação AP. 1/...13;

7. Encontra-se registada uma designação de membros de órgãos sociais, inscrita pela apresentação AP. 1/...22; passando o Conselho de Administração a ser constituído por EE, FF e DD;

8. Encontra-se registada uma cessação de funções de membros de órgãos sociais, inscrita pela apresentação AP. 1/...24, por renúncia do administrador DD; 9. Encontra-se registada uma designação de membros de órgãos sociais, inscrita pela apresentação AP. 2/...24, designando administrador II;

10. Encontra-se registada uma designação de membros de órgãos sociais, inscrita pela apresentação AP. 39/...17, designando administradores EE, II e FF;

11. Encontra-se registada uma cessação de funções de membros de órgãos sociais, inscrita pela apresentação AP. 36/...22, por renúncia dos administradores EE, II e FF;

12. Encontra-se registada uma designação de membros de órgãos sociais, inscrita pela apresentação AP. ...84/...16, passando o Conselho de Administração a ser constituído por FF, BB e JJ; sendo a respectiva deliberação datada de 21-01-2016;

13. Encontra-se registada a nomeação de Administrador Judicial Provisório no âmbito de processo especial de revitalização, inscrita pela apresentação AP. 1/...617;

14. Encontra-se registada a decisão de homologação de plano de recuperação em processo especial de revitalização (sentença de 09-06-2016), inscrita pela apresentação AP. 1/...21;

15. Encontra-se registada uma alteração ao contrato de sociedade e designação de membros de órgãos sociais, inscrita pela apresentação AP. ...80/...15; passando o Conselho de Administração a ser constituído por BB e CC; sendo a respectiva deliberação datada de 28-02-2019;

16. Em 07-01-2021 a Sociedade “R..., S.A.” apresentou-se à insolvência. Tendo sido declarada insolvente por sentença proferida em 08-02-2021, transitada em julgado;

17. A sociedade “S..., Lda.” foi constituída em 26-08-1988, e designou como gerentes todos os sócios; contudo, mediante deliberação social tomada em Assembleia Geral de Sócios datada de 02/05/2016, o artigo 6.º do Pacto Social foi alterado, deixando de existir a referida correlação entre sócios e gerentes;

18. Encontra-se registada a homologação de plano de recuperação em processo especial de revitalização da sociedade “S..., Lda.”, inscrita pela apresentação AP. 3/...26; com data de trânsito em julgado em 22-08-2016;

19. Encontra-se registada uma transmissão de quotas da sociedade “S..., Lda.”, inscrita pela Dep. 12/...01; sendo sujeito activo, da quota de 174.579,26 Euros, CC;

20. A sociedade “R..., Lda.”, foi constituída em 04-12-2018; inscrita pela apresentação AP. 6/...04, tendo como objecto social comércio, ensaque, empacotamento e embalamento, por grosso e a retalho de rações e outros alimentos, produtos de higiene, acessórios e equipamentos para animais, produtos, equipamentos e acessórios para a agricultura e pecuária e outros complementares, representação de marcas, consultoria, formação, prestação de serviços; e tendo como sócios CC e KK; sendo gerente CC;

21. A sociedade “M..., Lda.”, foi constituída em 07-09-2018; inscrita pela apresentação AP. 6/...10; tendo como objecto social a compra e venda de imóveis, compra de imóveis para revenda, administração de propriedades, gestão de imóveis próprios, arrendamento rural, exploração agrícola, pecuniária e sunícola de prédios rústicos, incluindo arrendamento a terceiros; tendo como sócios-gerentes CC e BB;

22. Em 07-01-2016, a “R..., S.A.” apresentou-se em processo especial de revitalização, a que foi atribuído o n.º 39/16.4...;

23. Em 09-06-2016, foi proferida sentença de homologação do plano de revitalização da sociedade insolvente, no âmbito do processo n.º 39/16.4...;

24. A Caixa Económica Montepio Geral instaurou o processo n.º 644/20.4..., Execução Ordinária, no Juízo de Execução de ...com o valor de 204.644,69 €;

25. A Caixa Económica Montepio Geral instaurou o processo n.º 643/20.6..., Execução Ordinária, no Juízo de Execução de ... Valor, com o valor de 891.357,79 €; 26. Em 16-10-2020, os Administradores da devedora venderam, pelo preço de 98.400,00 Euros, 11 viaturas (descritas no facto 4.1.82.), à Sui..., Lda.; tendo o preço sido pago à R..., S.A.;

27. O montante de 98.400,00 Euros foi transferido pela insolvente à Sui..., Lda. em 26-10-2020 e 27-10-2020, nos montantes de 50.000,00 Euros (transferências de 5.000,00 Euros, 15.000,00 Euros, 15.000,00 Euros, 15.000,00 Euros) e 48.400,00 Euros (transferências de 3.400,00 Euros, 15.000,00 Euros, 15.000,00 Euros, 15.000,00 Euros), respectivamente;

28. Em 26-10-2020, os Administradores da Devedora venderam, pelo preço de 9.225,00 Euros, parte do equipamento industrial da devedora, nomeadamente dois empilhadores, à Sui..., Lda.;

29. Em 30-10-2020, os Administradores da Devedora outorgaram um “Contrato de Fabrico de ...” com a sociedade Sui..., Lda.; nos seguintes termos

