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CONVERSAS INFORMAIS
SILÊNCIO DO ARGUIDO NO JULGAMENTO
REGIME PENAL ESPECIAL PARA JOVENS
CRIME DE FURTO
CRIME DE DANO
CONCURSO EFECTIVO
Sumário
I - Independentemente de as conversas «informais» mantidas com o órgão de polícia criminal pelo arguido ocorrerem em momento anterior ou posterior ao da constituição do suspeito nessa qualidade, legalmente não se podem ser valoradas. II - A circunstância de a arguida não ter prestado declarações em audiência de julgamento não pode funcionar em desfavor daquela, fazendo corresponder tal silêncio a uma pretensa e falaciosa falta de arrependimento e capacidade de autocrítica. III – Nos termos do art. 4º do DL 401/82, de 23.09, deve ser atenuada especialmente a pena aplicável a arguida com 18 anos à data da prática dos factos, atendendo em concatenação às circunstâncias de o bem jurídico protegido pela norma incriminadora se reportar ao património alheio, interesse jurídico que, não sendo despiciendo, não assume a mesma relevância dos bens de natureza pessoal, nomeadamente quando atacados mediante uso de violência, o grau de ilicitude do crime de furto qualificado perpetrado pela arguida ser mediano, com parcas consequências para o património do lesado, a moldura abstrata da pena de prisão aplicável (2 a 8 anos) ser bastante significativa quanto aos seus limites mínimo e máximo, a arguida não possuir antecedentes criminais, sendo certo que já decorreram quase 3 anos desde a práticos dos factos e apresentar precária condição económica, bem como inserção laboral e familiar, ainda que instável. IV – A imagem global dos factos e a personalidade da arguida permitem concluir que o cometimento do crime em questão (furto qualificado) representa um mero desvio transitório e ocasional, próprio do período de latência social propiciador da delinquência juvenil, o que torna viável formular um juízo de prognose favorável à atenuação especial prevista no predito normativo legal, sendo que não se vislumbram razões de necessidade de defesa do ordenamento jurídico que obstem à aplicação dessa medida legal de benevolência. V – Tendo os arguidos procedido à destruição de uma câmara de videovigilância já após terem logrado introduzir-se no interior da habitação do ofendido, sem que se deparassem com qualquer outro obstáculo físico que os impedisse de aceder aos bens móveis alheios ali existentes, constata-se que esse dano não constituiu um ato necessário para a prática do crime de furto. VI – No caso, ocorre um concurso efetivo de infrações entre os crimes de furto e de dano, porquanto o concurso aparente entre esse tipo de ilícitos criminais está reservado para os casos em que o segundo se revela um meio necessário, indispensável para a concretização do furto, encontrando-se ainda a coberto da mesma resolução criminosa tomada pelo agente.
Texto Integral
Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães: I – Relatório: I.1 No âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) nº 239/21...., do Tribunal Judicial da Comarca de ... – Juízo Local Criminal de ..., no dia 12.02.2024, foi proferida e depositada sentença com o seguinte dispositivo (referências ...15 e ...45, respetivamente):
“Pelo exposto, este Tribuna julga a acusação publica parcialmente procedente, por provada e, em consequência, decide:
a) Absolver o arguido AA da prática em coautoria material, na forma consumada e em concurso real, um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203. n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma e um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal;
b) Absolver a arguida BB da prática em coautoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal;
c) Absolver o arguido CC, da prática em coautoria material, na forma consumada e em concurso real, de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal;
d) Condenar a arguida BB pela prática em coautoria material, na forma consumada e em concurso real, um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203. n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período de tempo;
e) Condenar o arguido CC pela prática em coautoria material, na forma consumada e em concurso real, um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203. n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período de tempo;
f) Declarar a perda a favor do Estado da quantia que se vier a liquidar em execução de sentenças, condenando-se os arguidos no seu pagamento, nos termos do artigo 110º, nºs 1, al. b) e 4 do C.P.
g) Condenar ainda os arguidos no pagamento das custas criminais, fixando-se em 2 UC a taxa de justiça, (artigos 513.º do CPP e 8.º, n.º 9, do RCP e Tabela III anexa ao mesmo e nos demais encargos do processo nos termos do artigo 514.º do CPP.”
I.2 Discordando de tal decisão, dela veio o Ministério Público interpor o presente recurso, que na sua motivação culmina com as seguintes conclusões e petitório (referência ...27):
“1 - O presente Recurso circunscreve-se às seguintes alegações: 1 - A nulidade da sentença em virtude da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410.º, n.º 2, al. a) do Código de Processo Penal); 2- A nulidade da sentença em virtude da contradição insanável da fundamentação (artigo 410.º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Penal); 3 - A violação do disposto no artigo 53º, n.º 3 do Código Penal; 4 - Os arguidos BB e CC deveriam ter sido condenados pela prática do crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal; 5 - Impugnação da matéria de facto relativa à absolvição do arguido AA pela prática em coautoria material, em concurso efetivo e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203. n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma, e de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal; 6 - O Tribunal não deveria ter aplicado o regime penal dos jovens delinquentes à arguida BB e, também, não deve ser aplicado tal regime ao arguido AA; 7 - Os arguidos BB, CC e AA devem ser condenados pela prática, em coautoria material e em concurso real e na forma consumada, de um crime de furto qualificado p. e p. pelos artigos 203. n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma e de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão suspensa na sua execução subordinada a regime de prova.
2 - Relativamente à primeira alegação, da leitura da sentença recorrida extrai-se que nada foi apurado quanto ao comportamento anterior e posterior aos factos por parte dos arguidos, fatores de determinação da pena que, entre outros, constam do elenco não taxativo previsto no artigo 71.º, nº 2, do Código Penal, como elementos relevantes a ponderar na determinação da pena.
3 - Entendemos que se impunha ao Tribunal que investigasse, por todos os meios ao seu alcance e legalmente admissíveis, o comportamento anterior e posterior aos factos por parte dos arguidos.
4 - O Tribunal deveria ter solicitado a realização de relatório social relativamente aos arguidos.
5 - Assim, consideramos que se verifica a nulidade da sentença em virtude da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º 410.º, n.º 2, a) do CPP), pelo que deverá ser anulada a douta sentença e, consequentemente, deverá determinar-se o reenvio do processo para novo julgamento restrito às questões fácticas mencionadas (cfr. artigos 410.º, n.º 2, al. a), 426.º e 426.ºA, todos do Código de Processo Penal).
6 - No tocante à segunda alegação, a sentença recorrida deu como provado que os arguidos praticaram os factos que consubstanciam a prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma, sem distinguir qualquer dos arguidos – logo englobando o arguido AA-, e deu como não provado que o arguido AA tivesse praticado tais factos.
7 - Os factos assim, julgados como provados e como não provados colidem inconciliavelmente entre si. Parece-nos claro, evidente e ostensivo, que o Tribunal deu como provados e não provados factos que se excluem e precludem mutuamente, pois, da matéria de facto dada como provada, resulta que os arguidos, sem que se faça qualquer distinção entre eles, portanto, abrangendo o arguido AA, praticaram os factos que consubstanciam a prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma, e, simultaneamente, o Tribunal dá como não provado que o arguido AA tivesse participado nos factos descritos em 1) a 12). Estes factos são absolutamente contraditórios entre si, tendo a douta sentença incorrido no vício de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, vício que deverá ser dado por verificado, o que deverá conduzir à anulação da douta sentença e, consequentemente, deverá determinar-se o reenvio do processo para novo julgamento restrito às questões fácticas mencionadas (cfr. artigos 410º, nº 2, al. b), 426º e 426º-A, todos do Código de Processo Penal).
8 - No que se refere à terceira alegação, o Tribunal condenou a arguida BB pela prática em coautoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203. n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período de tempo.
9 - O artigo 53º, nº 1, do Código Penal dispõe que: “O tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade”. O nº 3 do referido preceito legal dispõe que “O regime de prova é ordenado sempre que o condenado não tiver ainda completado, ao tempo do crime, 21 anos de idade”.
10 - Ao não subordinar a suspensão da execução da pena de prisão em que a arguida BB foi condenada a regime de prova, o Tribunal violou a norma do artigo 53º, nº 3, do Código Penal, pelo facto de a arguida BB, à data da prática dos factos, ter a idade de 18 anos.
11 - Relativamente à quarta alegação, a danificação da câmara de videovigilância não foi instrumental da prática do crime do furto qualificado. De facto, os arguidos destruíram a câmara de videovigilância para evitarem serem filmados e, posteriormente, identificados pelas autoridades, ou seja, para ocultarem a sua participação na prática do crime de furto qualificado.
12 - Da matéria de facto dada como provada constam todos os elementos objetivos e subjetivos da prática do crime de dano (cfr. pontos 5 e 11 da matéria de facto dada como provada).
13 - O concurso aparente só deverá ser equacionado no caso da indispensabilidade dos crimes instrumentais para o cometimento do “crime fim”: sem a verificação dessa indispensabilidade instrumental, os crimes que antecedem ou são contemporâneos ao crime fundamentalmente visado pelo agente conservam a sua autonomia, devendo ser punidos no âmbito do concurso real de infrações.
14 - Para a prática do crime de furto sub judice os arguidos não necessitavam de destruir a câmara de videovigilância.
15 - Assim, o crime de dano não pode ser objeto de consumpção pelo crime de furto qualificado e os arguidos BB e CC devem ser condenados pela prática do crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal.
16 - No tocante à impugnação da matéria de facto relativa à absolvição do arguido AA, pela prática em coautoria material e em concurso real e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203. n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma, e de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal, o que se contesta, em concreto e, por isso, se impugna, é o facto de o Tribunal ter dado como não provado “Que o arguido AA tivesse participado nos factos descritos em 1) a 12)”;
17 - São as seguintes, as concretas provas que, em nosso entender, impõem decisão diversa da recorrida (cfr. artº 412º, nº 3, al. b), do Código de Processo Penal): I. - O depoimento da testemunha DD; II - O aditamento ao auto de notícia de fls. 22 a 24;
III. - O depoimento da testemunha EE.
18 - Prova nº 1: A sentença recorrida não valorou o depoimento da testemunha DD, militar da GNR, relativamente à conversa que a testemunha manteve com o arguido AA antes da sua constituição como arguido.
19 - O trecho do depoimento da testemunha DD que, no entender do Ministério Público, impõe decisão diversa da recorrida relativamente ao ponto a) dos “Factos Não Provados” é o seguinte: - Trecho com início/rotação aos 00M:47S, com termo/rotação aos 06M:43S.
20 - Entendemos que o depoimento da testemunha DD deve ser valorado também na parte referente à conversa que manteve com o arguido AA antes da sua constituição como arguido.
21 - De facto, como refere o acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Lisboa de 22-6-2017 (processo nº 320/14.7GCMTJ.L1-9, disponível em www.dgsi.pt) “As afirmações produzidas nesta fase preliminar por qualquer pessoa abordada no decurso de operação policial, seja ela, suspeito ou potencial testemunha do crime, não traduzem «declarações» strictu sensu para efeitos processuais, já que não existe, ainda, verdadeiramente um processo penal a correr os seus termos. São diligências de aquisição e conservação de prova, lícitas, dada a sua conformidade com o comando legal prescrito no art. 249º do CPP, não sendo, por isso, proibido o seu relato em audiência” (negrito nosso).
22 - Ora, o militar da GNR DD afirmou que, quando se deslocou ao local do furto, a então suspeita BB referiu que praticou o furto juntamente com mais duas pessoas, nomeadamente com o arguido AA e com outra pessoa que não sabia no momento o nome ou não pretendia dizer e, seguidamente, localizou na cidade ... o arguido AA e o mesmo, em momento próximo, assumiu a prática do furto e explicou a forma como perpetrou o furto.
23 - O arguido AA prestou tais declarações quando não era arguido e não houve qualquer atraso na constituição do mesmo como arguido.
24 - Pela análise do depoimento da testemunha DD, militar da GNR, conclui-se que o arguido AA praticou em coautoria material e na forma consumada, juntamente com os arguidos BB e CC os crimes de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203. n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, e de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal.
25 - Prova nº 2: No aditamento ao auto de notícia de fls. 22 a 24, está vertida a factualidade que o militar da GNR DD relatou ao Tribunal, a respeito da participação do arguido AA na prática dos crimes de furto qualificado e de dano.
26 - Prova nº 3: A sentença recorrida não valorou o depoimento da testemunha EE, militar da GNR, relativamente à conversa que a testemunha manteve com a arguida BB, antes da sua constituição como arguida.
27 - O trecho do depoimento da testemunha EE que, no entender do Ministério Público, impõe decisão diversa da recorrida relativamente ao ponto a) dos “Factos Não Provados” é o seguinte: - Trecho com início/rotação aos 00M:50S, com termo/rotação aos 08M:15S.
28 - A testemunha EE afirmou que, momentos após a notícia do furto, deslocou-se ao local dos crimes, com vista a averiguar se existiam vestígios no local e apurar a identidade do (s) seu (s) autor (es), visualizou a então suspeita BB nas imediações da residência alvo do furto, nomeadamente a cerca de cento e cinquenta metros da residência, no local onde tinha visto dois vultos a fugirem; BB estava na posse de uma caixa contendo um micro-ondas e aquela, de forma espontânea, comunicou ao militar da GNR que praticou o furto juntamente com o seu namorado AA e com outra pessoa de que não sabia o nome.
29 - Entendemos que, pelas razões que referimos supra, a respeito da valoração do depoimento da testemunha DD, o depoimento da testemunha EE deve ser valorado, também na parte referente à conversa que manteve com a arguida BB, antes da sua constituição como arguida.
30 - De facto, BB, quando não era arguida, prestou ao militar da GNR EE a informação que o seu namorado, o arguido AA, participou juntamente consigo no furto e não houve qualquer atraso na constituição da mesma como arguida.
31 - A conjugação das provas referidas impunham ao Tribunal que tivesse dado como provado que o arguido AA comparticipou na prática dos factos descritos em 1) a 12).
32 - O arguido AA remeteu-se ao silêncio e se é verdade que o silêncio não o pode prejudicar, também, não o pode favorecer.
33 - Assim, impunha-se a condenação do arguido AA, pela prática em coautoria material e em concurso real, e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203. n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma e de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal.
34 - No que se refere à sexta alegação, não deveria ter sido aplicado à arguida BB o regime penal dos jovens delinquentes, atendendo a que a arguida BB não prestou declarações em audiência de julgamento, não respondeu a questões a formular pelo Tribunal e não demonstrou arrependimento, pelo que não foi possível verificar da sua capacidade de autocrítica, como fatores decisivos para se perceber que, não obstante a gravidade objetiva do ilícito, a atenuação da pena em virtude da aplicação do regime penal dos jovens delinquentes - que equivale a uma moldura abstrata mais benigna - pudesse de alguma forma traduzir-se em vantagem para a sua ressocialização.
35 - De facto, não basta que existam razões para a reinserção é necessário que elas sejam sérias, o que não sucede, manifestamente, no caso concreto.
36 - Também entendemos que, relativamente ao arguido AA, não se mostra preenchido o pressuposto material do regime penal dos jovens delinquentes. Na verdade, não obstante o arguido AA, nascido em ../../2003, ter à data da prática dos factos, a idade de 18 anos, o mesmo não confessou os factos, não demonstrou qualquer arrependimento da sua conduta.
