I. A sentença de verificação e graduação de créditos, proferida ao abrigo do art. 140º do CIRE, nos limites objectivos e subjectivos correspondentes e em referência aos fundamentos que são o seu pressuposto e antecedente lógico de decisão (no caso, a aplicação da cominação do art. 131º, 3, do CIRE), uma vez transitada em julgado no processo por falta de impugnação, constitui caso julgado material, que incide sobre o mérito, oponível a qualquer decisão contraditória superveniente sobre a mesma questão ou objecto processual, nomeadamente se esta decisão vem a ser proferida em apelação sobre decisão de mérito anteriormente proferida e conexa com a sentença (despacho integrativo do saneador, após reclamação, com decisão parcial sobre reclamações de créditos: arts. 595º, 1, b), 3, 2.ª parte, 596º, 1 a 3, 644º, 1, b), e 3, CPC), sendo este recurso dotado de efeito «meramente devolutivo» (art. 647º, 1, CPC) e, portanto, sem efeito suspensivo sobre a marcha do processo subsequente e projectado na sentença transitada e no próprio efeito constitutivo do caso julgado material.
II. Sendo proferida decisão de mérito que a excepção dilatória de caso julgado impediria (“repetição de causa”: arts. 577º, i), 580º, 1, 2.ª parte, e 581º, 1, CPC), estamos no âmbito de aplicação do art. 625º («Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.»), em conjugação com o art. 628º, 1, do CPC.
III. A consequência decorrente da cogência da decisão transitada em julgado antes de decisão incidente sobre o objecto já coberto pelo caso julgado, ou seja, de ter sido proferida sem consideração (“ofensa implícita”) do caso julgado anteriormente formado, não tendo sido invocada pela parte interessada nem oficiosamente conhecida, é a ineficácia da decisão posterior, por circunstância extrínseca ao acto, a declarar no processo em que é proferida.
Revista – Tribunal recorrido: Relação de Guimarães, 1.ª Secção
1. Por sentença proferida pelo Juiz ... do Juízo de Comércio de ..., foi declarada a insolvência da sociedade «Bombave – Bombas Centrífugas e Hidráulicas do Ave, S. A.» (9/9/2020), transitada em julgado, uma vez proferidos os Acs. do Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) de 17/12/2020 e 4/3/2021 e, em sede de Reclamação em sede de revista, do STJ de 8/9/2021.
2. Foram apresentadas junto da Administrador da Insolvência (AI) as reclamações de verificação de créditos, nos termos do art. 128º do CIRE.
3. O credor AA, trabalhador da insolvente, apresentou a sua reclamação (13/10/2020), na qual pediu o reconhecimento do crédito vencido até à data no montante de € 58 900, 25, acrescido de juros de mora à taxa legal, o reconhecimento do montante de € 11 489, 75 como crédito sob condição, nos termos do disposto no art. 50º do CIRE, e que os créditos sejam classificados como privilegiados, beneficiando dos privilégios mobiliário geral e imobiliário especial sobre os bens imóveis onde o reclamante prestava a sua actividade laboral, nos termos do art. 333º do Código do Trabalho e do art. 47º, 4, a), do CIRE (cfr. suporte documental autuado com o n.º 4054/20.5T8VNF-K, ref.ª CITIUS 13860744) – valor da reclamação = € 70.390,00.
4. Na subsequente tramitação do apenso (“B”) destinado à reclamação e verificação de créditos da sociedade insolvente, a AI apresentou lista com a relação de créditos reconhecidos e inexistência de créditos não reconhecidos (23/12/2020), nos termos do art. 129º do CIRE, na qual consta, em referência ao credor identificado sob o n.º 9, os créditos de AA, correspondendo a “créditos laborais” no valor global de € 70 390,00, integrado pelo montante de € 58.900,25, como créditos privilegiados, e pelo montante de € 11 489,75, como crédito sob condição (pág. 3).
5. A credora BB apresentou impugnação da lista de credores reconhecidos (11/1/2021), nos termos do art. 130º do CIRE, na qual, em relação aos créditos dos trabalhadores, em particular, o crédito referido do trabalhador identificado (sob 3)), alegou:
“23.º Impugna-se na íntegra os créditos reclamados pelos Trabalhadores (…) e AA, por se encontrarem os mesmos prescritos, nos termos do art. 337.º do Código do Trabalho,
24.º O que implica que sejam os mesmos excluídos da lista de créditos reconhecidos, o que aqui vai, desde já, invocado, com as demais consequências legais.
25.º É que, a sociedade comercial Insolvente encerrou a atividade para efeitos de IVA e de Segurança Social em Junho de 2019, conforme resultará da informação disponibilizada pela Autoridade Tributária e do Instituto da Segurança Social.
26.º Mais acresce que, conforme resulta das reclamações de créditos, ora em crise, apresentadas pelos Trabalhadores cujos créditos aqui impugnamos, todos os trabalhadores in casu resolveram os seus respetivos contratos de trabalho no decorrer do ano de 2019.
27.º Precise-se, assim, por relevante que:
(…)
10. AA - Apesar de ter solicitado o articulado da reclamação de créditos do Sr. AA junto da Sra. Administradora de Insolvência, a mesma não foi enviada/ disponibilizada ao Mandatário da Credora BB, pelo que a impugnação do crédito deste credor é baseada na reclamação de créditos apresentada no primeiro processo de insolvência da Insolvente, que correu termos no Juízo de Comércio de ..., Juiz ..., sob o n.º 4712/19.7..., e cujos créditos presumimos serem mais ou menos idênticos.
(…)
28.º Estabelece o art. 337.º do Código do Trabalho que “O crédito de empregador ou trabalhador emergente de contrato de trabalho, da sua violação ou cessação prescreve decorrido um ano a partir do dia seguinte àquele em que cessou o contrato de trabalho.”
Com efeito,
29.º É, por isso, manifestamente claro que, no nosso caso em análise, se encontram prescritos os créditos reclamados pelos Trabalhadores supra identificados,
30.º O que impõe a exclusão dos créditos dos trabalhadores da lista de créditos reconhecidos, com as demais consequências legais.
Sem prescindir,
31.º Se ainda assim se entender que os créditos dos trabalhadores não se encontram prescritos, nos termos do art. 337.º do Código do Trabalho, o que não se consente, mas apenas se admite por mera hipótese académica,
32.º Sempre se diga que nunca poderão ser reconhecidos aos referidos trabalhadores o montante dos créditos pelos mesmos reclamado, pelo que sempre terão os mesmos de ser corrigidos/ reduzidos, nos termos que infra se passam a enunciar.