30. As facturas da R..., S.A. com os n.º A/...28 e A/...24 foram pagas pela Sui..., Lda. na totalidade, 17.379,90 Euros;

31. As facturas da R..., S.A. com os n.º A/...30 e A/...29, que totalizariam o valor de 12.410,70 Euros, excedem as 1000 toneladas (no caso destas facturas estão facturadas 1143 toneladas), e sendo aplicado o desconto contratado, só é liquidado o montante de 5.381,25 Euros, sendo o valor do desconto de 7.029,45 Euros;

32. As facturas da R..., S.A. com os n.º A/...31 e A/...35 foram pagas pela Sui..., Lda. na totalidade, 12.109,35 Euros;

33. As facturas da R..., S.A. com os n.º A/...37 e A/...36, que totalizariam o valor de 14.169,60 Euros, considerando que excedem as 1000 toneladas (no caso destas facturas estão facturadas 1006 toneladas), sendo aplicado o desconto contratado só é liquidado o montante de 7.982,70 Euros, sendo o valor do desconto de 6.186,90 Euros;

34. Em 30-10-2020, os Administradores da Devedora outorgaram um “Contrato de Constituição de Penhor e Confissão de Dívida” com a sociedade Sui..., Lda.; nos seguintes termos:

35. Na generalidade, os pagamentos efectuados entre fornecedor/cliente, eram efectuados via encontro de contas, sendo o saldo pendente a favor da Sui..., Lda., em 30-09-2020 de 76.453,59 Euros, e em 30-10-2020 de 89.134,00 Euros; pelo que, a soma dos saldos pendentes a favor da Sui..., Lda., em 30-10-2020 era de 165.587,59 Euros;

36. KK foi trabalhador da Devedora desde 16-05-2018 até 02-06-2021; tendo passado a trabalhar para a sociedade “M..., Lda.”; porém, a sua remuneração em Maio de 2021 foi paga pela sociedade insolvente;

37. A sociedade insolvente manteve os 3 motoristas como funcionários da devedora e a expensas desta, pese embora ao serviço da Sui..., Lda.;

38. A devedora, além da venda por grosso, também procedia à venda ao público/consumidores finais; estes serviços foram mantidos, na generalidade, com os mesmos clientes, mas todo o processo de comercialização é efectuado por funcionários e equipamento da devedora, pese embora em nome da Su..., Lda.;

39. Pelos Administradores da devedora, foi concedido crédito, no montante de 4.489.921,35 Euros, à sociedade “S..., Lda.”, no hiato temporal compreendido entre Agosto de 2014 e Dezembro de 2015; sendo que, actualmente ascende 6.321.325,49 Euros;

40. Em 2020, foi intentada uma acção para cobrança do crédito detido pela insolvente sobre a “S..., Lda.” no montante de 6.321.325,49 Euros;

41. Os Requeridos têm respondido a todas as questões que a senhora AI lhes tem colocado, desde o início, e sempre estiveram disponíveis para qualquer colaboração que lhes tenha sido solicitada;

42. À data da insolvência, a devedora não se encontrava em situação de incumprimento de obrigações tributárias, nem à Segurança Social;

43. A sociedade insolvente, sob a gestão dos Conselhos de Administração nomeados em 2016 e, posteriormente, em 2019, foi cumprindo com os pagamentos à generalidade dos seus credores, com inclusão daqueles que estavam no PER;

44. No âmbito do PER ficou estabelecido que a devedora iria proceder, durante os anos de 2017 e 2018, a: - Carência de pagamento de capital à Banca; - Carência de pagamento de dívida (capital e juros) a fornecedores da devedora; - Pagamento de juros à Banca; - Pagamento de dívida a ex-trabalhadores da devedora; durante estes dois anos, o plano de pagamentos estabelecido no PER foi cumprido; amortizando dívida a credores;

45. À data da apresentação à insolvência, a devedora tinha dívidas vencidas à banca; apresentando um passivo superior a 5 milhões de euros;

46. Relativamente aos veículos vendidos pela devedora, a mesma pretendia, já anos antes da celebração do negócio com a sociedade Sui..., Lda., proceder à sua alienação pelo preço justo de mercado; devido à sucessiva desvalorização comercial dos veículos em função da sua antiguidade, quilometragem e estado geral; bem como, devido, ao elevado custo das suas manutenções e reparações técnicas associado à antiguidade dos bens em causa;

47. A administração da devedora pretendia alienar as suas viaturas, passando a recorrer a serviços externos de transporte;

48. A administração da devedora já tinha efectuado, no início do ano de 2019, contactos e negociações atinentes à alienação das suas viaturas; contudo, nunca obteve quaisquer interessados na aquisição, mediante preços razoáveis;

49. Os veículos continuam a ser conduzidos pelos funcionários da devedora, no âmbito do contrato celebrado entre esta e a sociedade Sui..., Lda.;

50. A adquirente Sui..., Lda. pagou o preço acordado pelas viaturas; sendo que, todas as transferências bancárias efectuadas pela devedora àquela se destinaram à regularização de valores vencidos em conta corrente;

51. Os empilhadores tinham várias avarias; em Outubro e Novembro de 2021, a insolvente efectuou pagamentos nos montantes de 3.054,71 Euros, 425,70 Euros, e 649,81 Euros, relativos a facturas de reparação dos empilhadores;

52. Parte do dinheiro proveniente da venda dos empilhadores destinou-se ao pagamento das referidas facturas;

53. Relativamente ao contrato de fabrico de rações, foi estabelecido que a redução de preço só incide sobre o excedente de 1.000 toneladas mensais, caso este se verifique mensalmente, e não sobre a totalidade do volume de produção;