37 - Também, até à data, nenhum dos arguidos ressarciu o ofendido FF em qualquer valor, nem entregou qualquer dos objetos furtados.
38 - No que se refere à sétima alegação, e no que tange às penas parcelares de 3 anos e 6 meses de prisão, pela prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203. n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma, e de 1 ano e 6 meses de prisão, pela prática do crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal, as mesmas são adequadas às exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir e não excedem a medida da culpa dos arguidos.
39 - De facto, quer quanto ao crime de furto qualificado, quer quanto ao crime de dano, as exigências de prevenção geral são elevadas, face ao tipo de conduta em causa, que põem em perigo a propriedade, o grau de ilicitude dos factos é elevado, atenta a forma do seu cometimento, a culpa dos três arguidos é elevada, pois atuaram com dolo direto, não confessaram os factos, não demonstraram arrependimento, denotando uma total ausência de autocensura, em total desabono da sua personalidade.
40 - Atendendo ao dolo direto e intenso e à elevada ilicitude dos factos praticados e às elevadas exigências de prevenção geral e especial, os arguidos BB, CC e AA devem ser condenados pela prática, em coautoria material, em concurso real e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203. n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma, e de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal, nas penas únicas de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensas na sua execução.
41 - A suspensão da execução da pena de prisão em que os arguidos BB, CC e AA devem ser condenados, deve ser subordinada a regime de prova.
42 - Na verdade, relativamente aos arguidos BB e AA, como supra referimos, a imposição do regime de prova é obrigatória por lei (artigo 53º, nº 3, do Código Penal), uma vez que os arguidos BB e AA, à data da prática dos crimes de furto qualificado e de dano, tinham 18 anos de idade.
43 - Incorreu o Tribunal a quo na violação dos artigos 30.º, n.º 1 40.º, 53º, n.º 3, 40.º, 70.º, 71.º, 77.º 203.º n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), todos do Código Penal com referência ao artigo 202.º, alínea e), do mesmo diploma e 212.º, n.º 1, do Código Penal; e artigos 125.º, 127.º, 243.º e 249.º, 340.º, 374.º, n.º2 e 379.º, n,º 1, c) todos do Código de Processo Penal;
Pelo que, em conformidade com o exposto:
-Verificando-se a nulidade da sentença em virtude da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º 410.º, n.º 2, a) do CPP), deverá ser anulada a douta sentença e, consequentemente, deverá determinar-se o reenvio do processo para novo julgamento restrito às questões fácticas mencionadas (cfr. artigos 410.º, n.º 2, al. a), 426.º e 426.ºA, todos do Código de Processo Penal);
- Verificando-se que a douta sentença incorreu no vício de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, vício que deverá ser dado por verificado, o que deverá conduzir à anulação da douta sentença e, consequentemente, deverá determinar-se o reenvio do processo para novo julgamento restrito às questões fácticas mencionadas (cfr. artigos 410º, nº 2, al. b), 426º e 426º-A, todos do Código de Processo Penal);
Caso assim não se entenda: deve a douta sentença recorrida ser revogada, devendo cada um dos arguidos BB, CC e AA ser condenados pela prática, em coautoria material, em concurso real e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203. n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma, e de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução, subordinada a regime de prova, fazendo-se, assim,
JUSTIÇA.”
Os arguidos não deduziram resposta ao recurso.
I.3 Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer em que, perfilhando parcialmente a posição assumida em primeira instância pelo recorrente Ministério Público, sustenta a parcial procedência do recurso (referência ...56).
Em conformidade, entende que deve ser concedido provimento ao recurso no que concerne: a) à requerida subordinação a regime de prova da suspensão da pena de prisão aplicada à arguida BB, com 18 anos à data dos factos (cf. art. 53º, nº3, do CP); b) à peticionada condenação dos arguidos BB e CC pela prática, em coautoria e em concurso real (com o crime de furto qualificado), de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº1, do CP, propondo as penas parcelares de 40 dias e 80 dias de multa, respetivamente, à taxa diária comum de € 6,00, devendo ser aplicada quanto à arguida o perdão previsto no art. 3º, nº2, al. a), da Lei nº 38-A/2023, de 02.08; c) ao peticionado agravamento das penas parcelares cominadas àqueles arguidos pela prática de um crime de furto qualificado, ainda que em medida inferior à pugnada pela magistrada recorrente, devendo ser aplicada a pena de 2 anos de prisão à arguida BB e a pena de 3 anos de prisão ao arguido CC, ambas suspensas na sua execução, por igual período de tempo ao da respetiva duração.
Quanto ao mais, pugna pela improcedência do recurso.
Cumprido o disposto no art. 417º, nº2 do CPP, não foi deduzida resposta ao sobredito parecer.
Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir.
*
II – Âmbito objetivo do recurso (thema decidendum):
É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante designado, abreviadamente, CPP).[1][2]
Assim sendo, no caso vertente, as questões que importam dilucidar são as seguintes:
a) Saber se a sentença padece de vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por não solicitação de relatórios sociais dos arguidos;
b) Saber se a sentença padece de vício de contradição insanável da fundamentação;
c) Saber se a decisão violou o disposto no art. 53º, nº3, do Código Penal (CP), relativamente à suspensão da pena de prisão aplicada à arguida BB;
d) Verificação, no caso concreto, de concurso real entre o crime de furto qualificado pelo qual foram condenados os arguidos e o crime de dano que lhes foi imputado no libelo acusatório;
e) Aquilatar se ocorreu erro de julgamento quanto ao ponto da alínea a) dos factos não provados, que devia ter sido dado como provado (com afirmação da participação do arguido AA nos factos ajuizados);
f) Da alegada injustificada aplicação à arguida BB do regime especial para jovens;
g) Necessidade de agravamento das penas aplicadas em primeira instância com fixação da pena de 3 anos e 6 meses de prisão para cada um dos três arguidos, pela prática de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos arts. 203º, nº1 e 204º, nº2, al. e), com referência ao art. 202º, al. e), todos do CP; peticionada aplicação a cada um dos arguidos da pena de 1 ano e 6 meses de prisão, pela prática de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº1, do CP; e, em cúmulo jurídico das referidas penas parcelares, na pena única de 4 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução e subordinada a regime de prova.
*
III – Apreciação:
III.1 – Factualidade dada por provada e não provada em primeira instância e fundamentação aduzida para essa decisão:
Factos provados:
1) No dia 22 de novembro de 2021, no período compreendido entre as 1:00 e as 3:50 horas, os arguidos, em obediência a plano previamente elaborado e em conjugação de esforços, dirigiram-se para a residência sita na rua ..., ..., pertencente ao ofendido FF – propriedade que se encontrava delimitada com muro, rede de vedação e portão em todo o seu redor - a fim de se apoderarem dos objetos que ali encontrassem e lhes despertassem interesse, contra a vontade e sem conhecimento do ofendido, fazendo-se transportar num veículo ligeiro de passageiros, de marca ..., modelo ..., conduzido pelo arguido CC.
2) Aí chegados, os arguidos subiram o muro que vedava a citada habitação - com altura não inferior a um metro – introduziram-se no logradouro da habitação e aproximaram-se das traseiras da referida habitação.
3) Ato seguido, um dos arguidos, de forma não concretamente apurada, partiu o vidro de uma janela e abriu-a.
4) Após, os arguidos subiram a tal janela e introduziram-se na residência.
5) De seguida, os arguidos, de forma não concretamente apurada, partiram a câmara de videovigilância da citada habitação, de valor não concretamente apurado, destruindo-a.
6) Após, os arguidos percorreram as diversas divisões da residência, a fim de observar tudo o que aí existisse e lhes pudesse interessar, tendo retirado, os seguintes objetos de valor não concretamente apurado:
- Um micro-ondas de marca ...”
- Uma máquina de café de marca “...”
- Duas garrafas de cachaça de marca ...”
- Duas garrafas de vodka preta de marca ...”
- Uma garrafa de vodka branca de marca ...”
- Uma garrafa de vodka limão de marca ...”
- Duas garrafas de Whisky, de marca ...”
- Uma televisão de marca ...
- A quantia de €400,00 (quatrocentos euros).
7) Os arguidos munidos dos referidos objetos, de valor não concretamente apurado, que pertenciam ao ofendido, abandonaram o local, levando-os consigo e fazendo-os seus.
8) No referido dia 22 de novembro de 2021, pelas 3:55 horas, num caminho sito a menos de 200 metros da citada rua ..., ..., a arguida transportava apeada o mencionado micro-ondas que lhe foi apreendido pela GNR.
9) Os arguidos agiram de forma concertada e em conjugação de esforços, com o propósito conseguido de se introduzirem na referida residência e de se apoderarem e fazerem seus os citados objetos identificados no ponto 6º.
10) Sabiam que o acesso nas condições descritas lhes era vedado, que os objetos não lhe pertenciam e que as suas condutas eram contrárias à vontade do proprietário.
11) Os arguidos agiram em comunhão de esforços e intentos, de acordo com plano previamente traçado entre si ou a que posteriormente aderiram, com o propósito concretizado de causarem estragos à citada camara de videovigilância pertencente ao ofendido, apesar de saberem que a mesma não lhes pertencia e que estavam a agir contra a vontade do seu proprietário, resultado aquele que representaram.
12) Os arguidos agiram sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
13) É solteira, tem um companheiro, tem um filho, que está institucionalizado, e aufere mensalmente o RSI no valor de € 237,00 e € 30,00 por noite como empregada de balcão.
14) Não tem veículos automóveis,
15) Tem o 9 ano de escolaridade.
16) Não tem antecedentes criminais registados.
17) O arguido CC é solteiro, tem companheira, não tem filhos;
18) Trabalha numa sucata e aufere mensalmente € 820,00.
19) Não tem veículos automóveis.
20) Tem o 12º ano de escolaridade.
21) Não tem antecedentes criminais registados.
22) O arguido AA é solteiro, tem 1 filho, que está institucionalizado.
23) Trabalha como marmorista e aufere € 820,00/mês;
24) Não tem veículos automóveis.
25) Tem o 9 ano de escolaridade.
26) Não tem antecedentes criminais registados.
Factos não provados:
a) Que o arguido AA tivesse participado nos factos descritos em 1) a 12);
b) Que o valor dos bens indicados em 6) fosse de € 1654,00;
c) Que a camara de vigilância indicada em 5) tivesse o valor de € 100,00.
Motivação: «A convicção do tribunal assentou na análise crítica e conjugada da prova produzida em audiência de julgamento, atendendo-se designadamente à prova pessoal, pericial e documental produzida, tudo sob o crivo das mais elementares regras da experiência comum
Concretamente
Ponderou o Tribunal todos os documentos juntos, como sejam, 1) Auto de notícia (fls. 5 a 7); 2) Auto de apreensão (fls. 8 e 9); 3) Aditamento ao auto de notícia (fls. 22 a 24); 4) Relatório tático de inspeção ocular (fls. 32 e 33); 5) Relatório fotográfico (fls. 34, 35, 97 e 98); 6) Relatório técnico de inspeção judiciária (fls. 93 a 96);
Todos estes documentos não foram colocados em crise, quer quanto à sua existência, quer quanto ao respetivo conteúdo, por qualquer dos sujeitos processuais pelo que não coloca o Tribunal dúvidas quanto àquilo que objetivamente resulta demonstrado pelos mesmos. De igual forma ponderou o Tribunal o relatório pericial de fls. 143 a 150, 157 a 159. Este meio de prova (pericial) não foi colocado em causa por nenhum outro, sendo que, não tendo o Tribunal conhecimentos técnicos iguais aos dos Peritos do Laboratório de Polícia Científica, não poderá, sem mais, desconsiderar o resultado obtido pela perícia, tal como, de resto, resulta dos artigos 151.º e 163.º do Código de Processo Penal, não colocando, de igual forma, o Tribunal dúvidas quanto àquilo que objetivamente resulta demonstrado pelos mesmos. No mais, os arguidos, no exercício de um direito que lhes é constitucionalmente assegurado, não prestaram, no início da audiência, declarações sobre os factos pelos quais vêm acusados. Assim, a facticidade descrita nos pontos 1 a 6 (com exceção da identidade dos agentes) foi confirmada por parte de FF – ofendido – o qual, depôs de forma credível e isenta, e com uma cadência típica de quem diz a verdade, esclarecendo o Tribunal quanto ao contexto situacional a que se reportam os factos. Designadamente que se encontra emigrado em ..., onde reside e trabalha, tendo sido o alerta do furto dado pelo sistema de alarme. Que foi o irmão que no dia dos factos se dirigiu ao local e contactou com as autoridades. No que concerne à natureza dos objetos subtraídos (ponto 6), considerou igualmente o Tribunal o teor das declarações do ofendido que esclareceu que, não tendo presenciado os factos por se encontrar em ..., se deslocou a Portugal uns dias depois, tendo procedido ao levantamento dos objetos em falta e bem assim à indicação do que foi danificado. Como referido, o depoimento desta testemunha afigurou-se credível, circunstanciado e baseado num conhecimento direto dos factos, não se lhe denotando qualquer intuito persecutório em relação à pessoa dos arguidos ou especial interesse no desfecho deste processo em prejuízo dos arguidos, tendo, além do mais, o seu depoimento sido congruente com a demais prova produzida, e as regras de experiência e do normal acontecer dos factos, pelo que dele se serviu o Tribunal para formação da sua convicção quanto aos factos 1 a 6. Em sentido convergente, prestaram depoimento os militares da GNR EE e DD, os quais tiveram intervenção nas diligências levadas a efeito nos autos, tendo, ato contínuo, confirmando o teor dos autos que elaboraram, participaram e subscreveram. Mais esclareceram as circunstancias em que a investigação teve início bem como aquilo que percecionaram nas diligências realizadas e o resultado das mesmas. O Tribunal colheu igualmente tais depoimentos como válidos, sérios e credíveis, nã0 ressumando dos mesmos qualquer interesse em prejudicar os arguidos em benefício do ofendido, deles se servindo, assim, o Tribunal, para formar a sua convicção quanto aos factos provados. – factos 1) a 4) e 7) e 8) Por sua vez, do teor do relatório técnico de inspeção judiciária (fls. 93 a 96), em conjugação com o conteúdo dos relatórios do exame pericial de fls. 143 a 150 extrai-se terem sido encontrados dois vestígios digitais que se identificam com a impressão digital correspondente ao dedo médio da mão esquerda do arguido CC e impressão digital correspondente ao dedo médio da mão direita da arguida BB. Tais vestígios foram encontrados no vidro do espelho que se encontrava em cima do móvel encostado à parede interna junto à janela arrombada. – v. relatório técnico de inspeção judiciária de fls. 93 a 96 Considerando que o ofendido à data da ocorrência residia e se encontrava em ..., considerando ainda a ausência de ligações e de pontos comuns entre ofendido e arguidos, até pela diferença de idades que os separa e, por fim , que os vestígios analisados foram recolhidos no próprio dia da ocorrência 22-11 – data em que foi denunciada a ocorrência do furto em casa do ofendido (v. auto de notícia de fls. 5-7 e relatório técnico de fls. 93-96) - e ante o teor do aludido relatório pericial fls. 143 a 150, não teve o Tribunal dúvidas em concluir que os arguidos BB e CC se introduziram em casa do ofendido, saltando o muro para as traseiras da habitação, partindo uma janela pela qual escalaram, levando consigo os objetos em causa nos presentes autos. A esta ilação conduzem, de igual forma, as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer. Com efeito, inexiste qualquer justificação plausível para que tenham sido encontradas impressões digitais dos dedos dos arguidos num vidro do espelho que se encontrava em cima do móvel encostado à parede interna junto à janela arrombada no interior da residência do ofendido, quando não existe qualquer relação de proximidade existencial que o ligue aos dois agentes. Por outro lado, os arguidos não prestaram declarações, abdicando de apresentarem a sua versão dos factos ou uma eventual justificação para a existência dos vestígios. Ora, e se é certo que o direito ao silencio não pode, em caso algum, prejudicar os arguidos, também é certo que não os deverá beneficiar, pelo que na falta de uma explicação válida, sobretudo quando, como neste caso, os factos causem estranheza, deve o Tribunal socorrer-se da análise critica da prova produzida e daí retirar conclusões, balizadas pelas regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, quanto à ocorrência dos factos e à sua autoria. E, neste particular, inexiste, quanto a nós, qualquer justificação válida ou plausível para que tenham sido encontrados os vestígios digitais dos arguidos BB e CC no interior da casa do ofendido, sobretudo quando é certo que, apos os factos, a arguida BB foi intercetada na posse de outro objeto furtado da residência do ofendido. E assim, não tendo sido produzida prova de sinal contrário, e não obstante não tenha sido produzida prova direta sobre a autoria dos factos por parte dos arguidos, cremos nós que a leitura conjugada da demais prova recolhida, à luz das regras da normalidade da vida e do acontecer, suporta perfeitamente a convicção do Tribunal nos termos que ora se deixam consignados. Por fim, no que se refere ao juízo formulado acerca da factualidade atinente ao fim com que os arguidos agiram, ao conhecimento e vontade com que atuaram bem como à sua consciência quanto à ilicitude da conduta levada a cabo - factos 9) a 12) - foi aquele extraído dos factos objetivos, analisados à luz das regras da lógica e da experiência comum, atentas as circunstâncias do caso. É consabido que a factualidade em causa, que é de ordem psicológica – ainda que também normativa -, se afigura de difícil objetivação em termos de racionalidade do processo de apreensão da realidade. Todavia, a convicção alcançada resulta de uma análise global do comportamento do agente, tendo em conta as regras da normalidade do acontecer. Com efeito, qualquer cidadão médio sabe que ao introduzir-se em casa de terceiros e daí retirar bens, pertença de terceiro, sem o seu consentimento, o faz contra a sua vontade. Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos tomou-se em consideração o Certificado de Registo Criminal junto e quanto à condição económica do arguido o tribunal teve em consideração as declarações prestadas pelos próprios, que neste particular se revelaram credíveis, inexistindo nos autos elementos que as contrariem.