Vejamos.
33.º A Sra. Administradora da Insolvência aceitou quanto aos seguintes trabalhadores o seguinte crédito de horas de formação profissional:
(…)
- AA – Cfr. se referiu no ponto 10 do artigo 27.º deste articulado, a Impugnante não teve acesso à reclamação de créditos deste Credor, desconhecendo, por isso, se o mesmo reclamou qualquer valor a título de horas de formação profissional;
(…)
34.º O que não se pode consentir.
35.º Não só porque é liminarmente falso que, pelo menos até 2016, não tenha sido prestada formação profissional aos credores/trabalhadores em causa, mas também porque, e como resulta do Código do Trabalho (na redação em vigor à data da cessação dos contratos de trabalho em causa), os trabalhadores apenas têm direito a um crédito de 35 horas por cada um dos três últimos anos de trabalho prestado, prescrevendo todo e quaisquer crédito – de formação profissional - que seja anterior a esses três anos (cfr. 131.º, n.º 2 e 132.º, n.º 6 do Código do Trabalho).
36.º O que aqui se invoca.
37.º Assim, e no limite, apenas poderia ter sido reconhecido a estes trabalhadores, a esse título, as seguintes quantias:
(…)
- AA - Cfr. se referiu no ponto 10 do artigo 27.º deste articulado, a Impugnante não teve acesso à reclamação de créditos deste Credor, desconhecendo, por isso, se o mesmo reclamou qualquer valor a título de horas de formação profissional; ainda assim, por cautela de patrocínio, impugna a aqui Impugnante qualquer quantia que o Credor tenha reclamado a esse título, devendo, igualmente ser seguido/ corrigido o alegado crédito seguindo o raciocínio aqui exposto quanto aos demais Trabalhadores;
(…)
38.º Terão, por isso, os respetivos créditos, atento o até aqui exposto, de serem reduzidos da seguinte forma:
(…)
AA: Cfr.se referiu no ponto 10 do art. 27.º deste articulado, a Impugnante não teve acesso à reclamação de créditos deste Credor, desconhecendo, por isso, se o mesmo reclamou qualquer valor a título de horas de formação profissional; ainda assim, por cautela de patrocínio, impugna a aqui Impugnante qualquer quantia que o Credor tenha reclamado a esse título, devendo, igualmente ser seguido/ corrigido o alegado crédito seguindo o raciocínio aqui exposto quanto aos demais Trabalhadores;
39.º O que aqui vai invocado, com as demais consequências legais.
(…)
41.º É que relativamente aos credores CC e DD, e ainda por cautela de patrocínio, relativamente aos credores EE, FF, AA, também terá de ser reduzida a compensação/indemnização reclamada caso ocorra cessação, por iniciativa da Sra. Administradora de Insolvência, dos contratos de trabalho dos contratos de trabalho dos credores DD, CC, FF, AA e EE.
42.º É que entendemos que o método de cálculo indicado por estes trabalhadores, e que mereceu a adesão da Sra. Dra. Administradora de Insolvência (ainda que com uma correção no n.º de dias, já que esta considerou 30/dias e não os 45), não é o correto atento o que dispõe o Código de Trabalho, em especial o artigo 347.º, o artigo 366.º e 372.º do Código do Trabalho, bem como o artigo 5.º da Lei 69/2013, de 30/08, que aqui se chamam à colação.
43.º Atento o conteúdo destes normativos devidamente conjugados, em especial os limites indemnizatórios impostos pela lei, bem como o valor remuneratório de cada um destes trabalhadores, sempre terão os mesmos, pela cessação da relação laboral, o direito de receber a quantia de:
(…)
- AA, EE e FF - Cfr. se referiu nos pontos 10, 11 e 12 do art. 27.º deste articulado, a Impugnante não teve acesso às reclamações de créditos deste Credores, desconhecendo, por isso, em que termos foi calculada a alegada compensação/ indemnização pela alegada cessação dos contratos de trabalho, mas, ainda assim, por cautela de patrocínio, impugna a aqui Impugnante qualquer quantia que o Credor tenha reclamado a esse título, devendo, igualmente ser seguido/ corrigido o alegado crédito seguindo o raciocínio aqui exposto quanto aos Trabalhadores/ Credores DD e CC;
44.º E não os valores que peticionam a este montante.
45.º O critério dos 30/45 dias, por cada ano de antiguidade, apenas pode ser utilizado e/ou chamado à colação em casos em que houve despedimento ou resolução do contrato de trabalho com justa causa por despedimento e se aplica o critério constante dos artigos 390.º e 391.º do Código do Trabalho, como acontece no caso da Impugnante e de alguns trabalhadores em situações similares.
46.º Pelo que, atento o exposto, devem ser corrigidos os montantes peticionados por estes Trabalhadores/ Credores, a título de compensação/ indemnização, o que aqui se requer, com as demais consequências legais.”
Apresentaram resposta os credores M..., Unipessoal, Lda.», GG, HH, II, JJ, KK, LL, MM, DD e CC, pugnando pelo indeferimento das impugnações.
Deste despacho foi interposto recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães (2/12/2021), que conduziu a ser proferido acórdão (3/3/2022), que decidiu pela procedência, e, por isso, revogando o despacho e substituindo-o por decisão a julgar tempestiva a impugnação apresentada pela credora reclamante BB, devendo os autos ser processados em conformidade, transitado em julgado.
Devolvidos os autos, foi tomado conhecimento do acórdão pelo Juiz ... do Juízo de Comércio de ... em 4/4/2022 (despacho com ref.ª CITIUS ...74).
6. Em 6/5/2022, foi proferida sentença de homologação e graduação de créditos reconhecidos na lista elaborada pelo AI.
Dela foi interposto recurso de apelação para o TRG pela credora reclamante BB (23/5/2022), com devolução dos autos à 1.ª instância por despacho de 22/7/2022.
Na sequência:
6.1. Foi proferido despacho de fixação do valor da causa em € 1.386.850,00 (17/10/2022), transitado em julgado.
6.2. Foi proferido despacho de deferimento da invocação da nulidade por omissão de pronúncia na antecedente sentença de 6/5/2022, relativamente à impugnação da lista de créditos deduzida, em face do determinado pelo acórdão do TRG de 3/3/2022 ter julgado tempestiva a impugnação de créditos da referida credora reclamante, determinando a anulação de todos os actos posteriores à verificada nulidade (26/10/2022) – incluindo, portanto, a sentença proferida em 6/5/2022.