54. Anteriormente ao início da relação comercial com a Sui..., Lda., a fornecedora da devedora era a empresa R..., S.A.;

55. Devido aos valores em dívida vencidos, desde Março de 2020, que a R..., S.A. exerceu grandes pressões, para que a devedora efectuasse os respectivos pagamentos;

56. Tais valores vieram a ser liquidados pela devedora, na íntegra, até Setembro de 2020;

57. Desde Fevereiro de 2020, a devedora iniciou relações comerciais com a sociedade Sui..., Lda.; 58. Devido às fortes pressões da R..., S.A. para que os seus pagamentos fossem efectuados, a devedora foi forçada a atrasar os seus pagamentos com a Sui..., Lda., o que motivou que esta entidade passasse também a exercer pressão sobre aquela, para redução dos valores em conta corrente;

59. A R..., S.A. passou a exigir que os pagamentos passassem a ser efectuados em regime de pronto pagamento, o que não era praticável para a devedora;

60. Foi neste contexto de inexistência de outras opções que a devedora celebrou o contrato com a Sui..., Lda.;

61. O contrato tinha a duração de um ano;

62. A R..., S.A. manteve um tipo idêntico de relação comercial com a sociedade E... entre os anos de 2016 e 2018, mas não em regime de exclusividade; também entre 2016 e 2018, a devedora manteve uma relação comercial semelhante com a sociedade T..., mas não em regime de exclusividade;

63. O contrato de constituição de penhor e confissão de dívida foi uma exigência/condição da sociedade Sui..., Lda. para celebrar com a devedora o contrato de fabrico de rações;

64. A Massa insolvente da devedora, sob a administração da senhora AI, continua a manter idêntico contrato de fabrico de rações, mas com a Su..., Lda.;

65. Os Requeridos nunca administraram a sociedade Sui..., S.A.;

66. A sociedade R..., Lda. foi constituída pelo administrador CC e por KK, e tinha propósitos inerentes de desenvolvimento de uma actividade em cooperação com a devedora, e não de concorrência; contudo, esta sociedade nunca chegou a desenvolver, desde a data da sua constituição, qualquer actividade;

67. Aquando da prática dos actos contratuais com a sociedade Sui..., Lda., em Outubro de 2020, a devedora tinha dívidas vencidas em montante superior a 5 milhões e setecentos mil euros;

68. A Administradora de Insolvência procedeu, em 23-06-2021, à resolução dos seguintes actos:

a) Venda realizada pela Insolvente à Sui..., Lda. de 11 viaturas automóveis, realizada no dia 16/10/2020;

b) Venda realizada pela Insolvente à Sui..., Lda. de 2 empilhadores, realizada no dia 16/10/2020;

c) Contrato de fabrico de rações entre a Insolvente e a Sui..., Lda., celebrado em 30/10/2020;

d) Contrato de constituição de Penhor e confissão de dívida entre a Insolvente e a Sui..., Lda., celebrado em 30/10/2020;

69. Os ditos veículos, posteriormente, foram vendidos pela Sui..., Lda. à Su..., Lda., sociedade especialmente relacionada com a Sui..., Lda., constituída em Outubro de 2020 (atendendo a que tinham e têm, em comum, o mesmo gerente de facto, o Sr. LL), tendo este negócio igualmente sido resolvido;

70. Foram emitidos recibos de pagamentos de facturas emitidas pela Sui..., Lda. vencidas apenas em meados de Agosto e até finais de Setembro de 2020;

71. O registo da venda de todos os veículos à Sui..., Lda. ocorreu em 12/10/2020, e as facturas são de 16-10-2020; e pagos em 26-10-2020 e 27-10-2020; tendo as declarações de venda sido assinadas e reconhecidas em 07-10-2020;

72. Sem, pelo menos um, empilhador, a fábrica não conseguiria operar;

73. Os empilhadores continuaram e continuam a laborar, na fábrica; mantendo a insolvente despesas com a sua manutenção;

74. Mantendo a insolvente as despesas com os motoristas dos veículos alienados, bem como, com os manobradores dos empilhadores alienados;

75. A Sui..., Lda. através da nova sociedade constituída, Su..., Lda., passou a fornecer, directamente, os clientes da devedora; utilizando toda a maquinaria, conhecimento, pessoal, fórmulas das rações, e ensacamento;

76. O transporte foi e é realizado pelos motoristas da insolvente R..., S.A., assim como todo o processo de comercialização e facturação da Su..., Lda., para os clientes que sempre foram da R..., S.A., e passaram para aquela;

77. A Insolvente passou a prestar exclusivamente serviços para a Sui..., Lda. e Su..., Lda.;

78. Até Outubro de 2020, a devedora apresentou lucros de cerca de 43.000,00 Euros; e nos meses de Novembro e Dezembro de 2020 apresentou prejuízos de cerca de 45.000,00 Euros;

79. A Su..., Lda., constituída em Outubro de 2020; apresentou lucros;

80. A Sui..., Lda. no final de 2020 também apresentou lucros de aproximadamente 62.900,00 Euros;

81. A embalagem, a pesagem, a comercialização e mesmo a facturação da Su..., Lda. passaram a ser realizados pela R..., S.A., utilizando o pessoal e clientes da devedora;