*
Quanto à factualidade julgada não provada assim resultou da ausência de prova concludente que permitisse assim concluir. Concretamente Quanto aos factos elencados em a) e b) julgados não provados assim resultaram da insuficiência de prova para sustentar um juízo de certeza sobre os factos em causa – valor dos bens - quer face à exiguidade do relato do ofendido nessa matéria, quer porque, em concreto e individualmente considerados, não se apurou o valor efetivo desses objetos, atendendo que nos reportamos a objetos usados, e de rápida depreciação, quer também pelo facto do valor avançado, a luz das regras da experiência, se apresentar excessivo, para bens, como dissemos, perecíveis, usados, e com rápida depreciação no mercado, quer ainda porque o próprio relato do ofendido, enquanto parte interessada, se afigurar insuficiente para, desacompanhado de qualquer dado objetivo, permitir ao Tribunal assim concluir. Quanto ao facto elencado em c), inexistem quaisquer elementos probatórios que permitam concluir que o arguido AA participou nos factos elencados no libelo acusatório. Desde logo não foi possível estabelecer qualquer correspondência entre as impressões digitais e palmares deste arguido com as demais colhidas na habitação do ofendido. – v. relatório pericial de fls. 157 a 159 É igualmente certo, e não ignora este Tribunal, o depoimento a respeito prestado Agente da PSP DD e que, igualmente, fez verter no aditamento ao auto de notícia de fls. 22 a 24. A questão fundamental que esta abordagem suscita é a da proibição ou não de valoração desta parcela da prova por se traduzir na ponderação das chamadas conversas informais. Como é sobejamente sabido sobre este assunto a jurisprudência encontra-se dividida. Enquanto para uns o depoimento feito na audiência de julgamento pelo OPC em que relata a confissão da prática do crime que lhe foi feita pelo suspeito ainda não arguido, num momento em que ainda não corria qualquer processo de inquérito constitui prova válida; para outros, nos quais nos incluímos, as chamadas “conversas informais” dos suspeitos, ainda não arguidos, quer ocorram antes quer depois disso, são desprovidas de valor probatório. Na verdade, dispõe o artigo 356. °, n.°7 do CPP, que os "órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas". (sublinhado nosso). Como lapidarmente é mencionado no acórdão TRE de 03-12-2013, proc.nº157/07.0GTBJA.E1, relatado pelo Senhor Desembargador Martinho Cardoso, disponível em www.dgsi.pt «se o legislador entendeu proibir que, sem o acordo do arguido, valessem como prova declarações anteriormente prestadas pelo mesmo e no processo reduzidas a auto – art.° 357.º, n.° 1 al.ª a) – não se pode entender que o mesmo pretendeu que pudessem valer como prova declarações do arguido prestadas a titulo informal e sem redução a auto. (…) E se a conversa com os órgãos de polícia criminal ocorre antes de o sujeito ter sido constituído arguido – como foi o caso –, por maioria de razão não poderão tais conversas ser usadas como meio de prova. Usá-las com tal fim, violaria flagrantemente tal estatuto. (…) admitir as conversas informais (ainda que provenientes de uma fase em que não tivesse sido constituído arguido) seria o mesmo que estar a obrigar o arguido a falar contra a sua vontade. Implicaria que pudessem ser tomadas em conta, para efeitos de prova, declarações do arguido que não o poderiam ser se constantes de auto cuja leitura não fosse permitida em audiência de julgamento nos termos do art.° 357. °, conjugado com os art.°355. ° e 356. °, n.º 7. constituiria manifesta ofensa do fim prosseguido pela lei com estas disposições, revelado pelo seu espírito, designadamente a salvaguarda dos princípios da oralidade, da imediação, da publicidade, do contraditório e da concentração» Neste sentido também se pronunciou o acórdão da Relação do Porto de 01-07-2015, proc.nº425/11.6GFPNF.P2, relatado pelo Senhor Desembargador Pedro Vaz Pato, acessível em www.dgsi.pt nele se dizendo a este respeito que «Do disposto nos artigos 357º, nº 1 e 3, e 356º, nº 7, do Código de Processo Penal resulta que os órgãos de polícia criminal não podem ser inquiridos sobre o que tenham ouvido dizer ao arguido quando não seja este a solicitar essa inquirição. E, para este efeito, o regime é o mesmo tratando-se de depoimento reduzido a auto ou de “conversa informal”, antes ou depois da constituição formal como arguido ou da abertura formal do inquérito (a ratio do preceito aplica-se em qualquer destas situações; se assim não fosse, poder-se-ia «deixar entrar pela janela aquilo a que se fechou a porta.» E nem se diga que a conversa entre o arguido e o Agente da PSA é perfeitamente válida como elemento probatório, atendendo à fase cautelar em que ocorreu, caindo no âmbito das designadas conversas informais. É verdade que num primeiro momento - em que o Agente PSP intercepta o arguido, uma vez que, mercê da das declarações da também arguida BB havia a suspeita do arguido AA ter participado no furto - estamos, admite-se, dentro do âmbito das medidas cautelares e de polícia admissíveis nos termos dos artigos 248.º e ss CPP Nessa medida, seria perfeitamente adequado que se procedesse até a uma revista do suspeito, de acordo com o disposto nos artigos 250.º e 251.º CPP Porém, a partir desse momento em que, efetivada a revista, tudo indica a prática de um crime, como ocorreu no caso concreto, cessa, quanto a nós, a possibilidade de se estabelecerem quaisquer conversas informais impulsionadas pelo OPC (como resulta do aditamento ao auto de notícia) que possam ser aproveitadas como meio de prova em julgamento. É que, apesar de formalmente inexistir ainda inquérito ou constituição de arguido – note-se que, in casu, o arguido apenas foi constituído como tal pelas 08h30m do dia 22-11 e ouvido nessa qualidade em 20-12 – v. referência ...59, onde, usando de um direito constitucionalmente garantido, o arguido, optou por não prestar declarações - é certo e seguro que aquele suspeito vai ser constituído arguido em inquérito e onde se irá apurar a sua responsabilidade criminal pela participação no furto. Essa pré-condição é o suficiente para que possa, e deva, dizemos nós, beneficiar por inteiro dos direitos de defesa que qualquer arguido constituído teria. E assim, a aceitação como meio de prova válida do depoimento da testemunha DD, na parte correspondente a conversas informais com o arguido, e nos termos em que ocorreu esse diálogo, representaria um caso de fraude à lei. Na verdade, a reprodução ou leitura de declarações do arguido em audiência de julgamento mostra-se limitada às situações previstas no artigo 357.º do CPP, nestas não se enquadrando, claramente, as conversas informais tidas com os órgãos de polícia criminal, já que não materializadas em qualquer suporte que permita a sua reprodução ou leitura. E ainda que reproduzidas, indevidamente em auto, como no caso, a testemunha continuava impossibilitada de divulgar o seu conteúdo, ao abrigo dos mesmos preceitos, salvo se o arguido o tivesse solicitado (artigo 357.º, n.º 1, al. a), do CPP), o que, claramente, no caso, também, não ocorreu. Por outro lado, o artigo 356.º, n.º 7, do CPP, aplicável às declarações de arguido por remissão do n.º 3 do artigo 357.º do mesmo diploma legal, determina que os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas. Ou seja, no caso dos autos, sendo evidente que tudo o que o arguido referiu ao OPC após a interseção pela PSP, foi comunicado em respostas a questões colocadas num momento em que era patente que seria constituído como arguido – como de resto aconteceu, veja-se que o aditamento ao auto de noticia reporta a diligencia às 03h55m do dia 22-11, tendo ido constituído arguido 4 horas depois - está, cremos nós, vedado ao Tribunal aceitar o depoimento da indicada testemunha na parte em que recaiu sobre tais conversas informais, à margem das situações previstas no citado artigo 357.º do CPP. – neste sentido, v. entre outros Ac. TRP de 12-10-2011, Proc. n.º 2/08.9GCVPA.P1, 21-03-2012, Proc. n.º 628/11.3GAMAI.P1, 13-06-2012, Proc. n.º 1222/11.4JAPRT.P1, e 01-07-2015, Proc. n.º 425/11.6GFPNF.P2, todos acessíveis in www.dgsi.pt Assim, cremos nós, aquele segmento do depoimento daquela concreta testemunha, DD, não pode ser valorado como meio de prova, em desfavor do arguido e concorrer para a formação da convicção do julgador. E assim, do conjunto da prova produzida não permite dar como provada, para além da dúvida razoável, a autoria ou participação do arguido AA nos factos ocorridos a 22-11, consignados como provados.»
III.2 – Análise das concretas questões suscitadas pelo recurso:
III.2.1 – Da alegada insuficiência para a decisão da matéria de facto provada:
Sustenta o recorrente Ministério Público, em síntese, que [conclusões 2ª a 5ª]:
- Da leitura da sentença recorrida extrai-se que nada foi apurado quanto ao comportamento anterior e posterior aos factos por parte dos arguidos, fatores de determinação da pena que, entre outros, constam do elenco não taxativo previsto no artigo 71.º, nº 2, do Código Penal, como elementos relevantes a ponderar na determinação da pena.
- Entendemos que se impunha ao Tribunal que investigasse, por todos os meios ao seu alcance e legalmente admissíveis, o comportamento anterior e posterior aos factos por parte dos arguidos, pelo que deveria ter solicitado a realização de relatório social relativamente aos arguidos.
Conclui que se verifica a nulidade da sentença em virtude da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º 410.º, n.º 2, a) do CPP), pelo que deverá ser anulada a douta sentença e, consequentemente, deverá determinar-se o reenvio do processo para novo julgamento restrito às questões fácticas mencionadas (cfr. artigos 410.º, n.º 2, al. a), 426.º e 426.ºA, todos do Código de Processo Penal).
Apreciando.
Preceitua o art. 410º do Código de Processo Penal [na parte ora relevante]:
“1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:
a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada […]”.
No que tange ao invocado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, comungando do douto e cristalino ensinamento do Exmo. Conselheiro Sérgio Gonçalves Poças [in “Processo Penal quando o recurso incide sobre a decisão da matéria de facto”, Revista Julgar, nº 10, 2010, p. 25/26], cumpre ter presente: “Se o recorrente alega este vício – partindo necessariamente da análise do texto da decisão – deve especificar os factos que em seu entender era necessário – para a decisão que devia ser proferida – que o tribunal a quo tivesse indagado e conhecido e não indagou e consequentemente não conheceu, podendo e devendo fazê-lo. Assim, num discurso argumentativo, encorpado e completo, mas ao mesmo tempo simples e claro, o recorrente deve procurar convencer o tribunal de recurso que faltam factos (identificando-os) necessários (fundamentando esta necessidade, nomeadamente invocando as normas jurídicas pertinentes) para a decisão e que não foi levada a cabo indagação a respeito deles quando (fundamentando) podia e devia ser feita.”
O vício em apreço tem forçosamente de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou mediante concomitante recurso às regras de experiência comum, não cabendo na previsão do preceito legal «toda a tarefa de apreciação ou valoração da prova produzida, em audiência ou fora dela, nomeadamente a valoração de depoimentos, mesmo que objeto de gravação, documentos ou outro tipo de provas, tarefa reservada para o conhecimento do recurso em matéria de facto» [cf. Exmo. Conselheiro Pereira Madeira, in “Código de Processo Penal Comentado”, António Henriques Gaspar e outros, 3ª Edição Revista, 2021, Almedina, anot. 1 ao art. 410º, p. 1291].
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada implica que esta, na sua globalidade, se revela inidónea ou escassa para suportar a decisão tomada pelo Tribunal.
Dito isto, vejamos então se a ausência da matéria de facto provada das condições pessoais e sociais do arguido, por não elaboração do respetivo relatório social, se revela, in casu, fundamento para o clamado vício de insuficiência para a decisão daquela factualidade.
«Relatório social» é a informação sobre a inserção familiar e socioprofissional do arguido e, eventualmente, da vítima, elaborada por serviços de reinserção social, com o objetivo de auxiliar o tribunal ou o juiz no conhecimento da personalidade do arguido, para os efeitos e nos casos previstos na lei – art. 1º, alínea g), do CPP.
Estipula o art. 370º, nº1 do CPP:
“O tribunal pode em qualquer altura do julgamento, logo que, em função da prova para o efeito produzida em audiência, o considerar necessário à correta determinação da sanção que eventualmente possa vir a ser aplicada, solicitar a elaboração de relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, ou a respetiva atualização quando aqueles já constarem do processo.”
Por seu turno, preceitua o art. 71º do Código Penal, sob a epígrafe “Determinação concreta da pena” (na parte que ora releva):
“1 – A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2 – Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
(…)
d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.
3 – Na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena.”
Exceto no caso de o arguido ser menor, a lei processual penal acentua o caráter facultativo do relatório social (ou da solicitação de uma informação aos serviços de reinserção social, em alternativa ao relatório social) – cf. art. 370º, nºs 1 e 2, do CPP [redação conferida pela Lei nº 33/2019, de 22.05].