7. A 28/12/2022 foi proferido despacho saneador, com fixação dos “temas da prova”, a saber:
“- Apurar se a credora NN emprestou à insolvente a quantia de € 144.700,00;
- Apurar se o empréstimo acima referido é ineficaz perante a sociedade insolvente por não ter sido aprovado pelos acionistas da mesma;
- Apurar se a credora NN sabia que tal empréstimo era ineficaz perante a sociedade;
- Apurar se não existiu qualquer transação comercial entre a insolvente e a M..., Unipessoal, Lda.;
- Apurar se os créditos dos trabalhadores aqui impugnados se encontram prescritos;
- Apurar se os créditos de horas de formação profissional aceites pela sra administradora de insolvência relativamente a cada um dos trabalhadores impugnados são devidos;
- Apurar se os trabalhadores DD, CC, AA, EE e FF têm a receber indemnização pela cessação da relação laboral inferior à reconhecida pela sra administradora de insolvência.”
8. A 5/1/2023, a credora impugnante BB apresentou reclamação, na qual arguiu a nulidade do despacho saneador, sustentando:
“(…) apesar de notificados para o efeito, os credores AA e a Credora NN nada disseram, aplicando-se portanto aos mesmos o efeito cominatório pleno constante do n.º 3.º in fine do artigo 131.º do CIRE”;
“(…) em clara contravenção do disposto no citado artigo/diploma, o douto Tribunal ao proferir despacho saneador agiu simultaneamente em omissão e excesso de pronúncia. É que quanto ao alegado crédito do Sr. AA nada diz, não se debruçando sobre o mesmo, quando se impunha que fosse proferida decisão que considerasse o crédito excluído por via da procedência da impugnação que lhe foi dirigida pela aqui Credora por falta de resposta”;
“Quanto à omissão de pronúncia cometida, (…) ‘O não conhecimento dessa questão e a omissão de declaração desse efeito cominatório e inerente requalificação do crédito reconhecido constituem omissão de pronúncia, determinante de nulidade da sentença de verificação e graduação de créditos.” – Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, datado de 26-11-2013 (…)”;
“(…) o despacho ora em crise é parcialmente nulo – com ref.ª aos créditos supra melhor identificados - por violação do disposto no artigo 615.º, n.º 1, alínea d), 613.º, n.º 3 do CPC e 131.º n.º 3 do CIRE, o que aqui vai invocado, por via de requerimento/reclamação, e impõe a imediata revogação e substituição do douto despacho por outro que: - Considere procedente a impugnação dos créditos feito pela aqui Credora Impugnante relativamente aos créditos dos Credores NN e AA, excluindo os respetivos créditos da lista de créditos reconhecidos.”
9. Na sequência, foi proferido o seguinte despacho (7/2/2023):
“Req de 5-1: Dispõe o artigo artigo 131º, nº3 in fine do CIRE, que a resposta deve ser apresentada dentro dos 10 dias subsequentes ao termo do prazo referido no artigo anterior ou à notificação ao titular do crédito objeto da impugnação, consoante o caso, sob pena de a impugnação ser julgada procedente.
A credora BB veio impugnar os créditos dos credores NN e AA, não tendo estes apresentado resposta à impugnação.
Pelo que, nos termos do disposto naquele artigo procede a reclamação, devendo serem tais créditos retirados da lista de créditos reconhecidos.
Pela mesma razão elimino do despacho saneador os três primeiros temas da prova, bem como a menção aos credores NN e AA.”
10. Inconformado, o credor reclamante AA interpôs recurso de apelação desse despacho (enquanto decidira “Retirar o crédito do Recorrente da lista de créditos reconhecidos” e “Eliminar do despacho saneador a menção ao Credor Recorrente”) para o Tribunal da Relação de Guimarães (1/3/2023), que conduziu a ser proferido acórdão (4/4/2024), no qual, identificada a questão decidenda – a saber: “Se a decisão recorrida incorreu em erro de direito: por a falta de resposta à impugnação não poder desencadear o efeito cominatório pleno; por a resposta à impugnação dos demais reclamantes trabalhadores aproveitar ao reclamante trabalhador recorrente.” –, se julgou parcialmente procedente o recurso, decidindo:
“1. Revogar o despacho recorrido de 07.02.2023.
2. Julgar (em substituição do Tribunal a quo) a impugnação dos créditos reconhecidos a AA em I-2.1. supra, apresentada pela impugnante/recorrida:
a) Improcedente quanto à arguida exceção de prescrição dos créditos reclamados por AA.
b) Procedente quanto à redução do valor da compensação da cessação de contrato de trabalho, sob condição, em € 704, 23 (o valor de € 7 004, 75 reclamado e reconhecido deve ser alterado para valor de € 6 300,52).
3. Relegar para o Tribunal a quo a verificação e a graduação dos créditos laborais reclamados e reconhecidos pela administradora da insolvência a AA (no valor de € 58 900, 25 de créditos laborais privilegiados; de € 11 489, 75 de créditos sob condição), Tribunal a quo este que deve observar o decidido quanto à impugnação por esta Relação (em IV-2 supra).”
Destes despachos não foi deduzida reclamação para a conferência, nos termos admitidos pelo art. 652º, 3, do CPC.
11. No apenso no qual se proferiram as decisões precedentes das instâncias, uma vez realizada audiência de julgamento em várias sessões, o Juiz ... do Juízo de Comércio de ... proferiu sentença (14/7/2023) de homologação da lista de credores elaborada pela Sra. AI e de graduação dos créditos constantes dessa lista (art. 140º do CIRE); dessa graduação consta, no respectivo dispositivo, o pagamento aos “créditos n.º 1, 2, parte do 3, 4 a 6, 9, 13 a 18, parte do 19, 24, parte do 25, 26 e 27 (créditos laborais)”.
Na sequência, a credora reclamante BB deduziu requerimento (28/7/2023), arguindo nulidade por excesso de pronúncia e requerendo a rectificação da sentença no sentido de excluir as menções nela existentes ao crédito n.º 9 reclamado por AA.
Por despacho proferido em 31/7/2023, foi decidido:
“Assiste razão à credora reclamante, tendo tal inclusão resultado de lapso de escrita nosso. Assim, nos termos dos artigos 613º, n.º 1 e 2 e 614, n.º 1 CPC, retire aquele crédito da graduação da sentença dos autos.”
Em 2/10/2023, foi proferido despacho de admissão do recurso de apelação interposto em 1/3/2023, com efeito devolutivo.