82. A avaliação pericial realizada no âmbito dos presentes autos expõe que:

a) A viatura Mitsubishi Space Star, com a matrícula ..-..-TM (ano de registo de 2002), em Novembro de 2020, encontrava-se em condições de poder circular com normalidade, e tinha o valor comercial de 2.000,00 Euros;

b) A viatura MAN, com a matrícula ..-..-SZ, em Novembro de 2020, encontrava-se sem condições de poder circular com normalidade, e tinha o valor comercial de 7.500,00 Euros;

c) A viatura Mitsubishi Canter, com a matrícula ..-..-ZJ, em Novembro de 2020, encontrava-se em condições de poder circular com normalidade, e tinha o valor comercial de 4.100,00 Euros;

d) A viatura Scania, com a matrícula XA-..-.., em Novembro de 2020, tinha o valor comercial de 4.500,00 Euros;

e) A viatura Volvo FM 12, com a matrícula ..-JZ-.., em Novembro de 2020, encontrava-se sem condições de poder circular com normalidade, e tinha o valor comercial de 8.000,00 Euros;

f) A viatura Volvo FH38, com a matrícula ..-GC-.., em Novembro de 2020, encontrava-se em condições de poder circular com normalidade, e tinha o valor comercial de 28.400,00 Euros;

g) A viatura Scania R124, com a matrícula ..-..-RC, em Novembro de 2020, encontrava-se sem condições de poder circular com normalidade, tinha o valor comercial de 3.000,00 Euros;

h) A viatura Volvo FM 12, com a matrícula ..-..-TZ, em Novembro de 2020, encontrava-se sem condições de poder circular com normalidade, e tinha o valor comercial de 12.000,00 Euros;

i) A viatura semi-reboque Montenegro SPL-3S – (9.89), em Novembro de 2020, encontrava-se em condições de poder circular com normalidade, e tinha o valor comercial de 24.300,00 Euros;

j) A viatura semi-reboque Montenegro SPL-3S – (3G), em Novembro de 2020, encontrava-se em condições de poder circular com normalidade, e tinha o valor comercial de 21.900,00 Euros;

l) A viatura semi-reboque Trouillet ST3, em Novembro de 2020, e tinha o valor comercial de 4.200,00 Euros;

m) O empilhador Nissan EH02A200 (ano de 1991), em Novembro de 2020, com avarias, tinha o valor comercial de 3.500,00 Euros;

n) O empilhador Yang FD 30 (do ano 2000), em Novembro de 2020, com anomalias, tinha o valor comercial de 8.500,00 Euros.


***


1. Da nulidade do acórdão

Entende a recorrente que o acórdão é nulo por omissão de pronúncia. Alega o seguinte: «Não se pode concordar com a posição do Venerado Tribunal da Relação de Évora vertida no Acórdão que agora se recorre, uma vez que este Venerado Tribunal não contempla nomeadamente no seu raciocínio os n.º 3 e o n.º 5 do artigo 188.º, em conjugação com o n.º 1, todos do CIRE em vigor à data dos factos em causa nos presentes autos. Como ainda não considera os factos supervenientes carreados para os autos pela Sra. Administradora Judicial. E assim sendo, o douto Acórdão é nulo por aplicação da al. d) do n.º 1 do artigo 615.º ex vi artigo 666.º, ambos do Cód. Proc. Civil, uma vez que os Venerados Juízes Desembargadores deixaram “(…) de pronunciar-se sobre questões que devesse(m) apreciar (…)”, questões estas essenciais, de facto e de direito, em que aquelas centralizaram o presente litígio».

Não tem, porém, razão.

O artigo 608.º, 2 CPC preceitua que o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras.

A violação desta norma constitui error in procedendo, ou vício de actividade do julgador, como decorre justamente do artigo 615.º, 1 al. d).

O citado artigo 608.º tem tido uma interpretação pacífica, muito sob a influência doutrinal de José Alberto dos Reis, a saber: o juiz tem de atender aos pedidos deduzidos, a todas as causas de pedir e excepções invocadas e a todas as excepções de que oficiosamente lhe cabe conhecer, mas não tem de se pronunciar sobre os motivos, argumentos, considerações, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes nos seus articulados, e, em geral, sobre todos os meios de que a parte se socorre para fazer valer as ditas causas ou ainda, muito menos, sobre a qualificação jurídica oferecida pelos litigantes (iura novit curia).

«São, na verdade, coisas diferentes: deixar de conhecer de questão de que devia conhecer-se, e deixar de apreciar qualquer consideração, argumento ou razão produzida pela parte. Quando as partes põem ao tribunal determinada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para fazer valer o seu ponto de vista ; o que importa é que o tribunal decida da questão posta; não lhe incumbe apreciar todos os fundamentos ou razões em que elas se apoiam para sustentar a sua pretensão» (José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Anotado, Vol. V., Coimbra Editora, Coimbra, 1952:143).

Esta confusão entre questões e argumentos é muito habitual acontecer em sede de recurso, pese embora inexista obrigação de o segundo grau se pronunciar sobre todas as conclusões.

Como refere o acórdão do STJ de 10-02-2020, Proc. º 35/18.7GBVVC.E1.S1, «a completude e cabal fundamentação e decisão de um aresto não depende de uma exauriente análise de todos e quaisquer argumentos (ou mesmo eventuais excursos e obiter dicta) das alegações das partes, mas de uma resposta clara, compreensível, lógica e fundamentada às questões efetivamente fundantes colocadas, e já de si resumidas nas Conclusões. Por uma questão, desde logo, de economia processual, celeridade na resposta e omissão devida de atos inúteis».