Essa faculdade de ordenar ou não a realização de relatório social não se traduz em discricionariedade do tribunal, o qual se deve pautar sempre por um critério casuístico de necessidade. Perante o caso concreto que se lhe apresente, o julgador deve ponderar se os meios probatórios de dispõe nos autos são suficientes ou não para aquilatar dos fatores de determinação concreta da pena a que a lei manda atender, designadamente os vertidos nas alíneas d) e f) do nº2 do art. 71º do CP. No primeiro caso, pode dispensar a realização do relatório social; no segundo caso, deve ordená-la.
Como menciona o Exmo. Conselheiro Oliveira Mendes [in “Código de Processo Penal Comentado”, 3ª Edição Revista, 2021, Almedina, comentário 2 ao art. 370º, p. 1126], «A redação do nº1 inculca a ideia de que a requisição do relatório social ou da informação dos serviços de reinserção social não é obrigatória (…). Só assim será, porém, quando não sejam essenciais. Caso contrário, ou seja, caso se mostrem necessários à correta determinação da sanção que possa vir a ser aplicada, é evidente que a sua requisição, ao contrário do que a letra da lei inculca, torna-se obrigatória. É que sendo necessários à correta determinação da sanção, ou seja, à boa decisão da causa, conforme impõe o nº1 do artigo 340º, sobre o Tribunal recai o poder/dever de, oficiosamente, ordenar a sua elaboração.»
A falta de relatório social, quando este se revele indispensável para assegurar a boa decisão da causa, é suscetível de integrar o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 13.12.2007, Processo nº 1404/2007, de 05.09.2007, Processo nº 4798/06, de 30.11.2006, Processo nº 3657/06-5ª Secção, e de 11.01.2006, Processo nº 3461/05-3ª Secção, todos disponíveis em www.dgsi.pt.
A imprescindibilidade do relatório social há de ser apreciada pelo julgador casuisticamente, tendo em vista o fim a que se destina a prova ou indício de prova que com tal instrumento se pretende obter e consoante a suficiência ou insuficiência para o efeito da restante prova disponível nos autos – neste sentido, entre outros, os acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 10.07.2018, Processo nº 108/18.6GAESP.G1, relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Bispo, e de 13.07.2020, Processo nº 414/19.2GAESP.G1, relatado pela Exmo. Desembargadora Teresa Coimbra, disponíveis em www.dgsi.pt (igualmente citados pelo Exmo. PGA no douto parecer que lavrou nos autos).
No caso sub judice, compulsada a douta decisão recorrida e os autos em geral, temos por assente que o tribunal a quo decidiu sobre a medida da pena a aplicar aos arguidos BB e CC sem que tivesse solicitado à DGRSP a elaboração de relatórios sociais referentes àqueles.
Contudo, o Tribunal recorrido valorou para efeito de apuramento das condições sociais e pessoais dos arguidos as declarações por eles prestadas a esse propósito -relativamente aos factos remeteram-se ao silêncio – e invocou para efeitos de consideração das suas condutas anteriores a ausência de antecedentes criminais, estribado no teor dos certificados de registo criminal juntos aos autos.
Por conseguinte, a Exma. Julgadora considerou que a factualidade nesse conspecto apurada, que verteu nos pontos 13 a 16 dos factos provados, era suficiente para determinação da correta dosimetria penal e correlativa boa decisão da causa, deliberação que nenhuma censura nos merece.
Com efeito, aquela factualidade é bastante, satisfatória para o pretendido efeito de coadjuvar o juiz a conhecer as personalidades dos arguidos, designadamente ao nível da respetiva inserção familiar, social e laboral, não se revelando imprescindível para a determinação concreta das penas a produção de prova complementar, nomeadamente a elaboração de relatórios sociais. Tanto mais que os arguidos não possuem antecedentes criminais, os factos ajuizados remontam ao dia 22 de novembro de 2021 e os arguidos BB e AA tinham apenas 18 anos à data da sua prática.
Não ocorre, assim, o alegado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, pelo que, nesta parte, soçobra o recurso deduzido pelo Ministério Público. III.2.2 – Da alegada contradição insanável da fundamentação:
O recorrente Ministério Público alega a existência de contradição insanável da fundamentação, invocando, em súmula [conclusões 6ª e 7ª]:
- A sentença recorrida deu como provado que os arguidos praticaram os factos que consubstanciam a prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma, sem distinguir qualquer dos arguidos – logo englobando o arguido AA-, e deu como não provado que o arguido AA tivesse praticado tais factos.
- Os factos assim, julgados como provados e como não provados colidem inconciliavelmente entre si, são absolutamente contraditórios entre si, tendo a douta sentença incorrido no vício de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, vício que deverá ser dado por verificado.
Conclui peticionando a anulação da douta sentença e, consequentemente, o reenvio do processo para novo julgamento restrito às questões fácticas mencionadas (cfr. artigos 410º, nº 2, al. b), 426º e 426º-A, todos do Código de Processo Penal).
Analisando.
Estatui o art. 410º do Código de Processo Penal [na parte ora relevante]:
“1 – Sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida.
2 – Mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras de experiência comum:
[…]
b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão […]”
A contradição insanável a que alude o art. 410º, nº2, al. b), do CPP pode reportar-se à fundamentação e/ou ocorrer entre a fundamentação (abrangendo a fundamentação de facto e de direito) e a decisão.
Como mencionado no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 14/01/2015, processo nº 72/11.2GDSRT.C1, acessível em www.dgsi.pt, «A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada.»
Segundo o aresto do Tribunal da Relação de Lisboa de 21/05/2015, processo nº 3793/09.6TDLSB.L1-9, acessível em www.dgsi.pt, «O vício em apreço, como resulta da letra do art. 410, n.º 2 al. b) do CPP, só se deve e pode ter por verificado quando ocorre uma contradição insanável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, isto é, um conflito inultrapassável na fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, o que significa que nem toda a contradição é susceptível de o integrar, mas apenas a que se mostre insanável, ou seja, aquela que não possa ser ultrapassada ou esclarecida de forma suficiente com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência. Qualquer um dos vícios previstos nas alíneas a) a c) do nº 2 do art. 410 do CPP, como decorre da letra da lei, só se poderá ter por verificado se resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, isto é, com exclusão de exame e consulta de quaisquer outros elementos do processo (cf. entre outros os ac. do STJ de 90-01-10 e de 94-07-13, o primeiro publicado na AJ, 5, 3 e o segundo na CJ/STJ, ano II, tomo III, 197), pelo que a actividade de fiscalização e de controlo do tribunal superior neste particular, conquanto incida sobre toda a decisão, com destaque para a proferida sobre a matéria de facto, não constitui actividade de apreciação e julgamento da prova, sendo que ao exercê-la se limita a verificar se a mesma contém algum ou alguns dos mencionados vícios, sendo que no caso de aquela deles enfermar e, em face disso, se tornar impossível decidir a causa, deverá o processo ser reenviado para novo julgamento, tendo em vista a sua sanação (art. 426, n.º1 do CPP). Este vício ocorre quando se afirma e nega ao mesmo tempo uma coisa ou uma emissão de duas proposições contraditórias que não podem ser simultaneamente verdadeiras e falsas. A contradição pode suceder entre segmentos da própria fundamentação - dão-se como provados factos contraditórios, dá-se como provado e não provado o mesmo facto, afirma-se e nega-se a mesma coisa, enfim, as premissas contradizem-se -, como entre a fundamentação e a decisão - esta não se encontra em sintonia com os factos apurados (cf., neste sentido, Germano Marques da Silva, «Curso de Processo Penal», III, 2ª Ed., Editorial Verbo, págs. 340 e 341). A contradição a que se reporta a alínea b) do art. 410 do CPP é só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo e com recurso às regras da experiência e que incida sobre elementos relevantes do caso submetido a julgamento.»
Ainda o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/01/2017, Processo nº 93/14.3JAGRD.C1.S1 – 3ª Secção, inwww.dgsi.pt: «Ocorre contradição insanável entre a fundamentação e a decisão quando através de um raciocínio lógico, se conclua pela existência de oposição insanável entre os meios de prova invocados na fundamentação como base dos factos provados ou entre a fundamentação e o dispositivo da decisão, ou seja, quando a fundamentação justifica decisão oposta, ou não justifica a decisão.»
É certo que na descrição dos factos operada nos pontos 1 a 7 e 9 a 12 dos factos provados, atinentes à matéria de facto integradora dos elementos objetivos e subjetivos do tipo de crime de furto qualificado em questão, o Tribunal a quo refere-se genericamente a «arguidos», não especificando os nomes dos intervenientes, logo, parecendo ali incluir o arguido AA.
Também é certo que na alínea a) dos factos tidos na sentença como não provados consta: “Que o arguido AA tivesse participado nos factos descritos em 1) a 12)”.
Todavia, a contradição é meramente aparente.
Como exsuda claro e inequívoco da motivação da decisão sobre a matéria de facto vertida na sentença recorrida, o Tribunal afastou, por incomprovada, logo inverificada, a comparticipação do arguido AA nos factos que havia sido alegada na acusação pública, reservando a coautoria dos mesmos para os restantes arguidos, BB e CC.
Destarte, a não concretização na factualidade provada dos nomes dos arguidos participantes nos factos deve-se a mera omissão, gerando ambiguidade que pode e deve ser agora corrigida por este Tribunal ad quem (cf. art. 380º, nºs 1, al. b), e 2, do CPP).
Em conformidade, a decisão recorrida não contém contradição insanável da fundamentação.
III.2.3 – Erro de julgamento quanto à matéria da alínea a) dos factos não provados:
Neste segmento, invoca o Ministério Público recorrente, resumidamente [conclusões 16ª a 33ª]:
- A matéria de facto constante da alínea a) dos factos não provados devia ter sido julgada como provada, afirmando-se a participação do arguido AA nos factos dados como provados.
17 - São as seguintes, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida: I. - O depoimento da testemunha DD; II - O aditamento ao auto de notícia de fls. 22 a 24; III. - O depoimento da testemunha EE.
- A sentença recorrida não valorou, como devia, o depoimento da testemunha DD, militar da GNR, relativamente à conversa que a testemunha manteve com o arguido AA antes da sua constituição como arguido. Ora, o militar da GNR DD afirmou que, quando se deslocou ao local do furto, a então suspeita BB referiu que praticou o furto juntamente com mais duas pessoas, nomeadamente com o arguido AA e com outra pessoa que não sabia no momento o nome ou não pretendia dizer e, seguidamente, localizou na cidade ... o arguido AA e o mesmo, em momento próximo, assumiu a prática do furto e explicou a forma como perpetrou o furto. O arguido AA prestou tais declarações quando não era arguido e não houve qualquer atraso na constituição do mesmo como arguido.
- No aditamento ao auto de notícia de fls. 22 a 24, está vertida a factualidade que o militar da GNR DD relatou ao Tribunal, a respeito da participação do arguido AA na prática dos crimes de furto qualificado e de dano.
- A sentença recorrida não valorou o depoimento da testemunha EE, militar da GNR, relativamente à conversa que a testemunha manteve com a arguida BB, antes da sua constituição como arguida. A testemunha EE afirmou que, momentos após a notícia do furto, deslocou-se ao local dos crimes, com vista a averiguar se existiam vestígios no local e apurar a identidade do (s) seu (s) autor (es), visualizou a então suspeita BB nas imediações da residência alvo do furto, nomeadamente a cerca de cento e cinquenta metros da residência, no local onde tinha visto dois vultos a fugirem; BB estava na posse de uma caixa contendo um micro-ondas e aquela, de forma espontânea, comunicou ao militar da GNR que praticou o furto juntamente com o seu namorado AA e com outra pessoa de que não sabia o nome. De facto, BB, quando não era arguida, prestou ao militar da GNR EE a informação que o seu namorado, o arguido AA, participou juntamente consigo no furto e não houve qualquer atraso na constituição da mesma como arguida.
Conclui que a conjugação das provas referidas impunha ao Tribunal que tivesse dado como provado que o arguido AA comparticipou na prática dos factos descritos em 1) a 12), em consequência, que se impunha a sua condenação pela prática em coautoria material e em concurso real, e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203. n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma e de um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal.
Conhecendo.
Preceitua o art. 412º do CPP, na parte que ora releva:
“1 – A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
[…]
3 – Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 – Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no nº3 do artigo 364º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação.
[…]
6 – No caso previsto no nº4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”
Como tem entendido sem disparidade o Supremo Tribunal de Justiça, o recurso em matéria de facto («quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto») não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas uma reapreciação sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal a quo relativamente à decisão sobre os «pontos de facto» que o recorrente considere incorretamente julgados, na base da avaliação das provas que, na indicação do recorrente, imponham «decisão diversa» da recorrida (provas, em suporte técnico ou transcritas quando as provas tiverem sido gravadas) - art. 412.º, n.º 3, al. b), do CPP -, ou da renovação das provas nos pontos em que entenda que esta deve ocorrer.[3]
Por outro lado, nessa tarefa de reapreciação da prova pelo tribunal de recurso intrometem-se necessariamente fatores como a ausência de imediação e da oralidade – sendo que, como é sobejamente sabido, a imediação e a oralidade constituem princípios estruturantes do direito processual penal português.
Em conformidade, a ausência de imediação e oralidade - dado que o “contacto” com as provas se circunscreve ao que consta das gravações - determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º][4].
Com efeito, quando está em causa a questão da apreciação da prova cumpre dar a devida relevância à perceção que a oralidade e a imediação conferem aos julgadores do Tribunal a quo. Deste modo, quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova se baseia na opção assente na imediação e na oralidade, o Tribunal de recurso só pode censurá-la se demonstrado ficar que tal opção é de todo em todo inadmissível face às regras de experiência comum.
Ou seja, é comumente aceite que a (re)apreciação da matéria de facto pelo tribunal de recurso não implica a realização de um “segundo julgamento”, agora baseado na prova gravada, em que o tribunal ad quem aprecia toda a prova produzida e documentada em primeira instância, como se o julgamento ali realizado não existisse. Como se refere, de modo impressivo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19/05/2015, processo 441/10.5TABJA.E2, acessível em www.dgsi.pt, «O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação, apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1ª instância. Os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.»
Relevantes ainda as seguintes palavras de Paulo Saragoça da Matta[5]: «Ao Tribunal de recurso não cabe repetir a produção de prova havida, nem a prova anteriormente produzida na instância recorrida perde seja o que for de vivacidade. Pelo contrário, o Tribunal de recurso limitar-se-á a aferir se os juízos de racionalidade, de lógica e de experiência confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar. Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração. Com o que em nada se viola a imediação da prova, que fica acessível, imediatamente, ao juiz de recurso tal e qual como foi produzida em primeira instância.»
Concluindo: o artigo 412º, nº3, al. b) do CPP, ao exigir que o recorrente que impugne a decisão proferida sobre matéria de facto especifique as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, implica que o tribunal de recurso só pode (e deve) alterar aquela decisão se da análise que faz das provas documentadas indicadas pelo recorrente, em concatenação com as regras da experiência comum e da lógica, concluir que o juízo probatório levado a cabo pelo tribunal a quo é, à luz daqueles elementos, insustentável, indefensável (porque decidiu claramente sem prova ou em indiscutível contradição com as preditas regras), revelando-se por isso “obrigatório” decidir de forma distinta.