12. Sem se resignar, a credora reclamante BB interpôs recurso de revista excepcional para o STJ do acórdão do TRG proferido em 4/4/2024, tendo por base o art. 672º, 1, a) e c), do CPC, visando a confirmação do despacho de 7/2/2023 e a revogação do acórdão recorrido, finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões (após aperfeiçoamento nos termos do art. 639º, 3, do CPC, em resposta a despacho proferido em 17/7/2024):
“I – A presente revista tem por objecto um Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que revogou o despacho proferido a 07-02-2023, com a referência Citius...89, pelo Tribunal de 1.ª instância que julgou procedente a reclamação ao despacho saneador apresentada pela ora Recorrente e, consequentemente, determinou a eliminação do crédito do Credor AA da lista de créditos reconhecidos, com base na falta de resposta do Recorrido à impugnação da reclamação de créditos nos termos do n.º 3 do artigo 131.º do Código de Insolvência e Recuperação e Empresas.
II – O Acórdão recorrido encontra-se em contradição relativamente ao núcleo essencial do decidido no Acórdão Tribunal da Relação do Porto, datado de 26/11/2013, processo n.º 710/11.7TJPRT.C.P1, Relator RuiMoreira, decisão quea aquiRecorrente escolhe como Acórdão fundamento, cuja certidão com nota de trânsito em julgado, desde já, protesta juntar, com as demais consequências legais.
III – A questão que aqui se coloca é a de saber se o artigo 131.º, n.º 3, in fine, consagra um efeito cominatório pleno ou, pelo contrário, consagra um efeito cominatório semipleno segundo uma interpretação restritiva daquela disposição.
IV – O presente recurso versa exclusivamente sobre matéria de Direito, nos termos infra consignados, incidindo exclusivamente sobre o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, 1.ª Secção Cível, a 04 de Abril de 2024, no âmbito do processo n.º 4054/20.5T8VNF-B.G2-A, que revogou o despacho proferido a 07-02-2023 e, consequentemente, reconheceu o crédito do Credor AA, bem como, julgou (em substituição do Tribunal a quo) parcialmente procedente a impugnação dos crédito reconhecidos deduzida pela ora Recorrente.
V – A Recorrentenão seconformacom a decisão, porentender que se traduz numaerrada interpretação do Direito, motivo pelo qual, recorre da mesma, porquanto é contrária aos elementos gramatical, histórico, sistemático e teleológico da norma em apreço.
VI – A interpretação defendida no Acórdão recorrido, salvo o devido respeito, não encontra correspondência no elemento literal/gramatical isto porque, a expressão utilizada pelo legislador na parte final do n.º 3 do artigo 131.º do CIRE não permite a conclusão de que no caso da falta de resposta pelo credor à impugnação, o juiz não fica exonerado de apreciar e julgar a procedência ou improcedência da impugnação.
VII – Por referência ao elemento histórico a interpretação do Tribunal a quo também não encontra suporte, visto que o legislador no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 200/2004, de 18 de Agosto, que aprovou a redacção actual do n.º 3 do artigo 131.º, veio esclarecer/reafirmar o seu pensamento relativamente às consequências processuais da falta de resposta à impugnação, fixando, indubitavelmente, um efeito cominatório pleno.
VIII – Por fim, segundo o elemento sistemático e teleológico da norma a interpretação defendida não encontra correspondência, antes pelo contrário, atento às notas de celeridade, agilidade, desjudicialização e auto-responsabilidade dos credores que caracteriza o processo de insolvência, o efeito cominatório pleno da falta de resposta à impugnação de créditos é o que melhor se compagina com a intenção/pensamento do legislador.
IX – Diga-se ainda que, não obstante a existir jurisprudência a sustentar que o efeito cominatório pleno violaria o acesso ao direito e à tutela jurisdicional, essa orientação não merece a nossa concordância, na medida em que, nos termos do artigo 134.º, n.º 4 do CIRE, os credores impugnados são devidamente notificados, ficando, portanto, em posição de responder à impugnação e assim fazer valer a sua posição.
X – Sem prescindir, andou mal o Tribunal da Relação de Guimarães quando admitiu o recurso de apelação interposto pelo ora Recorrido na medida em que se impunha a sua rejeição, por duas ordens de razões, por extemporâneo e por inutilidade supervivente da lide.
XI – O recurso interposto pelo ora Recorrido é extemporâneo porque o despacho revogado pelo Acórdão ora em crise, foi proferido a 07-02-2023 e as alegações do ora Recorrido foram apresentadas a 01-03-2023, ou seja, em data posterior ao prazo de 15 (quinze) dias, violando, dessa forma, o artigo 638.º n.º 1, 2.ª parte do Código de Processo Civil conjugado com o artigo 9.º, n.º 1 do Código de Insolvência e Recuperação de Empresas.
XII – Pelo que é forçoso concluir que o recurso interposto pelo ora Recorrido foi apresentado fora do prazo para o efeito e, consequentemente, deveria ter sido rejeitado.
XIII – Mais, o recurso interposto pelo ora Recorrido devia ter sido declarado extinto por inutilidade supervivente da lide, isto porque, a 24-07-2023 douto Tribunal de 1.ª Instância proferiu sentença de homologação da lista de créditos reconhecidos, decisão que não foi objecto de interposição de recurso, tendo transitado em julgado a 11-08-2023.
XIV – Posto isto, o Acórdão ora recorrido ofende caso julgado material, nos termos do n.º 1 do art.º 619.º do CPC, sendo, por isso, nulo.
XV – Ainda sem prescindir, e caso se entenda que o efeito cominatório da falta de resposta é semipleno, o quenão se admite e por mera cautela de patrocínio se equaciona, o Acórdão recorrido é nulo por vício de excesso de pronúncia, nos termos conjugado do artigo 615.º, n.º 1, alínea d) e 666.º n.º 1 do código de Processo Civil, ex vi artigo 17.º n.º 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, dado que o Tribunal a quo não podia substituir-se ao Tribunal de 1.ª instância na apreciação das questões controvertidas, devendo sim, relegar o julgamento para este último, nomeadamente para a produção de prova.
XVI – Em suma, atendendo aos fundamentos de direito aqui deduzido, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogado o Acórdão, ora em crise, e ser o mesmo substituído por outro que confirme o despacho proferido a 07-02-2023, pelo Tribunal de 1.ª instância, o que aqui se requer, com as demais consequências legais.”