No caso sujeito, a Relação apreciou um recurso interposto pelos administradores da insolvente.

Considerando a sua posição processual, é compreensível que não tenham suscitado questões que só aproveitavam à parte contrária.

O acórdão analisou, em termos adequados, a questão central que cumpria conhecer: «se o prazo fixado no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE tem natureza peremptória. Se se entender que tem, ficam prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso, como vai acontecer».

Afirmou designadamente: «No caso, temos de concluir, por todo o exposto, que, ao tempo do oferecimento da alegação do administrador de insolvência tendente à abertura do incidente de qualificação e à afectação dos ora apelantes pela qualificação da insolvência como culposa, já se extinguira a possibilidade de um tal acto ser praticado. E, consequentemente, que tal deveria ter sido reconhecido pelo tribunal, ao invés de ter sido decretada a abertura do incidente de qualificação, com toda a respectiva tramitação e ulterior decisão final.

Por consequência, cumpre revogar a decisão recorrida, a substituir por outra que, reconhecendo a extemporaneidade do incidente, reconhece igualmente a extemporaneidade da abertura do incidente de qualificação de insolvência, decretando consequentemente o seu arquivamento.

Tal decisão determina a nulidade da sentença ulteriormente produzida que, qualificando a insolvência da A... e decretando a afectação dos ora apelantes por tal qualificação, acabou por se pronunciar sobre questão que já não era passível de tal apreciação, nos termos do nº 1 do art. 615º, nº1, al. d) do CPC.

Ficam prejudicadas as demais questões colocadas no recurso».

É de concluir que a matéria a que se refere a recorrente não tinha de ser abordada no acórdão. Inexiste qualquer vício de actividade do tribunal.


***


Do mérito

2. Da aplicação do artigo 188.º, 1 do CIRE, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro

A Lei n.º 9/2022, de 11 de Janeiro, estabeleceu medidas de apoio e agilização dos processos de reestruturação das empresas e de acordos de pagamento, transpôs a Directiva (EU) 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Julho de 2019, e alterou, entre outros, o Código de Insolvência e de Recuperação de Empresas (CIRE), designadamente, o artigo 188.º, 1 deste diploma.

Esta Lei entrou em vigor 90 dias após a sua publicação (artigo 12.º), ou seja em 11 de Abril de 2022, e, de acordo com o regime transitório previsto no artigo 10.º, 1 é imediatamente aplicável aos processos pendentes na data da sua entrada em vigor, em conformidade, aliás, com a regra geral tempus regit actum.

Permanecerão então intocáveis os actos praticados no domínio da lei antiga, isto é, no âmbito da versão do artigo 188.º resultante do DL 79/2017, de 30 de Junho e a partir do pressuposto do carácter meramente ordenador do prazo de 15 dias?

A resposta é negativa. Como explica, com correcção indiscutível, o segundo grau, «basta analisar a proposta de lei apresentada pelo Governo que esteve na base da nova lei para se concluir pela sua natureza interpretativa.

Com efeito, a exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 115/XIV/3.ª, referia: «Por último, a presente proposta de lei contém ainda alterações, que visam, no essencial, a clarificação pontual de aspetos processuais ou substantivos sobre os quais há imprecisão na lei, dissenso na doutrina ou jurisprudência e fomentar uma capaz operacionalização dos institutos vigentes, permitindo, assim, uma melhor e mais célere aplicação do Direito, com a consequente elevação da tutela de credores e devedores. (…)

Neste sentido, quanto ao incidente de qualificação de insolvência, no qual se apura da responsabilidade civil pela causa ou agravamento da situação de insolvência do devedor, prevê-se de forma expressa o caráter perentório do prazo para abertura do incidente de qualificação de insolvência…».

A aplicação da nova lei aos casos antigos resulta inequívoca diante da «cláusula de retroactividade» manifestada pelo próprio legislador e do artigo 13.º, 1 CC.

Como ensina Oliveira Ascensão a lei interpretativa é retroactiva, não só porque a lei é uma determinação, e não uma declaração de ciência, mas também porque a lei nova embora não suprima a anterior não se confunde com ela e vem regular o passado (O Direito, Introdução e Teoria Geral, 10.ª ed., Almedina, Coimbra, 1997:562/563)


***


3. Da natureza meramente ordenadora do prazo fixado no artigo 188.º, n.º 1, do CIRE?

A Relação considerou que o prazo previsto no art. 188.º, n.º 1 do CIRE tem natureza peremptória. A recorrente, ao invés, considera que tal prazo tem uma natureza meramente ordenadora. «Isto porque a Senhora Administradora de Insolvência é uma colaboradora do Tribunal e não uma parte do processo e, como tal, o parecer de qualificação de insolvência é um dever funcional que está submetido ao controlo jurisdicional».

Não assiste razão à recorrente.

Como neste caso é inteiramente apropriado dizer-se que o problema e a história do problema são coisas indissociáveis, releva recordarmos um pouco da história imediata do artigo 188.º, do CIRE.