Diferentemente, «se o tribunal de recurso se convencer que os concretos elementos de prova indicados pelo recorrente permitem ou consentem uma decisão diferente, mas que não a «tornam necessária» ou racionalmente «obrigatória», então deve manter a decisão da primeira instância tal como está» - cf. acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015, processo 159/11.5PAPTL.G1, acessível em www.dgsi.pt.
Volvendo ao caso vertente.
O ilustre recorrente cumpriu o sobredito ónus legal de especificação, procedendo à indicação do concreto ponto fáctico sob impugnação e das concretas provas que determinam a modificação da decisão sobre tal matéria de facto.
Diremos, desde já, que a impugnação deduzida está votada ao insucesso visto se estribar em provas cuja valoração é proibida por lei.
Por granjear a nossa inteira concordância – bem como da Exma. Procuradora-Geral Adjunta que nesta instância superior lavrou o douto parecer –, reproduzimos aqui a fundamentação aduzida pela Meritíssima Juíza acerca da não valoração das “conversas informais” mantidas por BB e AA com os depoentes agentes policiais DD e EE, antes da constituição como arguidos e sem redução a auto, bem assim do aditamento ao auto de notícia lavrado pelo primeiro, contendo essas supostas “declarações” [6]: «Quanto à factualidade julgada não provada assim resultou da ausência de prova concludente que permitisse assim concluir. Concretamente Quanto aos factos elencados em a) e b) julgados não provados assim resultaram da insuficiência de prova para sustentar um juízo de certeza sobre os factos em causa – valor dos bens - quer face à exiguidade do relato do ofendido nessa matéria, quer porque, em concreto e individualmente considerados, não se apurou o valor efetivo desses objetos, atendendo que nos reportamos a objetos usados, e de rápida depreciação, quer também pelo facto do valor avançado, a luz das regras da experiência, se apresentar excessivo, para bens, como dissemos, perecíveis, usados, e com rápida depreciação no mercado, quer ainda porque o próprio relato do ofendido, enquanto parte interessada, se afigurar insuficiente para, desacompanhado de qualquer dado objetivo, permitir ao Tribunal assim concluir. Quanto ao facto elencado em c), inexistem quaisquer elementos probatórios que permitam concluir que o arguido AA participou nos factos elencados no libelo acusatório. Desde logo não foi possível estabelecer qualquer correspondência entre as impressões digitais e palmares deste arguido com as demais colhidas na habitação do ofendido. – v. relatório pericial de fls. 157 a 159 É igualmente certo, e não ignora este Tribunal, o depoimento a respeito prestado Agente da PSP DD e que, igualmente, fez verter no aditamento ao auto de notícia de fls. 22 a 24. A questão fundamental que esta abordagem suscita é a da proibição ou não de valoração desta parcela da prova por se traduzir na ponderação das chamadas conversas informais. Como é sobejamente sabido sobre este assunto a jurisprudência encontra-se dividida. Enquanto para uns o depoimento feito na audiência de julgamento pelo OPC em que relata a confissão da prática do crime que lhe foi feita pelo suspeito ainda não arguido, num momento em que ainda não corria qualquer processo de inquérito constitui prova válida; para outros, nos quais nos incluímos, as chamadas “conversas informais” dos suspeitos, ainda não arguidos, quer ocorram antes quer depois disso, são desprovidas de valor probatório. Na verdade, dispõe o artigo 356. °, n.°7 do CPP, que os "órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas". (sublinhado nosso). Como lapidarmente é mencionado no acórdão TRE de 03-12-2013, proc.nº157/07.0GTBJA.E1, relatado pelo Senhor Desembargador Martinho Cardoso, disponível em www.dgsi.pt «se o legislador entendeu proibir que, sem o acordo do arguido, valessem como prova declarações anteriormente prestadas pelo mesmo e no processo reduzidas a auto – art.° 357.º, n.° 1 al.ª a) – não se pode entender que o mesmo pretendeu que pudessem valer como prova declarações do arguido prestadas a titulo informal e sem redução a auto. (…) E se a conversa com os órgãos de polícia criminal ocorre antes de o sujeito ter sido constituído arguido – como foi o caso –, por maioria de razão não poderão tais conversas ser usadas como meio de prova. Usá-las com tal fim, violaria flagrantemente tal estatuto. (…) admitir as conversas informais (ainda que provenientes de uma fase em que não tivesse sido constituído arguido) seria o mesmo que estar a obrigar o arguido a falar contra a sua vontade. Implicaria que pudessem ser tomadas em conta, para efeitos de prova, declarações do arguido que não o poderiam ser se constantes de auto cuja leitura não fosse permitida em audiência de julgamento nos termos do art.° 357. °, conjugado com os art.°355. ° e 356. °, n.º 7. constituiria manifesta ofensa do fim prosseguido pela lei com estas disposições, revelado pelo seu espírito, designadamente a salvaguarda dos princípios da oralidade, da imediação, da publicidade, do contraditório e da concentração» Neste sentido também se pronunciou o acórdão da Relação do Porto de 01-07-2015, proc.nº425/11.6GFPNF.P2, relatado pelo Senhor Desembargador Pedro Vaz Pato, acessível em www.dgsi.pt nele se dizendo a este respeito que «Do disposto nos artigos 357º, nº 1 e 3, e 356º, nº 7, do Código de Processo Penal resulta que os órgãos de polícia criminal não podem ser inquiridos sobre o que tenham ouvido dizer ao arguido quando não seja este a solicitar essa inquirição. E, para este efeito, o regime é o mesmo tratando-se de depoimento reduzido a auto ou de “conversa informal”, antes ou depois da constituição formal como arguido ou da abertura formal do inquérito (a ratio do preceito aplica-se em qualquer destas situações; se assim não fosse, poder-se-ia «deixar entrar pela janela aquilo a que se fechou a porta.» E nem se diga que a conversa entre o arguido e o Agente da PSA é perfeitamente válida como elemento probatório, atendendo à fase cautelar em que ocorreu, caindo no âmbito das designadas conversas informais. É verdade que num primeiro momento - em que o Agente PSP intercepta o arguido, uma vez que, mercê da das declarações da também arguida BB havia a suspeita do arguido AA ter participado no furto - estamos, admite-se, dentro do âmbito das medidas cautelares e de polícia admissíveis nos termos dos artigos 248.º e ss CPP Nessa medida, seria perfeitamente adequado que se procedesse até a uma revista do suspeito, de acordo com o disposto nos artigos 250.º e 251.º CPP Porém, a partir desse momento em que, efetivada a revista, tudo indica a prática de um crime, como ocorreu no caso concreto, cessa, quanto a nós, a possibilidade de se estabelecerem quaisquer conversas informais impulsionadas pelo OPC (como resulta do aditamento ao auto de notícia) que possam ser aproveitadas como meio de prova em julgamento. É que, apesar de formalmente inexistir ainda inquérito ou constituição de arguido – note-se que, in casu, o arguido apenas foi constituído como tal pelas 08h30m do dia 22-11 e ouvido nessa qualidade em 20-12 – v. referência ...59, onde, usando de um direito constitucionalmente garantido, o arguido, optou por não prestar declarações - é certo e seguro que aquele suspeito vai ser constituído arguido em inquérito e onde se irá apurar a sua responsabilidade criminal pela participação no furto. Essa pré-condição é o suficiente para que possa, e deva, dizemos nós, beneficiar por inteiro dos direitos de defesa que qualquer arguido constituído teria. E assim, a aceitação como meio de prova válida do depoimento da testemunha DD, na parte correspondente a conversas informais com o arguido, e nos termos em que ocorreu esse diálogo, representaria um caso de fraude à lei. Na verdade, a reprodução ou leitura de declarações do arguido em audiência de julgamento mostra-se limitada às situações previstas no artigo 357.º do CPP, nestas não se enquadrando, claramente, as conversas informais tidas com os órgãos de polícia criminal, já que não materializadas em qualquer suporte que permita a sua reprodução ou leitura. E ainda que reproduzidas, indevidamente em auto, como no caso, a testemunha continuava impossibilitada de divulgar o seu conteúdo, ao abrigo dos mesmos preceitos, salvo se o arguido o tivesse solicitado (artigo 357.º, n.º 1, al. a), do CPP), o que, claramente, no caso, também, não ocorreu. Por outro lado, o artigo 356.º, n.º 7, do CPP, aplicável às declarações de arguido por remissão do n.º 3 do artigo 357.º do mesmo diploma legal, determina que os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridos como testemunhas sobre o conteúdo daquelas. Ou seja, no caso dos autos, sendo evidente que tudo o que o arguido referiu ao OPC após a interseção pela PSP, foi comunicado em respostas a questões colocadas num momento em que era patente que seria constituído como arguido – como de resto aconteceu, veja-se que o aditamento ao auto de noticia reporta a diligencia às 03h55m do dia 22-11, tendo ido constituído arguido 4 horas depois - está, cremos nós, vedado ao Tribunal aceitar o depoimento da indicada testemunha na parte em que recaiu sobre tais conversas informais, à margem das situações previstas no citado artigo 357.º do CPP. – neste sentido, v. entre outros Ac. TRP de 12-10-2011, Proc. n.º 2/08.9GCVPA.P1, 21-03-2012, Proc. n.º 628/11.3GAMAI.P1, 13-06-2012, Proc. n.º 1222/11.4JAPRT.P1, e 01-07-2015, Proc. n.º 425/11.6GFPNF.P2, todos acessíveis in www.dgsi.pt Assim, cremos nós, aquele segmento do depoimento daquela concreta testemunha, DD, não pode ser valorado como meio de prova, em desfavor do arguido e concorrer para a formação da convicção do julgador. E assim, do conjunto da prova produzida não permite dar como provada, para além da dúvida razoável, a autoria ou participação do arguido AA nos factos ocorridos a 22-11, consignados como provados.»
Acrescentamos somente algumas considerações doutrinárias e jurisprudenciais que conferem sustentação à posição defendida na douta decisão recorrida.
Quanto à definição das denominadas «conversas informais», menciona o Exmo. Juiz Conselheiro do STJ Jubilado Vinício A. P. Ribeiro, in “Código de Processo Penal”, Notas e Comentários, 3ª Edição, Quid Iuris, anotação 2 ao art. 356º, p. 775, que «são conversas não formais e, por isso, não reduzidas a auto. Processualmente não existem. Podem ocorrer fora ou dentro do processo. E dentro do processo, no âmbito de uma diligência ou fora dela, numa altura em que pode haver, ou não, arguido constituído. Podem verificar-se logo no local da infração (e será até o caso mais vulgar) antes de o arguido ter sido constituído como tal, no posto policial, ou até nos corredores do tribunal (já depois da constituição de arguido).»
A questão sobre a possibilidade de valoração pelo tribunal das «conversas informais» suscitou uma querela jurisprudencial.
Não pactuamos com a corrente que defende que só com a existência de inquérito e a constituição de arguido é que se coloca o problema das conversas informais, considerando que o direito ao silêncio pressupõe a existência de um inquérito e a condição de arguido, pelo que antes destes momentos não há proibição.
Acompanhamos antes o entendimento do citado Exmo. Conselheiro de que, independentemente de as conversas mantidas com o órgão de polícia criminal pelo arguido ocorram em momento anterior ou posterior ao da constituição do suspeito nessa qualidade, não se podem valorar essas declarações.
Como sagazmente mencionado no acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 09.10.2012, Processo nº 199/11.0GDFAR.E1, relatora Ana Barata Brito, disponível em www.dgsi.pt, «Mesmo que que se defenda que o direito ao silencio nasce apenas no momento em que o arguido é constituído nessa qualidade, o seu exercício em concreto – pelo arguido, como arguido – não pode deixar de silenciar, apagando, tudo o que fora por ele declarado anteriormente no processo, verificando-se como que um efeito expansivo do exercício ao silêncio.»
Resulta do nosso ordenamento jurídico que o arguido só fala se quiser e quando quiser (cfr. arts. 61º, nº1, al d), 343º e 345º, nº1, do CPP),
Note-se que, nos termos do art. 357º, nº1, do CPP, em audiência de julgamento, as declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só podem ser lidas a sua própria solicitação, isto é, por sua vontade, ou, não sendo esse o caso, se tiverem sido prestadas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o declarante tenha sido informado, nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do nº4 do artigo 141º. Distintamente, tal leitura está vedada para o caso de as declarações em causa terem sido prestadas verbalmente perante órgão de polícia criminal, sem redução a auto e sem que o “suspeito” se encontre patrocinado por causídico.
Atente-se ainda que, nos termos do art. 356º, nº7, ex vi do art. 357º, nº3, ambos do CPP, “os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado na sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.”
Donde, admitir como meio válido de prova as conversas informais, ainda que decorridas numa fase em que não tivesse sido constituído arguido, corresponderia a estar a obrigar o arguido a falar contra a sua vontade, mormente em casos como o dos autos em que os arguidos não prestaram declarações sobre os factos em qualquer momento processual. No fundo, seria permitir, por meios ínvios, aquilo a que o legislador quis notoriamente obstar, em vista a acautelar o estatuto do arguido.
Neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 04.021.2007, Processo nº 3111/06-3ª, relator Soreto de Barros, de 01.02.2006, Processo nº 2753/05-3ª, relator Flores Ribeiro, e de 09.07.2003, Processo nº 03P615, relator Armando Leandro; do Tribunal da Relação de Guimarães de 31.05.2010, Processo nº 670/07PBGMR.G1, relator Cruz Bucho, e de 11.04.2011, Processo nº 625/07.3GAEPS.G1, relator Tomé Branco; do Tribunal da Relação de Lisboa de 29.04.2010, Processo nº 1670/09.0YRLSB-9, relatora Guilhermina Freitas, e de 03.05.2011, Processo nº 146/09.0PHOER, relator José Adriano; do Tribunal da Relação de Coimbra de 29.05.2013, Processo nº 379/11.9GAVNO.C1, relator Rui França, de 19.06.2013, Processo nº57/11.9GAAGN.C1, relatora Maria Pilar de Oliveira, e de 18.02.2004, Processo nº 4302/03, relator Barreto do Carmo; do Tribunal da Relação de Évora de 05.12.2017, Processo nº 210/16.9GAVRS.E1, relator Gilberto Cunha, de 13.01.2004, Processo 2175/03-1, relator Manuel Nabais, e de 02.03.2004, Processo nº 1869/03-1, relator Sénio Alves; do Tribunal da Relação do Porto de 25.01.2023, Processo nº 999/20.0PWPRT.P1, de 30.03.2022, Processo nº 1160/18.0GBVNG.P1, ambos relatados por Maria Joana Grácio, e de 07.03.2007, Processos nº 0642960 e nº 0646472, relatora Isabel Pais Martins; todos disponível em www.dgsi.pt.
Refere-se no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07.02.2024, Processo nº 182/22.2GCVFR.P1, relator Pedro Vaz Pato, em contraponto à posição jurisprudencial que distingue a possibilidade de valoração consoante haja ou não a constituição como arguido: «Afigura-se-nos, porém, que não é de seguir tal corrente jurisprudencial.