II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS
1. Admissibilidade e objecto do recurso
1.1. Estamos perante decisões tomadas no apenso correspondente à reclamação, verificação e graduação de créditos em insolvência (cfr. art. 148º do CIRE), razão pela qual o acórdão recorrido não está sujeito ao regime de revista restritiva e atípica do art. 14º, 1, do CPC; antes ao regime ordinário da revista enquanto espécie.
Por outro lado, a revista não pode ser admitida como excepcional, tal como configurada pela Recorrente, uma vez que não temos duas decisões conformes nas instâncias no segmento decisório pertinente, condição para a aplicação do art. 671º, 3, e 672º do CPC; antes, decisões opostas na sua fundamentação e no seu resultado decisório.
Razões pelas quais se convola oficiosamente a impugnação para revista normal, ao abrigo do art. 671º, 1, e 674º, 1, a), do CPC, de acordo com os poderes oferecidos pelos arts. 6º, 2, 193º, 3, e 547º do CPC, o que se decreta para os devidos efeitos da presente instância recursiva.
1.2. Vistas as Conclusões, que delimitam o objecto recursivo, temos, em termos de sequência lógica, como questões a decidir:
— inutilidade superveniente da lide recursiva;
— extemporaneidade do recurso de apelação;
— ofensa de caso julgado;
— interpretação e aplicação do art. 131º, 3, do CIRE, em face da falta de resposta à impugnação do crédito do credor reclamante OO;
— nulidade do acórdão recorrido por excesso de pronúncia, nos termos do art. 615º, 1, d), do CPC.
2. Materialidade relevante
Considera-se a factualidade constante do Relatório supra.
3. Fundamentação de direito
3.1. Inutilidade superveniente da lide recursiva e extemporaneidade da apelação
As questões invocadas foram arguidas na pendência da apelação e decididas singularmente na Relação e não foram objecto de reclamação nos termos do art. 652º, 3, do CPC: rejeitada a extinção da instância por força da inutilidade superveniente da lide e rejeitada a não admissão do recurso por intempestividade da interposição.
Assim, constituem tais decisões caso julgado formal, nos termos do art. 620º, 1, do CPC, não podendo voltar a ser apreciadas em sede de revista (art. 580º, 2, do CPC).
De igual modo não poderiam ser repareciadas em revista, uma vez que, perante o conteúdo do acórdão recorrido, se afiguram como “questões novas”, enquanto não submetidas a apreciação pelo acórdão recorrido.
Improcedem, pois, as Conclusões X. a XIII. (na parcela pertinente) da revista.
3.2. Ofensa do caso julgado
A Recorrente alega que o acórdão recorrido ofende o caso julgado material constituído pelo decidido na sentença de homologação da lista de créditos reconhecidos, uma vez que a sentença não foi objecto de interposição de recurso, tendo transitado em julgado em 11/8/2023.
3.2.1. Vejamos os factos do processo que avultam para esta apreciação.
1.º) O credor AA reclamou créditos laborais, reconhecidos pela lista de créditos apresentada pelo AI nos termos do art. 129º do CIRE.
2.º) Tais créditos foram impugnados tempestivamente pela credora reclamante BB, nos termos do art. 130º, 1, do CIRE;
3.º) Foi proferido despacho saneador (28/12/2022), integrado pelo despacho pós-reclamação de 7/2/2023 (art. 596º, 2, CPC, ex vi art. 136º, 3, CIRE), tendo este último julgado procedente a impugnação dos créditos de AA e NN por falta de resposta, com a consequente retirada da lista de créditos reconhecidos pelo AI, aplicando o art. 131º, 3, in fine, do CIRE, assim como a eliminação dos três primeiros “temas da prova” e a menção a tais credores, constante do despacho saneador;
4.º) Este último despacho mereceu a interposição de recurso de apelação do credor reclamante AA, visando a sua revogação e manutenção do crédito do Recorrente, tal como reconhecido e integrado na lista de créditos reconhecidos (interposto em 1/3/2023).
Foi proferido despacho de admissão do recurso, com efeito devolutivo, em 2/10/2023.
Na sequência, foi proferido acórdão pelo TRG a julgar que a falta de resposta não desencadeia automaticamente a procedência da impugnação e a julgar a impugnação em substituição do tribunal recorrido, nos termos do art. 665º do CPC; julgou parcialmente procedente a impugnação quanto ao valor do crédito sob condição, por compensação da cessação do contrato de trabalho; e, por fim, “[r]elegar para o Tribunal a quo a verificação e a graduação dos créditos laborais reclamados e reconhecidos pela administradora da insolvência a AA (no valor de € 58 900, 25 de créditos laborais privilegiados; de € 11 489, 75 de créditos sob condição), Tribunal a quo este que deve observar o decidido quanto à impugnação por esta Relação” (em 4/4/2024).
5.º) Foi proferida sentença de homologação da lista de créditos reconhecidos pelo AI e graduação de créditos (14/7/2023), rectificada e integrada pelo despacho proferido em 31/7/2023 (arts. 613º, 1, 614º, 1, e, analogicamente, 617º, 2, sempre do CPC), retirando da lista homologada e da graduação de créditos a menção ao crédito n.º 9 reclamado pelo credor AA, em face do não reconhecimento decidido no despacho subsequente ao despacho saneador;
6.º) Não houve recurso desta sentença, proferida em 14/7/2023, nem do despacho de rectificação, proferido em 31/7/2023; a primeira foi notificada em 24/7/2023 e, se assim for de contar o prazo de impugnação em face da não apelação perante o despacho de rectificação (admissível nos termos do art. 644º, 2, g), do CPC1), transitou em julgado em 11/8/2023 (arts. 9º, 1, CIRE; 638º, 1, 138º, 1, CPC).
7.º) O recurso de apelação, interposto em 1/3/2023 e com incidência sobre o despacho de 7/2/2023, admitido em 2/10/2023 e decidido em 4/4/2024, teve efeito meramente devolutivo em relação às decisões proferidas no apenso de reclamação, verificação e graduação de créditos (efeito esse determinado pelo despacho de 1.ª instância e pelo despacho singular na Relação quanto à admissão da apelação: art. 641º, 1, 5, 652º, 1, CPC).
Aqui chegados, deve entender-se que a sentença que decidiu do mérito da homologação e da graduação de créditos, afectando por essa via a não homologação da lista quanto ao credor identificado sob o n.º 9, a saber, AA, transitou em julgado por não ter merecido impugnação nos prazos legais através de recurso ordinário perante tribunal superior (art. 627º, 2, CPC) e se terem esgotado os meios de impugnação – arts. 628º e 277º, a), do CPC.