Como é sabido, o CIRE foi aprovado pelo DL 53/2004, de 18 de Março. Na sua versão originária, o artigo 188.º, 1 e 2 tinham a seguinte redacção:

1 - Até 15 dias depois da realização da assembleia de apreciação do relatório, qualquer interessado pode alegar, por escrito, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa.
2 - Dentro dos 15 dias subsequentes, o administrador da insolvência apresenta parecer, devidamente fundamentado e documentado, sobre os factos relevantes, que termina com a formulação de uma proposta, identificando, se for o caso, as pessoas que devem ser afectadas pela qualificação da insolvência como culposa.

Ao abrigo desta norma, o acórdão da Relação de Guimarães de 7.12.2008, Proc.2024/06, por exemplo, começou por julgar que o prazo para o administrador dar o seu parecer quanto à qualificação da insolvência era meramente ordenador, seguido, entre muitos outros, pelo acórdão da Relação de Coimbra, de 23 de Janeiro de 2008, in: CJ/2008, T 1:15, o qual deliberou que «não estando legalmente estabelecida qualquer sanção para o incumprimento do prazo fixado para o administrador dar o seu parecer quanto à qualificação da insolvência, só há que concluir que a estipulação de tal prazo se destina a disciplinar a tramitação procedimental, pelo que assume natureza meramente ordenadora ou disciplinadora» e que o parecer do administrador da insolvência «não pode ser equiparado aos articulados das partes, não sendo de aplicar, pois, à falta da sua junção no prazo fixado no art. 188º nº 2, o efeito preclusivo que a lei estabelece como consequência do decurso dos prazos de apresentação daqueles», e pelo acórdão da Relação do Porto de 29.10.2009, Proc. 10/07.7TYVNG.B.P1, no qual se diz, sem hesitação que «impondo-se ao administrador da insolvência emitir o parecer no exercício de um dever ou competência, jamais se poderá qualificar o prazo em causa como sendo de caducidade ou de prescrição. É um prazo regulador, ordenacional ou de organização processual, sem cominatório (cf. acórdão desta Relação de 17.11.2008, in www.dgsi.pt) e cuja ultrapassagem pode gerar responsabilidade do administrador no âmbito do processo, mas não a caducidade de qualquer direito que o administrador não tem e não exerce».

Esta orientação jurisprudencial citava amiúde L. Carvalho Fernandes e João Labareda os quais sustentavam que o parecer do administrador da insolvência constitui elemento relevante na decisão do incidente de qualificação da insolvência - e na sua própria tramitação - pelo que não pode deixar de ser apresentado, e daqui que «(…) não pode ser atribuído valor ao silêncio, cabendo ao juiz, se for o caso, providenciar para que, mesmo tardio, o parecer seja emitido» (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Anotado, 2.ª ed., Quid Juris, Lisboa, 2013:728),

O artigo 2.º da Lei 16/2012, de 20 de Abril, unificou os números 1 e 2 do artigo, passando o artigo 188.º, 1 a prescrever:

1 - Até 15 dias após a realização da assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.

Esta Lei não resolveu o problema da natureza, ordenadora ou peremptória, do prazo. A jurisprudência e a doutrina continuaram a ver-se confrontadas com a questão.

No acórdão da Relação do Porto de 14.03.2017, Proc. 2037/14.3.T8VNG.E.P1, por exemplo, continua a defender-se que «o prazo previsto no nº 1 do artigo 188º para a sra. administradora da insolvência apresentar o seu parecer sobre a qualificação da insolvência não é um prazo peremptório».

No acórdão da Relação de Guimarães de 20.4.2017, Proc. 510/16.8T8VRL-D.G1, de entre os mais, encontramos uma distinção entre a natureza do prazo, consoante seja aplicado ao tribunal e ao administrador da insolvência, por um lado, e aos credores, por outro, defendendo-se que só neste caso o prazo é peremptório.

Destaque, neste período para o acórdão do STJ de 13.07.2017, Proc. 2037/14.3T8VNG-E.P1.S2, quando argumenta que «impondo-se ao administrador da insolvência emitir o parecer no exercício de um dever ou competência, jamais se poderá qualificar o prazo em causa como sendo de caducidade ou de prescrição. É um prazo regulador, ordenacional ou de organização processual, sem cominatório e cuja ultrapassagem pode gerar responsabilidade do administrador no âmbito do processo, mas não a caducidade de qualquer direito que o administrador não tem e não exerce».

Na doutrina, Maria do Rosário Epifânio (Manual de Direito da Insolvência, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2011:134/135) e Menezes Leitão (Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, anotado, 6.ª edição, Almedina, Coimbra, 2012:190) opinavam no sentido de o prazo ser meramente ordenador.

O artigo 3.º do DL 79/2017, de 30 de Junho, alterou, uma vez mais, o artigo 188.º, 1 passando a ter a seguinte redacção: 1 - Até 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, o administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.
Nada se diz, portanto, sobre a natureza do prazo de 15 dias. E a dúvida persistiu.

A Relação de Guimarães, em acórdão de 30.5.2018, Proc. 616/10.3T8INF.E.G1, continuou a sustentar que o prazo era ordenador para o administrador da insolvência: «concordamos inteiramente com esta posição doutrinária e, como tal, poderemos facilmente daqui tirar a conclusão de que o prazo, previsto no n.º 1 do art. 188º, do CIRE, concedido ao administrador de insolvência e a qualquer interessado para requererem, fundamentadamente, o que tiverem por conveniente para efeito da qualificação de insolvência como culposa, não deverá ser considerado como um prazo perentório mas meramente ordenador ou regulador.
Na realidade, se a qualquer momento (até ao encerramento do processo), reunidos que estejam os necessários elementos que o justifiquem, o juiz poderá determinar ex officio a abertura do incidente de qualificação de insolvência como culposa, não vemos, por maioria de razão, que o mesmo esteja impedido de o fazer, a requerimento fundamentado de qualquer interessado ou do administrador de insolvência, ainda que para além do prazo previsto no art. 188º, n.º 1, do CIRE».