A tese em que assenta tal corrente faz depender de atos puramente formais (a abertura formal de inquérito e a constituição formal de arguido), e não razões substanciais, a tutela efetiva dos direitos do arguido. As razões substanciais que levam à irrelevância como prova de declarações informais de arguido prestadas depois da sua constituição como tal são as mesmas que deverão levar a essa irrelevância quando tais declarações são prestadas antes dessa constituição. E não colhe dizer que antes dessa constituição formal ele é apenas suspeito, ou simples cidadão, sem os direitos que a lei atribui aos arguidos: tal significaria tornear as exigências constitucionais e legais de respeito por tais direitos, significaria «deixar entrar pela janela aquilo a que se fechou a porta». E isso verificar-se-á mesmo que não haja qualquer má fé de um agente policial ao conversar com o arguido no âmbito das diligências impostas pelos referidos artigos 243.º, 248.º, 249.º e 250.º do Código de Processo Penal (é óbvio que ele não está impedido de o fazer, a questão é apenas a de saber se essas conversas, por si só, podem valer como meios de prova apesar do que dispõem os artigos 357.º, n.º 3, e 356.º, n.º 7 do mesmo Código). Nesse âmbito, não pode dizer-se que esse agente está a atrasar artificialmente a constituição de arguido. Mas o que deve dizer-se é que já nessa altura se sabe que ele virá posteriormente a ser constituído como tal e é isso que torna irrelevante como prova o que possa afirmar perante um agente policial, mesmo que a conversa em causa se justifique no âmbito das referidas diligências.»
Pelo exposto, improcede a impugnação da decisão sobre a matéria de facto formulada pelo recorrente.
Consequentemente, não vinga a associada pretensão recursiva de que o arguido AA, absolvido em primeira instância, por não se ter provado a sua participação nos factos, seja condenado pela prática, em coautoria (com os arguidos BB e CC) e em concurso efetivo, dos imputados crimes de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203. n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), com referência ao artigo 202º alínea e), todos do CP, e de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº1 do mesmo Código.
III.2.4 – Sobre a aplicabilidade do disposto no art. 53º, nº3 do Código Penal:
Alega o Ministério Público no douto recurso deduzido nos autos que [conclusões 8ª a 10ª]:
- O Tribunal condenou a arguida BB pela prática em coautoria material e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203. n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma, na pena de 1 ano e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução, por igual período de tempo.
- Ao não subordinar a suspensão da execução da pena de prisão em que a arguida BB foi condenada a regime de prova, o Tribunal violou a norma do artigo 53º, nº 3, do Código Penal, pelo facto de a arguida BB, à data da prática dos factos, ter a idade de 18 anos.
Vejamos.
Preceitua o art. 53º do Código Penal, no segmento que ora releva:
“1 - O tribunal pode determinar que a suspensão seja acompanhada de regime de prova, se o considerar conveniente e adequado a promover a reintegração do condenado na sociedade.
2 - O regime de prova assenta num plano de reinserção social, executado com vigilância e apoio, durante o tempo de duração da suspensão, dos serviços de reinserção social.
3 - O regime de prova é ordenado sempre que o condenado não tiver ainda completado, ao tempo do crime, 21 anos de idade.” [sublinhado nosso]
A condenada BB tinha 18 anos de idade à data da prática dos factos, pelo que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada devia ter sido subordinada a regime de prova, em conformidade com o estatuído no citado nº3 do art. 53º.
Não o tendo feito, incumpriu o Tribunal recorrido o aludido preceito legal.
Por conseguinte, na procedência do recurso, cumpre determinar que a suspensão da execução da pena aplicada à arguida BB seja acompanhada de regime de prova, mediante a oportuna elaboração pela DGRSP de plano de reinserção social.
III.2.5 – Verificação ou não dos requisitos para aplicação à arguida BB do regime especial para jovens:
A este propósito, alega o Ministério Público recorrente, resumidamente [conclusões 34, 35 e 37]:
- Não deveria ter sido aplicado à arguida BB o regime penal dos jovens delinquentes, atendendo a que a arguida BB não prestou declarações em audiência de julgamento, não respondeu a questões a formular pelo Tribunal e não demonstrou arrependimento, pelo que não foi possível verificar da sua capacidade de autocrítica, como fatores decisivos para se perceber que, não obstante a gravidade objetiva do ilícito, a atenuação da pena em virtude da aplicação do regime penal dos jovens delinquentes - que equivale a uma moldura abstrata mais benigna - pudesse de alguma forma traduzir-se em vantagem para a sua ressocialização.
- Não basta que existam razões para a reinserção é necessário que elas sejam sérias, o que não sucede, manifestamente, no caso concreto.
- Até à data, nenhum dos arguidos ressarciu o ofendido FF em qualquer valor, nem entregou qualquer dos objetos furtados.
Conhecendo.
O Decreto-Lei nº 401/82, de 23.09, instituiu o regime aplicável em matéria penal aos jovens com idade compreendida entre os 16 e os 21 anos à data do cometimento de um crime (cf. art. 1º, nºs 1 e 2).
Nos termos do art. 4º deste diploma legal, “Se for aplicável pena de prisão, deve o juiz atenuar especialmente a pena nos termos dos artigos 73.º e 74.º do Código Penal, quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.”
No preâmbulo do Decreto-Lei expõem-se os motivos da legislação, nos seguintes termos: «1. O presente diploma visa regular uma matéria de largo interesse e importância, correspondendo, igualmente, ao imperativo decorrente do artigo 9.º do Código Penal. 2. Tal interesse e importância não resultam tão-só da ideia de que o jovem imputável é merecedor de um tratamento penal especializado, mas vão também ao encontro das mais recentes pesquisas no domínio das ciências humanas e da política criminal, como, finalmente, entroncam num pensamento vasto e profundo, no qual a capacidade de ressocialização do homem é pressuposto necessário, sobretudo quando este se encontra ainda no limiar da sua maturidade.
[…] 4. O princípio geral imanente em todo o texto legal é o da maior flexibilidade na aplicação das medidas de correção que vem permitir que a um jovem imputável até aos 21 anos possa ser aplicada tão-só uma medida corretiva. Trata-se, em suma, de instituir um direito mais reeducador do que sancionador, sem esquecer que a reinserção social, para ser conseguida, não poderá descurar os interesses fundamentais da comunidade, e de exigir, sempre que a pena prevista seja a de prisão, que esta possa ser especialmente atenuada, nos termos gerais, se para tanto concorrerem sérias razões no sentido de que, assim, se facilitará aquela reinserção. 5. A inconveniência dos efeitos estigmatizantes das penas aconselha a que se pense na adoção preferencial de medidas corretivas para os delinquentes a que o diploma se destina.
[…] 7. As medidas propostas não afastam a aplicação - como ultima ratio - da pena de prisão aos imputáveis maiores de 16 anos, quando isso se torne necessário, para uma adequada e firme defesa da sociedade e prevenção da criminalidade, e esse será o caso de a pena aplicada ser a de prisão superior a 2 anos. […]»
Perante este enquadramento legal, menciona-se no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 03.04.2017, Processo nº 897/14.7JABRG.G1, relator Fernando Chaves, disponível em www.dgsi.pt: «I) Está hoje perfeitamente adquirida na jurisprudência a ideia de que o poder de atenuar especialmente a pena aos jovens delinquentes é um verdadeiro poder-dever, isto é, perante a idade entre 16 e 21 anos do arguido, o tribunal não pode deixar de investigar se se verificam as sérias razões a que se refere o DL nº 401/82 de 23/09 e se tal acontecer não pode deixar de atenuar especialmente a pena. II) No caso dos autos, o arguido cometeu os crimes de violação agravado e coacção, na forma tentada em contexto institucional e num período transitório da vida e sem aparentes manifestações de recidiva, inculcam no sentido de que a atenuação especial das penas irá facilitar o propósito da ressocialização. III) E mesmo algumas dificuldades que se pressentem pela fragilidade dos amparos sociais e familiares com que o arguido poderá contar - em face do quadro factual social, económico e familiar resultante dos autos - não deverão constituir-se em juízo desfavorável, «pois só perante a criação de algumas condições possíveis no encaminhamento na direcção dos valores se poderá testar o modo de reacção e o desempenho futuro da personalidade» do arguido. IV) Em suma, questionando-se a aplicação do regime penal para jovens adultos, o juízo deve ser positivo desde que não existam razões fortes para duvidar da possibilidade de reinserção. V) Os factos, considerados no seu conjunto, fazem, ainda assim e apesar da sua gravidade, sobressair a prevalência das finalidades politico-criminais que estão no fundamento do regime penal para jovens.VI) Deste modo, impõe-se concluir, in casu, pela aplicação do regime estabelecido do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, com a atenuação prevista no artº 4º, porquanto as condições e a idade do arguido fazem crer que da atenuação resultarão vantagens para a sua reinserção.»
Como se acentua no acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 09.04.2018, Processo nº 1069/16.1JABRG.G1, relator Jorge Bispo, disponível em www.dgsi.pt: «II) O direito penal dos jovens surge como uma categoria própria, envolvendo um ciclo de vida, referente a um período de latência social, de descompromisso com a relação escolar, familiar e profissional, com um potencial de delinquência, em moldes efémeros, sob o signo de capacidade de mutação e regressão na fase de mais avançada idade. III) Para realizar o juízo de prognose sobre o desempenho futuro da personalidade do jovem, impõe-se ponderar, numa avaliação global dos factos apurados no caso concreto, a natureza e modo de execução do crime, a personalidade do arguido, a sua conduta anterior e posterior ao facto, bem como as suas condições de vida, tudo de forma a averiguar se a moldura penal do crime em questão é ou não excessiva tendo em vista os fins de socialização do jovem condenado. IV) Porém, esse juízo sobre a existência de sérias razões para crer que da atenuação especial da pena resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado reverte mais às condições pessoais e de carácter deste (condições de vida, familiares, educação, inserção e prognose sobre o desempenho da personalidade) do que à gravidade das consequências do facto. V) Mas, mesmo não partindo da gravidade dos factos, o juízo sobre as vantagens para a reinserção social do arguido não pode olvidar a refração de duplo sentido da personalidade para os factos e destes para aquela.»
Ainda a propósito do caráter não automático da atenuação especial da pena, meramente decorrente da jovem idade do condenado, e pressupostos da sua aplicação, expõe-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.10.2023, Processo nº 988/22.0S6LSB.S1, disponível em www.dgsi.pt: «I. A atenuação especial da pena a que alude o artº 4º do DL 401/82, de 23/9 só é de aplicar quando o conjunto dos factos apurados, relativos ao ilícito mas, também, às características da personalidade do arguido, à sua conduta anterior e posterior aos factos, à sua inserção social e familiar, revelar de forma clara que a atenuação especial da pena se traduzirá em efectivo contributo para a sua reinserção social. II. A atenuação especial da pena não pode, assim, assentar no simples facto de o agente ter – à data dos factos – idade compreendida entre os 16 e os 21 anos de idade. Nem, tão pouco, na circunstância de não se terem demonstrado factos que obstem à aplicação de tal medida. Como, aliás, não pode ser aplicada como voto de confiança ou manifestação de fé na reinserção social do jovem condenado. Tem, isso sim, que assentar em factos positivos, isto é, na demonstração de circunstâncias que, globalmente consideradas, inculquem no julgador esse juízo seguro de que o arguido beneficiará, na sua reinserção social, dessa atenuação.»
No mesmo sentido, o acórdão do Supremo Tribunal de 07.11.2007, Processo nº
nº 07P3214, relator Henriques Gaspar, disponível em www.dgsi.pt: «A aplicação do regime, que consiste na atenuação especial da pena quando seja aplicável pena de prisão (superior a 2 anos – art. 5.º do DL 401/82), depende, pois, do juízo que possa (deva) ser formulado relativamente às condições do jovem arguido, e que deve ser positivo quando as diversas variáveis a considerar (idade, situação familiar, educacional, vivências pregressas, antecedentes de formação pessoal, traços essenciais de personalidade em formação) permitam uma prognose favorável (ou, com maior rigor, não impeçam uma prognose favorável) sobre o futuro desempenho da personalidade, mesmo, ou sobretudo, com o acompanhamento das instituições de reinserção.»
Retornando ao caso sob apreciação.
Contrariamente ao que aparenta entender o ilustre recorrente, a circunstância de a arguida BB não ter prestado declarações em audiência de julgamento não pode funcionar em desfavor daquela, mediante uma pretensa e falaciosa correspondência a falta de arrependimento e capacidade de autocrítica.
O bem jurídico protegido pela norma incriminadora reporta-se ao património alheio, interesse jurídico que, não sendo despiciendo, não assume a mesma relevância dos bens de natureza pessoal, nomeadamente quando atacados mediante uso de violência.
Por outro lado, o grau de ilicitude do crime de furto qualificado perpetrado pela arguida é mediano, com parcas consequências para o património do lesado.
A moldura abstrata da pena de prisão aplicável (2 a 8 anos) é bastante significativa quanto aos seus limites mínimo e máximo.
A arguida não tem antecedentes criminais, sendo certo que já decorreram quase 3 anos desde a práticos dos factos.
Apresenta precária condição económica, bem como inserção laboral e familiar, ainda que instável.
Apreciando em concatenação os sobreditos factores, entendemos que a imagem global dos factos dados como provados e a personalidade da arguida, à data dos factos com 18 anos de idade, permite concluir que o cometimento do crime em questão (furto qualificado) representa um mero desvio transitório e ocasional, próprio do período de latência social propiciador da delinquência juvenil, o que mostra ser viável formular um juízo de prognose favorável à atenuação especial prevista no art. 4.º do DL n.º 401/82, de 23.09, sendo que não vislumbramos razões de necessidade de defesa do ordenamento jurídico que obstem à aplicação dessa medida legal de benevolência.
Destarte, é de manter, nesta parte, a douta decisão recorrida.
III.2.6 - Dosimetria penal relativamente às penas parcelares aplicadas aos arguidos pela prática do crime de furto qualificado:
Neste segmento recursório, o Ministério Público alega, em súmula [conclusões 38ª e 39ª]:
- As penas parcelares de 3 anos e 6 meses de prisão, pela prática do crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203. n.º 1 e 204.º, n.º 2, alínea e), ambos do Código Penal, com referência ao artigo 202º alínea e), do mesmo diploma, são adequadas às exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir e não excedem a medida da culpa dos arguidos.
- As exigências de prevenção geral são elevadas, face ao tipo de conduta em causa, que põem em perigo a propriedade, o grau de ilicitude dos factos é elevado, atenta a forma do seu cometimento, a culpa dos arguidos é elevada, pois atuaram com dolo direto, não confessaram os factos, não demonstraram arrependimento, denotando uma total ausência de autocensura, em total desabono da sua personalidade.
Vejamos.
Relativamente ao arguido CC, face à moldura abstrata da pena de prisão de dois a oito anos [cfr. art. 204º, nº 2, al. e), do Código Penal], o Tribunal recorrido aplicou ao arguido a pena de 2 (dois) anos e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
No que tange à arguida BB, face à moldura abstrata da pena de prisão, especialmente atenuada, de 1 (um) mês a 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses [cfr. art. 204º, nº 2, al. e), do Código Penal], o Tribunal recorrido condenou a arguida na pena de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo.
Conforme decorre do art. 40º, nº 1, do Código Penal, a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº2 do art. 40º do C.P.).
Segundo Figueiredo Dias[7], quanto aos fins das penas, predomina «a ideia de que só as finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reações específicas. Num contexto em que a prevenção geral assume o primeiro lugar, como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação, do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida, em suma, na expressão de Jackobs, como estabilização contrafática das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida».