Formou-se então caso julgado, material (com efeitos dentro do processo concreto), por incidir sobre o mérito, de acordo com a regra geral do art. 619º, 1, do CPC: «Transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo (…).».
Com essa constituição de caso julgado, e sua consequente definitividade decisória, aplica-se o art. 613º, 1, do CPC, sendo que se verifica a partir dessa data o esgotamento do poder jurisdicional para resolver novamente a questão ou questões decididas.
3.2.2. Na verdade:
— no despacho de 7/2/2023, integrativo do despacho saneador de 28/12/2022, foi decidido (em parte sobre mérito da reclamação de créditos, em parte sobre o conteúdo processual do despacho saneador):
“Dispõe o artigo artigo 131º, nº3 in fine do CIRE, que a resposta deve ser apresentada dentro dos 10 dias subsequentes ao termo do prazo referido no artigo anterior ou à notificação ao titular do crédito objeto da impugnação, consoante o caso, sob pena de a impugnação ser julgada procedente.
A credora BB veio impugnar os créditos dos credores NN e AA, não tendo estes apresentado resposta à impugnação.
Pelo que, nos termos do disposto naquele artigo procede a reclamação, devendo serem tais créditos retirados da lista de créditos reconhecidos.
Pela mesma razão elimino do despacho saneador os três primeiros temas da prova, bem como a menção aos credores NN e AA.”;
— na sentença de 14/7, foi decidido:
“a) Homologar a lista de credores reconhecidos elaborada pela Srª Administradora de Insolvência dos autos.
b) Graduar os créditos constantes da lista de credores reconhecidos, elaborada pela Srª Administradora de Insolvência, nos seguintes termos:
Considerando os princípios atrás expostos, procede-se ao pagamento dos créditos através do produto dos imóveis descritos nas verbas 2 a 4 do auto de apreensão, uma vez que a AI veio informar no auto de apreensão que a verba nº1 tinha deixado de existir, pela seguinte ordem:
1.º - As dívidas da massa insolvente saem precípuas - artigo 172°, nºs 1 e 2 do C.I.R.E.;
2º- De seguida dar-se-á pagamento ao crédito nº 29 (garantido por hipoteca).
3º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito 21 (IMI que recaia sobre cada um dos imóveis)
4º- De seguida dar-se-á pagamento aos créditos nº 1, 2, parte do 3, 4 a 6, 9, 13 a 18, parte do 19, 24, parte do 25, 26 e 27 (créditos laborais);
5º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 7 (privilégios creditórios Segurança Social);
6º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 21 (privilégios creditórios da A. T.);
7º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 3, parte do 7, 8,10, 11, 12, parte do 19, 20, parte do 21, 22,23, parte do 25, e parte do 28 (comuns).
1.º - As dívidas da massa insolvente saem precípuas - artigo 172°, nºs 1 e 2 do C.I.R.E.;
2º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 21 (IUC que recaia sobre cada um dos referidos automóveis);
3º- De seguida dar-se-á pagamento aos créditos nº 1, 2, parte do 3, 4 a 6, 9, 13 a 18, parte do 19, 24, parte do 25, 26 e 27 (créditos laborais).
4º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº7 e parte do nº 21 (privilégios creditórios da SS e A. T.);
5º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº 3, parte do 7, 8,10,11,12, parte do 19, 20, parte do 21, 22,23, parte do 25, e parte do 28 (comuns).
1.º - As dívidas da massa insolvente saem precípuas - artigo 172°, nºs 1 e 2 do C.I.R.E.;
2º- De seguida dar-se-á pagamento aos créditos nº 1, 2, parte do 3, 4 a 6, 9, 13 a 18, parte do 19, 24, parte do 25, 26 e 27 (créditos laborais).
3º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº e e parte do crédito nº 21 (privilégios creditórios da SS e A. T.);
4º- De seguida dar-se-á pagamento ao crédito nº 29 (artigo 98º, nº1 CIRE);
5º- De seguida dar-se-á pagamento a parte do crédito nº3, parte do 7, 8, 10 a 12, parte do 19, 20, parte do 21, 22, 23, parte do 25 e parte do 28 (comuns).”
— no despacho de rectificação da sentença, de 31/7, foi decidido:
“Assiste razão à credora reclamante, tendo tal inclusão resultado de lapso de escrita nosso. Assim, nos termos dos artigos 613º, nº1 e 2 e 614º, nº1 CPC, retire aquele crédito [do credor AA] da graduação da sentença dos autos.”
3.2.3. Relembremos agora as questões elencadas pelo acórdão recorrido:
“Se a decisão recorrida incorreu em erro de direito: por a falta de resposta à impugnação não poder desencadear o efeito cominatório pleno; por a resposta à impugnação dos demais reclamantes trabalhadores aproveitar ao reclamante trabalhador recorrente. / Em caso afirmativo, quais as consequências da falta de impugnação.”
E recordemos as fundamentações conclusivas com que se chega ao dispositivo:
i. “reconhece-se que a falta de resposta à impugnação não deve desencadear automaticamente a procedência da impugnação, em efeito cominatório pleno, devendo apreciar-se em concreto: se o credor, na sua impugnação, impugnou factos alegados na reclamação de créditos e que devessem ser provados pelo credor reclamante e/ou se alegou matéria de facto nova passível de integrar uma defesa por exceção, cuja falta de resposta à impugnação implicasse a confissão de factos novos; se os factos provados, de acordo com o direito aplicável, permitem excluir ou alterar o crédito reclamado e reconhecido ou a sua qualificação.”;
(julgando a impugnação da credora BB)
ii. improcede a impugnação quanto à arguida exceção de prescrição [dos créditos laborais]”;
iii. “a impugnação procede na redução de € 704, 23 do crédito compensação (€ 7 004, 75-€ 6 300,52 =€ 704, 23)”;
iv. “A decisão de verificação e graduação dos créditos laborais reclamados e reconhecidos pela administradora da insolvência (no valor de € 58 900, 25 de créditos laborais privilegiados; de € 11 489, 75 de créditos sob condição), a realizar pela 1ª instância, deve, consequentemente, atender à decisão da impugnação de créditos desta Relação.”
Posto isto.
3.2.4. A sentença, uma vez rectificada como foi, constituindo o respectivo despacho sua parte integrante, julgou nos termos que decidiu e com esse limite decidiu, resultante da procedência da impugnação por falta de resposta (art. 131º, 3, do CIRE) – art. 621º, 1, do CPC: «A sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga (…).».