Também o acórdão da Relação de Évora de 9.9.2021 faz a distinção, que referimos atrás, entre os prazos concedidos por lei ao Administrador da Insolvência – porque, tal como o Tribunal, prossegue fins públicos, não sendo, por isso, parte –, e o prazo concedido às partes (insolvente, credores e Ministério Público quando represente credores cujos interesses lhe estejam legalmente confiados).
Quanto ao administrador, concorda com o que se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 24-10-2019, Proc. 393/19.6T8AMT-B.P1, e no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 14-04-2011, Proc. 881/07.7TBVCT-S.G1 quando afirmam que «o administrador da insolvência é um colaborador do tribunal, não é uma parte no processo e como tal, a emissão do parecer não é um direito dele, mas um dever funcional» e que «o facto do administrador da insolvência não ter apresentado o seu parecer quanto à qualificação da insolvência no prazo legalmente previsto, não faz precludir a possibilidade de o fazer mais tarde e de a tal parecer se atender.
Por tal motivo, o prazo concedido ao AI é meramente ordenador.

Perante esta jurisprudência, pode julgar-se que não há razão para se dizer que a jurisprudência estava dividida quanto à natureza do prazo.

Mas esta divisão existia, realmente.

Os acórdãos da Relação de Coimbra de 10.03.2015, Proc. 631/13.9-L.C1 e da Relação de Guimarães de 25.02.2016, Proc. 1857/14.3TBGMR-DG1 e, mais recentemente, da Relação de Coimbra de 15.01.2022, Proc. 632/21.3TLRA.C.C1 aí estão a demonstrá-lo.

Argumenta-se que, após as alterações introduzidas pela Lei 16/2012, ao contrário do que acontece com o parecer previsto no n.º 3 do artigo 188, que, por corresponder a um acto obrigatório da tramitação do incidente já aberto e em curso, deve ser entendido como um dever funcional do administrador que não se extingue pelo decurso do prazo legalmente fixado para a sua apresentação, o requerimento/alegações a que alude o n.º 1 do citado preceito apenas pode ser apresentado dentro do prazo fixado na lei, não podendo ser atendido, quando apresentado pelo administrador ou por qualquer interessado, além daquele prazo.

Estavam assim as coisas quando o legislador procedeu a mais uma alteração ao artigo 188.º, 1 mediante a aprovação da Lei 9/2022, de 11 de Janeiro.

Estatui agora a proposição legal: O administrador da insolvência ou qualquer interessado pode alegar, fundamentadamente, por escrito, em requerimento autuado por apenso, o que tiver por conveniente para efeito da qualificação da insolvência como culposa e indicar as pessoas que devem ser afetadas por tal qualificação, no prazo perentório de 15 dias após a assembleia de apreciação do relatório ou, no caso de dispensa da realização desta, após a junção aos autos do relatório a que se refere o artigo 155.º, cabendo ao juiz conhecer dos factos alegados e, se o considerar oportuno, declarar aberto o incidente de qualificação da insolvência, nos 10 dias subsequentes.

O que quer dizer que hoje não podem subsistir dúvidas sobre a natureza do prazo.

Em clarificadora análise do novo regime, Catarina Serra assinala que a opção do legislador corresponde «a uma solução de consenso entre, por um lado, a segurança jurídica que a natureza peremptória ou preclusiva dos prazos sempre assegura e, por outro lado, a realização dos interesses públicos e privados que o incidente persegue e que estão associados à repressão e à prevenção de comportamentos antijurídicos e ao ressarcimento dos danos, respectivamente», e sublinha que «o prazo de quinze dias funciona, ao que tudo indica, como prazo-limite absoluto para abertura do incidente» («O Incidente de qualificção da insolvência, depois da Lei n.º 9/2022. Algumas observações ao regime com ilustrações de jurisprudência», Julgar, n.º 48:13/14 e 18).


***


4. Da natureza não preclusiva do prazo do artigo 188.º, 1 para o administrador da insolvência apresentar o parecer sobre a qualificação da insolvência?

Estipula o artigo 139.º CPC sobre modalidades do prazo:

1 - O prazo é dilatório ou perentório.

2 - O prazo dilatório difere para certo momento a possibilidade de realização de um ato ou o início da contagem de um outro prazo.

3 - O decurso do prazo perentório extingue o direito de praticar o ato.

4 - O ato pode, porém, ser praticado fora do prazo em caso de justo impedimento, nos termos regulados no artigo seguinte.

5 - Independentemente de justo impedimento, pode o ato ser praticado dentro dos três primeiros dias úteis subsequentes ao termo do prazo, ficando a sua validade dependente do pagamento imediato de uma multa, fixada nos seguintes termos:
a) Se o ato for praticado no 1.º dia, a multa é fixada em 10 % da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 1/2 UC;
b) Se o ato for praticado no 2.º dia, a multa é fixada em 25 % da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 3 UC;
c) Se o ato for praticado no 3.º dia, a multa é fixada em 40 % da taxa de justiça correspondente ao processo ou ato, com o limite máximo de 7 UC.
6 – (…)

7 – (…)

8 – (…).