O mesmo insigne autor, após expor a teoria penal por si defendida no que tange ao problema dos fins das penas, conclui do seguinte modo[8]:
«(1) Toda a pena serve as finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial; (2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; (4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função das exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais».
Idêntico ensinamento é fornecido por Maria João Antunes, in “Penas e Medidas de Segurança”, Almedina, 2020 (reimpressão), p. 45, nos seguintes termos: «A medida da pena tem de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, em face do caso concreto, num sentido prospetivo de tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida. Um critério de necessidade da pena que não fornece, contudo, um quantum exato de pena. Fornece somente a medida ótima de tutela dos bens jurídicos e das expetativas comunitárias e o ponto abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função de tutela do ordenamento jurídico. Ponto que não tem de coincidir com o limite mínimo da moldura legal, podendo situar-se acima dele. Neste sentido, é a prevenção geral positiva (e não a culpa) que fornece uma moldura dentro da qual vão atuar pontos de vista de prevenção especial de socialização, sendo eles que, em última instância, vão determinar a medida da pena. Constituindo a culpa o limite inultrapassável de quaisquer considerações preventivas – em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (art. 40º, nº2, do CP) -, a culpa fornece somente o limite máximo da pena.»
Assim, na proteção de bens jurídicos está ínsita uma finalidade de prevenção de comportamentos danosos que afetem tais bens e valores (prevenção geral) como também a realização de finalidades preventivas que sejam aptas a impedir a prática pelo agente de futuros crimes (prevenção especial negativa).
As finalidades das penas na sua vertente de prevenção positiva geral e de integração ou prevenção especial de socialização conjugam-se na prossecução do objetivo comum de, por meio da prevenção de comportamentos danosos, proteger bens jurídicos comunitariamente valiosos cuja violação constitui crime.[9]
Casuisticamente, a finalidade de tutela e proteção de bens jurídicos há de constituir o motivo fundamento da medida da pena, da tutela da confiança das expectativas da comunidade na validade das normas e especificamente na validade e integridade das normas e dos correspondentes valores concretamente afetados.
Por seu turno, a finalidade de reintegração do agente na sociedade há de ser casuisticamente prosseguida pela imposição de uma pena cuja espécie e medida, determinada por critérios derivados das exigências de prevenção especial, se mostre adequada e seja exigida pelas necessidades de ressocialização do agente, ou pela intensidade da advertência que se revele suficiente para realizar tais finalidades.
Nos limites da prevenção geral de integração e de prevenção especial de socialização deverá ser encontrada a medida concreta da pena, sempre de acordo com o princípio da culpa que, como vimos, nos termos do art. 40º, nº 2, do Código Penal, constitui limite inultrapassável da prevenção a realizar através da pena.
A operação de fixação da pena, dentro dos sobreditos limites, faz-se, segundo o art. 71º, nº 1, do Código Penal, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. Atendendo-se, conforme prescreve o nº 2 do mesmo preceito legal, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, nomeadamente:
- Ao grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente – al. a);
- À intensidade do dolo ou da negligência – al. b);
- Aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram- al. c);
- Às condições pessoais do agente e a sua situação económica – al. d);
- À conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime – al. e); e
- À falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena – al. f).
No caso vertente, no que tange à determinação da medida das penas, o Tribunal a quo fundamentou a decisão nos seguintes termos [transcrição]: «No que concerne à determinação da medida das penas concretamente a aplicar ao arguido, nos termos do disposto no artigo 71º, nº 1, do CP, será feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção geral e especial, devendo o Tribunal atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do elemento do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele. Constituindo a culpa o limite inultrapassável da medida da pena (artº 40º, nº 2, do CP), e decorrendo o seu limite mínimo de considerações ligadas à prevenção geral, a medida exata da pena será fruto das exigências de prevenção especial. O bem jurídico protegido pela norma violada, a necessidade de resposta contractiva a essa violação e a personalidade do agente, manifestada no facto, hão-de influir – e decisivamente – na medida concreta da pena.
Assim, em sede de medida concreta da pena, há que ponderar:
· o grau de ilicitude do facto, que se reputa de elevado, atendendo à forma de execução do crime. Considerada, neste particular, deverá ser, ainda, a circunstância de a totalidade dos objetos não ter sido recuperada.
· Segue-se que os arguidos agiram com a forma mais intensa de dolo - o dolo direto. Na verdade, a atuação dos arguidos foi voluntária e intencional, tendo previsto e pretendido e querido as consequências que a sua atuação originou, a sua culpa é, por isso, elevada.
· De outro passo, as exigências de prevenção geral afiguram-se igualmente elevadas, atenta a frequência com que os crimes contra o património são cometidos, geradora de um expressivo sentimento de insegurança na população, o que torna absolutamente legítima a expectativa da comunidade numa vigorosa reafirmação da vigência das normas violadas.
· Por sua vez, as exigências de prevenção especial revelam-se diminutas, face à ausência de antecedentes criminais, por parte de qualquer dos arguidos.
Assim, tudo visto e ponderado, considerando a medida da culpa dos arguidos e os referidos princípios de prevenção geral e especial, mostra-se adequado graduar, em concreto, a pena de prisão a aplicar aos arguidos nos seguintes termos: - 1 ano 2 meses de prisão para a arguida BB - 2 anos e 2 meses de prisão para o arguido CC.»
Aderimos pelo seu acerto às sobreditas considerações tecidas na sentença recorrida a propósito dos critérios e factores de determinação da pena ponderados, exceto no que concerne ao considerado grau de ilicitude do facto.
Na verdade, julgamos que o grau de ilicitude do facto é mediano e não elevado, atendendo a que modo de execução do facto é corrente neste tipo de criminalidade, não se verificando a esse título qualquer circunstância agravante que não esteja já acautelada pelo tipo qualificado, e que, distintamente ao afirmado na decisão, o micro-ondas furtado foi recuperado, encontrando-se na posse da arguida aquando da sua interceção pelos militares da GNR. Além disso, o valor global dos bens subtraídos, na parte em que foi apurado, ascende a € 400,00, montante que não é particularmente expressivo.
Por outro lado, não tomamos como correto o argumento recursivo de que a não confissão dos factos pelos arguidos, a não demonstração de arrependimento, denotam uma total ausência de autocensura, e devem ser considerados em desabono da sua personalidade.
Tal raciocínio, salvo melhor opinião, significa atribuir ao silêncio dos arguidos, no exercício de um direito que a lei lhes concede, um indevido efeito desfavorável, uma factualmente não sustentada equivalência entre a não prestação de declarações e a pretensa atitude interior de falta de consciencialização da censurabilidade das suas condutas.
O que o Tribunal podia e devia valorar, mas nesse caso como circunstância atenuante geral, nos termos do art. 71º, nº2, al. e), do CP, era uma objetiva e positiva assunção dos factos, mediante a confissão dos mesmos, e eventual demonstração de arrependimento, por exemplo, por restituição dos bens furtados.
Dito isto, é de atender a pretensão de agravamento da medida das penas de prisão cominadas aos arguidos BB e CC, uma vez que, considerado o concreto circunstancialismo fático verificado, aquelas sanções mostram-se excessivamente benévolas e, nessa medida, incapazes de promover os fins punitivos de jaez preventivo e de censurar a culpa manifestada pelos arguidos.
Sopesados todos os enunciados factos e considerações, em especial as atinentes à ilicitude dos factos, à intensidade da culpa à necessidade da pena, julgamos adequadas e idóneas à satisfação das necessidades de afirmação dos bens jurídicos violados, bem como à finalidade de procurar que os arguidos se insiram socialmente e não voltem a delinquir, as seguintes penas:
- Para a arguida BB: pena (especialmente atenuada) de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão;
- Para o arguido CC: pena de 3 (três) anos de prisão.
Cremos, pois, que as preditas penas parcelares são as necessárias a assegurar a crença da comunidade na validade da norma jurídica violada e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico penais, bem como a finalidade de reintegração social dos condenados. Procede parcialmente, destarte, a pretensão recursória de agravamento da medida das penas de prisão aplicadas aos arguidos pela prática de um crime de furto qualificado.
III.2.7 - Invocada existência no caso de concurso real entre o crime de furto qualificado e o crime de dano igualmente imputado na acusação:
Relativamente a este fundamento recursivo, invoca o Ministério Público, em síntese [conclusões 11ª a 15ª]:
- A danificação da câmara de videovigilância não foi instrumental da prática do crime do furto qualificado. De facto, os arguidos destruíram a câmara de videovigilância para evitarem serem filmados e, posteriormente, identificados pelas autoridades, ou seja, para ocultarem a sua participação na prática do crime de furto qualificado.
- Da matéria de facto dada como provada constam todos os elementos objetivos e subjetivos da prática do crime de dano (cfr. pontos 5 e 11 da matéria de facto dada como provada).
- O concurso aparente só deverá ser equacionado no caso da indispensabilidade dos crimes instrumentais para o cometimento do “crime fim”: sem a verificação dessa indispensabilidade instrumental, os crimes que antecedem ou são contemporâneos ao crime fundamentalmente visado pelo agente conservam a sua autonomia, devendo ser punidos no âmbito do concurso real de infrações.
- Para a prática do crime de furto sub judice os arguidos não necessitavam de destruir a câmara de videovigilância.
- Assim, o crime de dano não pode ser objeto de consumpção pelo crime de furto qualificado e os arguidos BB e CC devem ser condenados pela prática do crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal.
Examinando.
Estatui o art. 212º, nº1, do Código Penal:
“Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheios, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.”
Encontra-se provado que:
1) No dia 22 de novembro de 2021, no período compreendido entre as 1:00 e as 3:50 horas, os arguidos, em obediência a plano previamente elaborado e em conjugação de esforços, dirigiram-se para a residência sita na rua ..., ..., pertencente ao ofendido FF – propriedade que se encontrava delimitada com muro, rede de vedação e portão em todo o seu redor - a fim de se apoderarem dos objetos que ali encontrassem e lhes despertassem interesse, contra a vontade e sem conhecimento do ofendido, fazendo-se transportar num veículo ligeiro de passageiros, de marca ..., modelo ..., conduzido pelo arguido CC.
2) Aí chegados, os arguidos subiram o muro que vedava a citada habitação - com altura não inferior a um metro – introduziram-se no logradouro da habitação e aproximaram-se das traseiras da referida habitação.
3) Ato seguido, um dos arguidos, de forma não concretamente apurada, partiu o vidro de uma janela e abriu-a.
4) Após, os arguidos subiram a tal janela e introduziram-se na residência.
5) De seguida, os arguidos, de forma não concretamente apurada, partiram a câmara de videovigilância da citada habitação, de valor não concretamente apurado, destruindo-a.
6) Após, os arguidos percorreram as diversas divisões da residência, a fim de observar tudo o que aí existisse e lhes pudesse interessar, tendo retirado, os seguintes objetos de valor não concretamente apurado:
- Um micro-ondas de marca ...”
- Uma máquina de café de marca “...”
- Duas garrafas de cachaça de marca ...”
- Duas garrafas de vodka preta de marca ...”
- Uma garrafa de vodka branca de marca ...”
- Uma garrafa de vodka limão de marca ...”
- Duas garrafas de Whisky, de marca ...”
- Uma televisão de marca ...
- A quantia de €400,00 (quatrocentos euros).
7) Os arguidos munidos dos referidos objetos, de valor não concretamente apurado, que pertenciam ao ofendido, abandonaram o local, levando-os consigo e fazendo-os seus.
8) No referido dia 22 de novembro de 2021, pelas 3:55 horas, num caminho sito a menos de 200 metros da citada rua ..., ..., a arguida transportava apeada o mencionado micro-ondas que lhe foi apreendido pela GNR.
9) Os arguidos agiram de forma concertada e em conjugação de esforços, com o propósito conseguido de se introduzirem na referida residência e de se apoderarem e fazerem seus os citados objetos identificados no ponto 6º.
10) Sabiam que o acesso nas condições descritas lhes era vedado, que os objetos não lhe pertenciam e que as suas condutas eram contrárias à vontade do proprietário.
11) Os arguidos agiram em comunhão de esforços e intentos, de acordo com plano previamente traçado entre si ou a que posteriormente aderiram, com o propósito concretizado de causarem estragos à citada camara de videovigilância pertencente ao ofendido, apesar de saberem que a mesma não lhes pertencia e que estavam a agir contra a vontade do seu proprietário, resultado aquele que representaram.
12) Os arguidos agiram sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.”
Atenta a sobredita factualidade apurada, mostra-se correta a asserção recursória de que a destruição da câmara de videovigilância pertencente ao ofendido FF não constituiu um ato necessário para a prática do crime de furto por banda dos arguidos CC e BB.
Na verdade, a destruição da dita câmara ocorreu já após os arguidos terem logrado introduzir-se no interior da habitação do ofendido, sem que se deparassem com qualquer outro obstáculo físico que os impedisse de aceder aos bens móveis alheios ali existentes.
Como nota o Exmo. magistrado do Ministério Público que lavrou o recurso, «os arguidos destruíram a câmara de videovigilância para evitarem serem filmados e, posteriormente, identificados pelas autoridades, ou seja, para ocultarem a sua participação na prática do crime de furto qualificado.»
Ora, como sapientemente observado pelo recorrente, o concurso aparente entre os crimes de furto e de dano está reservado para os casos em que o segundo se revela um meio necessário, indispensável para a concretização do furto, encontrando-se ainda a coberto da mesma resolução criminosa tomada pelo agente.
Como menciona Maria Paula Ribeiro de Faria, in “Formas Especiais do Crime”, UCE, Porto, 2017, pp. 381-382, «Existe um concurso aparente de normas sempre que as condutas praticadas correspondem abstratamente a várias fattispecies sancionatórias sem que se possa efetivamente falar de crimes autónomos. […] A necessidade de reconhecimento do concurso aparente de normas decorre do princípio segundo o qual ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo crime, pelo que, se a relação entre as normas não for devidamente esclarecida sob o ponto de vista interpretativo, deixa de existir correspondência entre a gravidade dos factos praticados pelo agente e a pena que lhe é efetivamente aplicada. Está aqui presente uma preocupação de equidade e de certeza jurídica a impedir uma resposta penal excessiva do Estado, que não seria legítima quer sob o ponto de vista da necessidade e proporcionalidade da pena, quer sob o ponto de vista da reeducação e da reintegração social do agente. De acordo com uma primeira explicação do concurso legal ou aparente [a adotada pela autora e por nós], todos os elementos das normas incriminadoras estão preenchidos, pelo que elas concorrem efetivamente entre si, embora só uma delas seja aplicável.»
A decisão de aplicação de uma das normas assenta na relação de especialidade, subsidiariedade ou consunção que se estabeleça entre as normas abstratamente aplicáveis.
Como acrescenta a aludida autora [idem, p. 390], a relação de consunção, que é a que no caso se revela potencialmente aplicável, assenta «numa valoração acerca do conteúdo de ilicitude material abrangido pelas disposições em confronto. Este critério impede a aplicação da norma “consumida” em favor da aplicação da norma que “consuma” (lex consumens derrogat legi consumptae). A relação de consunção deixa-se identificar sempre que a realização de um crime comporta também a realização de outro cujo desvalor normativo social é absorvido ou consumido pelo primeiro que comporta consequências sancionatórias mais graves. Diferentemente do que sucede no âmbito do princípio da especialidade, que exige a coincidência ao nível do núcleo descritivo ou valorativo (identidade do bem jurídico tutelado) dos tipos legais em confronto, a relação de consunção baseia-se num juízo de valor comparativo entre tipo legais autónomos pressupõe uma unidade normativa entre factos. Esta relação entre normas não exige a coincidência dos bens jurídicos tutelados, funcionando com base numa relação de similitude ou proximidade valorativa entre os bens jurídicos protegidos pelas normas em confronto.»