Logo, quando o acórdão recorrido se pronuncia novamente sobre o reconhecimento dos créditos laborais de AA, em face da bondade e significado de tal impugnação, está objectivamente a duplicar as decisões sobre idêntico objecto processual, contrariando em decisão posterior o sentido da decisão anterior, constitutiva de caso julgado material, uma vez respeitada a identidade objectiva e subjectiva definida pelo art. 581º do CPC, com efeito positivo de vinculação subsequente.
Desta forma, o caso julgado constituído pela sentença, integrada pelo despacho de 31/7/2023, implica como seu pressuposto e antecedente lógico indispensável a apreciação e a procedência da impugnação por parte da credora BB e tem como resultado a homologação da lista do AI sem o reconhecimento dos créditos laborais de AA – a sua não verificação, portanto –, que assim deixou de ser incluído na graduação de créditos em pagamento.
Assim é uma vez que o caso julgado a respeitar – sublinhe-se este ponto – incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e abrange esses fundamentos enquanto pressupostos dessa decisão2, sendo de observar na sua circunscrição decisória o efeito jurídico-prático que esteve implícito mas necessariamente em causa para conduzir ao efeito declarado na sentença transitada3; logo, não pode estabelecer-se qualquer situação contraditória ou incompatível ou alternativa à situação jurídica determinada na homologação e graduação, sem reconhecimento dos créditos laborais de AA, por força da consequência da falta de resposta à impugnação, sendo esta uma sua questão prejudicial necessária (e depois inatacável) nas decisões de mérito proferidas na sentença de homologação e graduação de créditos4.
Assim, é certo que esta decisão posteriormente proferida no processo apenso, correspondente ao acórdão do TRG de 4/4/2024, aqui recorrido, apreciando a impugnação do despacho em 1.ª instância de 7/2/2023, integrativo do despacho saneador, e decidindo parcialmente de mérito quanto à impugnação não respondida em aplicação do art. 131º, 3, do CIRE (nos termos do art. 595º, 1, b), e 3, do CPC), foi proferida ao abrigo de um recurso dotado de efeito «meramente devolutivo» (art. 647º, 1, do CPC), tal permitindo, por isso, que a decisão apelada – o aludido despacho-decisão de mérito de procedência da impugnação e não reconhecimento do crédito laboral – produzisse efeitos jurídicos intraprocessuais imediatos até nova decisão em sentido contrário ser proferida (e transitada em julgado) – neste caso, não evitando a marcha do processo na instância “a quo” e projectando-se na sentença de Julho de 2023, que, por sua vez, se veio a constituir como transitada em julgado.
Só assim não seria se tivesse sido requerido e deferido o efeito suspensivo da apelação interposta em 1/3/2023, de forma a que a produção dos efeitos da decisão recorrida ficasse subordinada à “condição suspensiva da improcedência do recurso”5 e não produzisse qualquer efeito até que ocorresse o novo julgamento na instância superior (ou superiores), com decisão transitada a proferir pelo tribunal de recurso – o que não se verificou –, ou que o juiz de 1.ª instância tivesse ordenado a suspensão da instância até resolução da apelação (arts. 269º, 1, c), 276º, 1, c), CPC) – o que igualmente não se verificou.
Conjugadas estas realidades com a circunstância processual de não ter havido impugnação recursiva da sentença de 14/7/2023 – em rigor, acrescido de recurso (com consequência sobre o recurso pendente) sobre o despacho de 7/2/2023, em aplicação extensiva do art. 644º, 3, do CPC (pois a este normativo não se poderia ter recorrido “ab initio”, pelo menos parcialmente, devido à delimitação do art. 596º, 3, do CPC6), após a rectificação de tal sentença –, tudo junto proporcionou o trânsito em julgado de uma decisão sobre o reconhecimento dos créditos laborais de AA dentro do processo, oponível a decisões contraditórias supervenientes sobre a mesma questão ou pretensão relativa à verificação e graduação de créditos. E mais: oponível à decisão contraditória superveniente proferida sobre decisão prejudicial à sentença transitada em julgado, mas que – decisão esta recorrida – estava, em função do efeito meramente devolutivo, apenas sujeita à “condição resolutiva da procedência do recurso”7; surgindo a decisão contraditória “segunda” depois do trânsito em julgado da sentença “primeira”, prevale o caso julgado anterior, pois a interposição do recurso de apelação e a sua eventual decisão de procedência não logrou obter qualquer efeito suspensivo do trânsito em julgado, como mera consequência da interposição do recurso ordinário8, constituído pela sentença proferida no âmbito da prossecução da instância antes da procedência do recurso de apelação onde se proferiu a decisão “segunda”.
E ainda dado por adquirido que o primado do caso julgado poderia ter sido obstaculizado com o competente recurso de apelação da sentença de 14 e 31/7/2024 – veja-se o impacto desse recurso à luz dos arts. 173º 180º do CIRE9 – e, em face do desenvolvimento processual que desembocou nessa sentença, do anterior despacho de 7/2/2023 (art. 644º, 1, 3, CPC, como vimos ser possível sustentar, não obstante o art. 596º, 3, do CPC) – o que não sucedeu10.
Isto dando como certo, por fim, que a sentença de verificação e graduação de créditos (art. 140º do CIRE) é apta a adquirir e a adquirir força de caso julgado material quanto aos créditos reconhecidos e não reconhecidos, nos termos gerais dos arts. 619º, 1, e 621º do CPC, como tem sido considerado e julgado pelo STJ11.
3.2.5. Estamos, portanto, colocados sob a alçada do âmbito de aplicação do art. 625º, 1, do CPC:
«Havendo duas decisões contraditórias sobre a mesma pretensão, cumpre-se a que passou em julgado em primeiro lugar.»
Estamos numa hipótese equiparável à excepção dilatória de caso julgado, que obsta à repetição da causa (arts. 577º, i), 580º, 1, 2.ª parte – «As exceções de litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; (…) se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção de caso julgado.» –, e 581º, 1 – «Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.» –, do CPC)
Não tendo sido invocada pela parte interessada nem oficiosamente conhecida, o certo é que houve a decisão de mérito que a excepção impediria, verificando o que o art. 580º, 2, do CPC, visa: «evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou reproduzir uma decisão anterior».
Qual a consequência então decorrente da cogência da decisão transitado em julgado antes de decisão incidente sobre o objecto já coberto pelo caso julgado, ou seja, de ter sido proferida sem consideração (“ofensa implícita”) do caso julgado anteriormente formado12?