De acordo com a classificação legal os prazos são dilatórios ou peremptórios.

É dilatório ou intermédio o prazo que deve decorrer antes de se poder praticar o acto.

É peremptório o prazo no decurso do qual se tem o ónus de praticar o acto, sob pena de extinção desse direito.

A regra de que o decurso do prazo peremptório extingue o direito de praticar o acto sofre uma derrogação e uma atenuação.

A derrogação é operada pelo instituto do justo impedimento, previsto e regulado no artigo 140.º CPC.

A atenuação verifica-se no caso da possibilidade de aproveitamento do prazo de condescendência do artigo 139.º, 3 CPC que o acórdão do STJ de 12.12.2023, Proc julgou aplicável ao prazo peremptório do artigo 188.º, 1, e no caso de prorrogação, que a lei permite desde que pedida antes de se escoar o prazo (artigos 141.º CC e 188.º, 2 e 3).

Não tendo sido praticado o acto dentro do prazo peremptório ou depois de esgotada o prazo de prorrogação deste, o direito extingue-se, o que significa que se verifica a preclusão, ou seja, nas palavras de Emilio Betti «a perda irrevogável de um poder cujo exercício constitua para a parte um ónus coordenado com o seu exclusivo interesse» (Diritto procesuale civile, Edizioni Scientifiche Italiane, ristampe della Università di Camerino, Napoli, 2018:59; e José Lebre de Freitas, Introdução ao Processo Civil, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013:181 ss.).

A resposta à questão suscitada neste capítulo tem, portanto, uma resposta negativa: o administrador tem o ónus de requerer a abertura do incidente no prazo de 15 dias do artigo 188.º, 1, sob pena de preclusão.

Não tem, por conseguinte, fundamento alegar-se, como faz a recorrente, que a decisão recorrida não deixa margem para surgimento e ponderação de factos supervenientes, pois essa é a natural consequência da preclusão.

De resto, Catarina Serra, no estudo citado, chama a atenção para que com o novo regime ficam sem cobertura os casos em que os indícios aparecem mais tarde (por exemplo, na fase de liquidação ou aquando da identificação de actos susceptíveis de resolução em benefício da massa, op.cit:18).


***


5. Da lacuna a integrar no regime do artigo 188.º?

Diz a recorrente: «Podemos sempre falar, no limite, na existência de uma lacuna, uma vez que estamos perante uma situação que o legislador não previu, pelo que seria sempre de aplicar o n.º 3 do artigo 10.º do Cód. Civil: “Na falta de caso análogo, a situação é resolvida segundo a norma que o próprio intérprete criaria, se houvesse de legislar dentro doespírito do sistema.” Situação esta que o Venerando Tribunal da Relação de Évora nem sequer considerou no Acórdão que agora se recorre.

X. Assim, a norma que integra a lacuna existente é no sentido de que o incidente de qualificação de insolvência poder ser aberto, a requerimento nomeadamente do Administrador Judicial, até ao encerramento do processo de insolvência se o tribunal entender que há fundamento para tal, que no caso considerou existir».

Não tem razão.

Uma lacuna, na fórmula da doutrina germânica, adoptada por Oliveira Ascensão «é uma incompleição do sistema normativo que contraria o plano deste» (O Direito, op. cit:434).

A constatação de um lacuna resulta de uma tarefa de valoração, de detecção se o que não está na norma lá devia estar ou se não está porque lá não deve estar.

No caso sujeito, não temos dúvidas em dizer que é a segunda a hipótese vertente.

Não temos dúvidas que o legislador quis afastar a controvérsia sobre a natureza do prazo e consagrar de vez a preclusão do tempo de apresentação das informações por banda do administrador, com possibilidade, porém, de prorrogação, nos termos já referidos.

As pessoas afectadas pela qualificação da insolvência têm o direito que o seu processo se resolva sem dilações indevidas, ideia que está na base do carácter urgente do processo de insolvência e seus incidentes (artigo 9.º CIRE). Por outro lado, a solução preclusiva é a única que é compatível com a função preventiva/repressiva associada à tramitação do incidente.

São opções legislativas, que o julgador não pode afastar, nem o intérprete preterir.


***


6. Da revogação do acórdão?

Não sendo o incidente de qualificação da insolvência declarado aberto pelo juiz ex artigo 36.º, 1 al. i) CIRE, permite a lei que o administrador da insolvência requeira a sua abertura, no prazo peremptório de 15 dias após a realização da assembleia de aprovação do relatório nos termos do artigo 155.º.

No caso sujeito, a assembleia de apreciação do relatório realizou-se no dia 7 de Abril de 2021.

Só no dia 27 de Maio de 2021 a senhora Administradora de Insolvência requereu a abertura do incidente de qualificação de insolvência. O prazo legal não foi prorrogado.

Como se julgou no segundo grau, o prazo peremptório de 15 dias foi claramente ultrapassado nos presentes autos. A Relação decidiu bem. O acórdão merece ser confirmado.


***


Vencida, é a massa insolvente responsável pelo pagamento das custas (artigos 527º, 1 e 2, do Código de Processo Civil e 304.º CIRE).

***


Pelo exposto, acordamos em julgar improcedente a revista, e, consequentemente, em confirmar o acórdão impugnado.

***


17.10.2024

Luís Correia de Mendonça (Relator)

Graça Amaral

Maria Olinda Garcia