Um grupo de casos que se inclui no âmbito da relação de consunção integra os denominados factos anteriores e posteriores não puníveis, entendidos como factos que preenchem de forma autónoma um tipo legal de crime, mas que constituem um pressuposto ou uma consequência habitual de outros crimes, enquanto meios utilizados para a prática do crime principal, ou como objetivos visados com a sua realização.
Reportando-se ao critério do crime instrumental ou crime-meio a propósito do concurso aparente de crimes, menciona Jorge de Figueiredo Dias, in “Direito Penal - Parte Geral”, Tomo I, 2ª edição, 2007, Coimbra Editora, p. 1018, que tal critério abrange todos aqueles casos de relacionamento entre um ilícito puramente instrumental (crime-meio) e o crime –fim correspondente, «(…) aqueles casos em que um ilícito singular surge, perante o ilícito principal, unicamente como meio de o realizar e nesta realização esgota o seu sentido e os seus efeitos.»
A não punibilidade do “crime-meio” justifica-se pela observância do princípio jurídico-constitucional da proibição da dupla valoração.
Destarte, haverá concurso aparente de crimes entre o furto e o dano, ilícitos cujo bem jurídico que protegem coincide (património alheio), se este se cingir a ser um meio regular para o cometimento daqueloutro e assumir uma gravidade natural, mínima. Nesta hipótese, o dano pode passar a funcionar como circunstância agravante geral do crime de furto, caso a conduta danosa não esteja já especialmente prevista como qualificativa no tipo legal (por exemplo, arrombamento da porta da habitação – art. 204º, nº2, al. e), do CP).
Neste sentido, entre outros, se pronunciou o aresto do Tribunal da Relação do Porto de 10.11.2010, Processo nº 1028/09.0PRPRT.P1, relatora Eduarda Lobo, disponível em www.dgsi.pt.
Pois bem, no caso vertente, reitera-se, os arguidos não necessitavam de destruir a câmara de videovigilância para perpetrar o idealizado furto.
Assim, como assertivamente defende o recorrente, «sem a verificação dessa indispensabilidade instrumental, os crimes que antecedem ou são contemporâneos ao crime fundamentalmente visado pelo agente conservam a sua autonomia, devendo ser punidos no âmbito do concurso real de infrações.»
Donde, não sendo o crime dano objeto de consunção pelo crime de furto qualificado, impõem-se a condenação dos arguidos BB e CC pela prática, em coautoria, do imputado crime de dano, p. e p. pelo artigo 212º, nº 1, do Código Penal, porquanto ressuma da factualidade provada o preenchimento integral dos elementos objetivos e subjetivos do tipo legal.
São elementos objetivos do tipo: a) ocorrência de destruição, danificação, desfiguramento ou inutilização de coisa corpórea; b) a conduta incida sobre coisa pertencente a outrem.
O elemento subjetivo do tipo preenche-se com o dolo genérico, em qualquer das suas modalidades previstas no artigo 14º do CP.
O denominado elemento emocional do dolo ou consciência da ilicitude pressupõe o conhecimento e entendimento pelo agente do cariz ilícito e penalmente punível da sua conduta, de modo a que sobre ele seja viável formular um juízo de censurabilidade ético-jurídica pela sua atitude pessoal de contradição ou indiferença ao direito.
Logo, encontrando-se provado que os arguidos BB e CC «partiram a câmara de videovigilância da citada habitação, de valor não concretamente apurado, destruindo-a», a qual pertencia ao ofendido FF, verifica-se o preenchimento da tipicidade objetiva do crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº1, do CP.
A atuação de ambos os arguidos é-lhes imputável a titulo de coautoria, nos termos do art. 26º do CP - cfr. facto provado sob o nº 11.
Por outro lado, atendendo à matéria de facto provada constante dos pontos 9 a 11, preenchido se mostra o elemento subjetivo do tipo na modalidade de dolo direto ou de primeiro grau (cf. art. 14º, nº1, do CP).
Provada também se mostra o denominado elemento emocional do dolo ou, para quem assim entenda, a consciência da ilicitude, porquanto os arguidos atuaram de forma livre, voluntária e cientes da previsibilidade e punibilidade criminal da sua conduta (cf. facto provado nº 12), não se abstendo ainda assim de executar tal comportamento ilícito e culposo.
Não se verifica qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.
III.2.7.1 - Escolha do tipo e medida das penas a aplicar aos arguidos BB e CC pela prática, em coautoria (e em concurso efetivo com um crime de furto qualificado), de um crime de dano, p. e p. pelo art. 212º, nº1, do Código Penal:
Urge proceder às operações de escola do tipo e medida da pena a aplicar ao arguido, tendo presente a jurisprudência fixada no Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2016, do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no Diário da República nº 36/2016, Série I, de 22.02.2016: «Em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 374.º, n.º 3, al. b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, als. a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do CPP.»
O crime de dano cometido pelos arguidos é punível com pena de prisão de um mês a três anos ou com pena de multa de 10 a 360 dias (cf. arts.41º, nº1, 47º, nº1, e 212º, nº1, todos do CP).
O art. 70º do CP determina que se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Conforme decorre do art. 40º, nº 1, do Código Penal, a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (nº2 do art. 40º do C.P.).
No que concerne às finalidades das penas e aos critérios e factores que presidem à escolha do tipo de pena e determinação da respetiva medida, para evitar desnecessárias repetições, dão-se aqui por reproduzidos os considerandos por nós já realizados no item III.2.2.1.
Dito isto, no que tange à escolha do tipo de pena a aplicar, entendemos que devem ser cominadas a ambos os arguidos penas de multa, não privativas da liberdade, por no caso concreto bastarem para satisfazer convenientemente as finalidades punitivas, designadamente de tutela da confiança das expectativas comunitárias na validade e integridade da norma e do bem jurídico violado, e de promoção da ressocialização dos arguidos.
Com efeito, não obstante as exigências de prevenção geral serem elevadas, atenta a indesejável frequência com que é praticado o tipo de conduta ajuizada nos autos, o que se revela fator de algum alarme social e causa de sentimento de insegurança, dado que o cidadão comum tende a temer pelo seu património, que nem na sua casa vê seguro, as exigências de prevenção especial são diminutas, atendendo à ausência de antecedentes criminais dos arguidos e à sua relativa inserção social, familiar e laboral.
Procedendo agora à determinação das medidas concretas das penas de multa, reitera-se o sobredito no que concerne às exigências de prevenção verificadas no caso vertente.
O grau de ilicitude do facto é baixo/mediano, uma vez que o modo de execução pode-se rotular de “habitual” atento o fito criminoso perseguido de destruição da câmara de videovigilância, e a consequência do crime é reduzida atento o desconhecimento do concreto valor do bem danificado, que, desse modo, importa considerar diminuto em obediência ao princípio in dubio pro reo.
Funcionarão como circunstâncias agravantes gerais a intensidade do dolo, direto ou de 1º grau, outrossim a de os arguidos terem agido com o intuito de ocultarem a sua identidade e assim impedirem ou dificultarem a investigação criminal sobre os agentes da prática de outro crime [als. b) e c), respetivamente, do nº2 do art. 71º].
Operam como circunstâncias atenuantes gerais os factos de os arguidos se encontrarem razoavelmente inseridos social, familiar e profissionalmente e não possuírem antecedentes criminais [als. d) e e), respetivamente, do nº2 do art. 71º]. Somente quanto à arguida BB, a sua jovem idade, pois que contava com 18 anos de idade à data do facto, o que inculca a ideia de que a sua imaturidade e natural permeabilização ao ascendente do coarguido, assaz mais velho do que ela, terá contribuído para o cometimento do crime [al. d) do nº2 do art. 71º].
Tudo visto e ponderado, conjugadamente, entendemos serem adequadas, proporcionais e suficientes a tutelar e a proteger os bens jurídicos violados, assegurando a confiança das expectativas da comunidade na validade e integridade da norma, bem como a satisfazer as necessidades de ressocialização dos condenados, as seguintes penas:
- Para a arguida BB: 60 dias de multa;
- Para o arguido CC: 80 dias de multa.
No que concerne ao quantitativo diário da multa, prescreve o art. 47º, nº2, do CP que “Cada dia de multa corresponde a um a quantia entre € 5 e € 500, que o tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos pessoais.” In casu, ponderando a descrita situação económico-financeira de cada um dos arguidos, fixa-se em € 6,00 (seis euros) a quantia diária devida a título de multa penal.
Conclui-se, nos mencionados termos, pela procedência parcial do recurso do Ministério Público.
III.2.7.2 – Perdão previsto na Lei nº 38-A/2023, de 2 de agosto:
À data da prática do crime de dano, previsto e punido pelo art. 212º, nº1, do Código Penal, a arguida BB tinha 18 anos de idade.
Nos termos do art. 2º, nº1, da Lei nº 38-A/2023, de 02.08, que estabeleceu um perdão de penas e uma amnistia de infrações por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude, estão abrangidas por aquele diploma, “(…) as sanções penais relativas aos ilícitos praticados até às 00:00 de 19 de junho de 2023, por pessoas entre que tenham entre 16 e 30 anos de idade à data da prática do facto, nos termos definidos nos artigos 3º e 4º.”
Prevendo o «perdão de penas», dispõe a alínea do nº2 do art. 3º da mencionada Lei: “São ainda perdoadas […] As penas de multa até 120 dias a título principal ou em substituição de penas de prisão.”
Não se verifica qualquer das exceções consagradas no art. 7º da Lei 38-A/2023.
De acordo com o estipulado no art. 8º, nº1 da Lei nº 38-A/2023, “O perdão a que se refere a presente lei é concedido sob condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente à sua entrada em vigor, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento da pena ou parte da pena perdoada.”
Pelo exposto, urge perdoar a pena de 80 dias de multa aplicada à arguida BB, sob a sobredita condição resolutiva.
*
IV – Dispositivo:
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder parcial provimento ao douto recurso interposto pelo Ministério Público e, em conformidade: IV.1 – Revogar a sentença recorrida no que tange às penas aplicadas aos arguidos BB e CC pela prática, em coautoria e na forma consumada, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 203º, nº1, 204º, nº2, al. e) e 202º, al. e), todos do Código Penal, que são substituídas pelas seguintes: - Para a arguida BB: pena especialmente atenuada de 1 (um) ano e 9 (nove) meses de prisão; - Para o arguido CC: pena de 3 (três) anos de prisão. IV.2 – Revogar a sentença recorrida no que concerne à não subordinada suspensão da execução da pena de prisão aplicada à arguida BB, determinando-se o seu obrigatório acompanhamento de regime de prova, conforme estatuído no artigo 53º, nº3, do Código Penal, devendo requerer-se à DGRSP a oportuna elaboração de plano de reinserção social. IV.3 – Revogar a sentença recorrida relativamente à deliberada absolvição dos arguidos BB e CC pela prática, em coautoria, na forma consumada e em concurso efetivo, de um crime de dano, previsto e punido pelo artigo 212º, nº1, do Código Penal, condenando-os agora nesses termos imputados na douta acusação e nas seguintes penas: - Para a arguida BB: pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante de € 360,00 (trezentos e sessenta euros); - Para o arguido CC: pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o montante de € 480,00 (quatrocentos e oitenta euros). IV.4 – Nos termos conjugados dos artigos 2º, nº1 e 3º, nº2, alínea a), da Lei nº 38-A/2023, de 02.08, declarar perdoada a pena de multa aplicada à arguida BB (item IV.3), sob a condição resolutiva prevista no art8º, nº1, da mencionada Lei. IV.5 – Quanto ao mais, manter a douta sentença recorrida.
Sem tributação (artigos 513º, nº1 e 514º, nº1, ambos do Código de Processo Penal, a contrario).
Notifique (art. 425º, nº6, do CPP), sendo ainda o arguido CC com as cominações constantes do art. 49º, nºs 1 e 2, do CPP.
*
Guimarães, 8 de outubro de 2024
Paulo Correia Serafim (Relator)
[assinatura eletrónica]
Pedro Cunha Lopes (1º Adjunto)
[assinatura eletrónica]
Júlio Pinto (2º Adjunto)
[assinatura eletrónica]
(Acórdão elaborado pelo relator e por ele integralmente revisto, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP)
[1] Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 335; Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que mantém atualidade. [2] Observa-se que, conforme igualmente nota a Exma. PGA no parecer que lavrou nos autos, o recorrente também invoca nas conclusões do recurso a violação dos artigos 374.º, n.º2 e 379.º, n,º 1, c) ambos do Código de Processo Penal. Porém, a esse respeito nada desenvolveu sobre os motivos pelos quais entende que a sentença padece de tal nulidade, a qual também não descortinamos oficiosamente. [3] Cfr., por todos, os acórdãos do STJ de 31/05/2007, proferido no Processo nº 07P1412 [relatado pelo Exmo. Conselheiro Simas Santos], e de 23/05/2007, proferido no Processo nº 07P1498 [relatado pelo Exmo. Conselheiro Henrique Gaspar], ambos disponíveis in www.dgsi.pt. [4] Neste sentido, a título exemplificativo, vejam-se os Acórdãos do Tribunal da Relação de Guimarães de 23/03/2015, processo 159/11.5PAPTL.G1; do Tribunal da Relação de Lisboa de 29/03/2011, processo 288/09.1GBMTJ.L1-5, de 18/07/2013, processo 1/05.2JFLSB.L1-3, de 21/05/2015, processo 3793/09.6TDLSB.L1-9, e de 08/10/2015, processo 220/15.3PBAMD.L1-9; e do Tribunal da Relação de Évora de 19.05.2015, processo 441/10.5TABJA.E2, todos disponíveis em www.dgsi.pt. [5] “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, in “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, Almedina, pp. 253-254. [6] A referência à alínea c) trata-se de um manifesto lapso, pois a matéria em questão encontra-se descrita na alínea a) dos factos não provados. As ali mencionadas alíneas a) e b) correspondem antes às alíneas b) e c) dos factos não provados. A final, ao abrigo do disposto no art. 380º, nº1, al. b), e nº2, do CPP, determinar-se-á a correção destes erros de escrita. [7] “Direito Penal Português, Tomo II - As Consequência Jurídicas do Crime”, 1993, pp. 72-73. [8] “Direito Penal, Parte Geral”, Tomo I, 2ª Edição, Coimbra Editora, 2007, pp.78-85. [9] Conforme menciona Manuel Augusto Barros Lopes, in “Sobre Um Caminho Para a Pena”, 2022, p.110, a finalidade da pena «(…) no modo de prevenção geral positiva ou integração, aposta no reforço da confiança ou consciência comunitária na validade da ordem jurídica. Existindo pertinência do bem jurídico a pena exerce uma função pedagógica dirigida à interiorização dos bens jurídico-penais pela consciência jurídica comunitária, uma função de pacificação social. (…) Por seu turno, a prevenção especial assume natureza acautelar a prática de futuros crimes, quer pelo mesmo agente no polo em que fulmina enquanto negativa, quer por possíveis agentes diversos no polo em que atrai como positiva. (…) no modo de especial positiva adota a regeneração, reeducação, ressocialização ou reinserção social como desígnio.»