Temos uma decisão ineficaz por circunstância extrínseca ao acto – ofensa da eficácia do caso julgado, fundamento da revista, expressamente previsto no art. 629º, 2, a), do CPC –, nos termos do art. 625º, 1, em conjugação com o art. 628º, do CPC13, o que assim se declara para o acórdão recorrido.
É assim o suficiente e esclarecedor para julgar procedentes as Conclusões XIII., in fine, e XIV. da Recorrente, fazendo sobrelevar a sentença proferida em 14/7/2023, rectificada em 31/7/2023, sobre o acórdão recorrido, no que toca ao objecto de impugnação definido nesta revista pela Recorrente.
3.3. Perante o assim julgado, ficam prejudicadas as demais questões recursivas, por aplicação do art. 608º, 2, 1.ª parte, ex vi arts. 663º, 2, e 679º, do CPC, plasmadas nas Conclusões III. a IX. e XV.
III) DECISÃO
Nesta conformidade, julga-se procedente a revista, revogando-se o acórdão recorrido.
Custas pelo Recorrido, Apelante no recurso precedente.
STJ/Lisboa, 17/10/2024
Ricardo Costa (Relator)
Luís Correia de Mendonça
Maria Olinda Garcia
SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)
_____________________________________________
2. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A eficácia da composição da acção”, Estudos sobre o novo processo civil, 2.ª ed., Lex, Lisboa, 1997, págs. 578-579, RUI PINTO, “Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias”, Julgar, Novembro 2018, págs. 18-19.↩︎
3. CASTRO MENDES, Limites objectivos do caso julgado em processo civil, Edições Ática, Lisboa, 1974, pág. 350.↩︎
4. MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, “A eficácia da composição da acção”, loc. cit., pág. 579, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, “Um polvo chamado autoridade de caso julgado”, ROA, 2019, págs. 696-697, 702-703 (mais restritivo), JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 581.º”, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º cit., págs. 599-600.
Na jurisprudência recente do STJ, v., sobre este ponto do silogismo dos fundamentos com a decisão, enquanto sendo esta o resultado da mobilização de tais fundamentos, Acs. de 31/1/2024, processo n.º 721/17, 30/4/2024, processo n.º 5765/03, e de 27/11/2019, processo n.º 186/14, sempre in www.dgsi.pt.↩︎
5. RUI PINTO, O recurso civil. Uma teoria geral. Noção, objeto, natureza, fundamento, pressupostos e sistema, AAFDL Editora, Lisboa, 2017, pág. 240.↩︎
6. Este está referido para o despacho saneador referido no art. 596º, 1, do CPC, aquele que permite a acção prosseguir, com identificação do objecto do litígio e a enunciação dos temas da prova. Acontece que o despacho saneador de 28/12/2022 teve essas características e o despacho de 7/2/2023 actuou sobre os “temas da prova”, suscitando a aplicação do art. 596º, 2 e 3 («o despacho proferido sobre as reclamações [do despacho saneador] apenas pode ser impugnado no recurso interposto da decisão final»), do CPC. Mas não deixou de, parcialmente, decidir do mérito da reclamação dos trabalhadores então referidos, pelo que, em parte e nessa parte, estava sujeito a sua apelação ao art. 644º, 1, b), do CPC. Depois, em face da pendência do recurso de apelação referente à decisão de 7/2/2023, é que poderíamos ter como socorro o art. 644º, 3, do CPC, pois ainda abrangido pela estatuição do art. 596º, 1 a 3, do CPC, e acoplar a apelação da sentença com a apelação da decisão instrumental da sentença antes proferida, recorrida e (pelo facto de) nem sequer ainda ter sido objecto de apreciação à luz do art. 641º do CPC.↩︎
7. RUI PINTO, O recurso civil… cit., pág. 240.↩︎
8. V. o entendimento de JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ARMINDO RIBEIRO MENDES/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 647.º”, Código de Processo Civil anotado, Volume 3.º, Artigos 627.º a 877.º, 3.ª ed., Almedina, Coimbra, 2022, págs. 130 (o efeito suspensivo do recurso tem o “efeito de suspensão da marcha do processo”, que é “intraprocessual”) e 131.↩︎
9. ALEXANDRE SOVERAL MARTINS, Um curso de Direito da Insolvência, Volume I, 4.ª ed. Almedina, Coimbra, 2022, pág. 440.↩︎
10. Cfr. supra, ponto 11., do Relatório: ao invés, o credor interessado, AA, optou por requerer simplesmente pronúncia sobre o crédito reclamado e o recurso apresentado em 1/3/2023.↩︎
11. V. Acs. do STJ de 29/9/2022, processo n.º 5138/05, e de 27/9/2018, processo n.º 10248/16 (“(…) a verificação de créditos no âmbito do processo de insolvência reveste natureza jurisdicional, tendo a sentença sobre tal proferida eficácia de caso julgado material relativamente a todos os credores do insolvente intervenientes no respetivo processo, nos termos gerais consagrados nos artigos 619.º e 621.º do CPC. Nem seria lógico que, visando o processo de insolvência a liquidação total do património do devedor a favor de todos os seus credores, segundo o princípio do tratamento igual, sem prejuízo das preferências legalmente ressalvadas, se permitisse que qualquer deles viesse discutir de novo, nomeadamente em ação autónoma ulterior, a inexistência ou invalidade de crédito já reconhecido no processo de insolvência.”, “em função dos direitos à execução do património do insolvente reconhecidos aos credores concorrentes”.), in www.dgsi.pt – ainda que na perspectiva de “autoridade de caso julgado”.↩︎
12. Assim considerado por ABRANTES GERALDES, “Artigo 629º”, Recursos no novo Código de Processo Civil, 5.ª ed., Almedina, Coimbra, 2018, pág. 50.↩︎
13. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 613º,” págs. 730-731, “Artigo 625º”, pág. 766, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º cit., ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, “Artigo 625º”, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 748; v., no mesmo sentido sancionatório, o Ac. do STJ de 13/4/2021, processo n.º 11007/14 (“a não invocação da excepção do caso julgado pelo interessado (ou o não conhecimento oficioso da mesma) não obsta a que, com apoio nela e a todo o tempo, se possa fazer cumprir a primeira decisão transitada em julgado e de declarar ineficaz a segunda que com ela esteja em contradição”), in https://juris.stj.pt/ecli; também a ineficácia se aplica na situação de “caso julgado formal”, de acordo com o art. 625º, 2, do CPC: v. Ac. do STJ de 17/10/2023, processo n.º 3372/18, in www.dgsi.pt.↩︎